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POÉTICAS HÍBRIDAS E INTERTEXTUAIS AULA 1 Prof. Marcel Albiero da Silva Santos 2 CONVERSA INICIAL Esta disciplina tem o objetivo de investigar o que chamamos de poéticas híbridas e intertextuais. Para atingirmos essas discussões, em nossa investigação lançaremos mão dos mais variados recursos disponíveis no campo dos saberes humanos. Assim como as poéticas podem ser intertextuais, transitando por diversas linguagens e estabelecendo os mais variados diálogos possíveis entre estilos, modos de expressão e saberes, nossa abordagem será marcada pela interdisciplinaridade, isto é, pelo diálogo entre diferentes disciplinas que estudam a arte como manifestação ou expressão humana. Mas iremos além disso, pois as poéticas também podem ser híbridas, ou seja, compostas de elementos e linguagens heterogêneos e até aparentemente incompatíveis, rompendo fronteiras com as quais estamos habituados. Dessa maneira, nossa abordagem também será marcada pela transdisciplinaridade, pela conjugação de esforços de campos de conhecimentos heterogêneos, dissolvendo a noção habitual que temos das disciplinas como saberes estanques e autônomos uns em relação aos outros, alcançando discussões sociais, culturais e ético-políticas. As competências que você conquistará ao longo dessa disciplina são: compreender as inter-relações entre linguagens nas artes visuais; conhecer sistematizações e conexões entre áreas de conhecimento; avaliar a estrutura das questões interpretativas híbridas e intertextuais; e conhecer aspectos interdisciplinares no campo das artes visuais. Algumas das habilidades importantes que você desenvolverá no nosso percurso investigativo consistirão em: reconhecer aspectos híbridos e intertextuais nas artes visuais; propor pesquisas aplicadas ao hibridismo e à intertextualidade nas artes visuais; apresentar de forma clara conceitos-chave no contexto híbrido e intertextual. Na presente aula, estudaremos o tema das inter-relações entre diferentes áreas do conhecimento. Como nosso foco são as artes visuais, primeiramente teremos de investigar o que significa o conceito de poéticas e sua relação com o ser humano e a condição humana, avaliando qual é o lugar das artes em meio às nossas possibilidades e capacidades. As artes serão pensadas como um comportamento caracteristicamente humano pertencente ao âmbito do que chamamos de técnica, de maneira que diferentes abordagens de conhecimento e saberes nos fornecerão diferentes ângulos pelos quais as poéticas podem ser 3 estudadas. Como conclusão, introduziremos o tema da interdisciplinaridade, deixando a transdisciplinaridade para as próximas aulas. TEMA 1 – O QUE SIGNIFICA POÉTICA? Se queremos estudar o que são poéticas híbridas e intertextuais, em primeiro lugar é necessário entender o que significa o conceito de poética. Por que usamos essa palavra? O que ela significa? Um bom caminho para entender o que significa poética consiste em observar a linguagem e avaliar como normalmente empregamos a palavra e de onde ela provém. Tentaremos elaborar um conceito preliminar de poética, que será refinado e aprofundado ao longo de toda a disciplina. Em sentido corriqueiro, a palavra poética é usada a maior parte das vezes como adjetivo. Designamos, por exemplo, um texto em prosa ou uma letra de uma canção como sendo poéticos se eles demonstram um cuidado especial com a linguagem, exprimindo de forma bela, encantadora ou inspiradora o que têm a nos dizer. Com isso, vemos que no uso mais corriqueiro da palavra, o adjetivo poético remete a um modo de expressão artística em particular: a poesia. A poesia tem na linguagem sua matéria-prima, criando a experiência do belo a partir de arranjos de palavras que jogam com significados e sons. Mas no decorrer dessa disciplina usaremos a palavra poética como substantivo, não como adjetivo. E ela não se refere apenas à poesia ou às formas de expressão artística que utilizam a palavra como matéria-prima principal. Afinal, falaremos em poéticas no campo das artes visuais. O que significa o conceito de poética, portanto, pensado no sentido em que nos interessa nesta disciplina? Para responder a essa questão, teremos de recorrer à história, à etimologia e à filosofia e examinar o surgimento desse conceito e como nós o recepcionamos hoje. A palavra poética provém do grego antigo poietiké. Esse foi o título que Aristóteles deu a uma importante obra, a Poética, que registra a sua teoria e ciência da literatura. Portanto, o conceito de poética designava para Aristóteles um modo de conhecimento e de investigação dos fenômenos artísticos literários (o que envolvia o estudo da poesia, da prosa e do teatro, bem como dos gêneros literários da epopeia, da tragédia e da comédia). Atualmente, porém, o conceito tem um sentido mais amplo que para Aristóteles, abarcando as mais variadas formas de expressão artística. Desse 4 modo, quando falarmos em poéticas, estaremos considerando os diversos fenômenos artísticos, analisando linguagens utilizadas, saberes mobilizados pelos artistas na criação artística e efeitos que produzem nos espectadores. Para empreender tal consideração da arte e de seus processos, é possível utilizar diferentes conhecimentos, saberes e teorias, e até mesmo fundir ou criar novos saberes, pois a abordagem realizada com o conceito de poéticas é, como ainda veremos, interdisciplinar e transdisciplinar. Com o termo poéticas, referimo-nos, portanto, aos variados modos de compreender a criação artística quanto a seu processo, suas linguagens e potencialidades. Ela não é uma ciência fixa, fechada ou dogmática, mas um campo aberto (interdisciplinar e transdisciplinar) de observação, interpretação e experimentação dos fenômenos artísticos. Já que as poéticas conjugam esforços de variadas áreas de saberes, costumamos usar a palavra no plural. Esse uso alargado do conceito de poética tem como objeto uma parcela daquilo que os filósofos gregos antigos chamavam originariamente de poíesis, palavra que pertence, aliás, ao mesmo campo semântico de poietiké. Ambas as palavras referem-se ao verbo poiéo, que significa fazer, fabricar, produzir, criar, trazer algo à existência. Poíesis é o substantivo que indica o processo descrito pelo verbo poiéo, podendo ser traduzido então como confecção, fabricação, produção ou criação. A palavra designava, originariamente, qualquer criação ou fabricação humana, em sentido amplo, sendo aplicada tanto para a criação de artefatos e utensílios práticos (como a construção de casas ou de ferramentas) como para as obras mais estritamente artísticas (belas-artes). Posteriormente, como no tempo de Aristóteles, a palavra sofreu uma restrição de significado, passando a designar produções e criações artístico-literárias. Em resumo, de forma geral, poíesis é o gênero que designa toda e qualquer atividade criadora humana; as belas-artes constituem uma espécie de atividade criadora humana, incluída no gênero mais amplo. Já em sentido estrito, designa a atividade de criação literária. A palavra portuguesa poesia, que deriva diretamente do termo grego, ainda hoje conserva o sentido estrito da palavra poíesis. TEMA 2 – A CONDIÇÃO HUMANA E OS MODOS DE COMPORTAMENTO FUNDAMENTAIS HUMANOS Antes de dar prosseguimento ao tema das poéticas, convém nos determos na concepção elaborada por Arendt (2008) sobre a condição humana, 5 registrada na obra A condição humana (2008), publicada em 1958. A partir dessa análise, poderemos aprofundar a compreensão do conceito grego de poíesis e entender mais concretamente o que são poéticas. Arendt (2008) adverte seu leitor que o objeto de sua pesquisa não é a natureza humana, mas, sim, a condição humana. A investigação a respeito da natureza humana marca boa parte da tradição filosófica ocidental e pretendia ofereceruma resposta à questão: o que é o ser humano? A ênfase, numa investigação sobre a natureza humana, repousa na pergunta “o que é?”, que explora a determinação essencial daquilo que é investigado. Numa palavra com a questão sobre a natureza humana, busca-se a resposta acerca de qual seja a essência do ser humano, ou seja, acerca do que o caracteriza enquanto tal e o distingue de todos os demais seres vivos. Esse modo de abordagem preocupa- se com a definição de características e atributos supostamente universais e imutáveis de seu objeto de pesquisa. Temos um bom exemplo na célebre definição aristotélica do ser humano: animal racional. A racionalidade é considerada aqui o atributo universal essencial que caracteriza todo e qualquer ser humano como tal, distinguindo-o dos demais animais. O problema desse modo de abordagem é que ele nunca consegue totalizar seu objeto de pesquisa. Para ficarmos no exemplo aristotélico, a racionalidade não pode, a rigor, ser um atributo que defina a natureza humana sem exceções. Em primeiro lugar, se pensarmos em termos evolutivos ou históricos, nem sempre os seres humanos foram racionais do modo como uma civilização intelectualmente desenvolvida e brilhante como a da Grécia Antiga o foi. Em segundo lugar, a noção de racionalidade pode ser objeto de disputa cultural, pois o que é considerado racional numa cultura, pode não o ser em outra. Por fim, restaria o problema dos seres humanos com deficiências cognitivas graves: se eles são considerados por nós como sendo humanos, apesar de privados da plena capacidade intelectual da maioria dos indivíduos humanos, então não são considerados humanos pelo fato de serem dotados do mesmo tipo de capacidade racional da maioria dos indivíduos, mas, sim, por outros motivos. Por causa dessas dificuldades características da pesquisa sobre a natureza humana, Arendt (2008) abandona tal busca, afirmando que, a rigor, se tivermos uma natureza (no sentido de essência fixa e imutável), apenas um deus poderia conhecê-la em sua totalidade. 6 Já a questão sobre a condição humana procura outra coisa: pergunta quem é o ser humano. Esse modo de investigação abandona a busca por uma essência imutável do ser humano e contenta-se com questões mais palpáveis, querendo conhecer quais são as condições fáticas de existência dos seres humanos no mundo em que vivem. A questão acerca da condição humana busca compreender, portanto, como vivem os seres humanos, sem pretender enunciar verdades eternas sobre o seu objeto de pesquisa. Importa considerar quais são os comportamentos fundamentais que caracterizam a vida humana na Terra tanto quanto a pudemos vivenciar e conhecer até agora. Arendt (2008) vê dois grandes grupos de comportamentos fundamentais que caracterizam a condição humana, que ela chama pelas expressões latinas vita contemplativa e vita activa. A vita contemplativa designa o que poderíamos chamar de comportamento teórico; consiste na pretensão de, abstendo-se de todo agir e de todo fazer, contemplar ou compreender o que ou como são as coisas. As ciências teóricas puras (como matemática ou lógica) são, nesse sentido, expressão exemplar do comportamento teórico humano. Arendt (2008) retoma o que os gregos pensavam com o conceito de theoría: a percepção desinteressada das coisas a fim de compreender quais são os princípios que as coordenam e as definem enquanto tais. A filosofia talvez seja, desde a Antiguidade, o melhor paradigma do que é uma teoria, e o respectivo ideal de uma vida filosófica, consagrada à busca da verdade, como praticada, por exemplo, por Sócrates em Atenas, corresponde bem ao conceito de vita contemplativa de Arendt (2008). Já a expressão vita activa designa o conjunto de três atividades humanas fundamentais eminentemente práticas: labor, trabalho e ação. Arendt (2008) chama de labor a atividade humana orientada em torno da subsistência individual e sobrevivência da espécie. Ela corresponde à mera satisfação dos processos biológicos e metabólicos cíclicos da própria vida, compreendendo os cuidados indispensáveis para viver, por exemplo, ter de se alimentar. A condição humana que está em jogo no labor é a manutenção da própria vida. Já o trabalho designa a atividade humana de fabricação, produção ou criação de objetos. O que está em jogo no trabalho é superar, de certo modo, a futilidade e a efemeridade da mera vida natural que temos. O trabalho é a atividade pela qual se cria um mundo artificial diferente de qualquer ambiente natural, correspondendo ao artificialismo da existência humana. Os objetos 7 criados pelo trabalho humano emprestam, assim, certa permanência e estabilidade ao mundo em que habitamos, ultrapassando o caráter cíclico e sempre mutável da natureza e de seus processos metabólicos. Por essa razão, a condição humana do trabalho é o pertencimento ao mundo (o que a autora chama de mundanidade da existência). Por fim, temos a ação, que é a única atividade exercida diretamente entre os seres humanos, sem a mediação das coisas. A ação, pensada em sentido arendtiano, corresponde à condição humana propriamente política, que está preocupada com o fato de que existimos em meio a uma pluralidade de outras pessoas. Agir é diferente, portanto, de meramente assegurar nossa subsistência (labor) ou de produzir objetos artificiais (trabalho), ainda que essas duas outras atividades fundamentais sejam também indiretamente políticas ou tenham impactos políticos. Quando agimos, estamos tomando decisões que têm impacto direto sobre a vida dos outros com os quais coexistimos e até mesmo sobre a vida das pessoas que ainda virão a nascer no mundo. Portanto, a ação é atividade humana política e histórica por excelência. TEMA 3 – O LUGAR DA PRODUÇÃO EM MEIO À VITA ACTIVA Com base nas considerações de Arendt (2008) sobre a condição humana, podemos retomar a discussão inicial acerca das poéticas e seu objeto de pesquisa. Não é difícil perceber que o conceito arendtiano de trabalho corresponde ao conceito grego de poíesis em sentido amplo (fabricação, produção, criação), o que não é casual, uma vez que a autora elabora aquele conceito, na obra analisada, justamente ao discutir a noção grega de produção. A consideração arendtiana é de grande valor, no entanto, porque retoma e põe em relevo importantes aspectos da reflexão grega sobre produção ou criação. Ela enfatiza dois pontos fundamentais que desenvolveremos a seguir: o trabalho ou produção é uma atividade humana fundamental; e essa atividade rivaliza com os processos criadores da natureza. Em primeiro lugar, é digno de destaque o fato de que o trabalho ou a poíesis sejam pensados como uma atividade humana fundamental, ou seja, como fenômeno caracteristicamente humano, que determina quem nós somos. Faz parte da condição humana, num plano fundamental, produzir ou trabalhar, ou seja, criar artefatos, criar objetos, criar um mundo artificial. Essa constatação nos permite considerar que a produção, enquanto atividade humana, pode ser 8 estudada por tantas ciências ou abordada por tantos saberes quanto os que estudam o ser humano, como a filosofia, a psicologia, a antropologia, a sociologia ou a ciência política. Desse modo, alcançamos uma justificativa para a interdisciplinaridade das poéticas: elas são interdisciplinares porque muitas são as abordagens teóricas possíveis a respeito de fenômenos ou atividades humanas. No encerramento desta aula retomaremos esse ponto. Em segundo lugar, é importante ter em vista que o trabalho ou a produção correspondem à condição humana do pertencimento ao mundo ou da mundanidade da existência. Os seres humanos vivem sempre em um mundo, e no conceito de mundo está implicada a ideia do artificialismo e da engenhosidade humanos. O que Arendt (2008) chama de mundo é, afinal, uma rede de objetos e utensílios criados paratornar possível a existência humana. Não sobreviveríamos em meio à natureza sem a criação de casas, de ferramentas, de utensílios etc. O mundo já é, portanto, uma criação e um fenômeno humanos, não um dado natural, um fato da natureza. É algo feito, construído, algo que tem uma história para além da mera história natural da formação geológica do planeta Terra, algo cujo destino está interligado com o destino do ser humano. Sem produção, sem a atividade criativa humana, não haveria o que chamamos de mundo. O mundo é, enfim, artifício humano. Os seres humanos rivalizam, portanto, com a natureza por meio da atividade do trabalho. Assim como a natureza é uma força criadora, que gera continuamente a vida a partir de si mesma, os seres humanos exercem uma atividade análoga e criam o seu mundo mundo habitável, segundo sua própria medida e suas necessidades, emulando a força criadora da natureza. Já para os gregos, era habitual contrapor os processos de criação da natureza aos processos de criação humanos. A natureza (physis) era compreendida como aquilo que se gera a si mesmo e por si mesmo, que opera segundo suas próprias leis, medidas e seu próprio ritmo. Nessa perspectiva, a natureza é um ciclo eterno pelo qual os seres vivos perpetuam a espécie, as estações do ano e o movimento dos astros se desenvolvem em sua regularidade e medida etc. Quando os seres humanos trabalham, produzem ou criam, estão, por assim dizer, imitando a natureza, trazendo à existência coisas que antes não existiam, criando coisas artificiais, assim como a natureza cria os seres vivos e as coisas naturais. Por essa razão, Aristóteles dizia que a poíesis em geral, e as belas-artes em particular, eram uma 9 imitação (mímesis) da natureza. O artesão e o artista imitam a natureza em seu processo criador, agem como se tivessem o mesmo poder criador que ela tem. Não é por acaso que quando falamos na atividade do trabalho ou da produção, destacamos o fato de que o mundo é um artifício, ou que as coisas criadas pelos humanos são coisas artificiais. A atividade do trabalho ou da produção sempre se orienta por um modo de saber específico que os gregos chamavam de técnica (téchne) – palavra traduzida pela tradição latina como arte (ars). As coisas artificiais ou técnicas que se contrapõem às naturais, são chamadas assim porque derivam de uma atividade humana orientada por esse saber chamado arte ou técnica. Não há atividade produtiva ou criadora humana que não utilize como guia ou orientação o que chamamos de arte ou técnica. A técnica é um saber produtivo, ela distingue-se da pura teoria porque não tem a pretensão de meramente contemplar as coisas e descobrir seus princípios, suas causas ou suas leis. Diferentemente da teoria, a técnica é um ser capaz de fazer, um poder-fazer, uma capacidade de criar, um know-how. Todo saber técnico ou artístico pretende informar e instruir a atividade de trabalho ou de produção, a qual sempre tem por finalidade a criação de obras artificiais. A obra é aquilo, portanto, a que se dirige a técnica, de tal maneira que podemos julgar se alguém domina ou não determinado saber técnico e, em caso afirmativo, em que grau ou com que destreza, pela obra que é capaz de executar. Um bom técnico ou um bom artista é aquele que domina o saber técnico de sua área de atuação, sendo capaz de criar e de inovar em suas criações. TEMA 4 – A TÉCNICA MODERNA E SEUS DESAFIOS As obras artificiais humanas tornadas possíveis por intermédio da técnica sempre se encontraram numa relação de tensão com a natureza. Como diz Arendt (2008), com a atividade do trabalho os seres humanos pretendem emprestar à existência humana estabilidade e permanência, o que desafia o ciclo metabólico da natureza e a efemeridade da vida. A técnica sempre foi um modo de desafiar a natureza, uma maneira demasiado humana de se insurgir contra as limitações e o ritmo naturais que atuam sobre o ser humano. Mas a técnica na Antiguidade ainda se caracterizava por apenas ocupar os espaços deixados em aberto pela própria natureza ao ser humano, sem pretender dominá-la por completo e colocá-la numa posição servil. Muitos pensadores contemporâneos, como Martin Heidegger (2002) e Hans-Georg Gadamer (2006), notam que, a 10 partir da Modernidade (e sobretudo a partir do século XX), a técnica atinge uma dimensão inteiramente nova em relação à natureza. A mudança é qualitativa: a técnica passa a encobrir a natureza, ascendendo ao plano de uma contrarrealidade artificial (Gadamer, 2006, p. 14). […] a exploração técnica das riquezas naturais e a remodelação artificial do nosso meio ambiente tornaram-se tão planificadas e amplas, que suas consequências ameaçam o ciclo natural das coisas e desencadeiam processos irreversíveis em grande escala. O problema da proteção ambiental é a expressão visível dessa totalização da civilização técnica (ibid., p. 15). Seguindo a mesma linha de raciocínio, Heidegger (2002) afirma no seu ensaio A questão da técnica, publicado nos anos de 1950, que a técnica moderna é marcada pela exploração desenfreada da natureza, pelo anseio de dominá-la e de torná-la algo disponível (como um fundo de reserva) para os mais diversos e arbitrários propósitos. Tomando o exemplo de uma usina hidrelétrica na Alemanha, o filósofo afirma que na era da técnica moderna não é mais a usina que está instalada no Rio Reno, mas o contrário: o rio é que está instalado na usina, pertencendo-lhe como uma parte sua, como um dispositivo seu. O rio não é mais visto como a bela paisagem que foi cantada pelo poeta romântico Friederich Hölderlin em seu poema O Reno, mas sim como um dispositivo fornecedor de pressão hidráulica para a produção de energia elétrica. Segundo Heidegger, a técnica determina totalmente a nossa época, sendo ilusório pensar que poderíamos com nossa simples força de vontade contê-la e refreá-la. A técnica deixou de ser uma simples atividade humana fundamental criadora de mundo e tornou-se um processo fora de controle que ameaça o próprio mundo humano e a natureza, como evidencia a catástrofe ambiental iminente que estamos vivenciando. Com isso, uma importante questão pode ser lançada: como fica a situação das poéticas e a situação das belas-artes na era da técnica moderna? No início da aula dizíamos que as poéticas se referiam aos variados modos de se compreender a criação artística quanto a seu processo, suas linguagens e suas potencialidades. As poéticas são, portanto, modos interdisciplinares e transdisciplinares de considerar a atividade artística. Elas devem preparar o olhar dos artistas e espectadores para qual deve ser o papel das belas-artes na época da técnica moderna. O estudo das poéticas permite abrir novas possibilidades de expressão artística e de leitura e interpretação das obras de arte, que ponham a arte em condições de dizer algo de significativo a 11 respeito do mundo em que vivemos hoje. As poéticas são, portanto, a conquista de um olhar crítico; não são apenas técnicas expressivas, mas sobretudo o desenvolvimento da percepção crítica sobre as artes, sobre a produção como atividade humana fundamental e sobre a técnica moderna como marca de nossa época. Quando queremos estudar o que são poéticas híbridas e intertextuais, estamos em busca de saber quanto pode a arte em meio aos desafios e ameaças do mundo. Nesse sentido, é interessante considerar a crítica que Heidegger dirigia a Hegel no famoso ensaio A origem da obra de arte (1998). Um dos últimos pensadores exemplarmente modernos do século XIX, Hegel sintetizava de forma dura o descrédito em que a arte havia caído diante da ciência e da técnica modernas: uUltrapassamos o estágio no qual se podia venerar e adorar obras de arte como divinas. [...] O pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte” (Hegel, 2001, p. 34). Esta é a famosa tese segundoa qual a arte já seria algo do passado, ou seja, algo ultrapassado, algo que não podia mais dar respostas aos mais elevados anseios da época presente – e quem mais as daria, senão a ciência e a técnica de que a Modernidade se orgulhava de ter gestado? Contra a tese hegeliana, Heidegger dirá que a arte é sempre uma origem, ou seja, ela sempre inaugura novas e inauditas possibilidades para o mundo. Ela é o pôr-se em obra da verdade. Heidegger apostava alto na expressão artística como abertura de uma nova relação com a técnica moderna, capaz de nos colocar a salvo de sua fúria exploratória. Parece-nos que as poéticas precisam nos ensinar a ver as artes como origem, a ver a obra de arte como lugar de onde pode irromper uma verdade sobre o mundo que nos salve da ameaça da técnica moderna. Esse é o desafio que as artes e as poéticas têm hoje diante de si. Voltaremos a essa discussão nas aulas seguintes. TEMA 5 – POÉTICAS E INTERDISCIPLINARIDADE No Tema 4, observamos que o fato de a produção ser uma atividade humana fundamental, relativa à vita activa, justificava a interdisciplinaridade das poéticas. Nosso argumento baseava-se no seguinte raciocínio: se são muitas as ciências e os saberes que estudam os fenômenos humanos, então muitas serão as ciências e os saberes que estudarão uma atividade humana definida como fundamental. Consideremos esse ponto mais de perto. 12 Podemos examinar a atividade produtiva ou criadora humana com base em três momentos fundamentais: como criação propriamente dita; como recepção; e como obra. Esses momentos estão sempre presentes e interligados na atividade produtiva como tal, e só os desmembramos ou os analisamos por razões metodológicas, para que possamos compreender melhor a atividade criadora humana. Passaremos a analisar cada um deles brevemente, indicando as interações interdisciplinares próprias de cada momento. O primeiro momento, que chamamos de momento da criação propriamente dita, encontra-se focado no papel do artista ou produtor de alguma obra, seja ela artística em sentido estrito ou técnica em sentido amplo. Esse momento é um recorte de observação do fenômeno da produção que se pergunta pela causa eficiente, como dizia Aristóteles, das obras: quem as fez? Como as fez? Utilizou que tipo de saberes e de recursos e quais processos para fazê-las? Várias são as disciplinas que podem estudar a produção a partir desse ponto de vista. A antropologia e a sociologia têm muito a dizer sobre como se entende o processo de criação nas sociedades humanas ou em diversas culturas, levando-nos a discutir o alcance crítico e político da atividade de produção humana. A filosofia, evidentemente, muito já disse sobre o tema. Nietzsche propunha, por exemplo, que se tratasse a arte a partir do ponto de vista de uma metafísica do artista em O nascimento da tragédia (2003). É nesse livro que o autor elabora os conhecidos conceitos de apolíneo e dionisíaco, que examinam as disposições subjetivas básicas da criação artística. As questões que podem se levantar a partir desse ponto de análise são fundamentalmente as seguintes: arte para quê? e o que podem os artistas ao criar? A proposta nietzschiana já era uma crítica, na verdade, às abordagens da produção focadas no momento da recepção, como veremos a seguir. O momento que chamamos de recepção enfatiza a relação da atividade de produção com os seus destinatários, ou seja, com aqueles para quem as obras decorrentes da atividade produtiva foram realizadas. Quando pensamos na atividade de produção em sentido mais estrito, nas artes, a consideração do fenômeno a partir do momento da recepção permite pensar a arte como fenômeno estético. Essa palavra derivada do grego aísthesis, que significa sensação, designa as mudanças e alterações na percepção subjetiva quando colocadas diante de obras de arte. A estética foi criada no século XVIII pelo filósofo alemão Baumgarten, como a ciência que estudaria a percepção da 13 beleza e do sublime e as emoções humanas mobilizadas na fruição das obras de arte. O foco, portanto, da análise estética da arte é o espectador. Kant foi outro grande filósofo que baseou sua interpretação da arte numa estética da recepção, isto é, do espectador. Fora filosofia, disciplinas como psicologia e pedagogia têm muito a dizer sobre a recepção estética da arte, analisando os efeitos da experiência estética na psique, nos comportamentos e na formação ou educação do ser humano. Por fim, a produção pode ser ser considerada a partir do momento da obra, do objeto criado, do produto feito pelo artista. Esse é o momento da ontologia da obra de arte, preocupado com o modo de ser das obras de arte. Uma boa questão que pode ser lançada a partir desse tipo de consideração é a seguinte: o que diferencia uma obra de arte em sentido estrito de uma obra técnica em sentido amplo? Outra questão é a que já apontamos anteriormente, com a ajuda de Heidegger (que, aliás, é um dos maiores expoentes da ontologia da obra de arte): o que pode a obra de arte na época da técnica moderna? Qual a diferença entre as obras de arte e os aparatos técnicos que encobrem e exploram a natureza? O que as obras de arte nos ensinam sobre a técnica moderna? Várias outras disciplinas têm contribuições igualmente importantes a dar às poéticas ao analisarem a arte enfatizando o momento da obra. As ciências humanas em geral podem se perguntar pelos impactos sociais, culturais, políticos e ambientais causados no mundo pelas obras de arte. Podem também questionar a que reflexões as obras de arte nos levam a respeito do mundo que habitamos. NA PRÁTICA A produção artística de Abraham Palatnik, fundador da chamada arte tecnológica no Brasil, fornece um ótimo exemplo de poética híbrida e intertextual aplicada nas artes visuais. A arte de Palatnik dialogou desde os anos de 1950 com a técnica e as diversas disciplinas da física (como a mecânica e a ótica). O artista cria uma máquina de pintar, o Cinecromático, revolucionando a arte com o uso tecnológico artístico. Palatnik privilegiava a cor-luz em lugar do pigmento e o movimento em lugar da espacialidade estática. Posteriormente, o artista expõe, por assim dizer, o mecanismo de seus Aparelhos Cinecromáticos e desenvolve os chamados Objetos Cinéticos, espécies de móbiles muitas vezes motorizados que introduzem tridimensionalidade à sua produção poética. 14 Você pode pesquisar as obras de Palatnik em livros, catálogos e na internet. Reflita: ao utilizar a técnica moderna na sua poética artística, o que pretendia Palatnik? Ele estaria elogiando a técnica de modo acrítico? Ou mostra outra relação possível com ela, ao desativá-la? FINALIZANDO Nesta aula, discutimos inicialmente o que significam poéticas. Vimos que elas são uma abordagem interdisciplinar e transdisciplinar da atividade humana de produção, criação ou fabricação. Por meio da análise de Hannah Arendt, vimos que a atividade de produção, que a autora chama de trabalho, corresponde a uma das atividades fundamentais da vita activa, correspondendo à condição humana de pertencimento ao mundo. Essa atividade é a responsável por criar um mundo artificial que pode ser habitado pelos seres humanos, emprestando certa permanência e estabilidade à efemeridade da vida humana e desafiando o ciclo metabólico da natureza. Também vimos que toda atividade de produção é orientada por um tipo específico de saber chamado de técnica (ou arte). A técnica é um ser capaz de fazer, e aquele que a emprega pode ser avaliado, quanto à sua perícia ou destreza técnica, pela obra que é capaz de produzir por meio desse saber. A técnica sempre foi um desafio, da parte do ser humano, à natureza, uma vez que por meio dela se pretende superar a fugacidade e a efemeridade da existência por meio da criação de um mundo artificial. A técnica moderna, porém,representa uma mudança qualitativa no estatuto da técnica; ela se torna exploração desenfreada da natureza, encobrindo-a enquanto tal e pretendendo subjugá-la por completo. Diante desse cenário, precisamos aprender com as poéticas o quanto podem as artes, para nos pôr a salvo das ameaças da técnica moderna. Por fim, discutimos o tema da interdisciplinaridade. As poéticas consistem numa abordagem interdisciplinar porque a atividade de produção humana pode ser vista a partir de diferentes momentos, correspondendo a cada um deles olhares teóricos distintos. 15 REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A condição humana. RJ: Forense Universitária, 2008. AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte, 2012. GADAMER, Hans-Georg. Teoria, técnica, prática. In: O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. p. 09-39. HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética. Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In: Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. p. 05-94. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 11-38. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. PAVIANI, Jayme. Interdisciplinaridade: conceitos e distinções. Caxias do Sul: Educs, 2008. RICKS, Stephen R. C. Explicando o pós-modernismo. São Paulo: Callis, 2009.
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