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2018 Cooperativismo e assoCiativismo Prof. Marcelo Borghezan Copyright © UNIASSELVI 2018 Elaboração: Prof. Marcelo Borghezan Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: B732c Borghezan, Marcelo Cooperativismo e associativismo. / Marcelo Borghezan. – Indaial: UNIASSELVI, 2018. 274 p.; il. ISBN 978-85-515-0230-3 1.Cooperativismo e Associativismo Rural. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 334 III apresentação Olá, acadêmico! Seja bem-vindo à disciplina de Cooperativismo e Associativismo. Este é um tema de grande utilidade para muitas atividades do setor do agronegócio. O associativismo é uma forma de cooperação entre os membros da sociedade civil, atuando sem fins lucrativos, onde os indivíduos se organizam de forma democrática em defesa de interesses comuns. O cooperativismo é uma associação de pessoas que se unem em cooperação mútua, em busca de interesses e necessidades econômicas, sociais e culturais, com organização e administração de forma democrática e coletiva. Com o objetivo de melhorar a compreensão e facilitar o aprendizado sobre o associativismo e o cooperativismo, os temas estão distribuídos em três unidades. Inicialmente, serão apresentados os aspectos que contextualizam o setor agropecuário no Brasil, fornecendo uma base teórica para compreender como o associativismo e o cooperativismo podem contribuir para o desenvolvimento do agronegócio. Na primeira unidade, serão analisados os temas relacionados com a formação e distribuição da propriedade agrária, a estrutura fundiária e o tamanho das propriedades rurais, além das características que originaram a desigualdade entre as regiões agrícolas brasileiras. Abordaremos a importância das políticas públicas para o setor do agronegócio, identificando as principais políticas públicas voltadas às atividades agropecuárias, destacando aquelas direcionadas para a atuação de associações e cooperativas rurais. Na segunda unidade, estudaremos o associativismo de forma mais aprofundada, destacando a organização social rural, as formas de trabalho no campo, a importância do trabalho coletivo e da cooperação. Fazem parte desta unidade, os princípios e valores do trabalho coletivo, as vantagens e desvantagens de se estabelecer uma associação, a legislação sobre o associativismo e o cooperativismo, sua relação com o desenvolvimento sustentável e as condições e características que possibilitam a constituição e o funcionamento da associação rural. A terceira unidade abordará o cooperativismo, discutindo os aspectos históricos, a simbologia adotada pelo movimento cooperativista no mundo, as formas de atuação e de representação. Vamos aprender sobre a estrutura de uma cooperativa, a importância do estatuto, os direitos e deveres dos cooperados. Esses conhecimentos ajudarão na compreensão dos procedimentos para a implementação e administração de uma cooperativa. IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! Esperamos que os conteúdos deste livro didático, os temas abordados, as sugestões e exemplos apresentados estimulem seu interesse pelo assunto. Desejamos que os conhecimentos contribuam com seu aprendizado e possibilitem melhorar a sua formação profissional. Agradecemos e desejamos uma boa leitura. Bons estudos! Prof. Marcelo Borghezan NOTA V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 – DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO ................................................ 1 TÓPICO 1 – HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA ..................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 DESEMPENHO ECONÔMICO DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO ..................................... 3 3 CONCEITUAÇÃO DE QUESTÃO AGRÁRIA .............................................................................. 8 4 ORIGEM E FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE AGRÁRIA ....................................................... 13 5 QUESTÃO AGRÁRIA NA ATUALIDADE ..................................................................................... 19 5.1 O CAMPESINATO........................................................................................................................... 20 5.2 A EXPANSÃO DAS FRONTEIRAS AGROPECUÁRIAS ........................................................... 22 5.3 O PROCESSO MIGRATÓRIO ........................................................................................................ 22 5.4 A PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA ............................................................................................... 23 5.5 O SETOR DO AGRONEGÓCIO .................................................................................................... 23 5.6 AS OCUPAÇÕES E AS FORMAÇÕES DE ASSENTAMENTOS RURAIS .............................. 23 5.7 A VIOLÊNCIA NO CAMPO .......................................................................................................... 24 6 O BRASIL AGRÁRIO .......................................................................................................................... 25 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 28 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 29 TÓPICO 2 – ESTRUTURA FUNDIÁRIA E DESEQUILÍBRIO REGIONAL ............................... 31 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................31 2 ESTRUTURA FUNDIÁRIA BRASILEIRA ...................................................................................... 31 3 TAMANHO DAS PROPRIEDADES RURAIS ................................................................................ 38 3.1 MÓDULO FISCAL ........................................................................................................................... 40 4 DESEQUILÍBRIO REGIONAL .......................................................................................................... 42 4.1 DENSIDADE POPULACIONAL E SUA RELAÇÃO COM A DESIGUALDADE REGIONAL ....................................................................................................................................... 43 4.2 PRODUTO INTERNO BRUTO (PIB) E SUA RELAÇÃO COM A DESIGUALDADE REGIONAL ....................................................................................................................................... 46 5 CICLOS ECONÔMICOS BRASILEIROS ........................................................................................ 47 5.1 CICLO DO PAU-BRASIL ................................................................................................................ 48 5.2 CICLO DA CANA-DE-AÇÚCAR ................................................................................................. 49 5.3 CICLO DA PECUÁRIA ................................................................................................................... 50 5.4 CICLO DO OURO E DA MINERAÇÃO ...................................................................................... 52 5.5 CICLO DA BORRACHA ................................................................................................................ 53 5.6 CICLO DO CAFÉ ............................................................................................................................. 55 5.7 CICLO DA INDUSTRIALIZAÇÃO E DA DIVERSIFICAÇÃO DA ECONOMIA ................. 57 6 CONDIÇÕES ESTRUTURAIS DO BRASIL ATUAL .................................................................... 58 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 60 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 61 TÓPICO 3 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL ................................ 63 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 63 2 CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO RURAL BRASILEIRO .............................................. 63 sumário VIII 3 POLÍTICAS PÚBLICAS E SEUS ESTÁGIOS DE FORMAÇÃO ...............................................67 4 TIPOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS ................................................................................................69 4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ASSOCIATIVISMO E COOPERATIVISMO ....................74 4.1.1 Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE .....................................................75 4.1.2 Programa de Aquisição de Alimentos – PAA ...................................................................76 4.1.3 Direitos relativos à propriedade industrial .......................................................................76 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................78 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................81 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................82 UNIDADE 2 – ORGANIZAÇÃO SOCIAL, COOPERAÇÃO E ASSOCIATIVISMO ..............85 TÓPICO 1 – TRABALHO RURAL E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ................................................87 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................87 2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL RURAL NO BRASIL ........................................................................87 3 O TRABALHO RURAL .....................................................................................................................90 3.1 FORMAS DE TRABALHO RURAL ............................................................................................93 4 RELAÇÕES DE ORGANIZAÇÃO E COOPERAÇÃO ................................................................96 4.1 ORGANIZAÇÃO COLETIVA E COOPERAÇÃO NA NATUREZA .....................................98 4.2 ORGANIZAÇÃO COLETIVA E COOPERAÇÃO NA HISTÓRIA HUMANA ....................100 4.3 ORGANIZAÇÃO COLETIVA E COOPERAÇÃO NA ATUALIDADE .................................106 4.3.1 Ponto de vista socialista .......................................................................................................106 4.3.2 Ponto de vista capitalista .....................................................................................................109 5 CAPITAL SOCIAL ..............................................................................................................................111 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................114 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................115 TÓPICO 2 – ASSOCIATIVISMO E COOPERAÇÃO .....................................................................117 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................117 2 A CULTURA DA COOPERAÇÃO ..................................................................................................117 2.1 PRINCÍPIOS E VALORES DA COOPERAÇÃO ........................................................................120 3 O ASSOCIATIVISMO .......................................................................................................................120 3.1 COMPORTAMENTOS QUE FAVORECEM E QUE DIFICULTAM O ASSOCIATIVISMO ....................................................................................................................121 3.2 PRINCÍPIOS DO ASSOCIATIVISMO .........................................................................................123 3.3 TIPOS DE ASSOCIAÇÕES ...........................................................................................................124 4 ASSOCIAÇÕES RURAIS ..................................................................................................................126 4.1 VANTAGENS E LIMITAÇÕES DO ASSOCIATIVISMO RURAL ..........................................127 4.2 ASSOCIATIVISMO RURAL: CONDOMÍNIOS E CONSÓRCIOS AGRÍCOLAS .................129 5 LEGISLAÇÃO PARA O ASSOCIATIVISMO E PARA O COOPERATIVISMO NO BRASIL ..........................................................................................................................................131 6 O ASSOCIATIVISMO E O COOPERATIVISMO NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.......................................................................................133 6.1 O ASSOCIATIVISMO NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL, DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DE AÇÕES INTERINSTITUCIONAIS ................................135 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................139 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................140 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................141TÓPICO 3 – CONSTITUIÇÃO E FUNCIONAMENTO DAS ASSOCIAÇÕES RURAIS .......143 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................143 2 A CRIAÇÃO DE UMA ASSOCIAÇÃO ..........................................................................................144 IX 2.1 IDENTIFICAÇÃO DE INTERESSES E NECESSIDADES COMUNS .....................................144 2.2 O QUE FAZER PARA CRIAR UMA ASSOCIAÇÃO ...............................................................145 2.3 FASE 1: SENSIBILIZAÇÃO ..........................................................................................................146 2.3.1 O estatuto social da associação ...........................................................................................148 2.4 FASE 2: CONSTITUIÇÃO .............................................................................................................150 2.4.1 Registros da associação ........................................................................................................152 2.4.1.1 Registro no cartório civil ...................................................................................................152 2.4.1.2 Registro no órgão da Receita Federal .............................................................................154 2.4.1.3 Registro na Secretaria Estadual da Fazenda ..................................................................154 2.4.1.4 Registro no Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS ......................................154 2.4.1.5 Registro na Prefeitura Municipal ....................................................................................154 2.5 FASE 3: PRÉ-OPERACIONAL .....................................................................................................155 2.6 FASE 4: OPERACIONAL ..............................................................................................................155 3 A ADMINISTRAÇÃO DE UMA ASSOCIAÇÃO ........................................................................156 3.1 ASSEMBLEIAS ...............................................................................................................................156 3.1.1 Assembleia geral de fundação ou de constituição ...........................................................157 3.1.2 Assembleia Geral Ordinária (AGO) ...................................................................................157 3.1.3 Assembleia Geral Extraordinária (AGE) ...........................................................................158 3.2 ATRIBUIÇÕES DOS MEMBROS DA DIRETORIA E DO CONSELHO FISCAL .................158 3.2.1 Atribuições da diretoria .......................................................................................................159 3.2.1.1 Atribuições do presidente .................................................................................................160 3.2.1.2 Atribuições do vice-presidente ........................................................................................160 3.2.1.3 Atribuições do secretário ..................................................................................................160 3.2.1.4 Atribuições do tesoureiro ..................................................................................................161 3.2.2 Atribuições do conselho fiscal .............................................................................................161 3.3 CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES LEGAIS ..........................................................................162 3.4 PLANEJAMENTO E AÇÕES DO DIA A DIA DA ASSOCIAÇÃO ........................................163 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................165 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................166 UNIDADE 3 – COOPERATIVISMO ..................................................................................................169 TÓPICO 1 – HISTÓRICO E IMPORTÂNCIA DO COOPERATIVISMO ..................................171 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................171 2 CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO COOPERATIVISMO ...........................172 3 HISTÓRICO DO COOPERATIVISMO MODERNO ..................................................................175 3.1 PRECURSORES DO COOPERATIVISMO .................................................................................175 3.2 A PRIMEIRA COOPERATIVA MODERNA: A SOCIEDADE DOS PROBOS DE ROCHDALE .............................................................................................................................178 3.3 HISTÓRICO DO COOPERATIVISMO NO BRASIL .................................................................182 4 ECONOMIA SOLIDÁRIA E A RELAÇÃO COM O ASSOCIATIVISMO E O COOPERATIVISMO ..................................................................................................................186 5 CLASSIFICAÇÃO E REPRESENTAÇÕES DO SISTEMA COOPERATIVO .........................188 5.1 REPRESENTAÇÕES DO SISTEMA COOPERATIVO ..............................................................190 5.1.1 Aliança Cooperativa Internacional (ACI) ..........................................................................190 5.1.2 Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) ............................................................191 5.1.3 Confederação Nacional das Cooperativas (CNCOOP) ...................................................193 5.1.4 Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP) ..........................194 5.1.5 Frente Parlamentar do Cooperativismo (FRENCOOP) ..................................................197 5.1.6 Departamento de Cooperativismo e Associativismo Rural (DENACOOP) ................197 5.1.7 Conselho Nacional de Cooperativismo (CNC) ................................................................197 X 5.1.8 União Nacional das Organizações Cooperativas Solidárias (Unicopas) ......................198 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................200 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................202 TÓPICO 2 – ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO DO COOPERATIVISMO ...............................203 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................203 2 VALORES E PRINCÍPIOS DO COOPERATIVISMO .................................................................204 2.1 VALORES DO COOPERATIVISMO ...........................................................................................205 2.2 PRINCÍPIOS DO COOPERATIVISMO .......................................................................................205 3 SÍMBOLOS DO COOPERATIVISMO ...........................................................................................207 4 DATAS E COMEMORAÇÕES DO COOPERATIVISMO ..........................................................208 5 RAMOS DO COOPERATIVISMO .................................................................................................210 6 DADOS ESTATÍSTICOS DO COOPERATIVISMO NO MUNDO E NO BRASIL ..............213 6.1 DADOS DO COOPERATIVISMO NO MUNDO ......................................................................213 6.2 DADOS DO COOPERATIVISMO NO BRASIL.........................................................................215 7 CARACTERÍSTICAS E DIFERENÇAS ENTRE ASSOCIAÇÕES E COOPERATIVAS........219 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................228 AUTOATIVIDADE...............................................................................................................................229 TÓPICO 3 – CONSTITUIÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DAS COOPERATIVAS ......................231 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................231 2 A CRIAÇÃO DE UMA COOPERATIVA ........................................................................................231 2.1 UMA COOPERATIVA OU UMA ASSOCIAÇÃO? ...................................................................233 2.2 O QUE FAZER PARA CRIAR UMA COOPERATIVA .............................................................234 2.2.1 Fase de sensibilização ...........................................................................................................235 2.2.2 Fase de constituição ..............................................................................................................237 2.2.3 Fase operacional ou de início das atividades ...................................................................238 3 COMO FUNCIONA UMA COOPERATIVA .................................................................................239 3.1 ASSEMBLEIA GERAL...................................................................................................................241 3.2 DIRETORIA OU CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO ..........................................................243 3.2.1 Distribuição das sobras ou dos prejuízos ..........................................................................248 3.2.2 Impostos e tributos ...............................................................................................................250 3.3 CONSELHO FISCAL .....................................................................................................................252 3.4 AUDITORIA INTERNA E AUDITORIA EXTERNA INDEPENDENTE ...............................253 4 PARTICIPAÇÃO E FUNÇÕES DOS COOPERADOS ................................................................255 4.1 DIREITOS E DEVERES DOS COOPERADOS ...........................................................................256 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................257 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................261 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................262 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................263 1 UNIDADE 1 DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • apresentar os conceitos relacionados à questão agrária, estrutura fundiária e desenvolvimento rural; • compreender como ocorreu a formação da propriedade agrária no Brasil e como esse processo resultou na estrutura fundiária e na desigualdade regional na atualidade; • identificar os principais aspectos relacionados às iniciativas de estímulo ao desenvolvimento rural e as principais políticas públicas direcionadas ao agronegócio e à agricultura familiar; • possibilitar uma análise crítica do processo histórico de posse da terra, como base para a adoção de ações que visem minimizar os problemas relacionados à questão agrária e estimular o desenvolvimento rural de forma mais sustentável; • identificar e conhecer as principais políticas públicas voltadas ao associativismo e ao cooperativismo, compreendendo a importância da cooperação e as suas oportunidades; • identificar os benefícios do trabalho associativo para a viabilização da propriedade, para a cadeia de produção e para o desenvolvimento territorial. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA TÓPICO 2 – ESTRUTURA FUNDIÁRIA E DESEQUILÍBRIO REGIONAL TÓPICO 3 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 1 INTRODUÇÃO Neste primeiro tópico serão abordados os temas relacionados à economia do setor de agronegócios, a questão agrária brasileira, apresentando explicações conceituais e um breve comentário histórico para a compreensão das características que estruturaram a distribuição das terras no Brasil. Esses conhecimentos têm o objetivo de promover a identificação das dificuldades e da realidade do agronegócio brasileiro na atualidade. Espera-se que os temas apresentados proporcionem condições para uma compreensão das origens socioeconômicas e dos desafios relacionados ao meio rural e à estrutura fundiária, servindo de estímulo ao pensamento crítico e ao aproveitamento de novas oportunidades de desenvolvimento rural, principalmente através do associativismo e do cooperativismo. 2 DESEMPENHO ECONÔMICO DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO O Brasil apresenta um modelo de desenvolvimento econômico onde o setor agropecuário apresenta grande importância. Na análise da composição dos setores da economia, observa-se que o setor terciário (serviços e comércio) representa a maior parcela de participação no PIB, com 71% (Figura 1). O setor primário, que está relacionado apenas com a produção agropecuária, participou com 5,6% da economia brasileira. O setor industrial (secundário) representou pouco mais de 23% do somatório total de riquezas produzidas no Brasil em 2014. UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 4 FIGURA 1 – SETORES E PIB 2014 INDÚSTRIA 23,4% AGROPECUÁRIA 5,6% SERVIÇOS 71% FONTE: Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/blogs/celso-ming/o-ajuste- refugado/>. Acesso em: 17 jun. 2018. Embora essa participação com valor pouco acima de 5% pareça baixa, veremos que as atividades agropecuárias apresentam maior impacto na economia e na composição do PIB. O setor econômico que está relacionado ao PIB do Agronegócio envolve de forma direta, não apenas o setor primário de produção agropecuário, mas outros segmentos (CEPEA, 2017), como: • insumos: setor relacionado com o fornecimento de produtos e condições para a produção agropecuária, como a pesquisa, produção, industrialização e comercialização de itens utilizados na produção (fertilizantes, medicamentos, sementes, maquinários, equipamentos, embalagens etc.); • produção primária: envolve de forma direta as atividades de produção agrícola e criação pecuária, ou seja, aquele setor relacionado às atividades realizadas pelos agricultores “dentro da propriedade”; • indústria: participação dos segmentos de processamento, transformação, entre outras atividades industriais relacionadas às atividades agropecuárias. Podem ser citados os abatedouros (bovinos, aves, suínos, peixes etc.), as agroindústrias de transformação de produtos alimentícios (embutidos, laticínios, farinhas, óleos vegetais, conservas, doces, couro etc.), setor têxtil (couro, fibras naturais), biocombustíveis, processamento de madeira, papel e celulose, entre outros; • serviços: correspondem às atividades envolvidas com a comercialização, entre outros agrosserviços. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 5 Conforme esta metodologia de avaliação, o PIB do Agronegócio em 2017 participou com 21,6% do PIB brasileiro (CEPEA, 2017). Embora a metodologia de cálculo do PIB utilizada pelo CEPEA (balanço dos preços reais entre os anos avaliados) difira daquela utilizada pelo IBGE (utiliza os preços constantes do primeiro ano para a comparação entre os anos avaliados), esses dados demonstram a grande importância do agronegócio para a economia nacional. Utilizando dados do IBGE (período de 1995-2005), Ghilhoto et al. (2007, p. 23) apresentaram uma análise mais detalhada da importância da atividadepatronal e familiar na participação do PIB do Agronegócio (figura 2A). Esses autores também separaram as atividades relacionadas com a produção agrícola daquelas relativas ao segmento pecuário (figura 2B). FIGURA 2 – AGRONEGÓCIO E SEGMENTO AGRÍCOLA a) b) 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 69,9% 20,4% 9,7% 1995 71,2% 19,6% 9,3% 1996 71,1% 19,6% 9,3% 2002 69,4% 20,5% 10,1% 2003 70,1% 20,3% 9,6% 2004 72,1% 10,9% 9,0% 2005 72,9% 18,2% 8,8% 2001 73,1% 18,0% 9,0% 2000 71,9% 18,6% 9,4% 1999 72,2% 18,7% 9,1% 1998 72,4% 18,6% 9,0% 1997 Participação do PIB dos outros setores Participação do PIB Agronegócio Patronal Participação do PIB Agronegócio Familiar 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 1995 1996 2002 2003 2004 200520012000199919981997 Participação do PIB do Complexo Familiar Agrícola Participação do PIB do Complexo Patronal Pecuário Participação do PIB do Complexo Patronal Agrícola Participação do PIB do Complexo Familiar Pecuário 21% 21% 20% 21% 20% 19%20%20%21%21%22% 19% 49% 11% 18% 49% 11% 19% 49% 13% 18% 49% 12% 18% 50% 12% 18% 50% 13% 19% 48% 13% 19% 47% 13% 19% 48% 12% 18% 50% 12% 18% 50% 11% FONTE: Ghilhoto et al. (2007, p. 23) UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 6 Observa-se que o PIB do agronegócio foi responsável por quase 30% do PIB nacional, participando no ano de 2005 com 27,9%. Em relação à participação dos segmentos agropecuários, o agronegócio patronal representou aproximadamente 2/3 do PIB do agronegócio. Já as atividades econômicas da agricultura familiar representaram aproximadamente 1/3 do PIB do agronegócio e, aproximadamente, 10% do PIB total brasileiro neste período (Figura 2A). Esses dados demonstram o desempenho expressivo da agropecuária na economia nacional, evidenciando a participação da propriedade familiar nas atividades agropecuárias e na geração de riqueza do país. Levando em consideração apenas o PIB do agronegócio, observa-se, ao longo do período de 1995 a 2005, uma proporção com poucas variações entre os quatro complexos relacionados à atividade agropecuária. A produção agrícola representou a maior parte da riqueza gerada pelo agronegócio, com cerca de 70% do PIB do agronegócio, enquanto as atividades pecuárias são responsáveis por aproximadamente 30%. O complexo patronal agrícola foi o que apresentou a maior importância na composição do agronegócio brasileiro, participando com cerca de 50%. O complexo familiar pecuário possui a menor fatia na soma de riquezas, variando entre 11% e 13% do PIB do agronegócio (Figura 2 B). A participação das regiões do Brasil no PIB demonstra que o Sudeste concentra a maior parte da riqueza produzida no país, com quase 55%. As regiões menos expressivas na composição do PIB nacional são o Norte e o Centro- Oeste, que participam com menos de 10% cada (Figura 3). Em relação ao PIB do agronegócio, o Sudeste permanece como a principal região (39,2%), seguido de uma participação mais importante da região Sul (29,8%). Na análise do PIB das atividades realizadas pela agricultura familiar, evidencia-se que a região Sul possui uma grande importância, sendo que 43,7% da riqueza gerada pelo agronegócio da região têm origem nas propriedades familiares. As regiões com o menor predomínio da agricultura familiar em relação à agricultura patronal são as do Centro-Oeste e do Norte, que possuem participação menor que 10% cada (Figuras 3 e 4). FIGURA 3 – PIB DO AGRONEGÓCIO POR REGIÃO 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% PIB Total PIB Agronegócio PIB Agronegócio Familiar Sul Centro-OesteNorte Nordeste Sudeste 5,3% 5,9% 9,0% 14,1% 54,9% 18,2% 7,5% 13,7% 39,2% 29,8% 11,4% 16,1% 24,0% 43,7% 7,1% FONTE: Ghilhoto et al. (2007, p. 38) TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 7 FIGURA 4 – PIB DO AGRONEGÓCIO POR ESTADOS FONTE: Ghilhoto et al. (2007, p. 59) A Figura 4 ilustra a expressão econômica do Estado de São Paulo, que alicerça o domínio da região Sudeste na composição do PIB do agronegócio. Os três estados do Sul do Brasil também apresentaram uma significativa importância, destacando-se o equilíbrio entre a participação patronal e familiar. Esse equilíbrio também ficou evidente nos estados da região Norte e da região Nordeste, com exceção da Bahia e de Pernambuco. Segundo os dados apresentados por Ghilhoto et al. (2007), o Rio Grande do Sul foi o único estado da federação em que o PIB da agricultura familiar predomina sobre o PIB da agricultura patronal. Nos estados UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 8 da região Centro-Oeste, observa-se um quadro semelhante à região Sudeste, onde há um predomínio da participação patronal sobre a agropecuária familiar na composição do PIB do agronegócio. A maior parte dos estados das regiões Norte e Nordeste apresenta pequena expressão do PIB do agronegócio, demonstrando as desigualdades econômicas regionais na geração de riqueza. Apresentadas algumas características relacionadas ao desempenho econômico do agronegócio brasileiro, veremos agora como este tema se relaciona a outro de grande importância no setor agropecuário do Brasil, a questão agrária. A Questão Agrária e suas implicações, relacionadas com a concentração de terras, com o exercício do direito jurídico no campo e com as dificuldades de manutenção e crescimento da população rural, favorecem as desigualdades nas relações econômicas e de produção, o aparecimento de movimentos sociais de luta pela terra, o surgimento de outras formas de promoção do desenvolvimento territorial e a formação de organizações sociais na busca por melhores condições de vida (MIRALHA, 2006). Assim, estudaremos um pouco mais sobre o que é a questão agrária, qual a sua origem e como essa discussão se insere na formação da agropecuária brasileira. 3 CONCEITUAÇÃO DE QUESTÃO AGRÁRIA A questão agrária não apresenta uma conceituação simples e direta. Sua conceituação pode ser explicada de diferentes formas, de acordo com a ênfase direcionada ao estudo. Stédile (2012) trata a questão agrária como o conjunto de interpretações e análises da realidade agrária, que busca explicar como se organizou e como ocorre a posse, a propriedade e a utilização das terras na sociedade brasileira. Este autor também sugere que o conceito de questão agrária pode ser interpretado segundo os diferentes campos de conhecimento: • literatura política: compreende o estudo dos problemas que a concentração da propriedade de terra ocasiona sobre o desenvolvimento das possibilidades produtivas de uma sociedade em particular e como exerce influência no poder político; • sociologia: retrata as formas como se desenvolvem as relações sociais, na organização da produção agropecuária de uma sociedade; • geografia: se relaciona com a forma como a sociedade, ou seja, as pessoas se apropriam da utilização do recurso natural terra, resultando na ocupação humana do território; • história: contribui para explicar a evolução da luta política e de classes para o controle e domínio dos territórios, além da posse da terra. Outros autores descrevem a questão agrária como a relação entre o problema da concentração fundiária, que ocasiona as injustiças no campo e a miséria da população rural, e a reforma dessa desigualdade (MIRALHA, 2006). Neto (2006) descreve que a questão agrária, conceituada do ponto de vista econômico, refere-se às transformações nas relações de produção. Do ponto de TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 9 vista jurídico, a questão agrária se aplica ao direito de propriedade imobiliária rural (NETO, 2006). Em uma análise mais voltada ao campo socioeconômico, a questão agrária é entendida como “o conjunto dos problemas inerentes ao desenvolvimento do capitalismo no campo” (GIRARDI, 2017). Já Delgado e Pereira (2017, p. 15) sugerem que para o entendimento da questão agrária, o conceito chave refere-se à Estrutura Agrária, ou seja, os direitosde propriedade, posse e uso da terra, compreendendo todos os recursos naturais associados a ela. Nessa visão, “a questão agrária refere-se a uma inadequação da estrutura agrária vigente”, baseada em dois aspectos: 1 – às condições de vida e de trabalho das populações rurais; e 2 – à presumida incapacidade dessa estrutura agrária em prover os excedentes produtivos necessários para atender à urbanização da sociedade e a industrialização da economia (DELGADO; PEREIRA, 2017). Para esse autor, a questão agrária e a reforma agrária estão diretamente ligadas, sendo interdependentes, pois ambas são geradas a partir da estrutura agrária configurada durante um longo período histórico. IMPORTANT E Conforme o Artigo 1°, §1°, da Lei Federal n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre o Estatuto da Terra, “a Reforma Agrária é o conjunto de medidas que visam promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. O INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária é uma autarquia federal responsável pelas ações relacionadas à reforma agrária no Brasil. A reforma agrária busca a implantação de um modelo de assentamento rural baseado na viabilidade econômica, na sustentabilidade ambiental e no desenvolvimento territorial. Segundo o INCRA, do ponto de vista prático, a reforma agrária deveria proporcionar: desconcentração e democratização da estrutura fundiária; produção de alimentos básicos; geração de ocupação e renda; combate à miséria e à fome; interiorização dos serviços públicos básicos; redução da migração campo-cidade (êxodo rural); promoção da cidadania e da justiça social; diversificação do comércio e dos serviços no meio rural; e democratização das estruturas de poder. Para obter mais informações, acesse: <http:// www.incra.gov.br/reformaagraria>. Como verificamos, todos os autores discutem este tema considerando o domínio temporário de uma área física de terra, destinada à produção agropecuária. Outro aspecto comum entre eles, ao tratar da questão agrária, é a divisão entre duas categorias distintas, que consistem em: UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 10 • agricultura patronal (GHILHOTO et al., 2007), capitalista ou empresarial (STÉDILE, 2012; GIRARDI, 2017), dos grandes proprietários (MIRALHA, 2006), de latifúndios ou da classe latifundiária (NETO, 2006; GIRARDI, 2017) ou do agronegócio (GIRARDI, 2017); • agricultura familiar (STÉDILE, 2012; DELGADO; PEREIRA, 2017), de pequenas propriedades ou pequenos produtores (NETO, 2006; MIRALHA, 2006; STÉDILE, 2012), do lavrador através do trabalho familiar (NETO, 2006), da agricultura camponesa (STÉDILE, 2012), do agronegócio familiar (GHILHOTO et al., 2007) ou do campesinato (GIRARDI, 2017). Vamos analisar o quadro comparativo entre as principais características das atividades agropecuárias do agronegócio e do campesinato (Quadro 1). Essa separação pressupõe que o território do agronegócio e o do latifúndio compreendem os proprietários de grandes áreas, grandes empresas capitalistas e grileiros de terra. Como implicações, evidenciam-se a exploração do trabalho, crimes ambientais, mecanização, agropecuária intensa, superprodução, especulação imobiliária, violência e concentração de poder econômico e político. No lado oposto, o território do campesinato, relacionado aos pequenos produtores ou produtores familiares, compreende um quadro de luta pela terra (ocupações e assentamentos rurais), com estímulo à organização socioeconômica (associações, cooperativas, sindicatos, entre outras organizações coletivas), menor impacto ambiental, menor acesso a políticas públicas (crédito agrícola e assistência técnica) e baseado na diversificação das formas de produção e de produtos (GIRARDI, 2017). Esses dois extremos não representam a totalidade dos produtores rurais brasileiros, mas oferecem uma análise comparativa das diferenças entre a agricultura de grande escala e a produção agropecuária familiar. NOTA Grileiro de terras é um termo que se refere àqueles que realizam a usurpação de terras, a partir da falsificação de documentos de propriedade, com o objetivo de tomar posse de propriedades de terceiros ou de terras públicas. QUADRO 1 – COMPARAÇÃO AGRONEGÓCIO E CAMPESINATO AGRONEGÓCIO* (Patronal) CAMPESINATO** (Familiar) Centralização Descentralização • controle centralizado da produção, processamento e mercado; • produção concentrada, estabelecimentos agrícolas maiores e em menor número, o que acarreta um menor número de agricultores e de comunidades rurais. • maior ênfase na produção, processamento e mercado locais/regionais; • produção pulverizada (maior número de estabelecimentos e agricultores), controle da terra, recursos e capital. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 11 Dependência Independência • abordagem científica e tecnológica para produção; • dependência de experts; • dependência de fontes externas de energia, insumos e crédito; • dependência de mercados muito distantes. • unidades de produção menores, menor dependência de insumos, fontes externas de conhecimento, energia e crédito; • maior autossuficiência individual e da comunidade; • ênfase prioritária em valores, conhecimentos e habilidades pessoais. Competitivo Comunitário • competitividade e interesse próprio; • agricultura é considerada um negócio; • ênfase na eficiência, flexibilidade, quantidade e crescimento da margem de lucro. • maior cooperação; • agricultura é considerada um modo de vida e um negócio; • ênfase em uma abordagem holística da produção, otimizando todas as partes do agroecossistema. Domínio da natureza Harmonia com a natureza • o ser humano é separado e superior à natureza; • a natureza consiste principalmente em recursos a serem utilizados para o crescimento econômico; • imposição das estruturas e sistemas do tempo humano aos ciclos naturais; • produtividade maximizada através de insumos industrializados e modificações científicas; • apropriação de processos naturais por meios científicos e substituição de produtos naturais pelos industriais. • o ser humano é parte e dependente da natureza; • a natureza provê recursos e também é valorizada para o próprio bem; • trabalha com uma abordagem ecológica/ de ambiente fechado – desenvolvendo um sistema diferenciado e balanceado; • incorpora mais produtos e processos naturais; • usa métodos culturais para cuidar do solo. Especialização Diversidade • base genética limitada utilizada na produção; • predominância da monocultura; • separação entre agricultura e pecuária; • sistemas de produção padronizados; • predominância de uma abordagem científica especializada. • ampla base genética; incorporação da policultura; rotações complexas; • integração entre agricultura e pecuária; • heterogeneidade de sistemas agrícolas; • interdisciplinaridade (ciências naturais e sociais), sistema participativo (inclusão de agricultores). Exploração Abdicação • ênfase nos resultados de curto prazo em detrimento a consequências ambiental e social de longo prazo; • dependência de recursos não renováveis; • consumismo impulsiona o crescimento econômico; • hegemonia do conhecimento científico e da abordagem industrial sobre conhecimento e cultura indígenas, tradicionais e/ou locais. • custo total contabilizado; • resultados de curto e longo prazo igualmente importantes; • amplo uso de recursos renováveis e conservação de recursos não renováveis; • consumo sustentável, estilo de vida mais simples; • acesso equitativo a necessidades básicas; • reconhecimento e incorporação de outros conhecimentos e práticas, permitindo uma base de conhecimento mais homogênea. * No original “Paradigma Agrícola Convencional/Dominante”. ** No original “Paradigma Agrícola Alternativo”. FONTE: Adaptado de Girardi (2017). Disponível em: <http://www.atlasbrasilagrario.com.br/con_ subcat/a-questao-agraria>.Acesso em: 18 jun. 2018. UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 12 As diferenças ideológicas e de interesses econômicos geram os enfrentamentos nas áreas rurais, verificadas atualmente. O confronto entre ideias e ações a respeito da posse da terra e dos meios de produção são problemas recorrentes na política agrária brasileira e que não são facilmente resolvidos. O impasse sobre a questão agrária resulta da oposição entre o regime fundiário constitucional e aquele da autonomia do mercado (DELGADO; PEREIRA, 2017). Esse quadro se reflete em uma crescente instabilidade social, aumento do número de conflitos entre trabalhadores e latifundiários, além da insustentabilidade ambiental, apresentando repercussões gerais para toda a sociedade brasileira. Agora veremos como ocorreu este processo de formação agrária no Brasil, analisando, a partir dos aspectos históricos, os fatores que conduziram ao atual panorama de distribuição das propriedades e ao surgimento das diversas organizações sociais, identificadas com a luta pela terra e pela implementação da reforma agrária. NOTA A agricultura familiar é responsável por uma grande parte da alimentação nacional. A FAO chamou a atenção para este aspecto ao identificar o ano de 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Verifique alguns aspectos sobre a agricultura familiar na imagem a seguir. Disponível em: <http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2014/03/04_ infografico_ANO-DA-AGRICULTURA-FAMILIAR.jpg>. Acesso em: 30 jul. 2018. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 13 4 ORIGEM E FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE AGRÁRIA A partir da chegada dos portugueses e a ocupação do espaço territorial brasileiro em 1500, foi originada a formação histórica da propriedade agrária que verificamos na atualidade (NETO, 2006). Porém, antes da chegada dos europeus ao continente americano, diversas etnias indígenas ocupavam o território e, instigadas por diferentes interesses e necessidades, alteravam sua distribuição na área geográfica. Até 1500, as populações indígenas nativas viviam em agrupamentos sociais, desde níveis mais simples (famílias e tribos) até sociedades formadas por complexas estruturas sociais. Possuíam hábitos de vida que variavam do nômade, dedicando-se à caça, pesca e extrativismo de produtos da natureza, até a produção agrícola diversificada e o domínio de técnicas que possibilitaram a domesticação de diversas espécies de plantas. Recentemente diversos pesquisadores têm se dedicado ao estudo das populações nativas americanas, na distribuição e ocupação do espaço geográfico ao longo do tempo e sua importância na contribuição para a agricultura e a alimentação mundial (CLEMENT et al., 2015). Como o propósito deste texto é apresentar os aspectos que resultaram no quadro atual da propriedade agrária brasileira, serão abordados alguns eventos que estão relacionados à posse da terra a partir do contato com os europeus. Para facilitar a interpretação e as características relacionadas com a formação da propriedade agrária no Brasil, Neto (2006) identificou o processo histórico de posse da terra, separando nas seguintes fases: Período pré-sesmarial, de 1501 a 1530: Na primeira fase, a Coroa portuguesa adotou um sistema de concessão de propriedades a particulares portugueses, já a partir de 1501, com a finalidade de exploração extrativista da “nova terra” e como forma de estabelecer o domínio do território. Neste período, a ocupação do território continuava sendo pelos indígenas, sem a presença física de forma importante dos colonizadores portugueses. Entretanto, a atividade extrativa de forma desorganizada e as frequentes incursões francesas, espanholas e holandesas fizeram com que a Coroa portuguesa, entre 1530-1532, implementasse uma nova forma de domínio e distribuição das terras: a sesmaria (NETO, 2006). Período sesmarial, de 1530 a 1822: Com a implementação da política de sesmarias, a manutenção da concessão a proprietários privados buscava promover a colonização, a exploração econômica de outras atividades e a vigilância do litoral brasileiro contra invasores. As terras eram concedidas aos membros da nobreza e mercadores pertencentes à classe emergente, desde que tivessem disponibilidade de capital e firmassem o compromisso de produzir, na colônia, mercadorias a serem exportadas à Europa (STÉDILE, 2012). Segundo Neto (2006), o processo mercantilista português do século XVI buscava acumular riquezas nas mãos do rei, que posteriormente redistribuía às classes mais beneficiadas. UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 14 O regime de sesmarias era uma medida adotada para o aproveitamento das terras improdutivas ou, no caso do Brasil, ainda inexploradas. No regime de sesmarias, o titular da propriedade possuía um prazo para iniciar a produção agrícola, que se não fosse cumprido, seu direito de posse era cassado. Como legado, a implementação dos latifúndios, inicialmente de exploração da cana-de- açúcar, produziu uma economia baseada na monocultura destinada à exportação, estabelecida a partir do trabalho escravo, principalmente no Nordeste brasileiro. O avanço da importância da criação de gado contribuiu para a expansão dos domínios em direção ao interior do país, principalmente no Norte e Nordeste (NETO, 2006). Miralha (2006) destaca que a forma familiar de produção de itens de subsistência e para atender pequenos mercados locais esteve presente desde o início do período colonial, porém sempre de forma subordinada à grande propriedade. Entre o final de 1600 e início de 1700, as ordens reais que buscavam maior produtividade tornavam mais complexas a demarcação e a concessão de terras, ficando estabelecido em 1785 que o cultivo da terra era a condição essencial à posse da propriedade. Regime de Posses, de 1822-1850: No sistema de sesmaria, as terras eram concedidas pelo rei de Portugal, que exercia o domínio do território brasileiro. A partir do final do século XVIII, parte da população brasileira passou a apoderar-se fisicamente de áreas mais distantes e ainda não ocupadas. Em diversas partes do Brasil colonial, os lavradores brasileiros passaram a ocupar pequenas áreas, suficientes para possibilitar o cultivo utilizando a mão de obra da família. A chegada de imigrantes europeus no Sul e no Sudeste também contribuiu para intensificar a posse de pequenas propriedades. A partir de uma Resolução Imperial em 17 de julho de 1822, a concessão de sesmarias ficou suspensa e o pequeno produtor, que jamais havia tido acesso à terra, obteve o direito a partir do poder público. No período entre a suspensão do regime de sesmarias (1822) e a edição da Lei nº 601 (1850), o acesso à terra era feito através da posse, reconhecendo o costume de produção como procedimento de consolidação do direito à terra. Neto (2006) destaca que a posse, diferentemente das sesmarias latifundiárias, originou a pequena propriedade familiar no Brasil. Regime da Lei das Terras de 1850: Em meados do século XIX, o Império brasileiro era pressionado por outros países, que pretendiam expandir seus mercados, a acabar com a escravidão. Porém, os grandes fazendeiros de café, principal atividade econômica da época, dependiam do trabalho escravo. Como estratégia para minimizar os efeitos dos movimentos abolicionistas, a elite cafeeira pressionou o Império na adoção de medidas que dificultassem o acesso à terra (MIRALHA, 2006). A Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas do Império, instituiu, no artigo 1º, como único meio de acesso à terra, a compra, que na época só podia ser realizada em dinheiro, proibindo a posse de terras. Na mesma legislação, ficavam guardadas a autorização para que o governo realizasse a TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 15 venda de terras públicas da forma que julgasse mais conveniente (art. 14º). Essa lei autorizava a vinda, às custas do Tesouro, de imigrantes agricultores para o trabalho nos estabelecimentosagrícolas predeterminados ou para a formação de colônias nos locais de interesse do Império (art. 18º). Também ficou estabelecida a Repartição Geral das Terras Públicas, que seria encarregada das medições, divisão, fiscalização da venda e da distribuição das terras, bem como promover a colonização (ou seja, a distribuição dos escravos livres e dos imigrantes) (art. 21º) (BRASIL, 1850). Com essa medida, o governo imperial conseguiu agradar os grandes cafeicultores, criando condições para que o excedente populacional de escravos libertos ou de imigrantes europeus que estavam chegando não tivesse um acesso livre à propriedade, garantindo o monopólio da terra (NETO, 2006). Ao dificultar, ou mesmo impedir, o acesso à propriedade rural, a Lei de Terras tinha a finalidade de manter inalterada uma estrutura fundiária baseada em grandes propriedades, originando assim a questão agrária (MIRALHA, 2006; STÉDILE, 2012). Sistema jurídico do Código Civil de 1916: Passada a abolição da escravatura (1888) e a proclamação da República (1889), a estrutura fundiária brasileira foi mantida, baseada no monopólio dos latifúndios onde os “coronéis” e os “barões do café” controlavam o poder político e a situação social e econômica do Estado brasileiro. A partir do Código Civil de 1916, o direito sucessório (ou seja, a transferência de direitos e de titularidade) partilhava o imóvel rural em tantas partes quanto fosse o número de herdeiros. Juntamente com a questão jurídica relacionada à divisão dos bens entre os herdeiros, as subdivisões das grandes propriedades cafeeiras ocorreram também em função da decadência do mercado internacional do café. Foi apenas durante o século XX que a propriedade latifundiária perdeu sua hegemonia, havendo grande expansão de pequenas propriedades, principalmente no Sul e Centro-Sul do Brasil. Outros fatores que também contribuíram para essa alteração fundiária foram o processo de industrialização e a divisão de propriedades agrícolas comerciais, resultando em pequenas propriedades familiares, que produziam basicamente gêneros para subsistência (NETO, 2006). A reorganização da economia brasileira a partir de 1930, o desenvolvimento de novos centros de produção agrícola e a industrialização, principalmente no Sudeste e no Sul, promoveram diversos movimentos migratórios, tanto entre regiões rurais quanto no sentido rural-urbano (MIRALHA, 2006). Esses movimentos migratórios reduziram significativamente a população do sertão do Nordeste em direção ao Estado de São Paulo, principalmente. Este autor também descreve que em meados do século XX, a agricultura brasileira iniciou um processo de “modernização”, incentivada por políticas de financiamento para a adoção de inovações tecnológicas (tratores e máquinas agrícolas, fertilizantes, agroquímicos etc.). UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 16 A Constituição Federal de 1946 apresentou, de forma inovadora, a possibilidade de desapropriação por interesse social (art. 141º, §16), abordando questões relacionadas à melhoria na estrutura fundiária e a reforma agrária, a partir de uma maior distribuição da propriedade (art. 147º). Esse tema ganhou mais força em nível nacional, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos publicada em 1948, afirmando que “todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis...” (art. XXV) (ONU, 2009, p. 13). Neste contexto histórico, começam a ser organizadas muitas associações de produtores, cooperativas agropecuárias e sindicatos de trabalhadores rurais (MIRALHA, 2006). A partir da década de 1950, diversos movimentos sociais ligados à luta pela terra, que contestavam a desigualdade social e a concentração fundiária no Brasil, são estruturados e passam a ter representatividade nacional. NOTA A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi um documento marco, proclamado pela ONU em Paris, em 10 de dezembro de 1948, que estabeleceu as condições mínimas a serem alcançadas por todos os povos e nações. Este tratado internacional foi traduzido para mais de 500 idiomas e serviu de inspiração para muitas constituições. Se você deseja conhecer o conteúdo completo, acesse: <https://nacoesunidas.org/ direitoshumanos/declaracao/>. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 17 Desde o início do século XX, surgem diversas formas de organização de produtores rurais e cooperativas de produção agropecuária no Brasil. Um destes exemplos é a fundação da Cooperativa Vinícola Aurora, em Bento Gonçalves/RS, iniciando as atividades em 14 de fevereiro de 1931. Inicialmente formada por 16 famílias de descendentes e de imigrantes italianos, é atualmente a maior cooperativa vinícola do Brasil. O trabalho e a união de pequenos produtores familiares, que cultivavam a uva na Serra Gaúcha, possibilitaram o crescimento e uma posição de destaque em nível nacional e reconhecimento internacional. Atualmente, esta cooperativa possui mais de 1.100 famílias associadas, contribuindo com a geração de renda, oportunidades diversificadas de negócios e o desenvolvimento econômico regional. Hoje, a Serra Gaúcha/RS é considerada um dos principais roteiros turísticos do Brasil e uma das regiões com os maiores índices de qualidade de vida. ATENCAO Sistema legal do Estatuto da Terra de 1964: A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, também conhecida como Estatuto da Terra, foi decretada no início do período da ditadura militar. O Estatuto da Terra modificou de forma muito importante os aspectos relacionados ao acesso à terra e à função social da propriedade. Segundo esta legislação, foram consideradas as medidas para promover a melhor distribuição da terra, a partir da reforma agrária e da promoção da política agrícola (art. 1º), e no seu artigo 2º, “fica assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social” (BRASIL, 1964). O Estatuto da Terra trazia inovações não apenas de estímulo à produção agrícola, mas também referentes às relações sociais no campo, no acesso à terra, nas medidas para assegurar a conservação dos recursos naturais e na promoção de políticas agrícolas de incentivo à economia, à geração de emprego e renda, e na harmonização com o processo de industrialização. Embora a redistribuição da terra e uma reorganização da estrutura fundiária pudessem ter sido realizadas a partir do Estatuto da Terra, a aplicação dos critérios técnicos para promover uma reforma agrária e o desenvolvimento rural não se mostrou satisfatória (NETO, 2006; MIRALHA, 2006; STÉDILE, 2012). Foi a partir da década de 1960 que se intensificaram os processos de modernização tecnológica da agricultura brasileira, a expansão das aplicações práticas da Revolução Verde e a organização do complexo agroindustrial, formado pelas indústrias produtoras de insumos agrícolas e as agroindústrias de transformação dos produtos. Ao mesmo tempo, entre as décadas de 1960 e 1970, intensificou-se o êxodo rural e observou-se a inversão da distribuição da população brasileira, que passou a se concentrar nos centros urbanos. UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 18 NOTA A Revolução Verde teve sua origem com as pesquisas do americano Norman Borlaug na década de 1930. Passou a ter aplicação prática após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com o propósito ideológico de aumentar a produção agrícola, na busca de resolver o problema da fome no mundo, principalmente nos países mais pobres. A expressão “revolução verde” foi conhecida em 1966, pronunciada por William S. Gaud, então administrador da Agência para o Desenvolvimento Internacional/EUA. Este programa teve início em 1946, financiado pela fundação americana Rockfeller em parceria com o governo do México, a partir da obtenção de cultivares melhoradas de milho e trigo. Sabe-se hoje que, entre os objetivos, estavam a destinaçãodos insumos gerados pelas indústrias químicas, a partir de uma aplicação agrícola, além do incentivo à produção industrial, à recuperação da economia e a expansão comercial americana no período pós-guerra. Durante as décadas de 1960 e 1970, verificou-se a implementação em vários países deste “pacote tecnológico”, baseado na intensa atividade de mecanização, utilização de sementes melhoradas, de fertilizantes industrializados e na aplicação de agroquímicos para controle fitossanitário. A produtividade por área e a produção total de alimentos aumentaram, razão que justificou o Prêmio Nobel da Paz de 1970 a Norman Borlaug. Entretanto, diversos problemas sociais (ampliação das desigualdades no campo, não resultou em redução da fome etc.), econômicos (êxodo rural, concentração fundiária, desigualdade regional etc.), de saúde (contaminação, mortalidade humana, alteração nos hábitos alimentares etc.) e de ordem ambiental (degradação, poluição, uso intensivo dos recursos naturais, perda de biodiversidade etc.) foram algumas das consequências negativas. Um dos primeiros relatos sobre esses efeitos e que apresentou impacto em nível mundial foi a partir do livro “Primavera Silenciosa” (1962), da bióloga e autora Rachel Louise Carson. A partir deste relato, movimentos e políticas ambientalistas ganharam importância, sendo que os debates entre defensores e críticos da Revolução Verde continuam até os dias atuais. Regime fundiário a partir da Constituição Federal de 1988 A partir do processo de redemocratização e o fim do período militar, a nova Constituição Federal, editada em 5 de outubro de 1988, atualizou as ações relativas à política agrícola e fundiária e aquelas relacionadas à reforma agrária (art. 184º a 191º). Especificamente, no art. 186 (BRASIL, 1988), a Constituição Federal descreve que a “função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos”: I - aproveitamento racional e adequado da propriedade; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 19 Atualmente, a legislação que trata da reforma agrária está descrita na Lei Federal nº 8.692, de 25 de fevereiro de 1993 (Lei Agrária), sendo complementada pela Lei Federal nº 13.465, de 11 de julho de 2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, no âmbito da Amazônia Legal. Esses instrumentos legais conceituam, classificam e normatizam as propriedades rurais no Brasil, disciplinando o funcionamento das políticas fundiárias brasileiras. Também a reforma agrária teve dois planos de ação governamental, como o I (1985) e o II Plano Nacional de Reforma Agrária (2003), ambos com resultados pouco expressivos em relação à importância e necessidade (DELGADO; PEREIRA, 2017). Segundo Neto (2006), dentre as condições que paralisam o andamento da reforma agrária, estão as ações do órgão executor (no caso, o INCRA), que necessita compatibilizar os programas de trabalho e as necessidades orçamentárias, além de buscar atuações integradas entre vários ministérios. Nesta barganha de poder, os embates políticos acabam por não privilegiar a classe dos não proprietários interessados na implementação da reforma agrária (NETO, 2006). Concluída uma breve análise do processo histórico de formação da propriedade rural brasileira, vamos compreender agora como as discussões e ações sobre a questão agrária têm sido enfrentadas na atualidade. 5 QUESTÃO AGRÁRIA NA ATUALIDADE Ao estudar como surgiu a questão agrária, fica mais fácil entender as razões que moldam as particularidades de desenvolvimento entre as regiões brasileiras. Estas informações ajudam a compreender como está caracterizada e quais os motivos que configuram a realidade agrícola no Brasil atual. Em relação à estrutura agrária atual, Delgado e Pereira (2017) destacam duas mudanças significativas e contrastantes, desde a Constituição de 1988: 1 a mudança conceitual do direito à propriedade rural, pelos critérios expressos na função social e ambiental (art. 5 e art. 186), acrescidos dos direitos territoriais aos povos indígenas (art. 231) e das comunidades quilombolas (art. 68). Essas mudanças na política institucional dependem de normas regulamentares e práticas de governo, sendo assim, dependentes de vontade política. De modo geral, avanços no reconhecimento de áreas de proteção ambiental e de comunidades tradicionais têm ocorrido, porém muitas situações de conflitos ainda se apresentam; 2 reestruturação da economia do agronegócio, baseada na captura da renda e na ampliação da riqueza fundiária nacional, expressando uma completa “mercadorização” dos espaços territoriais. Neste caso, segundo Delgado e Pereira (2017), as ações públicas e de interesse privado estão combinadas. Essas ações integradas, além de propiciar forte valorização da renda fundiária, ganham força na não adoção de restrições do direito público ao território, relacionadas à demarcação e implantação de áreas com função social ou ambiental. Na prática, a importância do mercado ainda se mantém como fundamento da política agrária brasileira. UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 20 As mudanças descritas favoreceram, a partir dos anos 2000, um processo de intensa valorização dos preços das terras agrícolas do Brasil, em parte favorecida pelo mercado de commodities, e em parte ocasionada por fatores internos, como a reestruturação do sistema de crédito e o direcionamento do sistema de regulação fundiária (DELGADO; PEREIRA, 2017). Estes autores descrevem ainda que o projeto de modernização conservadora se reestrutura, articulado por ações que priorizam o comércio exterior, associadas à pressão do mercado e das cadeias agroindustriais, das decisões políticas e com apoio dos meios de comunicação. Vamos agora analisar um mapa, elaborado por Girardi (2017), que apresenta uma proposição bem organizada sobre a configuração da questão agrária brasileira (Figura 5). Para facilitar sua compreensão, este mapa foi dividido em diferentes estruturas elementares: (1) o campesinato, (2) a expansão da fronteira agropecuária, (3) o processo migratório, (4) a produção agropecuária, (5) o setor do agronegócio, (6) as ocupações e as formações de assentamentos rurais e, finalmente (7), a violência no campo (GIRARDI, 2017). 5.1 O CAMPESINATO Como primeira estrutura, vamos identificar o campesinato ou agricultura familiar que apresenta importância demográfica e econômica em três regiões: Sul, Nordeste e Norte. Na região Sul, a formação e colonização a partir de imigrantes europeus caracterizou uma agropecuária dinâmica e diversificada, com elevada produtividade e com grande importância econômica, gerando indicadores de qualidade de vida e renda acima da média nacional. A luta pela terra também tem grande representatividade, sendo uma das origens de organizações de luta pela terra, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), com diversos eventos de ocupações e assentamentos estabelecidos (GIRARDI, 2017). Nesta parte do Brasil, a agricultura familiar apresenta-se organizada em várias associações e cooperativas de produção atuantes em diversas áreas, além de sistemas de integração entre produtores e agroindústrias que possibilitam a produção agropecuária. Nesta região, também se observa um setor pecuário bem estabelecido, com produção leiteira, de bovinos e ovinos, apresentando destaque na estruturação dos setores de avicultura e de suinocultura (GUILHOTO et al., 2007). Um outro aspecto que se destaca na região Sul é que a base produtiva diversificada foi adotada tanto por agricultores patronais quanto pela agricultura familiar. E em relação aos agricultores familiares, encontram-se diversascategorias sociais, formadas por agricultores capitalizados, em transição e aqueles sem condições de acompanhar o ritmo de mudanças nos sistemas produtivos implementados (MATTEI, 2016). Esse autor ainda identifica quatro grupos de agricultores familiares na região Sul do Brasil: o primeiro com produção exclusiva para o autoconsumo; o segundo grupo com produção voltada tanto ao autoconsumo como para o mercado; um terceiro, formado por produtores integrados a grandes agroindústrias; e o quarto grupo de agricultores que se dedicam à produção de commodities destinadas ao mercado nacional e à exportação. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 21 No Nordeste, a agropecuária familiar é caracterizada por perdas em decorrência de fatores climáticos (seca), baixa produtividade e uso de meios de produção precários, gerando baixos níveis de desenvolvimento. A principal causa das dificuldades de desenvolvimento rural nesta região se relaciona com a disponibilidade de água, tanto para o cultivo quanto para o consumo humano. Em relação à luta pela terra, destacam-se os movimentos das Ligas Camponesas, reunindo na região grande parte das ocupações de terras do país (GIRARDI, 2017). Na região Nordeste, a atividade agrícola apresenta grandes níveis de desigualdade. De um lado, atividades agropecuárias familiares de subsistência do agricultor sertanejo, com limitações produtivas ocasionadas pela restrita disponibilidade de água, apresentando produção pecuária baseada na caprinocultura e ovinocultura. Em outro extremo, há diversos polos de produção agrícola bem desenvolvidos, direcionados a atender os mercados nacionais do Centro-Sul do Brasil e o comércio internacional, com destaque para a fruticultura irrigada (GUILHOTO et al., 2007). FIGURA 5 – CONFIGURAÇÃO AGRÁRIA ATUAL FONTE: Adaptado de Girardi (2017). Disponível em: <http://www.atlasbrasilagrario.com.br/con_ subcat/configuracao-da-questao-agraria>. Acesso em: 19 jun. 2018. UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 22 Na região Amazônica, o campesinato é formado por populações ribeirinhas e por massas migratórias nordestinas e do Sul. As atividades extrativistas e a produção agropecuária em pequena escala, direcionadas ao abastecimento regional, são características marcantes, resultando em baixos índices produtivos e de desenvolvimento socioeconômico. Atualmente a região Amazônica concentra grande parte dos projetos de colonização e de assentamentos rurais e pequenas posses vêm sofrendo violência do avanço do latifúndio em busca de expansão econômica (GIRARDI, 2017). A região Norte é caracterizada pela atual área de expansão das fronteiras agrícolas do agronegócio e da pecuária extensiva, pelo extrativismo de recursos florestais e pela pesca. Nesta região, se concentram muitos conflitos agrários associados à posse da terra e à demarcação de áreas indígenas (que também ocorrem em outras regiões do país, porém em menores níveis de violência). Identifica-se também uma produção familiar baseada na agricultura de subsistência, ligada a uma particular estrutura social e demográfica (GUILHOTO et al., 2007). 5.2 A EXPANSÃO DAS FRONTEIRAS AGROPECUÁRIAS A expansão das fronteiras agropecuárias caracteriza a segunda estrutura elementar da questão agrária no Brasil, baseada em políticas públicas, ocupando regiões do Cerrado e da Amazônia, a partir do final da década de 1960 e início dos anos 1970. Embora expressivo crescimento econômico esteja sendo verificado, o governo mantém incentivo à ocupação da região, mesmo identificando graves problemas de devastação da floresta, violência contra ocupantes e trabalhadores rurais e crimes de grilagem de terras públicas. Esse quadro resulta em crescimento demográfico desordenado, desflorestamento e expansão de atividades extrativas e pouco sustentáveis de utilização da terra (GIRARDI, 2017). 5.3 O PROCESSO MIGRATÓRIO O processo migratório, que está ligado à expansão agropecuária, é apontado por Girardi (2017) como uma consequência da modernização da agricultura e do êxodo rural. São apontadas duas frentes migratórias majoritárias, uma que vem do Sudeste e, principalmente, do Sul na busca de novas oportunidades econômicas e como estratégia para minimizar os efeitos do extremo parcelamento das propriedades familiares. Essas correntes migrantes, que se encontram em menor intensidade atualmente, se estabeleceram principalmente em Rondônia, Mato Grosso e Bahia. A segunda corrente de migrantes tem origem do Nordeste, ocupando a região central da Amazônia, parte do Estado do Maranhão e o Sudeste do Pará, sendo atraídos pela posse de terras e na busca por trabalho, como exemplo, nas áreas de seringais. Atualmente, essa segunda frente apresenta-se mais ativa, e muitas vezes, se encontra com os produtores que partem agora do Centro-Oeste em direção ao Norte. TÓPICO 1 | HISTÓRICO DA QUESTÃO AGRÁRIA 23 5.4 A PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA Em relação à produção agropecuária, os estados do Sul e partes das regiões Sudeste e Centro-Oeste apresentam uma atividade agropecuária diversificada, composta por intensa mecanização e uso de novas tecnologias, possibilitando uma atividade produtiva expressiva. Nessas áreas de intensa atividade agropecuária, predominam relações de produção familiar (principalmente na região Sul) e trabalho assalariado, formando a principal região agropecuária do país (Figura 5). Ainda na parte norte da região Sudeste e Centro-Oeste, as áreas ainda ociosas e subutilizadas têm sido ocupadas pelo avanço de lavouras do agronegócio (cana, soja etc.) (GIRARDI, 2017). Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, verifica-se uma atividade intensiva do agronegócio, estruturada na produção de commodities agrícolas, com expressiva atividade pecuária de produção leiteira e de carne bovina. As atividades agropecuárias diversificadas e com elevado nível de tecnologia fazem, destas regiões, importantes produtoras de alimentos e de produtos destinados à exportação. Em relação às organizações associativas, as entidades apresentam expressiva importância, principalmente para o setor agrícola empresarial (GUILHOTO et al., 2007). 5.5 O SETOR DO AGRONEGÓCIO A expansão do agronegócio, baseada na produção intensiva de grãos, principalmente nas áreas de Cerrado, localizadas na região Centro-Oeste, e mais recentemente no oeste da Bahia, no sul do Maranhão e Piauí, também constitui um fator de influência sobre a questão agrária. A ocupação do território, associada à derrubada da floresta nas áreas da Amazônia, amplia a desigualdade na realidade fundiária brasileira. As características do agronegócio voltado à exportação de grãos e sob a demanda do mercado internacional de commodities é que constituem as forças dessa desigualdade na região e no restante do país (GIRARDI, 2017). 5.6 AS OCUPAÇÕES E AS FORMAÇÕES DE ASSENTAMENTOS RURAIS Os movimentos sociais de luta pela terra, requerendo o estabelecimento de assentamentos rurais, têm como forma de ação a ocupação de territórios para denunciar os problemas relacionados à desigualdade na distribuição fundiária no Brasil e a possibilidade de reivindicar soluções. Os locais de maior atividade de luta pela terra ocorrem em áreas de ocupação consolidada, localizadas desde o Centro-Sul até parte do litoral do Nordeste (Figura 5). Estas áreas são mais demandadas, segundo Girardi (2017), pois as atividades produtivas em pequena escala apresentam maiores chances de sucesso, devido à proximidade com o mercado consumidor, melhor infraestrutura e acesso mais facilitado aos serviços básicos. Atualmente, a partir das ações de ocupação e formação de assentamentos UNIDADE 1 | DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO 24 rurais, os movimentos sociais de luta pela terra têm promovido a forma mais eficiente de pressão política, que tem resultado no avanço, embora lento, da reforma agrária. Porém, o estabelecimento de muitos assentamentos rurais nas áreas de fronteiras agrícolas é uma das dificuldades para a resolução dos
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