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Teoria do Conhecimento Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Valter Luiz Lara Revisão Textual: Prof. Ms. Claudio Brites As diversas formas de conhecimento 5 • Introdução • O conhecimento comum • O conhecimento científico • O conhecimento mítico • O conhecimento filosófico • O conhecimento artístico • Conclusão Objetivo geral · Apresentar o fenômeno do conhecimento em sua variedade de forma, conteúdo, método e objetivo, de modo que o aluno possa reconhecer diferenças e semelhanças na multiplicidade de saberes – como o senso comum, a ciência, o mito, a filosofia e a arte. Objetivos específicos · Caracterizar diferentes formas de conhecimento a partir de suas próprias lógicas, linguagens e métodos de aproximação com a realidade; · Identificar a diferença entre senso comum e ciência de modo a resgatar o valor de ambas; · Compreender as relações entre filosofia, ciência e arte como formas de conhecimento que usam critérios distintos de abordagem da realidade; · Aprender a valorizar a ciência sem desqualificar outras áreas do conhecimento humano. Meu caro aluno, a partir de agora, vamos alargar o horizonte do que entendemos por conhecimento. Será preciso que você esteja atento ao que será demonstrado sobre as formas mais comuns de conhecimento compartilhadas por nossa espécie. Vale a pena não só curtir outras áreas da atividade humana, mas prestar atenção e perceber o quanto elas são de verdade instrumentos de nosso conhecimento da realidade. Procure observar um pouco mais a arte em suas várias expressões, da culinária ao cinema, das artes plásticas ao teatro, da poesia e literatura à música e a dança. Todas são formas humanas de comunicação com o mundo. Além da arte, fique atento ao mito. Em geral, a cultura contemporânea reage negativamente aos relatos míticos, porém, saiba que a narrativa mítica é a linguagem preferencial da fé religiosa e que fundamenta o modo como culturas e povos se comportam e se compreendem a si mesmos. Procure, antes de aceitar o preconceito científico contra o mito, verificar qual é a razão de ser de sua linguagem. Perceba diferenças, mas também semelhanças entre ciência, filosofia, arte e mito. E, por fim, não ignore a importância que tem o senso comum como forma primária de conhecimento humano, que permite nossa adaptação à realidade. As diversas formas de conhecimento 6 Unidade: As diversas formas de conhecimento Contextualização Ouça a música de Geraldo Vandré Pra não dizer que não falei das flores, repare em sua letra e procure investigar o impacto que ela causou não só na vida do artista, mas na recepção de quem a ouvia na época da ditadura militar que ocorreu no Brasil. É arte e conhecimento que se exprimem por sentimento de crítica e rebeldia, desejo de transformação e esperança... Nessa mesma linha, há outras tantas canções da MPB – Cálice de Chico Buarque e Milton Nascimento é um bom exemplo. Procure observar que a diversidade de gêneros musicais como o Samba, Pagode, MPB, Bossa Nova, Funk, Rock, Sertanejo e outros sejam eruditos ou populares, todos eles expressam momentos, locais e subjetividades bem concretas vivendo em contato com ambientes culturais que moldam não só o conteúdo de suas letras e canções, mas a forma e os instrumentos que veiculam a arte que produzem. Em outros campos da arte, é possível perceber o mesmo fenômeno. Por isso, toda arte é expressão fundamental do conhecimento que somos capazes de expressar como dimensão essencialmente estética, que a experiência humana é capaz de viver e comunicar. 7 Introdução A noção de conhecimento como experiência relacional construída na relação “sujeito-objeto” proposta na primeira unidade é o pressuposto de abordagem dessa segunda unidade de estudo. Neste momento serão apresentadas e analisadas quais são as formas mais comuns de relação entre os sujeitos e seus objetos, as quais expressam o que definimos como ato de conhecer. Se o conhecimento é experiência humana que só se constitui como evento relacional, isso implica que o ato de conhecer é em si mesmo atividade imersa numa complexa rede de relações demarcadas por certos tipos bem definidos de abordagem do sujeito pelo seu objeto. Por vezes, é o objeto, devido a sua natureza específica, que define o modo dessa relação. Assim, o conhecimento ora pode ser definido pelo objeto e ora pela forma como o sujeito acessa esse objeto. As ciências em geral são definidas pela capacidade de especificar o seu objeto de estudo e, nesse sentido, elas são definidas pelo seu objeto – não existe ciência sem objeto. Por outro lado, a ciência – repare bem, agora no singular (pois na oração anterior, usamos “as ciências”) – é uma forma bem específica que o sujeito tem de acessar o seu objeto. Isso tudo significa que ora o conhecimento é constituído pelos modos ou meios de acesso aos seus objetos, ora pela qualidade e especificidade comum de seus objetos –exemplos: a ciência que tratados eventos humanos que se deram no passado se chama História;a ciência sobre a vida biológica se chama Biologia. Quando o critério de abordagem do conhecimento não se define apenas pelo objeto, mas pelo modo de fazer conhecimento, o resultado na distinção é outro. Por exemplo, a ciência tem um modo bem diferente de conhecer as coisas quando consideramos o mito e a arte formas de conhecimento. Os objetos de abordagem às vezes são os mesmos e se confundem. O artista pode retratar o Sol, a Lua, a natureza. A ciência também. O mito pode fazer igualmente desses mesmos objetos os temas preferenciais de seus relatos. O que torna ciência, arte e mito diferentes, neste caso, não são os objetos, mas a forma como esses são acessados e retratados. Há uma linguagem e lógica de tratamento desses objetos que tornam essas abordagens diferentes. Quando os critérios de abordagem dos objetos são diferentes, o que se produz são distintas formas de conhecimento. Se conhecer é estabelecer essa relação fundamental entre “sujeito- objeto”, de modo a transformar a realidade tanto de um como de outro, há, portanto, como acabamos de verificar, uma variedade enorme de possibilidades de se estabelecer e conceber essa relação. Isto é, não há apenas uma forma possível de conhecimento humano, mas uma múltipla variedade de possibilidades de um sujeito relacionar-se com seu objeto. É graças à possibilidade de conceber o conhecimento como realidade plural que podemos definir legitimamente algumas atividades consagradas pelo espírito humano como capacidades que se situam no campo do conhecer e, com certeza, podem ser denominadas, em seu mais alto nível, de Conhecimento Humano. Trata-se, sem dúvida, de criações do espírito humano essenciais para a compreensão não só do mundo, mas, principalmente, do qualificativo “humano” que nos define. Para exemplificar, podemos citar a arte, o mito, a filosofia, a ciência e o senso comum. 8 Unidade: As diversas formas de conhecimento Todas essas atividades são expressões legítimas de conhecimento à medida que cada uma, de um jeito diferente, também constitui uma relação fundamental entre sujeito e objeto. Evidentemente que nem sempre se deu o devido valor a essas criações, muitas vezes, inclusive, não foram concebidas como conhecimento. Aliás, desde o nascimento da filosofia grega, e, sobretudo, a partir do nascimento das ciências modernas, o saber científico tem sido quase que exclusivamente o único modelo válido e legítimo de conhecimento. Mas o fato de uma forma de conhecimento tornar-se predominante não significa que deva ser tomada como única. A partir de uma teoria do conhecimento fundada na mais ampla tradição filosófica, é preciso reconhecer a diversidade das formas de conhecimento. Sendo assim, podemos passar para uma breve análise e caracterização dessas diversas formas de conhecimento, a saber, os conhecimentos: comum, científico, artístico, filosófico, do mito e da fé. Iniciemos pelo conhecimento comum. O conhecimento comum Numadas análises que faz Rubem Alves sobre o “senso comum”, ele prefere não defini- lo. Admite apenas: “O senso comum é aquilo que não é ciência e isto inclui todas as receitas para o dia a dia” (ALVES, 1994, p. 14). O objetivo do autor é resgatar o valor do conhecimento comum (senso comum, como normalmente é também denominado) e compará- lo com a construção do conhecimento científico. É preciso, desde já, reconhecer o valor do senso comum e averiguar o seu caráter específico frente às demais formas de conhecimento. Mas,antes da caracterização, vale a advertência: O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. E para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. A ciência, curiosamente, depois de cerca de 4 séculos, desde que ela surgiu com seus fundadores, está colocando sérias ameaças à nossa sobrevivência. (ALVES, 1994, p. 20). E quais os traços que distinguem o conhecimento comum do conhecimento científico? Só mesmo depois de uma caracterização da ciência poderemos estabelecer um nível de distinção comparativa com o senso comum;entretanto, algumas notas definidoras do senso comum podem, de antemão, servir para essa comparação. O conhecimento comum é de fato um saber enraizado e, porque não dizer, inato à condição humana. Trata-se de uma capacidade de conhecimento que se caracteriza primeiramente pela adaptação do sujeito ao meio em que vive. O senso comum desempenha, de certa forma, uma vez somados os requisitos propriamente humanos – como a inteligência,o raciocínio, a criatividade, a imaginação,–algo semelhante ao dos instintos nos animais. Da mesma forma 9 que o animal vem ao mundo dotado de um aparelho instintivo de adaptação ao meio, o homem vem dotado de uma capacidade para desenvolver um conhecimento de adaptação e sobrevivência ao meio que é comum em sua espécie e se adquire através da experiência mesma de existir, experimentar, ser e estar no mundo. Entretanto, o senso comum não é meramente um instinto de sobrevivência, segundo Arcângelo Buzzi, ele é uma espécie de: [...] Concordância do homem com a realidade que ele vive e fala. Não é uma faculdade particular, nem uma espécie de instinto. É a integração ou a síntese de tudo que o homem entende, imagina, sente e deseja(...). Isso porque o senso comum já é um acordo antecipado às conquistas da razão e do entendimento(...) é, pois, umvigor de sentido que se vincula no saber de uso e organização das coisas(...) é uma figuração representativa da totalidade do real presente e ausente. É um saber recordado nas lendas, nos provérbios, nos ritos e nos preceitos populares. (BUZZI, 1972, p. 63-71). A experiência espontânea, repetida, assimilada, tornada consciente e guardada na memória (individual ou coletiva) que o sujeito faz dos desafios, dores e prazeres da vida, são transmitidos de geração em geração, através de um processo de interação social e educativa em que experiências diversas do passado são aproveitadas, consciente ou inconscientemente, no enfrentamento das dificuldades atuais. Neste sentido, o conhecimento comum é um saber operativo que ajuda o homem a situar-se frente à realidade, interpretando-a conforme as necessidades de sobrevivência. Estamos apenas procurando definir algumas importantes e universais características do que se convencionou chamar de conhecimento comum. Nosso objetivo é traçar o caminho da diferença que resgata o valor e a importância de um saber que não passa pelo mesmo processo de apuração criteriosa do saber científico, mas mantém a mesma legitimidade enquanto forma específica de conhecimento que se define pela mesma relação “sujeito-objeto”. No senso comum, essa relação é caracterizada pelas necessidades vitais de sobrevivência, adaptação e compreensão significativa de um mundo em que se precisa operar. Ele não passa pela racionalidade objetiva e descritiva de sistemas acabados e lógicos de compreensão do real, mas pela intuição que integra de maneira assistemática as experiências de vida marcadas pela espontaneidade das relações “sujeito-objeto”. Em resumo, transcreveremos as palavras do filósofo José Auri Cunha, que sintetizam em três grandes tópicos as principais características do conhecimento comum: a) O senso comum é um conhecimento natural. Ele é transmitido “de pai para filho”, quase da mesma maneira como se transmitem as características físicas. Sem esforço consciente, sem intenção, sem intervenção do desejo ou da vontade. b) O senso comum é um conhecimento espontâneo e intuitivo. Ele brota como se não obedecesse a nenhuma determinação racional da consciência, quase do mesmo jeito como se aprende a andar e a respirar: é questão de tempo e a regra é a da imitação e da associação por analogia. 10 Unidade: As diversas formas de conhecimento c) O senso comum é um conhecimento prático. Está diretamente ligado às nossas necessidades vitais. É ele que nos mantém funcionando. Sua eficácia é diretamente proporcional à simplicidade de vida. As pessoas comuns, por outro lado, se contentam quase totalmente com esse tipo de conhecimento. Chamam- no de bom senso, e estimam-no como um conhecimento suficiente para o que necessita. (CUNHA, 1992, p. 81). O conhecimento científico Muito já se escreveu sobre a ciência. Existe uma história da ciência, uma reflexão filosófica e abundante crítica sobre o conhecimento científico. Os nomes se multiplicam para designar a variedade de enfoques e preocupações com que o conhecimento científico tem sido tratado: epistemologia1, gnosiologia2, teoria do conhecimento, filosofia da ciência e metodologia científica são expressões carregadas de uma história de estudos e críticas acerca dos limites e das possibilidades da ciência. Diversos autores já se consagraram no trabalho de construir uma avaliação crítica do conhecimento científico3,entretanto, a teoria do conhecimento tem como objeto não apenas a ciência, poisdisciplinas como a filosofia da ciência ou epistemologia irão tratar mais profunda e especificamente desse tema. Como nosso foco é a teoria do conhecimento que, por sua vez, tem por objetivo abordar o ato de conhecer como fenômeno mais abrangente e que ultrapassa a forma singularmente científica, será preciso, inclusive para fins de comparação, uma breve descrição das principais características da ciência. Até agora, a definição de conhecimento que foi apresentada procurou superar a visão simplista que toma a ciência comoforma única e válida de conhecimento certo e seguro. Esse preconceito, uma vez abolido, não precisa deixar de reconhecer os valores e contribuições fantásticas que a ciência tem proporcionado ao ser humano e à vida em sociedade. Tão grandes têm sido os êxitos da ciência para a configuração das interpretações que damos à circunstância, que ela apaga as contribuições da filosofia, da arte e da religião. Há muitas maneiras de construir uma interpretação da circunstância. Todavia, a científica predomina. Relutantemente ou não, o homem reconhece que a ciência é uma espécie de “dado basilar” do mundo contemporâneo. Ninguém se espanta diante do manifesto desejo de pensar “cientificamente”. Ante as incertezas da arte e da religião, as incertezas da ciência-em-progresso parecem certezas inabaláveis; ante às dúvidas filosóficas, os resultados da ciência possuída parecem marcos indicativos do caminho a seguir. (HEGENBERG, 1974, p. 26). 1 Epistemologia é palavra derivada da língua grega. É composta pelas palavras gregas Episteme e Logia. Normalmente, traduz- se por estudo (logia) da ciência (episteme). Epistemologia é uma disciplina da filosofia e mais especificamente visa refletir criticamente os pressupostos, fundamentos e critérios do conhecimento científico. Alguns preferem chamar a epistemologiade filosofia da ciência. 2 Gnosiologia é a palavra que alguns costumam empregar como sinônimo de teoria do conhecimento. Sua origem é grega: gnose significa conhecimento. Gnosiologia é, portanto, estudo do conhecimento. 3 Renée Descartes(1596-1650), Francis Bacon(1561-1626), Newton(1642-1727), Emanuel Kant(1704-1804), Augusto Comte(1798-1857), Einstein(1879-1955), Karl Popper(1902), Thomas Kuhn(1922) e tantos outros ofereceram uma variedade de trabalhos críticos sobre os procedimentos e critérios de validação da ciência. 11 Não há assunto que não mereça a avaliação do cientista. Isso não quer dizer que é o cientista que deve ter a última palavra sobre um determinado tema ou que ela “apague” a validade de outras formas de conhecimento –a validade do conhecimento será tema da próxima unidade. Por isso, embora se deva reconhecer a contribuição inestimável da ciência, ela não pode ser tratada como a forma que anulaas outras. A ciência enquanto conhecimento se constitui como instrumento de acesso, explicação, operação e transformação da realidade; não é exclusivamente a detentora da verdade absoluta sobre as coisas –a verdade do conhecimento será também tema da próxima unidade. Cabe ao ser humano a tarefa de decidir –com auxílio da ciência, mas para além do critério científico– sobre verdades que ultrapassam os limites da ciência: a ética, a felicidade, a democracia, o direito, a justiça e a própria dignidade humana são exemplos de critérios que podem estar incluídos no âmbito da ação do cientista, mas não são características exclusivas e determinantes do procedimento científico enquanto tal. De modo breve e sintético, apresentamos as tradicionais e imprescindíveis características do conhecimento científico no limite daquilo que julgamos necessário para compará-lo com as outras formas de conhecimento – os demais tópicos da crítica, da história e da filosofia da ciência serão deixadas para a disciplina de epistemologia. As características básicas do conhecimento científico, desde o modelo que veio se configurando a partir do século XVI com Descartes e acabou por se estruturar com o positivismo de Augusto Comte no século XIX,é exatamente o que vemos como práticas de pesquisa e produção científicas predominantes nas universidades e centros de pesquisa. Trata-se do modelo seguido pelas famosas ciências positivas (ou experimentais) e cuja prática é perseguida, mesmo diante da suposta crise de paradigmas, pelas próprias ciências humanas. Esse modelo de conhecimento, em ciência, pode ser resumidamente representado e caracterizado por quatro palavras chaves: 1 - Objetividade; 2 - Experimentação; 3 - Rigor; 4 - Racionalidade. 12 Unidade: As diversas formas de conhecimento Objetividade A primeira exigência do conhecimento científico é a delimitação de seu objeto específico de estudo. A rigor não existe ciência, mas ciências, pois o que denominamos no singular é um processo ou procedimento específico de conhecimento encontrado apenas em ciências específicas, identificadas como tais apenas a partir do momento em que definem um objeto próprio e exclusivo de análise. A ciência se define, entre outros elementos, por seu objeto. O conhecimento científico deve ser “objetivo”, não apenas no sentido de possuir uma finalidade, mas no sentido de prender-se e pronunciar-se apenas a partir das condições dadas pelo seu próprio objeto. O qualificativo “objetivo”, nesse sentido, tem o significado oposto de “subjetivo”, ou seja, o conhecimento científico se caracteriza por pretender objetividade máxima, isto é, produzir um conhecimento que possa extrair juízos,proposições, leis e teorias explicativas acerca de seu objeto que não recebam a interferência do sujeito-pesquisador e observador. Por isso, a linguagem do cientista, em geral, deve apresentar-se na forma impessoal, reflexiva: “constata-se”, “verifica-se” e “observa-se”;o sujeito deve desaparecer com suas intenções e interesses para que o objeto possa ser descrito em sua mais pura “objetividade”, de maneira que qualquer um possa percebê-lo do mesmo modo,com a mesma e necessária “objetividade”, sem a interferência da “subjetividade”. Experimentação Experimentação aqui não se refere a uma experiência espontânea, imediata e ocasional, como se dá a experiência no senso comum ou quando a empregamos quando nos referimos à “experiência de vida” ou à “experiência no trabalho”. Experimentar no sentido científico significa fazer experiência, palavra de origem latina experientia, do verbo experiri4, que nos remete ao conceito de prova, demonstração, tentativa e conhecimento que é transmitido pelos sentidos. A base da ciência é a experimentação, isto é, o processo de experimentar.Não se trata apenas de observar uma determinada realidade, mediante a constatação dos sentidos, mas de observar, verificar e realizar uma experiência que seja programada e planejada. Em ciência, a experiência tem uma finalidade, é dirigida segundo um processo controlado e previamente determinado por critérios e padrões definidos de experimentação. O caráter de experimentação em ciência denota justamente a materialidade a ser demonstrada, percebida e verificada pelos sentidos, de modo a ser provada, comprovada por qualquer outra nova experiência realizada nas mesmas condições. O experimental se define assim, a exigência de uma experiência submetida ao controle do sujeito, que possa ser medida, pesada e classificada, numa palavra, quantificada. A matemática, neste sentido, é quase sempre a matriz de toda a ciência. As próprias ciências humanas lançam mãos de tabelas, levantamentos de números, frequências e padrões estatísticos que ofereçam regularidade e sejam passíveis de classificação. O próprio Galileu referia-se ao universo como um livro cuja linguagem é a matemática: 4 Cf. FERREIRA, 1977. 13 [...]A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continuamente está aberto diante de nossos olhos (refiro-me ao universo), porém, não se pode entendê-lo se não se procura antes entender a sua língua e conhecer os caracteres em que está escrito. Este livro está escrito em língua matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é totalmente impossível entender humanamente uma palavra, e sem as quais vagamos perdidos em um obscuro labirinto. (GALILEU GALILEI apud CUNHA, 1981, p. 1). Rigor Outra exigência do conhecimento científico é o rigor metódico (método: do grego met, ao longo de, e odos, caminho). O método científico é o caminho ordenado e criterioso, o procedimento que se deve seguir para a realização do conhecimento. É a constituição dos diversos passos a serem seguidos para a realização do processo de conhecimento. Os procedimentos metodológicos básicos em ciência passam por processos de observação e coleta de dados reunidos numa experiência que se realiza segundo os modos ou critérios de raciocínio indutivo ou dedutivo (especialmente do indutivo), ou ainda através de analogias, levantamento de hipóteses, observação e experimentação. Através desses procedimentos, organizados adequadamente conforme as exigências do objeto e das circunstâncias dadas, o cientista extrai juízos, proposições e leis. Esse procedimento todo é o que garante o que chamamos de rigor na observação e no controle da experiência. É o método que garante rigor. Racionalidade O conhecimento científico visa uma explicação do real que seja capaz de satisfazer as exigências da racionalidade. Essa é uma característica básica da ciência: a expressão racional de suas proposições, leis e teorias. A razão é uma capacidade humana que ordena, classifica, distingue e avalia segundo leis e princípios objetivos que podem ser verificados e, sobretudo, visualizados pelas regras do procedimento matemático, por exemplo. Um desses princípios é o princípio lógico da “identidade” ou “contradição”: o que é não pode não ser sob um mesmo aspecto; uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo– A, enquanto é A, não pode ser B. Foi Aristóteles, o filósofo, que por primeiro procurou sistematizar o funcionamento da razão humana segundo princípios da lógica do discurso válido e correto. Ele buscou demonstrar como se processa o discurso do ponto de vista de sua funcionalidade e, desse modo, conseguiu extrair as grandes leis que regem a lógica do discurso racional –ainda hoje, são elas a base do que se entende pelo raciocínio lógico exigido pela ciência. Ciência é, pois, a forma de conhecimento que se caracteriza pela abordagem explicativa e descritiva da realidade segundo as exigências do rigor metodológico para garantia da objetividade, verificabilidade experimental na demonstração de suas provas materiais e racionalidade lógica na linguagem que utiliza para comunicar suas conclusões. 14 Unidade: As diversas formas de conhecimento O conhecimento mítico Que saber é esse que transforma homens em deuses? Que valor, que verdade, que lógica e racionalidade podem conter um conhecimento em que os desejos são despertados de seu sono, os medos e mistérios da existência são apaziguados e nossos sonhos e fantasias são confundidos com a realidade? Que tipo de discurso é esse que traz, para o convívio com os humanos, deuses, monstros, anjos, príncipes, belas adormecidas, magos, feiticeiras e os mais belos, terríveis, feios e maravilhosos personagens da criação humana? Isso tudo compõe o universo do conhecimento mítico. Mito é conhecimento ou é apenas uma fábula sem maiores significados, fantasia de nossa imaginação? A palavra “mito” assume hoje uma variedade de significados e podemos empregá-la em sentidos diferentes. Uma coisa é dizer que “Pelé é um mito do futebol”, outra é que a “Vida fora da Terra é um mito”, ou ainda que a “Fraternidade entre os povos é um mito”. Cada uma dessas frases faz um uso específico e distinto da palavra “mito”. Atualmente, seu significado é disperso e, por vezes, confuso: ora a entendemos como algo inatingível, ora como tabu; outras vezes a empregamos como modelo exemplar de conduta, outras, como sinônimo de herói, lenda ou mera fantasia; e, finalmente, como mentira. O fato é que sua origem etimológica encontra-se no grego mythos. São os escritores gregos, Homero, Hesíodo, Píndaro e Ésquilo, os primeiros a descreverem os famosos relatos míticos da cultura grega antiga. Entretanto, o mito não é privilégio da cultura grega, mas encontra- se espalhado em todas as tradições e culturas onde a palavra humana busca compreender o significado de sua existência no mundo. Os mitos estão presentes no oriente asiático hindu e chinês, na cultura africana e ameríndia e nos relatos dos europeus nórdicos, como, por exemplo, em suas lendas sobre Thor, o deus do trovão. A cultura ocidental, marcada pelas culturas grega e semita, está profundamente enraizada numa tradição mitológica. Os mitos gregos, como o de Édipo, por exemplo, têm servido inclusive às abordagens da ciência moderna. A psicologia psicanalítica de Freud serviu- se de Édipo-Rei, uma narrativa de Sófocles (Séc. V a. C.), para traduzir sua teoria do complexo de Édipo e, assim, conseguiu expressar, talvez, o mais notável e interessante dos conflitos que marcam a formação e identidade da psique humana. Por outro lado, toda a cultura ocidental foi formada a partir dos mitos bíblicos, sobretudo daqueles narrados pelo livro do Gênesis. O mito da criação e do paraíso perdido, por exemplo, encontram-se gravados no inconsciente coletivo e continuam inspirando projetos de vida, de luta e conduta em todos os recantos de nossa civilização “judaico-cristã”. Mesmo onde não encontramos a influência da cultura “judaico-cristã”, podemos notar a influência de outros mitos de criação, mitos cosmogônicos e teogônicos que procuram extrair sentido para os mistérios que cercam a realidade das origens das coisas, dos homens e do mundo. O sentido primeiro e originário da palavra mythos é, portanto, história e narrativa sobre os acontecimentos primordiais dos tempos imemoriais. É assim que Homero(Séc. IX a. C.), em seus relatos famosos retratados na Ilíada (que narra a guerra de Tróia) e na Odisséia (sobre a epopéia de Ulisses), emprega o termo. Sendo assim, podemos, preliminarmente, definir o mito de maneira genérica e abrangente: narrativas imbólica construída com imagens e 15 personagens lendários. Seu enredo se desenvolve segundo as regras da imaginação plástica, sensível, emotiva, criativa e ficcional. O mito tem o objetivo de evocar uma realidade primordial localizada fora do tempo e do espaço atuais para servir como ponto original, princípio fundador dos eventos presentes e cotidianos. Dessa forma, o mito não é contrário ao logos, mas como uma de suas expressões. O logos, em seu sentido grego de razão universal que rege o mundo de acordo com regras lógicas compreensíveis à razão humana e que podem ser expressas através das linguagens filosófica e científica, também encontra sua expressão através da linguagem mítica. Isso significa que o mito também possui sua razão e sua lógica, ao mesmo tempo em que preserva sua autonomia e diferença em relação à lógica das racionalidades, tanto científica quanto filosófica. Por isso, pode-se, com toda segurança, conceber o mito como conhecimento cujas características fundamentais são: a expressão simbólica, a linguagem fictícia e o modo intuitivo com que retrata a realidade. No entanto, tais características ainda não revelam o valor, a verdade e a função do conhecimento mítico, isso é, sua originalidade frente às demais formas de conhecimento –esse assunto será tratado na unidade III, sobre a verdade e a validade do conhecimento. O mito, portanto, não é uma linguagem que explica e descreve a realidade do ponto de vista de sua aparência física, experimentalmente verificável, como faz a ciência. A explicação que o mito faz da realidade não pode ser medida e provada através da constatação objetiva da inteligência. Sua lógica não é a mesma da ciência metódica, sistemática e racional, mas sim a da sensibilidade intuitiva que visa atingir o interior dos fenômenos, tais como eles são, não apenas em si mesmos, mas como o são em relação com o sentimento dos homens que os percebem. Nesse sentido,o mito é sempre uma construção coletiva em função de uma ética cujo objetivo é apresentar modelos exemplares de conduta. Seus heróis e anti-heróis dão o contorno dos princípios que devem reger os limites entre o bem e o mal numa comunidade. 16 Unidade: As diversas formas de conhecimento O conhecimento filosófico Apesar de toda a história da filosofia, o cidadão comum ainda pergunta: o que é filosofia? As disciplinas científicas lecionadas na escola não parecem receber o mesmo tipo de questionamento – Geografia, matemática, história, língua portuguesa, física e química não precisam apresentar-se,justificar sua razão de ser, elas estão presentes no ensino escolar porque são absolutamente necessárias para as atividades, inclusive do cidadão comum. Mas o que dizer da Filosofia? Que conhecimento é esse do qual pouco se sabe sobre sua utilidade? Para que é necessária? Qual é a sua finalidade? Qual é o seu objeto de estudo e sua originalidade frente às demais formas de conhecimento? A Filosofia é ciência ou é forma de conhecimento que se distingue do científico? De certo modo,filosofia se confunde com ciência. Outrora, todo conhecimento fundado no esforço da inteligência racional brotava da busca pelo saber filosófico. A matemática, biologia, química ou linguística eram especialidades da grande área do saber filosófico. É só com o advento do espírito moderno (Séc. XVI) que o modelo científico se impõe como autônomo e independente da filosofia e, mediante o paradigma da razão experimental, começam a surgir as diversas ciências que hoje compõem o cenário que domina o ambiente da produção do conhecimento mais técnico e especializado. Por isso, podemos afirmar que a filosofia é e não é ciência. É ciência porque usa as mesmas exigênciasde rigor e discurso racional exigidos pela ciência e frequenta, em sua relação de conhecimento, os mesmos objetos do saber científico. Por outro lado, a filosofia não é ciência porque não se limita ao mesmo critério de objetividade experimental que a ciência, pois busca a objetividade imposta pelo rigor de uma racionalidade que se quer compreendida, mas não se submete aos princípios restritivos do critério experimental. O pensamento filosófico, por sua própria natureza, ultrapassa os limites dos objetos dados apenas pela experimentação. Dito de outra maneira, a filosofia ultrapassa os limites de uma ciência que descreve a objetividade da realidade captada pela experiência mensurável. O conhecimento filosófico, nesse sentido, diz respeito não apenas ao que é, mas ao que ainda não é; busca, nos horizontes do aqui e do agora, o que pode ser. Portanto, é próprio do pensamento filosófico o caráter utópico, o discurso racional sobre o que há para destruir, transformar e criar. O filósofo é sempre um “profeta” do saber: sua vocação é arrancar, derrubar, transformar e construir mundos6. O filósofo é um hermeneuta dos acontecimentos, isto é, interpreta a história, derruba tabu, avalia práticas, desmonta teorias. Essa atitude assumida no trabalho dos filósofos chega a ser pronunciada com a característica da própria personalidade do filósofo: no entender de Nietzsche, ele próprio é uma dinamite7. Nas palavras de Karl Marx, essa é a principal tarefa do filósofo, para Marx,a filosofia tem uma tarefa revolucionária: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 1993). 5 A intenção nessa unidade não é apresentar exaustivamente todas as características do conhecimento filosófico,outras disciplinas como Introdução a filosofia terão a oportunidade de completar o que aqui não for explicitado. A ênfase é oferecer características que sirvam ao propósito da comparação com as outras formas de conhecimento, principalmente com a ciência. 6 A Bíblia apresenta a figura do profeta como aquele que tem essa mesma missão de destruir, transformar, criar e derrubar. No livro profético atribuído a Jeremias, encontramos as seguintes palavras a respeito da vocação e da missão do profeta: “Vê! Eu te constituo, neste dia, sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar.” (Jr 1,10) 7 EmEcce Homo, Nietzsche declara: “Eu não sou um homem: sou dinamite. [...]Sou, há longo tempo, o homem mais terrível que possa existir; essa circunstância não exclui a faculdade de tornar-me benéfico. Conheço a alegria da destruição em grau comparável unicamente à minha força destruidora; e para uma e outra obedeço ao meu temperamento dionisíaco que não separa a ação negativa do pensamento afirmativo. Eu sou o primeiro imoralista: por isso, sou também o destruidor por excelência” (NIETZSCHE,s.d., p. 195 e 197). 17 Em resumo, a atividade específica da filosofia como conhecimento pode ser caracterizada da seguinte maneira: é o estudo e o exercício da razão crítica; é a busca da verdade e das causas últimas de todas as coisas; é a tentativa ousada de ver e compreender as coisas sob a ótica do todo, construindo sempre uma visão de totalidade e de conjunto dos fenômenos; é um conhecimento que transforma o próprio conhecimento em seu objeto de análise8 – como estamos fazendo particularmente estudando teoria do conhecimento. Por isso mesmo, a filosofia se constitui como o saber que busca fundamentar teórica e criticamente todos os saberes, inclusive a ciência – ea epistemologia é outra disciplina da filosofia que tem essa finalidade. É, portanto, tarefa da filosofia questionar a ética, finalidade, as fontes e condições de validade e verdade do conhecimento, seja ele comum, científico, mítico, artístico ou mesmo o filosófico. O conhecimento artístico Assim como o mito, a arte é uma forma de conhecimento bastante peculiar. Os filósofos gregos concebiam a arte como uma atividade presente em diversos setores da vida humana e muito próxima da filosofia. Como não havia uma distinção nítida entre filosofia e ciência, pois a episteme (que traduzimos como ciência)–concebida como conhecimento que não é fruto de opinião, mas de constatação objetiva–era apenas a etapa do conhecimento rigoroso exigido pela filosofia, esta, por sua vez, abrigava em si todas as áreas do saber, inclusive a arte. Por isso, sobretudo no mundo antigo, a arte é verdadeiramente uma forma de conhecimento. O grego concebia a arte fundamentalmente como techné, isto é, como uma habilidade específica, regrada e ordenada segundo as exigências próprias do trabalho humano no tratamento com os objetos. A arte é, desde o princípio, uma atividade humana que supõe uma relação de conhecimento, isto é, que supõe a relação fundamental entre sujeito e objeto, e como tal deve ser considerada. O modo peculiar como a arte estabelece a relação “sujeito-objeto” traduz sua identidade com características bastante diversas das demais formas de conhecimento até aqui analisadas, nossa tarefa é tentar enumerar algumas dessas características Como distinguir a atividade artística da atividade filosófica ou científica? O que distingue o objeto de arte de outros objetos? O que distingue a atividade do artista da atividade do homem comum? Essas e outras perguntas nem sempre possuem respostas fáceis, uma vez que, de certa forma, a arte também se encontra, como potencialidade, presente em todo e qualquer ser humano que se relaciona com o mundo dos seres. De certo modo,todos somos artistas porque possuímos em comum, enquanto seres humanos, a capacidade de nos relacionarmos com o mundo da mesma forma criadora, inovadora, sensível e transformadora com que o artista se relaciona com seus objetos. Afinal de contas, quais são as características da forma artística de relacionar-se com o mundo? O artista relaciona-se com o mundo de forma a expressá-lo em categorias simbólicas, usando os próprios objetos dispersos no mundo para comunicar não apenas sua cópia, mas uma interpretação subjetiva, vazada de senso estético, que busca criar, através da sensibilidade intuitiva, na mais profunda autonomia e liberdade de ação e concepção, uma novidade transformadora do próprio mundo. 8 O filósofo Caio Prado Junior (1981) define filosofia como conhecimento do conhecimento. 18 Unidade: As diversas formas de conhecimento A linguagem do artista é a simbólica, pois é através dela que ele expressa a sua forma de ver, conceber e interpretar o mundo. A matéria dessa linguagem são os instrumentos sensíveis que afetam nossos sentidos como sons, gestos, corpo, formas, objetos, palavras e imagens. Todo objeto que possa afetar nossa sensibilidade é potencialmente instrumento de expressão artística. A arte não copia o mundo, comunica-o, interpretando-o segundo as exigências da subjetividade, do senso estético e da sensibilidade intuitiva do artista. Diferente do discurso racional filosófico e da objetividade cientifica, a arte se constitui como conhecimento subjetivo. O artista não está interessado em traduzir objetividade, o que ele quer é transmitir um estado de espírito frente a uma determinada situação, frente a um determinado objeto. Em sua tela, numa escultura, numa música, num filme, numa dança ou poesia, o que se quer, na maioria das vezes, é a transmissão de sentimentos, de algo que possa afetar a sensibilidade alheia. A linguagem da arte passa, portanto, pela porta de nossa sensibilidade intuitiva. Ao comentar a relação entre arte e sentimento, Maria L. A. Aranha e Maria H. P. Martins compreendem o sentimento como conhecimento que abre e dá sentido esclarecedor àquilo que afeta nossas emoções. Afeto, emoção e sentimento, são noções correlatas diretamente implicadas na definição do trabalho do artista. [...] O sentimento acolhe o objeto, reunindo as potencialidades do eu numa imagem singular. É toda nossa personalidadeque está em jogo, e o sentimento despertado não é o sentimento de uma obra, mas de um mundo que se descortina em toda sua profundidade, no momento em que extraímos o objeto do seu contexto natural e o ligamos a um horizonte interior (...). Assim, o sentimento é conhecimento porque esclarece o que motiva a emoção; esse conhecimento é sentimento porque é irrefletido e supõe uma certa disponibilidade para acolher o afetivo. É preciso lembrar que sempre podemos nos negar a essa disponibilidade, pois ela pressupõe um certo engajamento no mundo; o objetivo não é pensá-lo, nem agir sobre ele; é, tão somente, senti-lo na sua profundidade. (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 374-375). O conhecimento artístico supõe uma habilidade no tratamento de seu objeto cujo objetivo é a obtenção do prazer estético. A palavra estética nos remete ao termo grego aisthesis, que significa a capacidade que temos em sentir as coisas ou captá-las através de nossos sentidos: o tato, a audição, o paladar, o olfato, a visão. Um dos objetivos de nossos sentidos é a realização de relações de prazer com o mundo exterior, a essa experiência fundada no prazer damos o nome de experiência estética –a arte existe para a realização da experiência estética. A experiência estética é a característica fundamental do conhecimento artístico,por meio dela buscamos nos relacionar com o mundo através de interesses que se dirigem para a beleza e para o prazer que as coisas nos sugerem. O que a arte procura expressar, portanto, não é uma descrição objetiva, como imitação ou cópia do real, mas a forma como o real é captado ou o sujeito se sente afetado por ele, segundo o sentimento de beleza, de prazer e satisfação. A procura pelo belo é a motivação fundadora da atividade artística. Outra coisa é o conceito de beleza que, deste ou daquele artista, segundo este ou aquele padrão de arte, pode variar de artista para artista, de tempos em tempos, conforme os mais diversos critérios, contextos e situações. 19 Finalmente, a arte é o conhecimento cuja relação com o mundo é marcada pela criatividade, liberdade e autonomia. A arte não está presa ao domínio da realidade como a ciência deve estar, sua tarefa não está subordinada à descrição do real. Sua função é a criação. Criar, fazer, produzir, fabricar e dar vida ao novo. Numa palavra, fazer arte é transformar os objetos, dar novas formas e conteúdos ao mundo dos objetos, de modo que a imaginação do sujeito que deseja seja satisfeita.Não é apenas repetir o mundo, mas recriá-lo segundo seus interesses, desejos, sonhos e utopias. Neste sentido, a arte se aproxima da filosofia, pois,enquanto criação e irrupção do novo que ainda não é, busca, como a filosofia,não só descrever a realidade, mas transformá-la, participa dela e a desfrutar. Conclusão A variedade das formas de conhecimento implica compreender os diferentes modos como cada uma delas estabelece a relação “sujeito-objeto”. Senso comum, ciência, mito, filosofia e arte representam linguagens específicas de percepção, explicação e apresentação do mundo dos objetos ao sujeito – na próxima unidade, analisaremos cada uma delas sob a ótica da validade e verdade do conhecimento. 20 Unidade: As diversas formas de conhecimento Material Complementar Vídeos: Acesse link: www.youtube.com/watch?v=Pz4vQM_EmzI Nele você encontra o curta de animação Aprender a aprender (2005) de Josh Burton (7’49) e reflita sobre tudo o que aprendemos na Unidade II. Repare como o conhecimento aprendido pela menina exige paciência, sensibilidade, observação, técnica e abertura para receber e aprender o legado do mestre. Há algo neste curta que não aprofundamos, mas valeria a pena considerar: a paixão como ingrediente do conhecimento e da relação que estabelecemos com os objetos de nossa relação cognoscente (relação de conhecimento). Livros: JAPIASSU, Hilton F. Epistemologia. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 188p. Trata-se de uma obra clássica no Brasil de crítica à pretensão do cientista que alega neutralidade ou imparcialidade no conhecimento científico. Não deixe de consultar o livro de Arcângelo Buzzi, pois além das cinco formas de conhecimento aqui apresentadas, ele apresenta mais uma, a fé: BUZZI, Arcângelo. Introdução ao pensar. O ser, o conhecer, a linguagem. Petrópolis: Vozes, 1980. Sites: Assista ao filme A festa de Babette e veja o valor da arte culinária como conhecimento que transforma a vida das pessoas de um vilarejo nos confins da Dinamarca do final do século XIX e revela múltiplas facetas do conhecimento humano: a tradição religiosa na concepção do senso comum e moldura do comportamento; o relacionamento com a música; a comunidade e o amor. A Festa de Babette (Babettes Gæstebud) é um filme franco-dinamarquês de 1987, dirigido por Gabriel Axel. Roteiro adaptado da obra de Karen Blixen, cujo pseudônimo era Isak Dinesen. Veja o filme e leia a resenha no link: http://sociedaderacionalista.org/2013/04/11/a-festa-de-babette-da-gula-a-redencao-do-espirito/ 21 Referências ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e suas regras. 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. ARANHA, M. L. de Arruda e MARTINS, M. H. Pires. Filosofando. Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2003. BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. O ser, o conhecer, a linguagem. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. CUNHA, José Auri. Filosofia. Iniciação à Investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. HEGENBERG, Leônidas. Explicações científicas. Introdução à filosofia da ciência. São Paulo: Edusp/EPU, 1974. MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1993. NIETZSCHE, F. Ecce Homo - Como cheguei a ser o que sou. São Paulo: Ed. de Ouro, s.d. PRADO Jr., Caio. O que é filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1981. 22 Unidade: As diversas formas de conhecimento Anotações
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