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GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS AULA 3 Prof. Paulo Nascimento Neto 2 CONVERSA INICIAL Formulação de políticas públicas Dando sequência aos nossos estudos, organizados com base no modelo heurístico do ciclo da política pública, nos debruçaremos nesta aula sobre a segunda etapa do agir público, voltado à formulação de políticas públicas, fase subsequente à definição da agenda pública, na qual determinadas condições assumem o status de problemas públicos (figura 1). Esses problemas públicos passam inicialmente a compor a agenda sistêmica e, a partir de sua inclusão nas pautas de governo, se conformam dentro da agenda institucional. Figura 1 – Ciclo da Política Pública Fonte: Nascimento Neto, 2020. Particularmente sobre a fase de formulação do ciclo de políticas públicas, está em evidência o processo de transformação da agenda em objetivos e estratégias de intervenção sobre um problema público. Cabe-nos responder, essencialmente, às seguintes questões: a partir da pactuação de um problema público, como definir a melhor solução para intervir sobre ele? Quais as formas que a política pública pode assumir e quais instrumentos ela pode ou deve adotar? Quais os princípios racionais e políticos que ordenam esse processo? A partir dessas indagações organizamos os temas de estudo desta aula, na qual abordaremos a natureza complexa da proposição de soluções (tema 1), as diferentes formas que ela pode assumir (tema 2), como desenhamos políticas 3 públicas (tema 3), quais instrumentos podem ser adotados (tema 4) e quais subsistemas envolvidos neste processo (tema 5). Esses tópicos permitirão a você uma compreensão ampla e abrangente sobre o assunto. Desejamos um excelente estudo! TEMA 1 – MÚLTIPLAS SOLUÇÕES PARA UM PROBLEMA PÚBLICO De forma semelhante ao que observamos nas dinâmicas de formação da agenda pública, a formulação de políticas públicas também não segue um caminho linear e racional de tomada de decisão. Distante disso, o que observamos como regra é um processo permeado de revezes e transformações, inclusive na forma como o problema público em questão é interpretado, revelando a preponderância da articulação de interesses, sejam eles internos ao poder público ou entre estes e os atores da sociedade civil e iniciativa privada. Temos que ter em mente que a resposta a um problema público não origina de uma escolha neutra entre diferentes alternativas, mas está permeada de complexidade e subjetividade. Para fins analíticos, podemos organizar o processo de formulação de políticas públicas em dois momentos: um primeiro, no qual os esforços se concentram do desenvolvimento de alternativas de ação, envolvendo avaliações preliminares de custo e benefício e aceitação na arena política; e um segundo, relacionado ao processo efetivo de tomada de decisão, na qual estão envolvidos os atores de maior influência no governo. Normalmente, os fluxos e atores envolvidos em cada uma dessas dinâmicas são distintos, de tal forma que a formação de soluções possíveis para um problema é realizada em tempos e maneiras diferentes da tomada de decisão. Frey (2000), Jann e Wegrich (2007) nos recordam que, via de regra, as tomadas de decisão são realizadas com base em acordos previamente negociados entre os principais atores políticos, sendo raros os casos em que a escolha se dá a partir de um processo simples de avaliação das alternativas previamente elencadas. Nesse contexto, o processo de tomada de decisão passa a ser função da constelação e nível de poder dos interesses institucionais e substantivos dos atores envolvidos e dos acordos partidários. Destarte, temos duas dimensões da etapa de formulação de política pública que se inter-relacionam. Na dimensão técnica, busca-se produzir respostas para determinados problemas a partir de estudos técnicos e análises 4 de viabilidade. Mesmo esse processo não é integralmente neutro, já que, como já abordamos nas aulas anteriores, até mesmo o critério de avaliação de indicadores e dados pode resultar em diferentes leituras e, por conseguinte, em diferentes encaminhamentos. Para alguns autores, mesmo essa dimensão é resultado de um processo inerentemente político. Assim, se a definição de um problema é, em certa medida, um discurso crítico contra o governo (já que evidencia uma falta ou insuficiência), a definição de uma solução pode ser interpretada como um discurso de legitimação da ação do governo (Capella, 2018). Há casos, inclusive, que verificamos um “reetiquetamento” de políticas públicas, ou seja, a manutenção de seus principais elementos, mas com a adoção de outro nome. Essa estratégica é buscada com vistas a influenciar a percepção pública, aumentando suas chances de aceitação (Heinelt, 2007). Expandindo a análise nesse sentido, temos também casos em que, com a mudança de governo, temos a proposição de novos programas de ação que, em linhas gerais, são semelhantes aos anteriores vigentes, mas com nomes novos que vincularão os resultados a determinado agente político. TEMA 2 – MÚLTIPLAS FORMAS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS Tendo por base o entendimento sintético de política pública como o conjunto de ações e decisões tomadas pelo governo, buscaremos neste tópico explorar as diferentes formas de conceber uma solução para um problema público. Você saberia elencar alguma dessas formas? Inevitavelmente, a resposta que primeiro nos vem à cabeça é a produção e a implementação de leis. Dessa forma, temos, como exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal n. 9.394/1996), as Leis Orgânicas da Saúde – que regulamentam o Sistema Único de Saúde (Leis Federais n. 8.080/1990 e 8.142/1990), a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal n. 6.938/1981). Cada uma delas estabelece princípios, diretrizes, competências, responsabilidades e (eventualmente) penalidades sobre determinados temas, em determinado nível federativo. Inclusive, a depender das competências estabelecidas na Constituição Federal, algumas temáticas apresentam legislações nas três esferas – nacional, estadual e municipal. As leis realmente têm um papel central na materialização das políticas públicas. Entretanto, ao restringir o entendimento apenas às leis aprovadas, 5 simplificamos um quadro multidimensional em uma leitura limitada. Provavelmente você já deve ter ouvido falar sobre alguma lei que “não pegou”, certo? Agora que você está estudando a gestão de políticas públicas, você já pensou nas implicações disso? Essa questão, ainda que aparentemente simples, nos revela as múltiplas formas ou instrumentos segundo os quais as políticas públicas se efetivam. A despeito de variações de classificação na literatura do campo de políticas públicas, podemos elencar outros tipos. Embora todas tenham aderência às legislações vigentes, em observância ao princípio da legalidade do Estado democrático de direito, elas não se limitam à produção legislativa. Podemos inicialmente mencionar as campanhas e as premiações, que buscam estimular determinado comportamento ou ação por parte da sociedade. Assim, por exemplo, ao promover o Dia D de vacinação contra o Sarampo ou mais recentemente ao divulgar campanhas de conscientização quanto à etiqueta respiratória de preservação contra a Covid-19, o Ministério da Saúde também está pautando a atuação governamental em ações que integram a política de saúde pública. Ainda, ao conceder bonificações e prêmios por determinados comportamentos, o Estado também produz políticas públicas. Um exemplo emblemático em nosso país é o incentivo ao consumidor para exigir a emissão de nota fiscal, popularmente conhecido como CPF na nota. Esse programa, implementado em diversos estados e municípios com diferentes nomes (Boa nota, Nota Fiscal paulista etc.), estimula um comportamento individualdo consumidor, que, ao concorrer a prêmios, também contribui para evitar a sonegação fiscal das empresas. Outro caso, também amplamente presente em nosso país, consiste nos prêmios de Boas Práticas, aplicados a diferentes contextos, como, por exemplo, na gestão pública municipal. Esses prêmios estimulam condutas e comportamentos e, em última análise, também constituem política pública. Concomitantemente, programas implementados pelos governos nas diferentes esferas, como, por exemplo, um programa de obras de pavimentação em seu município ou mesmo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), implementado ao longo da última década no país, também integram o corpus da política pública, ainda que não se tratem unicamente de legislações aprovadas. 6 Não pretendemos aqui trazer uma lista fechada de tipologias, mas demonstrar que a ação pública não se restringe unicamente à produção de leis ou a execução unicamente do que nela está precisamente previsto. Há casos em que as legislações estabelecem princípios e diretrizes a serem seguidos, princípios esses posteriormente detalhados em decretos, mas concretizados também por meio de programas, premiações, campanhas ou outras ações do poder público. TEMA 3 – DESENHO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Partindo dos estudos de Howlett, Ramesh e Perl (2013), podemos conceituar o desenho de políticas públicas (policy design) como o processo sistemático de geração de estratégias e de delineamento efetivo da ação governamental frente a um determinado problema, resultando em diferentes combinações de elementos de políticas públicas. Assim, nos aproximamos do entendimento de política pública como um conjunto de estruturas normativas e programas, em uma perspectiva mais ampla que a adoção única de instrumentos. É comum identificarmos a adoção de múltiplas ferramentas para lidar com um único problema público. Esses instrumentos, abordados em maior profundidade no tópico a seguir, devem ser articulados de forma a se reforçarem mutuamente e promoverem um ambiente no qual tanto os agentes públicos quanto a sociedade sejam induzidas ou coagidas a adotar determinadas condutas que, de outra forma, não seriam adotadas. O desenho da política e a definição de seu conjunto de instrumentos deve levar em consideração o contexto em que o processo de formulação se insere, seja em termos sociopolíticos e econômicos mais amplos (contexto social), seja em termos específicos, socialmente estabelecidos para o tema. Nesse cenário, a produção de políticas públicas gravita em torno de diferentes articulações de interesse e suas manifestações de poder, que, inclusive, podem ocorrer de formas menos estruturadas e visíveis, como nos casos em que ocorrem manipulação da opinião pública e persuasão por meio de ideologias específicas. Essas interações são mediadas pelas instituições, que estabelecem as “regras do jogo”, formais e informais, que condicionam o comportamento e os limites de atuação dos diferentes atores (Schneider; 7 Ingram, 1997). Sobre esse aspecto, Peters (2018, p. 7, tradução nossa) afirma que: O desenho de políticas públicas dentro do setor público se relaciona com o jogo político. Essa questão pode parecer óbvia, mas ações de cunho mais tecnocrático no desenho podem desconsiderar esta importante restrição de atuação. [...] Além disso, o desenho de políticas públicas vai gradativamente produzir o engajamento de atores sociais e cidadãos. [...] Enquanto desenhar um objeto físico deve se pautar por padrões estéticos ou pelo senso particular de utilidade, o desenho em um contexto sociopolítico exige um espectro diferente de sensibilidades. Nesse contexto, o autor destaca que as soluções mais viáveis são aquelas que se organizam a partir de um mínimo denominador comum entre os diferentes atores envolvidos no processo, sendo raro os casos em que o desenho efetivado corresponde a uma proposta clara e previamente estabelecida. Lembremos que a gestão pública não opera no vácuo, mas dentro de um contexto institucional, social e político. Dessa forma, em sua grande maioria, as políticas públicas se conformam muito mais como “redesenhos” do que como novas concepções, já que a maior parte dos problemas públicos persiste ao longo do tempo, alterando- se apenas a forma, o escopo ou a solução com a qual se pretende intervir sobre ele. Mesmo os casos de programas bem-sucedidos permanecem objeto de contínua renovação e revisão, sobretudo de suas ideias centrais e das coalizões políticas que em torno dela gravitam (Peters, 2018). Em busca de uma síntese que nos instrumentalize na prática da gestão pública, devemos considerar para o desenho de políticas públicas seis elementos centrais: a (i) definição dos objetivos, diretamente vinculada ao problema público trabalhado; as (ii) regras, que condicionam procedimentos, competências e critérios para a ação pública; o (iii) público-alvo, relativo aos grupos para os quais se dirige a política pública em questão; os (iv) agentes que, individual ou institucionalmente, compõem a estrutura de governança e são responsáveis por esse processo; o (v) conjunto de valores e crenças que legitimam a política em questão; e (vi) as premissas técnicas e normativas que sustentam todo esse processo (Schneider; Ingram, 1997). Esse conjunto de fatores compõe o arcabouço mínimo de elementos a serem considerados no desenho de uma política pública. Além dessa dimensão mais instrumental, não podemos nos esquecer que os processos de formulação envolvem a articulação de diferentes atores, governamentais e não governamentais, em um contexto de autonomia relativa do Estado. Com isso, 8 desejamos destacar que, por vezes, em sua atividade cotidiana na gestão pública você poderá se deparar com cenários complexos de produção de políticas públicas que não respondem diretamente ao encadeamento lógico e a separações claras entre os diferentes elementos. Na prática da gestão pública contemporânea, é usual enfrentarmos avanços e retrocessos ao longo de dinâmicas que, por vezes, repactuam inclusive o escopo e a definição do problema público em questão. TEMA 4 – INSTRUMENTOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS Em continuidade aos assuntos discutidos no item anterior, passamos agora a estudar os instrumentos de políticas públicas, ou seja, as ferramentas e as técnicas utilizadas pelos governos no exercício do poder com vistas a garantir os resultados pretendidos. A despeito da variedade de tipologias estabelecidas na literatura, adotaremos aqui a divisão criada por Howlett, Ramesh e Perl (2013), pois em nossa leitura ela capta a essência da discussão desse tema e permite uma fácil instrumentalização na prática da gestão pública. Destarte, com base nos estudos dos referidos autores, temos essencialmente quatro grandes classes de instrumentos de políticas públicas, quais sejam: (i) centralidade (nodality) dos governos no sistema social; (ii) autoridade (authority), relacionada ao poder legalmente concedido aos governos; (iii) tesouro (treasure), vinculada aos recursos financeiros de que os governos dispõem; e (iv) organização (organisation), ligada à estrutura institucional para ação governamental. Para cada classe, há diferentes instrumentos relacionados que, por suas características, respondem a determinados objetivos e desenhos específicos de políticas públicas (figura 2). 9 Figura 2 – Instrumentos de políticas públicas Fonte: Nascimento Neto, 2020. Na primeira dimensão – centralidade –, está em destaque a capacidade do governo em obter informações relevantes e produzir impactos significativos sem a necessidade de adoção de meios coercitivos. Seus custos de implementação são menores, o processo de efetivação, mais simples e não exige maiores esforços institucionais no caso de interrupção, destacando-se a realização de campanhaspúblicas (por exemplo, de combate à dengue), a consulta e publicização de atos à sociedade (por exemplo, orçamento participativo) e a formação de comissões e forças-tarefa, organizadas a partir da estrutura burocrática do Estado para compilar dados e influenciar tomadores de decisão. Em contraposição aos pontos positivos, esses instrumentos demonstram eficácia limitada pelo caráter essencialmente informativo, sendo insuficiente para algumas temáticas. Na sequência, na dimensão da autoridade, os instrumentos se organizam em três possibilidades: regulação, delegação e conselhos consultivos. Os instrumentos de regulação se vinculam ao exercício do poder do Estado no estabelecido de regras a serem cumpridas e se concretizam em forma de leis e regulamentações administrativas. Esses instrumentos produzem uma resposta rápida na sociedade, embora com risco de gerar respostas indesejadas. Já os instrumentos de delegação se relacionam à permissão para que atores não governamentais se autorregulem, tendo nas entidades profissionais o caso mais 10 emblemático (por exemplo, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Conselho Regional de Medicina – CRM). Por fim, a formação de conselhos consultivos responde ao objetivo de articular diferentes atores e aproximá-los ao núcleo de produção de políticas públicas, garantindo sua participação na tomada de decisão. O terceiro tipo de instrumentos – tesouro – congrega as ferramentas vinculadas à arrecadação e à distribuição de recursos do governo. Em termos de arrecadação, temos os instrumentos que talvez sejam os mais fáceis de identificar: aqueles relacionados aos impostos e às taxas. Já em relação à distribuição, temos a transferência de recursos com vistas a incentivar determinas ações ou territórios. Sua implementação é permeada de competição entre diferentes grupos que procuram defender suas pautas de interesse. Temos como exemplos dessa possibilidade a Zona Franca de Manaus, que possui política tributária diferenciada de forma a estimular a instalação de indústrias na região, e o programa Minha Casa Minha Vida, que estabeleceu subsídios de forma a reduzir os custos de aquisição da moradia por família de menor renda. Por fim, na dimensão de organização, estão os instrumentos inerentes à própria estrutura organizacional dos governos, que se efetiva por meio da provisão direta, de empresas públicas, da criação de mercados e de reorganizações institucionais. Enquanto na provisão direta estão inseridas as ações diretas do Estado nas diversas áreas por meio de sua estrutura burocrática, por meio de empresas públicas o governo oferta serviços não disponibilizados pelo setor privado, seja por seu alto custo ou por falta de interesse. Por sua vez, ao criar mercados, o governo se utiliza de recursos da organização do Estado como instrumento para o desenho de políticas, tendo como exemplos claros a concessão de licença às emissoras de televisão e a privatização de empresas públicas, sobretudo em áreas em que o Estado detém o monopólio. Por fim, por meio de reformas na organização do Estado, pode-se também operar instrumentos de políticas públicas, como o ocorrido durante o conjunto de reformas empreendidas no Brasil na década de 1990. Após compreendermos cada um dos instrumentos, perguntamos: qual deles será melhor em cada política pública? Essa é uma pergunta para a qual não haverá uma única resposta. A resposta vai variar conforme o contexto específico e o processo político que se conformará em torno do problema 11 público. Assim, a escolha não ocorre apenas pela efetividade de cada instrumento em relação às demandas impostas, mas também segundo a influência ideológica e a própria trajetória histórica, que fazem com que diferentes políticas tenham suas tipologias “favoritas” e os utilizem de forma repetida. Como bem destacam Ollaik e Medeiros (2011, p. 1953), “um governo que atribui grande papel ao Estado tende a preferir legislação como instrumento, enquanto um governo que atribui ao Estado um papel mais limitado prefere incentivos econômicos ou mudança na autoridade (delegação)”. TEMA 5 – OS SUBSISTEMAS NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS As políticas públicas se inserem em um universo formado a partir da agregação dos atores e das instituições (internacionais, estatais e sociais) que, de forma direta ou indireta, têm influência sobre determinado tema. Esses atores e essas instituições, reunidos em grupos relativamente coesos que direcionam seus esforços para determinadas pautas, conformam subsistemas de política pública (policy subsystem) (Howlett; Ramesh; Perl, 2013). Modelos mais antigos se reportam ao que ficou conhecido como triângulo de ferro, a partir do qual os atores se organizariam em três grandes polos: parlamentares, burocracia do Estado e grupos de interesse. Esses atores, por meio de troca de favores e articulação de interesses tenderiam a dominar o processo de formulação de políticas públicas, impossibilitando a participação dos demais atores. Esse modelo foi frontalmente criticado por não considerar a rede menos estruturada de atores que podem influenciar a atuação do governo. Segundo Capella e Brasil (2015, p. 61-62): Enquanto o conceito de “triângulos de ferro” parte do pressuposto da existência de um grupo pequeno de participantes autônomos e relativamente estáveis, reunidos de forma a exercer estrito controle sobre programas públicos que afetassem seus interesses econômicos, as issue networks [redes temáticas] envolveriam uma quantidade maior de participantes, que se relacionariam em diversos níveis de comprometimento e dependência. Nessas redes, a permanência dos grupos seria mais fluida e menos estável, no sentido de que os grupos ingressariam e sairiam da rede constantemente. Além disso, o interesse material seria secundário: o principal interesse dos participantes dessas redes seria o comprometimento intelectual ou emocional. Assim, o elemento que os manteria unidos na rede é o compartilhamento de uma base comum de informação e compreensão sobre uma política e seus problemas. Sobre esse aspecto, devemos retomar os tópicos que estudamos em aulas anteriores, sobretudo relacionados à importância da rede de políticas 12 públicas (policy networks) frente ao cenário atual de autonomia relativa do Estado e ampliação de atores não estatais nos modelos de governança. Atualmente, diferentes modelos de análises de políticas públicas adotam distintas divisões de subsistemas de política pública, a depender da articulação dos principais elementos explicativos que adotam. Essas variações serão abordadas nas próximas aulas, nas quais você entrará em contato com diferentes modelos analíticos e suas bases explicativas. Neste momento, o que nos é fundamental é a compreensão se esses atores e essas instituições vinculados a determinada política pública conformam com arranjos próximos a microcosmos que interagem entre si e com outros atores não estatais, sobretudo especialistas no tema de escopo da política pública, grupos de interesse e a mídia. A compreensão da articulação entre esses subsistemas ainda é objeto de estudo por pesquisadores da área (Capella; Brasil, 2015), não havendo clareza sobre as dinâmicas de interação entre suas diferentes ideias e atores na produção de políticas públicas. NA PRÁTICA Para abordarmos os tópicos estudados nesta aula de forma contextualizada com a prática da gestão pública no Brasil, adotamos como exemplo a política de habitação em nível nacional. Conforme já tratamos anteriormente, a questão habitacional é, historicamente em nossos país, um problema público que demanda ações, seja na urbanização de favelas, seja na construção de moradias para os segmentos sociais de menor renda. Diante desse contexto, no início da década dos anos 2000, se destaca a aprovação de dois importantes marcos normativos,o Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001) e a Política Nacional de Habitação (2004), que, por meio da articulação do princípio da função social da propriedade com os princípios desenhados coletivamente na política de habitação, levou à criação do Fundo Nacional de Habitação, em 2005, e do Plano Nacional de Habitação, em 2008. As estratégias de ação foram organizadas em quatro frentes – financiamento e subsídios, arranjos institucionais, cadeia produtiva da construção civil e estratégias urbano-fundiárias –, cada qual com seus próprios instrumentos de políticas públicas, arranjos e fontes de recursos (Bonduki, 2009). Municípios e estados, para que pudessem acessar os recursos federais disponíveis nesse fundo, deveriam, obrigatoriamente, atender ao modelo 13 pautado pelo desenho de política pública implementado, sendo necessário a formulação de seus planos de habitação, a criação de seus fundos de habitação, bem como dos respectivos conselhos gestores. Veja que, nesse caso, o desenho da política pública atuou de forma a estimular os governos subnacionais a adotar determinados comportamentos e institucionalidades que permitiriam, a princípio, garantir uma maior efetividade na consecução da política pública (Nascimento Neto; Moreira, 2010). Ora, a sintética descrição apresentada até este momento demonstra um modelo lógico e hierarquizado que, via de regra, segue um desenho claro, correto? Contudo, devemos retomar os tópicos de estudo desta aula e lembrar da dimensão intrinsicamente presente do jogo político e de seus impactos sobre o processo de formulação das políticas públicas, influenciando, inclusive, em eventual repactuação do escopo do problema público. Assim, ao pularmos para a década seguinte, identificaremos a criação e implementação do programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Lançado em 2009 e criado em ministério diverso daquele que desenvolveu a política habitacional, o PMCMV iniciou com uma meta arrojada de construir um milhão de casas em apenas um ano, meta que foi ampliada posteriormente nas duas versões subsequentes do programa. Seus objetivos, claramente vinculados à dinamização econômica do país, se afastaram dos princípios da Política Nacional de Habitação. O resultado desse processo gerou incongruências nos próprios objetivos e no desenho inicialmente definidos, de forma que: A sobreposição conflitante da atuação governamental frente às diretrizes da PNH e às metas do PMCMV conduz a iniciativas desarticuladas, permitindo se questionar o grau de subordinação dos projetos habitacionais às diretrizes de planejamento, ou, ainda, o grau de correlação entre os instrumentos de planejamento e o acesso de recursos da União. E essa constatação adquire contornos mais preocupantes ao se observar o volume de recursos envolvidos: enquanto o SNHIS movimentou R$ 2,4 bilhões em 2009, os recursos investidos no MCMV 1 superaram R$ 34 bilhões. (Nascimento Neto; Moreira; Schussel, 2012, p. 93) O delineamento desse panorama exprime a complexidade do processo de formulação de políticas públicas, podendo, inclusive, articular diferentes aportes teóricos e explicativos, como o próprio Ciclo de Atenção Pública estudado anteriormente. Veja que, ao chegarmos em 2009, em plena recessão econômica na Europa e nos Estados Unidos devido à ocorrência do que ficou 14 conhecido como bolha imobiliária, há uma mudança da opinião pública, que se direciona para a suposta necessidade de estímulo à economia por meio do setor da construção civil. Diante dos elementos que se impõem desse contexto, os mecanismos institucionais de funcionamento e controle, notadamente a exigência de planos, fundos e conselhos gestores, se desmancha em um modelo (PMCMV) que passou a dispensar essas condicionalidades para o acesso de recurso. FINALIZANDO Nesta aula, aprofundamos nossos conhecimentos sobre o processo de formulação de políticas públicas. Para isso, um aspecto abordado inicialmente foi a dinâmica de articulação de interesses e poderes envolvidos que, por vezes, levam a definições que se distanciam muito de processos estruturais e racionais de definições de soluções. De fato, conforme estudamos ao longo dos tópicos e exemplificamos com o caso da política de habitação no Brasil, devemos desmanchar a concepção de que a formulação de uma política pública é a resposta racional (melhor escolha) em relação a um problema público. Se, conforme vimos anteriormente, a formação da agenda é um processo iminentemente político, a formulação de soluções e sua tomada de decisão também o são. Seja no nível mais amplo de definição de escopo, seja no nível específico de definição dos instrumentos e de seu desenho, as diferentes capacidades de poder exercidas por grupos de interesse em relação ao poder público levam, por vezes, à cooptação da ação pública em correspondência a determinadas ideologias ou valores dominantes, que não guardam qualquer relação com o fluxo de concepção prévia do desenho de políticas públicas. Nas próximas aulas, ao avançarmos sobre o tema da implementação de políticas públicas, você verá que essa tendência permanece fortemente presente. Mesmo com um processo adequado de desenho da política pública, observamos alterações e transformações dessa política ao longo de sua implementação, não apenas em suas escalas de constituição mais elevadas (grandes diretrizes e níveis federativos superiores), mas até mesmo nas burocracias de nível de rua, ou seja, no atendimento de balcão cotidiano da gestão pública, no qual também se operam mudanças não previstas. 15 REFERÊNCIAS BONDUKI, N. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa Minha Vida. Teoria e Debate, n. 82, p. 8-14, maio- jun. 2009. BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 15 maio 2020. _____. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 set. 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6938.htm>. Acesso em: 5 maio 2020. _____. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. 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