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IV 2017 Semna ς Estudos de Egiptologia IV Antonio Brancaglion Junior Gisela Chapot organizadores Seshat- Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional e Editora Klínē 2017 Rio de Janeiro/Brasil Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial- CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Capa: Antonio Brancaglion Jr. Diagramação e revisão: Gisela Chapot Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-graduação em Arqueologia Seshat ς Laboratório de Egiptologia Quinta da Boa Vista, s/n, São Cristóvão Rio de Janeiro, RJ ς CEP 20940-040 Editora Klínē B816s BRANCAGLION Jr., Antonio. Semna ς Estudos de Egiptologia IV/ Antonio Brancaglion Jr., Gisela Chapot (orgs.). ς Rio de Janeiro: Editora Klínē, 2017. 307f. Bibliografia. ISBN 978-85-66714-08-1 1. Egito antigo 2. Arqueologia 3. História 4. Coleção I. Título. CDD 932 CDU 94(32) mailto:http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/ mailto:http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/ Sumário EQUIPE ORGANIZADORA DA IV SEMNA ................................................................................... 5 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................... 6 HERMES TRISMEGISTO E OS CAMINHOS DO PENSAMENTO ............................................. 8 D. PEDRO II E A EGIPTOLOGIA .................................................................................................. 23 UMA RELEITURA DAS RELAÇÕES ENTRE COMUNIDADE E PATRIMÔNIO NA NECRÓPOLE DOS NOBRES EM TEBAS ..................................................................................... 36 PATRONES ESPACIALES EN LA RESOLUCIÓN DE PALIMPSESTOS EN EL OESTE TEBANO, EGIPTO ........................................................................................................................... 50 ISIS, O TRONO DO EGITO: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DA DEUSA E DO PODER RÉGIO NO EGITO DO REINO NOVO........................................................................................... 60 UM ESTUDO DAS CENAS RITUAIS ENVOLVENDO A RAINHA NEFERTÍTI .................... 67 HISTÓRIA, IMAGEM E PODER SOCIAL: UMA ANÁLISE DAS IMAGENS DO EGITO ANTIGO NOS LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS ................................................................. 77 RELAÇÕES PERIGOSAS: ETIQUETA, EXTORSÃO E DEBATE INTER-RELIGIOSO EM DOIS (DES)ENCONTROS ENTRE O PAPA JOÃO DE SAMANNÛD E O EMIR ABD AL- AZIZ ( 8 -686 D.C.) ..................................................................................................................... 87 LA UNIÓN DEL bA Y EL CADÁVER EN LOS TEXTOS DE LOS SARCÓFAGOS. UN ANTECEDENTE DE LA SEXTA HORA DEL LIBRO DEL AMDUAT .................................. 104 L EXISTENCE OU PAS D UNE « DEMOCRATISATION » OU « DEMOTISATION » DU POST MORTEM : L ÉTUDE DES CHAOUABTIS DU NOUVEL EMPIRE .......................... 125 O CONCEITO MÁGICO 'HEKA' NAS COSMOGONIAS DO EGITO FARAÔNICO ........ 141 FÓRMULAS MÁGICAS EGÍPCIAS E AMEAÇAS AOS DEUSES: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE E DISCUSSÃO .............................................................................................................. 148 O CULTO À DEUSA ÍSIS E O EMARANHAMENTO CULTURAL ENTRE O EGITO ANTIGO E O IMPÉRIO ROMANO .............................................................................................................. 157 OS MESTRES DO DESERTO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA EGÍPCIA .......................................................................................................................................... 170 GÊNERO SAPIENCIAL EM DIÁLOGO: UMA LEITURA BAKHTINIANA DE PROVÉRBIOS 22:17–24:22 E ENSINAMENTOS DE AMENEMOPE ........................................................... 185 GUIA DOS VIVOS NO ESPAÇO DOS MORTOS: O LIVRO PARA SAIR À LUZ DO DIA E UMA PROPOSTA DE CARTOGRAFIA DO ALÉM EGÍPCIO ................................................ 199 ESTUDIO DE LAS REPRESENTACIONES DE NEFERHOTEP EN LAS PAREDES NORTE Y SUR DE LA TT49 A TRAVÉS DE LA MORFOMETRÍA GEOMÉTRICA ......................... 215 A HETEROGIPCIA ENQUANTO O OUTRO EGÍPCIO NA FILOSOFIA .............................. 230 LA SOLARIZACIÓN DE LA REALEZA Y SU CORRELATO MATERIAL ............................ 241 A INFLUÊNCIA EGÍPCIA DOS PAPIROS GREGOS MÁGICOS: VOCES MAGICAE ......... 255 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO HINO CANIBAL .............................................. 261 IMAGINÁRIOS E REPRESENTAÇÕES DO EGITO FARAÔNICO NUMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS DO BATMAN ..................................................................................................... 270 AS CONVENÇÕES DO DISCURSO IMAGÉTICO NA SALVAÇÃO DO MORTO: A PESAGEM DA ALMA NO CAIXÃO DE PESTJEF ........................................................................................ 289 OS AMULETOS FUNERÁRIOS DO EGITO ANTIGO NO ACERVO DO MAE-USP .......... 298 EQUIPE ORGANIZADORA DA IV SEMNA Antonio Brancaglion Jr. ς coordenador geral Cintia Gama-Rolland Gisela Chapot Letícia Gomes Pedro von Seehausen Raízza Santos 6 APRESENTAÇÃO Em 2017, a Semana de Egiptologia do Museu Nacional completa 5 anos. A SEMNA consagrou-se na atualidade como maior evento de egiptologia da América Latina, congregando estudiosos do Egito antigo de todo o Brasil, e de outros países, principalmente nossos colegas argentinos e franceses. Nesses 5 anos, também temos contado com a colaraboração de colegas da Inglaterra, Itália e Espanha. A perspectiva é aumentar o escopo de colaborações, o que faz com que a SEMNA contribua em grande medida para a inserção de egiptólogos brasileiros no cenário internacional. Esta publicação continua a expressar o panorama de crescimento dos estudos brasileiros em Egiptologia, assim como reflete a criação, cada vez mais enfática, de uma comunidade latino- americana de Egiptologia. Esperamos que estes trabalhos contribuam para a disseminação da Egiptologia entre nós, mas, sobretudo, estimule o surgimento de novas pesquisas no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro, novembro de 2017. Antonio Brancaglion Jr. Gisela Chapot 7 Estudos de Egiptologia 8 HERMES TRISMEGISTO E OS CAMINHOS DO PENSAMENTO Miguel Attie Filho Universidade de São Paulo Departamento de Letras Orientais Resumo: O presente artigo versa sobre elementos da formação do pensamento atribuído a Hermes Trismegisto, a partir das inúmeras combinações que foram realizadas sob seu nome. O argumento se desenvolve a partir de referências geográficas, históricas e gnosiológicas, discutindo o perfil dos escritos atribuídos a Hermes frente à filosofia. O tema predominante apresenta aspectos da formação do Cosmos, o lugar do divino e do humano e o papel da inteligência nos tipos de pensamento mítico e especulativo. Resumé : Le présent article traite des éléments de la formation de la pensée attribuée à Hermes Trismegisto, à partir des nombreuses combinaisons qui ont été faites sous son nom. L'argument est développé à partir de références géographiques, historiques et gnoséologiques, en discutant le profil des écrits attribués à Hermes par rapport à la philosophie. Le thème prédominant présente des aspects de la formation du Cosmos, le lieu du divin et de l'humain, et le rôle de l'intelligence dans les types de pensée mythique et spéculative. “Assim, é como se nossa alma tivesse duas faces: uma face voltada para o corpo e uma face voltada para os princípiossupremos. Do lado de cima nascem as ciências e do lado de baixo nasce a moral. São assim as almas. Distintas por meio do que lhes é próprio e que está nelas, quer haja os corpos quer não haja os corpos, quer conheçamos tais estados quer não os conheçamos, ou quer conheçamos apenas alguns deles”. Avicena, Livro da alma, século XI e.c. Muito boa tarde a todos. Professor Antonio Brancaglion Junior, Diretor do Laboratório de Egiptologia e Curador da Coleção Egípcia do Museu Nacional, pesquisador do Institut īrançais dχArchéologie Orientale do Cairo, membro do International Committee for Egyptology e do International Council of Museums. Estimado Professor, cujo trabalho e intensa dedicação, dentro e fora do país, elevam a academia brasileira e o Brasil, porquanto é satisfação minha, pessoal, agradecer o convite e registrar o reconhecimento de muitos pelo que tem plantado ao longo de sua vida acadêmica, e espero que seus alunos o sigam, seja no rigor e na qualidade da pesquisa, seja na seriedade e na justa postura ética, aspectos de sua altivez interior. Prezados Professores, Pesquisadores, Alunos, Senhoras e Senhores, agradeço, pois, o convite que me fora feito para estar hoje aqui, nesta tarde, junto com vocês. Minha manifestação cujo título é Hermes Trismegisto e os caminhos do pensamento está prevista para sessenta minutos, ordena-se sob três aspectos ς geográfico, histórico e gnosiológico ς, é de abordagem panorâmica e, de certo modo, introdutória. 9 Ousando esticar-se em vasta geografia, espremer-se em exíguo tempo e mover-se em plurais câmaras gnosiológicas, não pretende ser obra de arqueólogo nem pura datação de historiador, tampouco fólio tradutório de linguista, nem visitação mística nem revelação teológica, mas, sim, pura filosofia. Melhor, pensei-a como fruto de um livre pensar que, tendendo a se valer de um ilustrado conjunto de estudos de áreas tão específicas, se coloca a serviço de aproximar esses diferentes saberes, distinguindo-os sem os recortar, costurando-os por meio de suas intrínsecas naturezas. Em que medida, afinal, podem ser articuladas as várias áreas do saber que se debruçam sobre o aparentemente inesgotável universo de Hermes? Egito, Grécia, Pérsia, Roma, Bizâncio, ciências árabes, várias línguas, alquimia, esoterismo, filosofia, religião, ocultismo e outras ainda. Todas parecendo se dirigir a um mundo de outras ciências, um tipo de transmundo, inefável. Como ordenar, pois, suas polifacéticas visões? Não pretendo tanto, mas prefiro escolher uma tríade, de caráter metodológico, que, no mínimo, possa auxiliar a ordenação de tantas questões, ainda que, no fundo, deseje sempre penetrar no supostamente impenetrável mundo de Hermes, para compreender, nos limites do intelecto, o que de humano nos é, por vezes, concedido saber. O primeiro item da tríade é geográfico e procura circunscrever o espaço das ocorrências de Hermes, o segundo é histórico e recolhe alguns de seus eventos e, por fim, o terceiro é noético, buscando tangenciar o mínimo do pensamento que disso decorreu a partir de um certo grupo de registros, reais marcas do pensamento dos humanos sobre a Terra. Sigo, assim, por uma tríade que denomino pensamento-espaço-tempo, como se fosse esta um indício da natureza profunda daquilo que, costumeiramente, chamamos realidade. Meu propósito, assim, é modesto: não vai além de identificar aspectos fundantes do caráter geográfico, histórico e gnosiológico sobre Hermes, o Trismegisto. Em tal curta jornada, desde pronto, pelo intrínseco caráter prolegomênico de minha intervenção, escuso-me de minhas omissões, da tateante inabilidade em setores específicos, desejando, outrossim, contar com a generosidade acadêmica de tantos aqui presentes, sabedores em grau maior, de cada aspecto particular, daquilo que eu próprio me arrisco a considerar. Esta é, pois, meramente a fala de um filósofo que, voltando seus olhos para os caminhos de Hermes nada ensina, mas conta o que disso tem aprendido. E assim, navegando nas areias infindas daquilo que ignora, segue minha alma, viajante no tecido perene do pensamento-espaço-tempo em companhia de tantas outras, a procurar o mínimo da luz do entendimento. E, assim, feitas tais preliminares considerações, passemos ao assunto que aqui nos traz: Hermes Trismegisto e os caminhos do pensamento. 10 Qualquer abordagem que pretenda tecer relações entre filosofia e os caminhos de Hermes, considerando a frequente separação entre os saberes, tão comum à Modernidade, deveria se perguntar de início: qual é o tratamento que livros de filosofia dão a Hermes Trismegisto e ao seu mais conhecido resultado escrito, o Corpus hermeticum? Para obter essa resposta, basta uma rápida consulta em manuais, dicionários e histórias da filosofia para atestar que eles são, frequentemente, lacunares ou, no mínimo, econômicos a esse respeito. Entre outros fatores, isso pode ser explicado pelo fato de que, no desdobramento da filosofia, os escritos de Platão e Aristóteles são, geralmente, tomados como fontes primeiras de escolas filosóficas seguintes, posteriores e contemporâneas aos escritos atribuídos a Hermes. Essas escolas, por sua vez, como que se valendo de parte das ideias contidas nos primeiros filósofos, geraram o que se costumou denominar nesses manuais de platonismo ou aristotelismo cujos filósofos que lhes inspiraram, isto é, Platão e Aristóteles, dificilmente se integrariam completamente nessas correntes que levam seus nomes. Assim, leituras posteriores ς tal como o denominado, neoplatonismo, peripatetismo, neopitagorismo e outros ς seriam sincretismos que, também partindo de escritos de Platão e de Aristóteles, teriam recombinado livremente suas teses primárias. Se, para tais correntes filosóficas, esse sincretismo lhes é constituinte, no caso dos Corpus hermeticum e de outros escritos atribuídos a Hermes, tal perfil sincrético é intensificado, sendo dado, assim, em segundo grau, um tipo de mescla das escolas de segunda instância e, por isso, mais distante das fontes originais. Mas para focalizarmos primeiramente as bases que dizem respeito à formação do que viria a ser Hermes Trismegisto, tomemos de antemão um dado básico, tal como é referido em um tradicional Dicionário de īilósofos, o do τCentro de Īstudos īilosóficos de Gallarateυ. Īm seu verbete sobre Hermes, recolhe-se: Hermes, entre os gregos, é um deus estreitamente ligado à palavra, pai da palavra e, como tal, intérprete e mensageiro de Zeus; para os estoicos é a palavra personificada, também para os gnósticos Hermes é o logos. Quando, na época helenista, os gregos compararam seus deuses com os egípcios, foram surpreendidos pela analogia que se dava entre Hermes e o egípcio Thot, deus das letras, da medida e dos números (...) e como os egípcios chamavam seus deuses de grandes, Hermes identificado com Thot foi denominado , três vezes grande. Hermes foi considerado uma pessoa humana, mantendo seu título e sua elevada missão de revelador da verdade e, portanto, de mediador entre Deus e os homens. (...) A Hermes Trismegistos foram atribuídos numerosos tratados de indubitável procedência alexandrina, que pertencem aos séculos II-III d.C. Escritos quando o pensamento filosófico em decadência buscava sua revalorização em uma suposta origem divina, esses escritos refletem o clima sincretista dos pequenos círculos filosóficos da tardia cultura. (...) A doutrina filosófica exposta nos escritos herméticos (hermetismo) é uma mescla de ideias psicológicas órfico-platônicas-pitagóricas, de cosmologia estoica, de física aristotélica e de elementos astrais caldaicos. (GALLARATE, 1986: 608) Em referência à identificação e, mesmo, à assimilação de Hermes à Thot ς fenômeno comum nos tipos de pensamento mágico, iniciático, cifrado e mítico ς, há uma área mais ou 11 menos móvel de atributos ao redor de um núcleo estável cuja principal característicaé a conexão entre o deus ς ou o homem-deus ς e o humano e cujo intuito é ensinar as artes, as ciências, a escrita etc. Grande parte dos mitos de inúmeras culturas tem alguma narrativa desse tipo. Para ilustrar esse caráter mítico da chegada do conhecimento aos humanos, há uma passagem providencial, visto que reúne Hermes, Thot e os inícios da filosofia. Trata-se da conhecida menção de Platão a uma suposta narrativa de Sócrates a respeito de Thot. Bem, ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, houve um dos velhos deuses daquele país, um deus a que também é consagrada a ave chamada Íbis. Quanto ao deus, porém, chamava-se Thot. Foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo, governava todo o Egito Tamuz, que residia ao sul do país, na grande cidade que os egípcios chamam Tebas do Egito, e a esse deus davam o nome de Amon. Thot foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas o outro quis saber a utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele censurava ou elogiava, conforme essas artes lhe pareciam boas ou más. Dizem que Tamuz fez a Thot diversas exposições sobre cada arte, condenação ou louvores cuja menção seria por demais extensa. Quando chegaram à escrita, disse Thot: τĪssa arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhe fortalecerá a memória; portanto, com a escrita, inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoriaυ; responde Tamuz: τGrande artista Thot! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilização ou do prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo, precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrando de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência, serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios. Fedro: com que facilidade, Sócrates, inventas histórias egípcias assim como de outras terras, quando isso te apraz. (PLATÃO, s/d:178, 274C) O resultado da fusão de Hermes com Thot, em terras do Egito, gerou um conjunto de textos reunidos posteriormente. O Corpus Hermeticum, em sua totalidade, não entrou diretamente naquele fluxo de textos traduzidos para o árabe a partir do século VIII e.c., e principalmente no século IX na Casa da Sabedoria (Bait al-hikma), embora por outros caminhos e por outros textos, Hermes tenha chegado aos persas e, depois, aos árabes. Na Europa, o Corpus exerceu considerável influência durante todo o Renascimento. O que se costumou denominar Neoplatonismo Renascentista fundiu-se, muitas vezes, aos ensinamentos do Corpus Hermeticum, nos quais Marcílio Ficcino (1433 ς 1499) cumpriu papel central, já que foi decisivo para a elaboração da tradução ao latim e para seus desdobramentos a partir do século XV. Impressa a tradução pela primeira vez em 1471, apresentou-se com o título Mercurii trimegisti liber de potestate et sapientia Dei. Seu conteúdo esteve associado, geralmente, aos Oráculos caldaicos e aos Orphica, sendo considerados todos como um corpo único de doutrinas esotéricas conhecidas como Prisca Theologia. Se, pelo lado da ciência nascente na Europa, muitas ideias sobre a harmonia do 12 Universo desenvolvidas por Bruno, Campanella e Copérnico puderam ser reconduzidas a tais fontes de Hermes, por outro lado, muitas sociedades iniciáticas surgidas no século XVII na Europa das Luzes atribuíam a si a herança de uma suposta verdadeira sabedoria dos antigos (herméticos, órficos, caldeus, egípcios), intensificando um sem número de especulações ligadas aos campos do esoterismo, ocultismo, alquimia e magia. Do ponto de vista do pensamento, são vários, portanto, os caminhos de Hermes. Inúmeros são, também, os espaços geográficos da incidência das ideias a ele atribuídas. Nesses espaços inclui-se, primeiramente, o Egito, sobretudo Alexandria, mas também Pérsia, Grécia, Síria, Harran, Mesopotâmia, em especial Bagdá, e Europa, inicialmente Itália, espalhando-se posteriormente por todo o continente. A cronologia que podemos estabelecer é oscilante, iniciando-se no Egito ptolomaico retrocedendo às origens egípcias de Thot, passando aos persas, aos sírios, aos árabes, tornando-se um, dois e até três Hermes, um antediluviano, outro babilônico e outro egípcio. A rota de transmissão nem sempre é visível, ora deixando, ora apagando seus vestígios, levando a inferências a partir de textos e fontes do Thot egípcio, de sua assimilação ao Hermes grego, da reunião dos textos transformada em um Corpus Hermeticum, acrescido de textos árabes e persas independentes, dos manuscritos de Nag Hammadi e de muitas outras vias. As línguas de Hermes também são plurais, pois, além dos textos egípcios sobre Thot, se considerarmos o Corpus, passamos também ao grego, e depois disso há fontes em persa, siríaco, árabe e latim até chegar às línguas modernas. Nesse vasto universo de Hermes, a tríade geografia-história-pensamento, por sua ampla variedade, faz de sua historiografia um imenso arsenal documental. Há muitos estudos e estudiosos que já fizeram um levantamento dessa extensa documentação a respeito de muitos dos tópicos mencionados, cabendo a mim, ao menos, relembrar alguns deles. No que tange às conexões primevas entre Thot e Hermes, a partir das fontes do Egito antigo, destaco a obra de Garth Fowden The egyptian Hermes do ano de 1986. Quanto ao início do sincretismo Thot- Hermes, a partir do período helênico, a obra de André-Jean Festugière dominou o cenário na década de 1940 em diante, fixando o texto grego e apresentando uma tradução para o francês do Corpus hermeticum, somando-se a isso uma longa reflexão crítica apresentada em seu La révélation d’Hermès Trismégiste. Houve, também, uma tradução inglesa de Brian Copenhaver em 1992. No que se refere ao Hermes Árabe, têm destaque o Apêndice III Inventaire de la littérature hermétique arabe feito por Louis Massignon, o qual se encontra como um anexo à obra de Festugière; o recenseamento de Georges Anawati em L’histoire des sciences arabes; os textos árabes sobre o Egito antigo de Okasha El Daly em Egyptology the missing millenium; os estudos de Plessner sobre a relação entre Hermes e as ciências árabes; e o estudo de Kevin Van Bladel, The arabic Hermes, 13 sobre o perfil documental de Hermes entre os árabes. Assim, encontramos, hoje em dia, um igualmente vasto e valioso conjunto de estudos a refletir a grandiosidade das fontes de Hermes Trismegisto, seja em sua extensão espacial-geográfica, temporal-histórica ou gnosio- epistemológica. Do ponto de vista epistemológico, procuro passagens que relacionam pontos de contato entre a filosofia e o Corpus, mais precisamente, e dirijo-me aos seguintes: a constituição do Cosmos e o lugar da inteligência, do divino e do humano nesse cenário. As relações entre Hermes e a filosofia passam, certamente, pelo lugar que ocupa o universal do intelecto frente à imaginação e suas particulares manifestações. O axioma do pensamento especulativo, isto é, o que torna a filosofia possível, é o conhecimento pelo intelecto, e a constituição e natureza do Cosmos foi, de certo modo, a ocupação dos primeiros filósofos. Há inúmeras passagens no Corpus que se referem a essa condição inalienável da aquisição do conhecimento pela mediação do intelecto e sua relação com a formação e natureza do Cosmos. Por exemplo, no Tratado X ςA Chave ς, lemos a seguinte passagem: E tal é o governo do todo, governo dependente da natureza do um e que penetra tudo pelo meio único do intelecto ( - nous). Não há nada mais divino e mais ativo que o intelecto, nada mais apto a unir os homens aos deuses e os deuses aos homens. O intelecto é o Βom Daimon. ( ὓ Ò ἐ ὁ ¢ α Õ α ω /οutos estin o agatos daimon) Feliz a alma que está plena desse intelecto, infortunada aquele que dele está vazia. (FESTUGIÈRE, 1960: 124s.) Mas, o que seria propriamente esse intelecto ou essa inteligência tal como aparece nos escritos do Corpus? Seria humana, divina ou o próprio Deus? Na abertura do mesmo Corpus há uma menção mais direta ao modo pelo qual Hermes adquiriu o conhecimento das ciências e das artes para transmiti-los aos humanos e, por meio dessa passagem, podemos obter algumas respostas das relações do Corpus com a filosofia. O Tratado I denomina-se Poimandres ς Π £ , cuja etimologia mais conservadora segue por /poimen/pastor/पाति/pâti (indo-europeu) e α » /aner/homem; e outra especula uma via por peime-nte-re, o conhecimento de Rê. De todo modo, Poimandres é um tipo de existente intermediário que fala com Hermes ς embora o nome Hermes não apareça no texto, mas é suposto por Copenhaver ς, fazendo a conexão entre o mundo humano e o mundo divino. Vejamos como se dá, na tradução de Festugière, o encontro de Hermes com Poimandres, o papel da inteligência, do divino e a constituição do Cosmos: Um dia, quando eu [Hermes] comecei a refletir (réflechir/ἐ α ) sobre os seres e meu pensamento (pensée/ α α ) começou a planar nas alturas ς enquanto meus sentidos corporais haviam se acalmado, tal como acontece com aqueles que entram em um sono profundo por excesso de comida ou por causa de uma grande fadiga no corpo ς, então, apresentou-se a mim um ser de um tamanho imenso, além de toda medida possível, que, chamando-me pelo nome, 14 disse: τo que tu queres ver e ouvir e, pelo pensamento (pensée/ » α ), aprender e conhecer?υ Īntão, eu disse: τMas tu, quem és tu?υ; τĪu?υ, disse ele, τĪu sou Poimandres, o Nous ( )da Soberaneidade absoluta (αÙ α ), eu sei o que tu queres e eu estou contigo em tudoυ. Ī eu disse: τĪu quero ser instruído sobre os seres, compreender a natureza deles, conhecer Deusυ. τOh!υ, eu disse, τcomo eu desejo escutar.υ Ī ele, por sua vez, me respondeu: τGuarda bem em teu intelecto tudo isso que tu queres aprender e eu te instruireiυ. (FESTUGIÈRE, 1960:7) Os termos presentes na tradução de Festugière incluem réflechir/ἐ α /ennoías, pensée/ α α /dianoías ou » α /noésas e intellect/ /nous, variando sobre o texto grego que privilegia o campo semântico ao redor de um termo único que os origina: nous / . Na resposta dada por Poimandres a Hermes, por alguma razão, Festugière não traduziu o termo nous, mas o transliterou, como se vê no seguinte trecho: τ φMas tu, quem és tu?χ; φEu?χ, disse ele, φEu sou Poimandres, o Nous da Soberaneidade absolutaχ.υ No texto grego, onde se lê ἰ ἰ ὁ Π £ , ὁ Á αÙ α à , o sentido de αÙ α /autentias pode ser bem compreendido como τaquele que é por si, que age por si mesmoυ, derivando, portanto, em poder absoluto ou autossuficiência. Assim, se optarmos por não transliterar o termo /nous, a resposta de Poimandres a Hermes, poderia ser assim compreendida: τEu sou Poimandres, a inteligência daquilo que éυ. Tal passagem, na tradução latina Mercurii Trimegisti Liber de potestate et sapientia Dei de Ficcino ς Greco in latinum traductus a Marcilio Ficcino Florentino ad comum medicem patrie patrem ς, encontra-se no Tratado I denominado τPimanderυ e assim pode ser lida: τ φTum ego quinam es inquam?χ φSum inquit ille Pimander, mens divine potentieχυ (τ φĪ tu, quem és tu?χ; φSou Poimandres, a mente do poder divinoχ υ). Variadas compreensões dessas passagens, portanto, a respeito do que seria efetivamente a inteligência/ /nous na citada passagem levam a concepções diversas sobre sua natureza e seu lugar epistemológico no que se refere ao mundo divino e ao mundo humano. Ou seja, qual seria a relação estabelecida entre o divino, a inteligência, o Cosmos e o humano? No Tratado II ς Discurso Universal de Hermes a Tat ς, Hermes faz, ainda, outra afirmação: τDeus não é a inteligência, mas é ele a causa para que ela exista/ὁ à Õ Ù Ù ἐ , à < à > α υ. (FESTUGIÈRE, 1960: 37.) A partir disso, duas certezas, ao menos, emergem: a primeira é a de que a inteligência não seria o próprio divino, mas este estaria além da inteligência e dela seria a causa; a segunda é que a inteligência aparece para Hermes particularizada, imagética, personificada na figura de Poimandres. Após essa abertura, o Tratado I segue, e Poimandres, depois de se apresentar subitamente a Hermes como um gênio gigantesco, muda completamente de aspecto e Hermes é colocado como que diante da gênese da criação do universo, como um espectador do começo dos tempos. Os espaços se abrem, de alto a baixo ao mesmo tempo em que a luz se expande, a escuridão dirige-se para baixo, enrolando-se tal como uma serpente sombria. Surgem vapores, 15 umidade, água, terra, fogo e ar, formam-se as esferas celestes, na Terra formam-se vegetais, animais irracionais e, por fim, o ser humano. Poimandres está próximo a Hermes todo o tempo e, reafirmando-se como a inteligência que se manterá próxima aos que são bons, passa a ensinar os humanos por meio de Hermes, o caminho de retorno ao divino, por meio de si, isto é, por meio da inteligência. Nesse sentido, o Tratado I figura e pretende ser uma cosmogonia, uma cosmologia, uma angeologia, tem princípios da física, da filosofia, de epistemologia, de ética e apresenta uma escatologia, mostrando-se, assim, como um tipo de programa de vida aos humanos, um plano de ação revelado. Por sua natureza imagética, fundadora e cosmogônica, o Corpus possui, em suas variadas passagens que reforçam seu mito fundador contido no início, aspectos e traços de perfil típico do pensamento mítico. No relato inaugural, no qual a figura de Poimandres domina, tudo a Hermes é apresentado por imagens. Sua posição é passiva, não há esforço intelectual deliberado para o conhecimento, pois, o que move Hermes é seu puro desejo de conhecer a natureza dos seres e do divino. Ao seu desejo surge Poimandres, personificando a inteligência/nous figurada em uma imagem de perfil mítico, a desenrolar aos olhos de Hermes os segredos da Natureza. Nesse sentido, nos escritos herméticos, isto é, no Corpus, o /nous, que na filosofia grega depois Platão já era puro conceito, parece retroceder a um estado anterior, transformando-se em uma personagem mítica. Talvez tenha sido essa a razão pela qual īestugière tratou os eventos ali narrados como τRevelaçãoυ. Afinal, a transmissão do conhecimento é feita da inteligência divina para a imaginação humana. Na maior parte das Histórias da Filosofia, o período de composição do Corpus hermeticum é considerado decadente do ponto de vista da razão filosófica. Festugière descreveu-o como um tipo de retrocesso da razão, do /logos. Mantendo o ponto de vista dado somente pelo tipo de pensamento especulativo, pela filosofia e pelo logos, Festugière chega a propor o título τRetrocesso da razãoυ ao estabelecer o momento da composição do Corpus. Por essa única perspectiva, ter-se-ia mesmo a sensação de que a abstrata altitude das colinas gregas teria sido como que freada pelas areias egípcias do heká. E, se a razão e a filosofia retrocediam, o pensamento mágico, cifrado e mítico parecia avançar, engolfando o nous de suas alturas para o mundo das imagens. Agora, se observarmos o evento do Corpus do ponto de vista do pensamento mágico, teria havido avanço e não retrocesso, pois o mito teria prevalecido ao engolfar em suas imagens particulares o conceitual e universal do logos. E a inteligência, o nous, que na filosofia já havia adquirido, desde Platão, o estatuto de ser o sem-corpo se teriatornado, ela própria, o contrário de si mesma: pura imagem, corpórea. Entretanto, para uma contemporânea compreensão dos movimentos do pensamento, talvez, a dual disputa entre o 16 mito e a razão possa ser substituída por uma abordagem que considere várias potências e vários tipos de pensamento, propondo que o pensamento nem retroceda nem avance, mas, antes, só se transforme. Além disso, se considerarmos que o pensamento não é absoluto, mas segue invariavelmente atrelado ao seu espaço geográfico e ao seu tempo histórico, então, é por meio de suas marcas que a ele podemos ter acesso, melhor, como se por meio dessa tríade indelével, constituída por marcas, tivéssemos um fino tecido autorreferente chamado pensamento-espaço- tempo a manifestar a realidade ou, talvez, ele próprio a ser a única realidade. Assim, se seguimos a via dos tipos de pensamento, podemos considerar que, no período helenístico do Egito ς notadamente nos séculos II e III e.c. ς, o pensamento já havia sofrido muitas transformações em seus axiomas de funcionamento, seguindo-se um tipo após o outro em mais de uma civilização, indo do mágico ao iniciático, deste ao cifrado, deste ao mítico e deste ao especulativo. Por milênios, o tipo de pensamento mítico guiou inúmeras culturas e civilizações. O passo seguinte, em algumas delas, foi a passagem para o pensamento especulativo, sempre saído do mítico, até consolidar-se como exercício conceitual puro, sem imagens. Não foi só na tradição de língua grega que isso se deu com os fisiologoi ς como bem atestou Jean Pierre Vernant ς, mas também, ao menos, na Índia, se seguirmos do Canto da criação no Rig Veda aos conceitos de Atman e Brahman tal como aparecem nos Upanishads; na China, se passarmos, por exemplo, do mito de Pan-Gu às reflexões metafísicas sobre o Tao por Lao-Dzi ou sobre a ética por Kun-fu-tsé; no Egito, se adentrarmos as reflexões contidas nos Textos dos Sarcófagos, na Pedra de Shabaka ou no Papiro Brehmner-Rhind, ao menos. Tais passagens do mito à razão situam-se em uma longa cronologia na qual se encontram, também, os gregos, cuja passagem é a mais documentada e à qual se deu o nome de filosofia. No caso de Hermes, esta última, por ora, é a que mais focalizamos, visto ser, a filosofia, a fonte mais próxima na composição do Corpus, interessando, sobremaneira, a evolução de seus conceitos que envolveram relações entre cosmogonia, o divino, a inteligência e o humano. Nessas relações, a noção da inteligência/nous teve papel determinante. De certo modo, talvez tenha sido mesmo por conta do nous que o pensamento grego passou definitivamente do mito à razão. Diz Platão no diálogo Fédon (97-c /99-d) que Sócrates havia se maravilhado com os estudos sobre a natureza, e sua curiosidade ς tal como Hermes ς o levou a perguntar sobre a causa da existência dos seres. Contudo, diferentemente de Hermes, Sócrates não foi visitado, mas estudava incessantemente as teses dos phisiologoi que entendiam que a causa (aitia) e o princípio (arché) da Natureza eram um elemento material ou uma combinação desses elementos: ora água ora fogo ora terra ora ar. Descartando as teses de Tales, Empédocles, Heráclito e outros, Sócrates dirigiu-se a um livro de Anaxágoras, no qual se afirmava que o princípio do 17 Cosmos era o nous, a inteligência, o que lhe pareceu promissor. O fragmento 12, passagem emblemática dos primórdios do pensamento especulativo em língua grega, indica o que talvez Sócrates tivesse tomado conhecimento. Todas as outras coisas têm uma porção de tudo, mas a inteligência (nous) é infinita, e autônoma, e não se mistura com o que quer que seja, mas existe sozinha, em si. Pois, se não existisse em si, mas se estivesse misturada com alguma outra coisa, então, teria uma parte de todas as coisas, se com alguma delas se misturasse. (...) É que a inteligência (nous) é a mais sutil e a mais pura de todas as coisas, e possui um conhecimento total de tudo, e o maior poder. É a inteligência (nous) que domina tudo o que tem vida, quer seja maior ou menor. Foi a inteligência (nous) que também teve poder sobre toda rotação, de tal modo que foi ela que no início lhe deu impulso. Primeiramente, começou a mover-se a partir de uma pequena área, mas agora se move sobre uma mais vasta e sobre uma ainda mais vasta há de se mover. E é a inteligência (nous) que tem conhecimento de todas as coisas que se misturam e se separam e se dividem. E tudo o que estava para ser ς o que era, o que agora é e o que está para ser ς a tudo a inteligência (nous) colocou em ordem, bem como essa rotação que agora executam os astros, o Sol e a Lua, o ar e o éter, que estão separados. E foi essa rotação a causa de haverem se separado, e o espesso separou-se do fino, o quente do frio, o brilhante do escuro e o seco do úmido. Mas muitas são as partes de muitas coisas, e nenhuma coisa se separa ou se distingue de outra por completo, a não ser a inteligência. (KIRK, 1994: 383- 385). Eis uma resposta que poderia ter satisfeito o desejo de Sócrates; mas não foi assim, pois, para ele, o nous tal como descrito por Anaxágoras ainda seria corpóreo. E, assim, Sócrates diz que, como ninguém havia dado o passo que levava do material ao imaterial, então ele mesmo, por si só, o faria. E o fez, tal como se fosse, do pensamento, uma segunda navegação ῦ /deuteron ploun (PLATÃO, Fédon, 99c-99d). Assim, cindindo definitivamente o material do imaterial, o corpóreo do incorpóreo, o particular do universal e, enfim, separando a imagem do conceito, o pensamento especulativo em língua grega fez sua passagem do filo-mitos ao filo-sofos. A partir disso, a saga da filosofia passou a ser a saga dos conceitos, a narrativa dos nomes, as lendas das ideias, nas quais o nous foi um dos atores principais. Depois de Platão, Aristóteles, em sua Metafísica (Livro Λ/Lambda), chegou a identificar a inteligência/nous ao próprio divino, a inteligência suprema, consciente de si, eternamente em seu universo próprio do pensar, conforme se observa na seguinte passagem: τPortanto, se a inteligência (nous) é o que há de mais excelente, ela pensa a si mesma, e seu pensamento é pensamento de pensamento / α α ῖ , ἴ ἐ ά , α ἔ ἡ ή ω υ. (ARISTÓTELES, 2000:706, Λ 9.1074b). E, desse modo, no pensamento de Aristóteles, a inteligência “pensando a si mesma por toda a eternidade/ ὕ ω ᾽ ἔχ α α ῆ ἡ α α αἰῶ α” (Λ 9.1075a) acabou por se elevar ao mais alto patamar, tornando-se, ela própria, a excelência da existência, identificada com o divino, pensando perpetuamente a si mesma. A partir das relações entre o humano e o divino, a inteligência dependeu do lugar, da geografia conceitual, da geometria epistemológica. http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=deu%2Fteron&la=greek&can=deu%2Fteron0&prior=to%5Cn http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=plou%3Dn&la=greek&can=plou%3Dn0&prior=%5d http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=au%28to%5Cn&la=greek&can=au%28to%5Cn1&prior=no/hsis http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29%2Fra&la=greek&can=a%29%2Fra0&prior=au%28to%5Cn http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=noei%3D&la=greek&can=noei%3D4&prior=a%29/ra http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=ei%29%2Fper&la=greek&can=ei%29%2Fper0&prior=noei= http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29sti%5C&la=greek&can=e%29sti%5C0&prior=ei%29/per http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=to%5C&la=greek&can=to%5C20&prior=e%29sti%5C http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kra%2Ftiston&la=greek&can=kra%2Ftiston0&prior=to%5C http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C22&prior=kra/tiston http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29%2Fstin&la=greek&can=e%29%2Fstin0&prior=kai%5C http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=h%28&la=greek&can=h%288&prior=e%29/stin http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=no%2Fhsis&la=greek&can=no%2Fhsis3&prior=h%28 http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=noh%2Fsews&la=greek&can=noh%2Fsews1&prior=no/hsishttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=no%2Fhsis&la=greek&can=no%2Fhsis4&prior=noh/sews 18 Plotino, talvez um dos mais próximos na filosofia das ideias do Corpus hermeticum, alçou o uno a um lugar inacessível, além da inteligência, Alexandre de Afrodísia teria identificado a inteligência agente com o próprio Deus, Temístio a manteve como uma faculdade da alma; Al- ī r b , no século X, alçou-a à décima esfera, a da Lua, fazendo dela a fonte da inteligência humana e identificando-a com o primordialmente existente (al-mawjud al-awl). Em sua A cidade excelente, Al-ī r b apresenta esta emblemática passagem da inteligência identificada com o próprio divino: Da mesma maneira, para ser inteligência (عقل/φaql) em ato e inteligente em ato, ele [o primordialmente existente]] não necessita de [outra] essência exterior que fosse por ele inteligida e adquirida, antes, ele [mesmo] é inteligência (φaql) e inteligente em ato ao inteligir sua [própria] essência. Ora, se a essência que intelige é aquela [mesma] que é inteligida, então, ele é inteligência (φaql), na medida em que é inteligível. Logo, ele é inteligência (عقل/φaql), é inteligido (معقول/ma‘aqūl) e é inteligente (عاقل/āqila). Isso tudo é uma única essência, uma única substância, indivisível. (AL-F R B , 2010: 60, Cap.V) Al-ī r b , em sua filosofia, ao estabelecer o fundamento do real, nomeia-o pela expressão o primordialmente existente (al-mawjūd al-awal), depois de Al-Kind nomeá-lo como sendo o verdadeiramente um (al-wa¬id al-¬aq) e antes de Ibn S n (Avicena) nomeá-lo como o existencialmente necessário (al-wājib al-wujūd). Ao menos em Al-ī r b e Ibn S n , o Cosmos inteiro convergiria para uma unidade que, de algum modo, seria a causa da multiplicidade. E, por essência, tal unidade seria inteligência. O Cosmos, nesse caso, seria constituído e passaria da unidade à multiplicidade por meio do noético movimento da substância inteligente que se torna consciência de si. Isso seria, no limite, o que primordialmente existe. Nesse caso, a inteligência não é atributo do divino, e o divino não gera a inteligência. Mas ele, o divino, é propriamente inteligência. E esse não parece ser, pois, o caso e o lugar de Poimandres. Aqui, embora haja coincidência de fontes, o pensamento segue um caminho muito diferente dos caminhos de Hermes. Na filosofia de Al- ī r b , a inteligência é a substância divina, dobra-se sobre si como consciência, gera matéria e, consequentemente, todo o Cosmos até chegar ao humano cujo retorno ao princípio inteligente se faz pelo esforço dado pelo seu próprio intelecto. Diferentemente do que ocorre no caso de Hermes, aqui deve haver esforço intelectual para compreender. Não há revelação imagética para o filósofo. Considere-se, ainda, que, para Al-ī r b , a fonte do conhecimento verdadeiro deve ser uma só, havendo humanos que, pela excelência do intelecto e da ação, são reconhecidos filósofos e outros, pela excelência da imaginação e da ação, são reconhecidos profetas. Agora, o pensamento árabe clássico não foi só filosofia, mas foi também mística, teologia e ciências. Em sua translation studiorum ς como bem caracterizou Alain de Libera ς, depois de Alexandria, o pensamento seguiu na esteira da cronologia por muitas vias, para Harran, para Edessa, para Bagdá, para Córdoba. O próprio Al-ī r b retraçou sua cadeia de mestres desde 19 Alexandria, mas, ainda que houvesse fontes comuns entre sua formação e do Corpus hermeticum, o resultado noético foi assaz diferente. No vasto conjunto de textos que penetraram no mundo árabe no período de traduções da cultura da Antiguidade, Hermes teve também seu lugar entre os árabes. Contudo, o Hermes árabe não foi propriamente o do Corpus hermeticum. Foram, na verdade, três Hermes ς ou Hermeses /Haraamis). Anawati, em seu L’alchimie arabe cita Hirmis na literatura hermética árabe a partir de Ibn al-Nad m, livreiro do século IX e.c., que escreveu em seu Fihrist/Catálogo uma lista de treze livros atribuídos a Hermes, além de outras passagens atribuídas aos Irmãos da Pureza. Vale lembrar que o movimento de tradução dos textos da Antiguidade para a língua árabe foi, muitas vezes, mediado por traduções para o siríaco ou mesmo persa. No caso de Hermes, há uma tradição em persa antes da chegada aos árabes. Massignon, em seu inventário anexado aos estudos de īestugière, grafa que τpara os muçulmanos, Hermes era um profeta autêntico, antediluviano, identificado à Idris, citado no Corão, e à Enoque no Gênesis (FESTUGIÈRE, 2014: 400)υ. Nesse sentido, entre os muçulmanos, a figura de Hermes ganhou legitimidade também por ser identificado com Idris, visto que este é citado nominalmente no Alcorão ao menos nestas duas passagens: τĪ menciona, no Livro, a Idris, porque foi um profeta veraz. A quem elevamos em dignidadeυ (ALCORÃO, (1977; 220, XIX, 56-57); τĪ recorda-te de Ismael, de Idris e de Ezequiel, porque todos se contavam entre os perseverantes. Amparamo-los em Nossa misericórdia, porque se contavam entre os virtuososυ (ALCORÃO, 1977; 236, XXI, 85-86). Massignon indica, também, o extremo sincretismo ao qual o τHermes árabeυ esteve ligado ς talvez mais do que todos os outros casos, reunindo elementos gregos, egípcios, persas, sabeus, maniqueus, gnósticos etc. ς acrescentando que τem sentido estrito são herméticos os textos, em árabe, que se referem nominalmente a Hermes ou aos três Hermesυ (FESTUGIÈRE, 2014: 401). Plessner nos fornece um quadro sintético a respeito da variação da identificação de Hermes nas fontes árabes, como podemos acompanhar nesta passagem: No islã, é bem verdade, o deus [Hermes-Thot] foi transformado em um dos heróis dos tempos antigos, aparecendo, de acordo com seu nome Trismegistus (Al-muthalat bil-hikma), divido em três indivíduos. O primeiro Hermes é identificado com Akhnukh (Enoch) e Idris, viveu no Egito antes do Dilúvio e construiu as pirâmides (...). O segundo (Al-babili / o babilônio) viveu depois do Dilúvio na Babilônia e recuperou o estudo das ciências, mas migrou (segundo uma versão em Fihrist p. 352) para o Egito. O terceiro viveu depois do Dilúvio no Egito e escreveu sobre várias ciências e artes. (PLESSNER, 1971:463) O livreiro Ibn al-Nad m cita Hermes em várias passagens do Fihrist, seja em capítulos dedicados aos livros de astronomia, de medicina e de artes, seja em capítulos voltados aos livros de talismãs, l amuletos e encantamentos: τAlguns dizem que quando Hermes trouxe à luz as outras artes e a filosofia, a medicina foi uma das coisas que ele também desenvolveuυ. (Fihrist, p. 20 674). Ibn al-Nad m indica também que Al-Kind teria dito que viu um livro chamado Discursos de Hermes sobre a Unidade, indicando-o a todos pela sua excelência. Referências árabes a livros e fontes ligadas a Hermes envolvem, assim, várias áreas que vão desde a confecção material de amuletos até imateriais teses metafísicas. Nesse sentido, uma via teórica e outra via prática, nas referências a Hermes, podem encontrar eco na divisão proposta por Festugière, que fixa dois níveis de escritos herméticos: um teórico, filosófico, e outro prático ligado à tecnhé. Outra fonte de menções diretas a Hermes é Sa'id Alandalusi (século XI e.c.), que, em seu livro Hierarquia dos povos/Tabqat al’umam, ao mencionar a ciência entre os egípcios, diz o seguinte: Um grupo de sábios alegava que todas as ciências conhecidas antes do Dilúvio teriam se originado de Hermes, o primeiro que teria habitado o alto Egito. Ele seria quem os hebreus chamavam de Yard, filho de Mihlaχil, filho de Anus, filho de Sit, filho de Adão, que é o profeta Idris, que a paz esteja com ele. Contam que foi ele quem primeiro falou sobre as essências celestiais e os movimentos estelares, quem primeiro construiu templos onde se glorificava a Deus, quem primeiro investigou a medicina e compôs para a gente de seu tempo poemas rimados sobre as coisas terrestres e celestes. Contamque foi ele quem previu o Dilúvio, alertando que uma catástrofe vinda do céu causada por água e fogo cairia sobre a terra. Por isso, temendo pelo desaparecimento do conhecimento e do ensinamento das artes, ele construiu as pirâmides que estão no Alto Egito. Nelas, desenhou todas as formas dos ofícios, seus instrumentos e as descrições das ciências, cuidando assim em conservá-las para as gerações seguintes, por temer que desaparecessem do mundo. (ALANDALUSI, 2011:118-119) Mais à frente, Alandalusi, cita um segundo Hermes: Entre os sábios do Egito, cita-se Hermes, o segundo. Este foi um filósofo que viajava por todo o país, indo de uma cidade a outra; conhecia seus monumentos e a natureza de seus habitantes. Compôs um magnífico livro de Alquimia e outro sobre animais peçonhentos. Depois de Hermes, apareceu o aritmético Proclo, o alexandrino, autor de quatro tratados sobre a natureza e as propriedades dos números. (ALANDALUSI, 2011:120) Dentre toda essa extensa documentação a respeito de Hermes, notadamente a partir de fontes árabes, gostaria de encerrar essa apresentação citando passagens da Tábua de esmeralda – em latim, Tabula smaradigna –, um dos documentos mais conhecidos da alquimia e da tradição hermética, cujo manuscrito mais antigo está em língua árabe. Até Julius Ruskas, no início do século XX, publicar as primeiras versões árabes do período medieval, eram conhecidas somente as versões latinas datadas, aproximadamente, do século XII e.c. Há mais de uma fonte árabe sobre esse material, com diferentes versões. A mais antiga, contudo, encontra-se como um apêndice em O livro do segredo da criação / Kitāb sirr al-halīka, obra elaborada por volta do século IX e.c. e assinada por Balinus. Referindo-se a um suposto texto grego (perdido) de Apollonius de Tyane, a obra entrou no pensamento árabe como fonte de magia, alquimia, astrologia e outras correntes do pensamento cifrado. O cenário da física segue a base dos quatro elementos (água, terra, fogo e ar) e suas intrínsecas relações na composição dos seres. No livro, Balinus apresenta- 21 se como o mestre dos talismã e da magia e diz que um dia, ao entrar em uma cripta sob uma estátua de Hermes, encontrou a referida tábua de esmeralda e um livro sobre alquimia. Em suas próprias palavras, O livro do segredo da criação traz a seguinte passagem: Vi um velho sentado sobre um trono de ouro e tinha em uma das mãos uma tábua de esmeralda sobre a qual estava escrito: Eis aqui a formação da Natureza. E, diante dele estava um livro onde se lia: Eis aqui o segredo da criação dos seres e a ciência da causa de todas as coisas. (TRIMEGISTE, 2012: 7) O livro do segredo da criação (Liber de secretis naturae) ς assim como o Pseudo Aristóteles Segredo dos segredos/Secretum secretorum/Sirr al-asrar ς foi traduzido ao latim por volta do século XII e.c. Leu-o Alberto Magno, comentou-o Roger Bacon, estudou-o Isaac Newton. O início da tábua soou como um enigma, e quem já não o escutou? τO que está em cima é como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que está em cimaυ. A tradução latina, amplamente divulgada, inicia-se do seguinte modo: τVerum, sine mendacio, certum et verissimum: quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut quod est inferius, ad perpetranda miracula rei uniusυ. A partir de uma das versões em árabe, podemos ler a tábua do seguinte modo: Verdadeiramente certo, sem dúvida alguma, é (حقا يقينا ا شك فيه) que o mais abaixo provém do mais alto, e o mais alto do mais abaixo. Espantosa obra, vinda de algo uno, por um único meio, tal como as coisas, provém de uma matéria única. Seu pai, o Sol (Al-shams). Sua mãe, a Lua (Al- qamar). O vento embalou-a em seu ventre e a terra nutriu-a com seu leite. É ele o pai dos talismãs, o guardião do espantoso, o perfeito em força (ابو الطِلسمات خازن العجائب كامل القوى). O fogo torna-se terra, separa-se a terra do fogo, o sutil é mais nobre do que o grosseiro, com prudência e sabedoria sobe da terra ao céu e desce sobre a terra. Recolhe a força do superior e do inferior. Luz das luzes ( نور Nur al-anwar). Estando contigo, diante de ti fugirão as trevas. Força das forças, que/ اانوار ultrapassa toda coisa sutil. E que penetra toda coisa. Tudo isso se faz tal como o grande universo [macrocosmo] ( ااكبار العام / Al-alam al-akbar). É este o meu esplendor! E por isso fui chamado Hermes, o Triplo em Sabedoria! ( باحكمة امثلت هرمس ميت وهذا /wa lihada samit hermis al-muthalat bilhikma) (TRIMEGISTE, 2012: 14) Muito obrigado! Bibliografia ALANDALUSI, Said (2011), A hierarquia dos povos, Tradução por Safa A-C Jubran, São Paulo, Gurgel Editorial. ALCORÃO SAGRADO (1977), Tradução portuguesa diretamente do árabe por Samir el Hayek, São Paulo, Tangará ς Expansão editorial S/A. AL-F R B (2010), Livro das Opiniões dos habitantes da cidade excelente, Tradução, introdução e notas por Miguel Attie Filho. São Paulo. Tese de Livre-Docência, Universidade de São Paulo. 22 ARISTOTELES (2000), La Métaphysique, Traduction, introduction, notes et index par J. tricot, Paris, J. Vrin. COPENHAVER, Brian (2002), Hermetica ς The greek Corpus Hermeticum and the latin Asclepius in a new English translation with notes and introduction. 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PLESSNER, Martin (1971), Hermes, The Encyclopaedia of Islam, Leiden, Brill, p. 463. RUSKA, Julius (1926), Tabula Smaradigna, Heildelberg, Carl Winterχs Univesitatsbuchhandlung. TRISMEGISTE, Hermès (1960), Corpus Hermeticum, Traduction par André-Jean Festugière, Paris, Les Belles Lettres. _________________ (2012), La table dχEmeraude et sa tradition alchimique, Paris, Les Belles Lettres. VAN BLADEN, Kevin (2009), The Arabic Hermes ς From pagan sage to prophet of science, New York, Oxford University Press. 23 D. PEDRO II E A EGIPTOLOGIA Regina Dantas PPG História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia-HCTE e MN/UFRJ Mariah Martins Doutoranda do HCTE e pesquisadora do MN/UFRJ Resumo - Com o intuito de contextualizar a relação de D. Pedro II com a Egiptologia, iniciaremos o presente trabalho por uma breve passagem por sua residência, o Paço de São Cristóvão (atual sede do Museu Nacional). Dessa forma, o colecionista Pedro II será identificado por meio de alguns de seus objetos no τMuseu do Imperadorυ, com destaque à peça que representa o Īgito em sua coleção. A análise do cidadão viajante pelas regiões do Oriente consolidará seu interesse pela Egiptologia. Abstract - In order to contextualize D. Pedro II's relationship with Egyptology, we will begin the present work by a brief passage through his residence, the Paço de São Cristóvão (current headquarters of the National Museum). In this way, the collector Pedro II will be identified through some of his objects in the "Emperor's Museum", highlighting the piece that represents Egypt in his collection. The analysis of the traveling citizen by the regions of the East will consolidate his interest in Egyptology.Introdução O presente trabalho inicia iluminando a questão de que o prédio que hoje abriga o Museu Nacional foi, durante 64 anos, a casa do imperador d. Pedro II e seu palácio de governo - o Paço de São Cristóvão. Trata-se de um recorte da pesquisa de mestrado realizada por uma das autoras (DANTAS, 2007) atualizada com a preciosa participação da doutoranda do Programa de Pós- graduação História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia/HCTE na inserção documental e contextualização sobre diários e demais narrativas (MARTINS, 2010; 2016). O Paço de São Cristóvão foi residência de d. João VI, d. Pedro I e d. Pedro II. Após o banimento da família imperial, o Museu Nacional (criado por d. João em 1818, no Campo de Santana) foi transferido para o Paço em 1892. Diante do nascimento do segundo imperador do Brasil, D. Pedro II, nascido em 2 de dezembro de 1825 no Paço de São Cristóvão, registramos que o monarca esteve na residência desde seu nascimento e neste mesmo espaço governou o país durante os anos de 1841 a 1889. Identificamos sua ida ao Egito em 1871 como a primeira visita ao país realizada por uma autoridade brasileira. Esta constatação e sua predileção pelos estudos sobre o Egito justifica a realização da Semana da Egiptologia no Museu Nacional durante o seu mês de nascimento e morte (5 de dezembro de 1891). 24 A casa-museu Atualmente, não se duvida mais de que a transferência da Corte portuguesa foi amadurecida cuidadosamente (SCHWARCZ, 2002: 194-197). Tratava-se, na verdade, de um plano estratégico concebido desde o século XVII, como solução de emergência que salvaria a Coroa em situações de crise. No entanto, a decisão da transferência só foi concretizada quando se tornou presente a ameaça napoleônica à integridade da monarquia. d. João, convencido de que a Coroa só estaria assegurada se conseguisse preservar as possessões do Novo Mundo, cujos recursos naturais suplantavam os de Portugal. (NEVES, 1995: 27-28, 75-102). O Rio de Janeiro representava o principal porto da colônia. A transferência para o Brasil da estrutura estatal lusitana representou o fim do regime colonial (NEVES, 1999: 28-29). Elie Antun Lubbus (nome aportuguesado: Elias Antonio Lopes), comerciante luso- libanês, e pela ambição de ser generosamente recompensado, realizou uma grande reforma em sua residência construída em τestilo orientalυ e presenteou, em 1o de janeiro de 1809, sua casa- grande à d. João que, imediatamente, aceitou-a para ser sua moradia. O τturcoυ Īlias, como era conhecido, recebeu de d. João τa quantia de 21:929$000 ς vinte e um contos, novecentos e vinte e nove mil réis ς referentes ao pagamento das obras já realizadas e uma mensalidade para a conservação do edifícioυ (KHATLAB, 2002: 19). A residência real começou a sofrer alterações após 1810 por ocasião do casamento de dona Maria Tereza de Bragança (1793-1812), filha mais velha de d. João. Destacamos a outra nova fase de expansão da residência do regente aconteceu, nos fundos do palácio, por ocasião dos preparativos para o casamento de d. Pedro I (1798-1834) com d. Carolina Josepha Leopoldina (1797-1826), austríaca apaixonada pelas ciências naturais. A imperatriz teve papel de destaque na criação do Museu Real em 1818 ς atual Museu Nacional. No período de d. Pedro II, sua residência serviu como espaço modelo para a sociabilidade da Corte do Rio de Janeiro, ditando as regras de etiqueta, a organização nos eventos sociais e nas Audiências Públicas, garantindo inclusive o funcionamento da hierarquia no acesso das pessoas ao palácio, o que nos faz remeter à análise da τsociedade de corteυ por Norbert Elias (ELIAS, 2001). O principal palácio da Corte estava na Província do Rio de Janeiro, portanto tornava-se necessária, na organização do teatro do poder, a delimitação do acesso ao Paço de São Cristóvão, pois, no caso brasileiro, τa sociedade de Corteυ, ditava as normas de etiqueta e a moda, destacando o poder soberano do imperador através dos laços de interação com sua nobreza (ELIAS, 2001: 120). Esse processo acontecia por meio dos rituais que acompanhavam os 25 encontros diplomáticos e as demais visitações realizadas nos salões do Paço, utilizando a marca do imperador em pratarias, esculturas e vasos. Em 1889, após o banimento da família imperial, o Paço de São Cristóvão foi alterado e os pertences de d. Pedro II foram inventariados. Sobre o assunto, ver O leilão do Paço, composto das sessões do leilão narradas detalhadamente e contendo o inventário dos pertences dos Paços do imperador (SANTOS, 1940). O leilão foi agilizado pelos representantes do Governo Provisório, preocupados em se desfazer dos objetos que pertenceram ao antigo Paço de São Cristóvão, promovendo, assim, um processo de apagamento da memória. τApagar tem a ver com ocultar, esconder, despistar, confundir os traços, afastar-se da verdade, destruir a verdadeυ (ROSSI, 1991: 14-15). Īm 1890, diante da polêmica divulgada na imprensa sobre a τapropriação indevida dos bens do ex-imperadorυ, o procurador da īazenda Nacional solicitou ao procurador do monarca que enviasse à d. Pedro II sua autorização para doar a Biblioteca, o seu museu e documentos para o Governo. A resposta de d. Pedro II só viria quase um ano depois, sete meses após o término do leilão do Paço de São Cristóvão e seis meses antes de falecer: Sñr. Costa Silva, Queira pedir em meu nome ao Visconde de Taunay, Visconde de Beaurepaire, Olegário Herculano de Aquino e Castro e Dr. João Severino de Fonseca que separem os meus livros podendo por sua especialidade interessar ao Instituto e hχos entreguem, a fim de serem parte de sua bibliotheca. Esses livros serão collocados em lugar especial com a denominação de dona Thereza Christina Maria. Os que não deverem permanecer ao Instituto offereço à Bibliotheca Nacional, que deverá collocal-os também em lugar especial com a mesma denominação. O meu Museu dou-o também ao Instituto Histórico, no que tenha relação com a Etnographia e a História do Brasil. A parte relativa às sciencias naturaes, e à mineralogia sob o nome de Imperatriz Leopoldina, como os herbários, que possão, ficar no Museu do Rio. A coroa imperial, a espada e todas as jóias deverão ser entregues, e pertencer à minha filha. Espero que me dê notícias suas e dos seus sempre que possa, e creia na estima affectuosa de Pedro d`Alcântara. Versailles, 8 de junho de 1891. (MI.CI.SC, I-DAS, 8.6.1891-PII.B.c.) O Jornal do Commercio de 7 de julho de 1891 divulgou os termos da resposta de d. Pedro de Alcântara ao seu procurador em relação à distribuição do acervo bibliográfico e dos objetos de seu museu, e apresentou o descontentamento com o assunto no final do artigo: O procedimento do Sr. d. Pedro de Alcântara contrasta muito fortemente com o inqualificável açodamento com que forão desrespeitados os seus papéis com a sem cerimônia com que são retiradas as jóias da finada Imperatriz, das quaes se assignou termo de depósito (JORNAL DO COMMERCIO). Em relação à solicitação de d. Pedro II, os livros foram distribuídos, em sua maioria, para a Biblioteca Nacional, e o restante foi encaminhado para o Instituto Histórico e Geográfico 26 Brasileiro, tendo uma pequena quantidade sido enviada para o Museu Nacional. Nas três instituições os livros não levaram o nome da imperatriz Leopoldina, conforme o solicitado. O τMuseu do Imperadorυ, teve seus artefatos de ciências naturais, mineralogia e herbário deixados no Paço, posteriormente passaram a pertencer ao acervo do Museu Nacional. Cabe ressaltar que os materiais foram distribuídos entre os departamentos de pesquisa da instituição. Os departamentos de botânica e de geologia deram aos objetos o tratamento de uma coleção, mantendo-os reunidos. O departamento de antropologia preservou a identificação de parte dos objetos, enquanto que na área de zoologia não foram encontrados os objetos que pertenceramao referido museu. Dois anos após o primeiro documento solicitando o palácio ao ministro dos Negócios, Comércio e Obras Públicas, dentre outros, identificamos um ofício de Ladislau Netto (1838- 1894), diretor do Museu Nacional, aparentemente conformado com a perda do prédio, e outro solicitando providências para o transporte do Museu da Quinta da Boa Vista para o Museu Nacional. Talvez a estratégia de Ladislau tenha sido continuar presente nas discussões sobre o palácio, dessa vez solicitando o acervo existente no prédio, para conseguir por insistência o próprio edifício. Museu Nacional do Rio de Janeiro em 6 de fevereiro de 1892. Ao Snr. Dr. José Hygino Duarte Pereira, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Snr. Ministro sendo-me urgentemente necessário transportar para o Museu Nacional todo o Museu da Quinta da Boa Vista com enorme material composto de numerosas coleções de objetos delicadíssimos, de aparelhos de física, de livros e de móveis, constando a maior parte dessas coleções de minerais guardados em frascos muito frágeis, e não sendo possível efetuar semelhante transporte senão em vagões da Companhia de São Cristóvão, peço-vos providências a fim de que seja aquela companhia encarregada desse serviço, empregando vagões descobertos que tragam até os portões do Museu as referidas coleções, ainda que seja preciso prolongar com alguns metros os trilhos da mesma companhia. O Diretor Geral Ladislau Netto. (BR MN MN.DR.CO, RA.10/f. 42-42v.) Em maio do mesmo ano, é possível constatar que a insistência de Ladislau fez com que conseguisse o palácio, e, por meio do ofício enviado ao ministro da Instrução Pública é possível identificar o processo de mudança por via férrea ao contrário, do Museu Nacional (Campo de Santana) para a Quinta da Boa Vista. Destacamos então, o τMuseu do Imperadorυ sendo a justificativa principal para Ladislau conseguir a mudança para o Palácio na Quinta da Boa Vista. φO Paíz, na coluna τSalada de īrutasυ, de 11 de agosto de 1890 apresenta um desabafo sobre a maneira de como a memória de d. Pedro II estava sendo tratada pelo Governo Provisório. Não sei se o governo mandou arrematar algum dos coches de gala de D. Pedro. Se não mandou, não fez bem, no meu entender, porque seria de bom aviso, dar ao Museu Nacional todos os elementos possíveis para o futuro estudo histórico do segundo 27 reinado, como são incontestavelmente os livros, os objetos de arte, peças de mobílias, autógraphos, o museu particular, carruagens e até mesmo objetos de uso doméstico que possam interessar a crítica histórica e concorrer para juízo seguro sobre a vida política e privada dos nossos ex-imperadores. Sei que o governo pretende fazer acquisição da biblioteca e do museu; mas acho que é pouco. Que valor não teria, daqui há cem anos a mesa de estudos de D. Pedro ou um dos seus lápis fatídicos? Assim como Cuvier com uma só peça da ossada de um animal conseguia recompor todo o esqueleto, o historiador, muitas vezes, com um só objeto pertencente a personagem culminante em determinado período histórico, consegue reconstituir o todo e fazer a crítica, se não exacta, muito aproximada da physionomia moral dessa época e determinação do valor histórico do referido personagem. Eis o meu parecer, salvo melhor juízo. Marasquino. O Museu do Imperador Com a constatação de que o imperador se preocupava em criar documentos que registrassem sua memória (seus diários) e após o levantamento dos objetos de d. Pedro II existentes no Museu Nacional (durante os anos de 2003-2005), foi identificado que o monarca desenvolveu a atividade de acumulação de objetos, o que deve ser analisado articulado ao seu ambiente social. Com isso, devemos integrar essas ações no viés da memória social, pois a memória deve ser entendida como um fenômeno coletivo e social (HALBWACHS, 1990: 25-47). Ao analisarmos os objetos sugeridos como pertencentes ao Museu do Imperador (DANTAS, 2007: 190-242), interessa-nos fortalecer o seu perfil colecionista e identificarmos sua estratégia na seleção dos objetos. Neste momento, elevaremos o objeto que mais representa o Egito em seu acervo - a múmia egípcia Sha-Amun-Em-Su. Os corpos mumificados de origem egípcia despertam o interesse científico há pelo menos três séculos. Coletados, classificados como raridades da Antiguidade, pulverizados por diversas partes do mundo, são encontrados em coleções particulares e museus públicos (SOUZA, 2005: 134). Dentre os poucos objetos que pertenceram ao imperador e que se encontram na atual exposição do Museu Nacional, destacamos a múmia egípcia Sha-Amun-Em-Su (Figura 1), uma cantora do Templo de Amon, ainda fechada em seu ataúde original, que data da XXII dinastia ς cerca de 750 a.C. (BRANCAGLION, 2005: 75-79). Essa múmia foi enviada ao Brasil para d. Pedro II pelo quediva (vice-rei) Ismail Paxá (1830-1895), por ocasião de sua segunda visita ao Oriente, em 1876. 28 Figura 1: Múmia egípcia Sha-Amun-Em-Su Fonte: Banco Safra ς acervo da Direção do Museu Nacional Em trechos do diário do monarca referente à segunda viagem ao Egito, d. Pedro II demonstra os motivos da admiração por Ismail: Na Ilha Elefantina (...) Após mais de mil anos de abandono e esquecimento a fortaleza foi completamente desentulhada. As antigas divisões foram respeitadas. Foi adaptada uma nova tubulação na altura do 46o e 47o degraus no sentido descendente e colocada à disposição do povo em 1870, sob o governo do Quediva Ismail, o bom soberano que soergueu o Egito, pelo astrônomo Mahmoud-Bey um dos seus mais fiéis servidores. (MI.CI. Diário de D. Pedro II /1840 - 1891) D. Pedro II tinha a atenção voltada para obras que estivessem relacionadas ao progresso do país, por isso não poupou detalhes sobre os benefícios de Ismail ao Egito, apontando a importância da astronomia e colocando sua opinião inclusive sobre a antiga apresentação da fortaleza ς como entulhada. No governo do quediva Ismail (1863-1879), uma de suas grandes realizações foi a inauguração do Canal de Suez, sendo um período caracterizado pelo desenvolvimento de políticas que procuravam τocidentalizarυ o Īgito. Em sua primeira viagem ao país, em 1871, o soberano já havia recebido o diploma de Membro Honorário do Instituto de Arqueologia do Egito, localizado em Alexandria, conforme 29 documentação existente no arquivo Grão-Pará do Museu Imperial de Petrópolis (MI. Arquivo Grão-Pará, Correspondências Recebidas ς 7954). Ao retornar a Alexandria pela segunda vez, em 1877, proferiu o comunicado τO vandalismo dos viajantesυ, alertando para a situação dos constantes saques acontecidos nos templos do Egito, o que poderia comprometer a cultura egípcia para a população futura. A comunicação do monarca foi lembrada na conferência de Nicolas Debanné, adido à Agência Diplomática do Brasil no Egito, publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: Recordae-vos da sessão de 13 de janeiro de 1877, em que sua alma de artista e de amigo das sciencias, indignada deante do abandono em que se achavam os monumentos do antigo Egypto, denunciou-no esse crime de lesa-belleza e de lesa- sciencia, e chamou nossa attenção para o τvandalismo dos viajantesυ. A sua comunicaçao está arquivada em vosso Livro de Ouro; o appêlo do soberano brasileiro e o apoio que déstes ás suas observações contribuiram não pouco para que fossem tomadas diversas medidas, a fim de se conservarem os thesouros artísticos e científicos do Egypto dos Pharaós. (DEBANNÉ, 1912: 132) Conforme registros nas correspondências do arquivo Grão-Pará do Museu Imperial de Petrópolis (MI. Arquivo Grão-Pará, Correspondências Recebidas ς 8090), o monarca selou a amizade com o quediva enviando-lhe um livro sobre o Brasil, e Ismail, sensível ao interesse do imperador sobre a cultura egípcia, remeteu-lhe um presente como agradecimento a sua preocupação:a múmia Sha-amun-em-su. O que originou o interesse de d. Pedro II pelo Egito a ponto de empreender duas longas viagens ao país? Esse questionamento foi abordado na conferência de Debanné, e o palestrante apontou que, a partir da análise das anotações nos diários do monarca, é notório que ele havia dedicado considerável tempo aos estudos da egiptologia, e que nas viagens tenha percebido uma semelhança entre o Brasil e o Egito em relação ao clima e à cultura do plantio da cana-de-açúcar, do café, do algodão e do fumo. Debanné apontou que, independente da troca intelectual (a predileção pela egiptologia), o interesse do monarca estava em estabelecer uma troca comercial mais ativa entre os dois países (DEBANNÉ, 1912: 154). Além da opinião de Debanné, nas anotações de viagens o imperador fez observações sobre as técnicas de irrigação e sobre a indústria açucareira, além de outros métodos egípcios de agricultura, o que indica uma preocupação em alavancar a produção brasileira. A múmia Sha-amun-em-su tem uma peculiaridade comparada às demais múmias do Museu Nacional (contém em seu acervo cinco múmias egípcias doadas por D. Pedro I, em 1826: seu ataúde continua lacrado. O seu interior só foi conhecido graças aos exames realizados por tomografia, que τrevelou a presença de amuletos, entre eles um escaravelho coraçãoυ 30 (BRANCAGLION, 2005: 78). Além disso, as imagens tomográficas permitiram confirmar o sexo ς feminino ς e a sua idade ς superior a 25 anos (SOUZA, 2005: 136). Cabe ressaltar que a múmia é um dos poucos objetos do monarca conhecido pelos servidores docentes e não docentes da instituição como tendo pertencido ao imperador e que ficava em seu gabinete. O gabinete aqui referido NÃO é um de curiosidades. Trata-se do Museu do Imperador, conforme comprova a citação da peça na primeira página do inventário dos pertences da família imperial relativo ao muzeu do imperador A múmia está registrada como a décima peça do acervo do monarca (Figura 2). O documento está guardado no Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis e durante a escrita da dissertação, apenas duas páginas tinham sido encontradas, revelando parte do acervo do monarca que figurava em seu museu no Paço de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista. Figura 2: Primeira página do inventário dos pertences do τMuzeuυ. Fonte: Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis - MI II ς DMI 02.07.1980 TC.B. rç.). 31 Rumo ao exterior D. Pedro II realizou três viagens ao exterior que ele mesmo as classificou como viagem de turismo, mas suas observações (em seus diários) nos auxiliam a interpretar que suas intenções visavam trazer, em sua bagagem, diversificadas experiências em diferentes saberes para adaptá-las ao nosso país, além disso, seria a oportunidade para divulgar o Brasil em outros lugares do mundo (MI.CI. Diário de D. Pedro II (1840 - 1891). O pesquisador, arqueólogo do Oriente e escritor brasileiro, residente no Líbano, Roberto Khatlab, diretor do Centro de Estudos e Culturas da América Latina/CECAL ς Université de Saint Esprit de Kaslik desenvolve pesquisas sobre a relação Brasil ς Líbano. Sendo também membro da Associação Amigos do Museu Nacional/SAMN, iniciou pesquisa sobre o trajeto de d. Pedro II no Oriente e, a partir de 2004, desenvolveu investigações com uma das autoras do presente trabalho ς Regina Dantas, historiadora do Museu Nacional/UFRJ. A direção do Museu Nacional apoiou a realização do Projeto τRota de d. Pedro II no Orienteυ, que consistiu em realizar visitas aos mesmos locais que o monarca esteve, com a orientação de suas narrativas registradas em seus diários compostos por 45 cadernetas de anotações (MI.CI. Diário de D. Pedro II /1840 - 1891). Cabe ressaltar que o projeto foi iniciado em 2004, mas a visita da historiadora guiada pelo arqueólogo do Oriente foi realizada durante o mês de julho do ano de 2008. No presente trabalho, destacaremos parte do que o monarca viu em sua viagem ao Egito por meio das imagens registradas pelo arqueólogo. Caberia realizar futuramente um trabalho específico sobre a passagem dos pesquisadores pelo Egito no século XXI, seguindo as informações dos diários do monarca nas duas viagens realizadas por ele no séc. XIX. As pesquisas realizadas por Khatlab geraram o livro τAs viagens de D. Pedro II: Oriente Médio e África do Norte, 1871 e 1876υ, lançado no Museu Nacional em 21 de agosto de 2015. A primeira viagem, em 1871, foi pela Europa, pelo Oriente Médio e pela África do Norte, tendo visitado o Egito. Na segunda viagem, em 1876, percorreu a América do Norte, a Europa, a Ásia e novamente o Oriente Médio e a África do Norte; nas duas últimas regiões, passou por Beirute, Líbano, Síria, Palestina, Egito e Núbia sudanesa (Sudão). Em 1888, terceira viagem, voltou à Europa e pretendia passar novamente pelo Oriente, mas sua saúde o impediu. Nessas três viagens, d. Pedro II passou três anos e sete meses no exterior. (KHATLAB, 2015: 16). Visando apresentar resumidamente parte da longa passagem pelo Egito, destacamos na primeira viagem de d. Pedro II (1871), em nossa opinião, os pontos emblemáticos que fortalecem seu interesse pela cultura egípcia: a passagem por Alexandria (em que destacamos a Igreja São Pedro) e a visita à Esfinge de Gizé. A visita de D. Pedro II ao Egito foi iniciada por Alexandria em 28 de Outubro de 1871. īoi cidade τreconhecida pelo florescimento da ciência, filosofia e medicina, ganharia o título de 32 Cidade da Beleza por seu desenvolvimento nas artes, com suas belas pinturas, mosaicos, arquitetura e música.υ (KHATLAB, 2015: 57). Ao desembarcar na Alexandria o monarca estava entusiasmado, pois cabe registrar que d. Pedro II havia recebido dois telegramas τanunciando-lhe que a lei acerca do elemento servil havia passado no Senadoυ. Referimo-nos à lei abolicionista promulgada em 28 de setembro de 1871 - a Lei do Ventre Livre, assinada pela Princesa Isabel. (KHATLAB, 2015: 58). Continuando seu passeio por Alexandria, d. Pedro II foi visitar uma igreja. Uma visita diferente, pois tratava-se de um dos motivos que o levaram a interessar-se pelo Oriente e a empreender a viagem. Levaram-no ao Oriente as suas ligações espirituais para com a Terra Santa, seu interesse pelas religiões e o fato de ter tomado conhecimento da construção de uma igreja consagrada a São Pedro dχAlcântara, seu patrono e patrono também do Brasil. (KHATLAB, 2015: 62). A referida igreja construída em 1868 pelo Conde Miguel Debbane, um libanês que foi cônsul Honorário do Brasil em Alexandria. Nesta igreja encontra-se enterrado o Conde Miguel Debbane e todas as missas celebradas na igreja é mencionado em memória do Imperador do Brasil, Pedro II e do Conde Miguel Debbane. Em 2008, em nossa visita à instituição religiosa, identificamos a igreja em pleno funcionamento e está sob a coordenação da Fundação Debbane de Alexandria e espiritualmente ligada ao Patriarcado Greco Melquita Católico de Alexandria. (Figura 3). Figura 3: Egreja de São Pedro Fonte: Acervo pessoal de Regina Dantas 33 Partindo de Alexandria rumo ao Cairo, o monarca optou por conhecer o canal de Suez, a via marítima que liga o mar Mediterrâneo ao mar Vermelho, e passou pelas cidades de Suez, Ismaília, Port Said e finalmente o Cairo. Em 4 de Novembro, d. Pedro II e comitiva foram visitar, às margens do rio Nilo, o sítio arqueológico composto pela Esfinge Gizé e as três pirâmides dos faraós Quéops, Quéfren e Miquerinos (construídas no período referente às dinastias IV e V). A visita de Pedro II e sua comitiva às pirâmides e à Esfinge de Gizé é registrada (por meio de fotografia sob a guarda da Biblioteca Nacional) em livros didáticos de História, mas algo interessante é captado pelo nosso olhar: o monarca conhece a estátua de pedra calcária conhecida como Esfinge de Gizé ainda com o corpo parcialmente
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