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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Maria Cecília Paladini Piazza Por entre corredores e refeitórios: escovando narrativas e memórias de auxiliares de serviços gerais escolares na busca de relações outras Florianópolis 2021 Maria Cecília Paladini Piazza Por entre corredores e refeitórios: escovando narrativas e memórias de auxiliares de serviços gerais escolares na busca de relações outras Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Doutorado em Educação. Orientador: Prof. Dr. Elison Antonio Paim. Florianópolis 2021 Maria Cecília Paladini Piazza Por entre corredores e refeitórios: escovando narrativas e memórias de auxiliares de serviços gerais escolares na busca de relações outras O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros: Profa. Dra. Solange Maria Evangelista Mendes Luis ISCED-Huíla/Angola Profa. Dra. Maria de Fátima Guimarães PPGE/USF Profa. Dra. Cyntia Simioni França MHP/UNESPAR Profa. Dra. Patrícia Magalhães Pinheiro Rede Municipal de Educação de Palhoça Prof. Dr. Victor Julienne da Conceição CA/UFSC Profa. Dra. Josiane Beloni de Paula CAp/UFRN Profa. Dra. Carolina Fernandes da Silva PPGE/UFSC Certificamos que esta é a versão do trabalho que foi julgada adequada para a obtenção do título de doutorado em Educação. ____________________________ Coordenação do Programa de Pós-Graduação ___________________________ Prof. Dr. Elison Antonio Paim Orientador Florianópolis, 2021. Dedico esta produção às auxiliares de serviços gerais da Escola de Educação Básica Prof.ª Neusa Ostetto Cardoso, mulheres guerreiras e de fibra que fazem parte de todo processo educacional, porém muitas vezes tem suas vozes silenciadas. Florescer a partir das brechas Fonte: Ilustração artista Lírio, encomendada pela autora (2020). AGRADECIMENTOS Em todo o ir e retroceder do meu pensamento, o que mais me comoveu a escrever sobre as pessoas às quais sou grata foi a fase em que quase desisti de prosseguir com o doutorado. Por isso, opto em focar e agradecer quem me ajudou a ir adiante, dando estímulo, apoio e coragem. Emociono-me quando rememoro tudo que passei e meu coração se enche de gratidão a todos que mencionarei nesse agradecimento. Sou imensamente grata às meninas guerreiras que tive a honra de entrevistar – Maria Jucélia, Leonir, Euza e Claúdia – pelos afetos, pelas amizades que temos umas pelas outras e por aceitarem participar e construir comigo esta tese de doutorado. Por cada uma tenho um imenso carinho e desde 2008, quando cheguei à escola e em seguida iniciei o mestrado em Educação, sempre me tocou mostrar a importância delas no processo de ensino- aprendizagem. Grata à minha família, que me concedeu força e coragem para continuar o doutorado. Assim que Davi nasceu, passei por momentos difíceis, depressão pós-parto e vontade de abandonar tudo. Estava decidida em desistir. Porém, o apoio dos familiares fez com que eu continuasse essa jornada de pesquisa. Minha família sempre me escutou e me escuta desde a infância, eles sabem o quanto o estudo é importante para mim e como move minha vida. Tenho paixão por transformar a sociedade, revolucionar os paradigmas impostos, me inventar e reinventar. Anseio sempre ousar com originalidade para ver um mundo mais bonito e justo, sem limites para sonhar. Foram várias as maneiras de apoio que no dia a dia nos passam desapercebidas, no entanto, nessa etapa da pesquisa quero enxergar o “miúdo-grandioso” que fizeram por mim, mas que fez toda diferença. Nessa escrita, as memórias vêm e vão, e nesse processo tudo que estou escrevendo está sendo aleatório, sem ordem, sem cronologia. Bem benjaminiana, deixo fluir meus relampejares e trago à tona as pessoas que me ajudaram em todo meu percurso de pesquisa e de vida. Josué, meu companheiro, paizão incrível, que na minha ausência, idas e vindas de Florianópolis sempre cuidou do nosso Davi com todo o zelo. Além disso, adoro apresentar para ele todos os debates que aprendo e desaprendo, ele já está craque em Benjamin e nos decoloniais. Quando eu quis desistir do doutorado, ele não permitiu. Disse que tudo daria certo. Grata também à minha irmã gêmea Ana Maria, que sempre me ajuda e me escuta meus devaneios e minhas loucuras. Nas minhas ausências para o estudo, ela que também é dinda do Davi, o leva para a casa dela, brinca, os dois juntos aprontam as mais incríveis aventuras. Minha outra irmã, Renata, é a quem eu mais gosto de apresentar e falar dos autores que estudo além da minha pesquisa. Ela me estimula demais e me ajuda nas questões burocráticas. Obrigada à vovó Eliane por ficar com Davi e, muitas vezes, dormir com ele enquanto eu estava estudando. Minha sogra me ajuda sempre que preciso, principalmente nos mandando comidinhas deliciosas. O Dom Divino dela é servir e cuidar. Mal pisamos na casa dela e a primeira coisa que fala: querem jantar? Querem almoçar? Querem café? Não importa o horário, ela está sempre disponível a nos servir um banquete com muita fartura. Agradeço também o vovô Teixeira, que sempre me incentivou. Desde que o Davi nasceu, com o fato de eu ter que ir a Florianópolis, ele junto com a vovó Eliane, levavam o Davi para passear e ajudavam na minha ausência. À minha mãe Marly, que é alegria pura. Sempre que podemos, Davi e eu vamos tomar cafezinho na casa dela. É muito engraçado, porque sempre quero apresentar ou discutir algum assunto benjaminiano com ela, porém ela não aguenta mais me ouvir. Mas no final sempre é a que mais me escuta. Não é muito de cozinhar, mas quando estou focada escrevendo, ela faz o melhor feijão que já comi na minha vida. Ao meu pai, Atemar Piazza, poeta convicto, quem sempre será meu maior incentivador. Perdê-lo foi e está sendo muito triste, mas ao mesmo tempo me fortaleço nos seus ensinamentos e no exemplo de pai que foi conosco. A pessoa mais incrível que eu já conheci, da qual tenho uma admiração que transcende esse plano terrestre. Tive uma infância sensacional devido ao esforço dele em nos proporcionar todo conforto material, emocional, espiritual e intelectual. Proporcionando para nós osmelhores estudos, melhores livros, as mais belas poesias que guardo em minha alma. Não existe melhor herança. Tenho um grande objetivo de vida, quero que o meu pai se orgulhe de mim assim como eu me orgulho dele. O tratamento dele com as pessoas é o que mais martela em minha cabeça. Sempre lendo seus livros para nós, um amante da literatura, fã de Fidel Castro, Che Guevara, dentre tantos outros revolucionários. Fico abismada com a educação, a postura ética e compromissada que ele tinha com a sociedade. Minha agenda escolar só tinha escrito os ensinamentos e poesias que ele nos recitava. Eu estava sempre atenta aos conselhos do meu pai, quando algo me afligia, ele dizia: “não te preocupa, o mesmo sol que derrete o chocolate endurece o concreto”. Aí eu dizia: “deixa eu anotar isso para gravar na minha alma”. Ele ia conversando e falando trechos de poesias para mim e eu ia me acalmando. Tem uma poesia da Cecília Meirelles que até hoje está no meu diário: “Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”. Não posso deixar de mencionar meu irmão Joao Paulo, que também sempre me incentiva, muito guerreiro e determinado e disposto, não se cansa de ir rumo aos seus objetivos e com seu exemplo me incentiva nessa jornada de pesquisadora. Agradeço demais ao meu amigo-professor Elison Antonio Paim, por acolher meu projeto, por acreditar em minha capacidade, pelos diálogos e pela criação em conjunto, que me orientaram a seguir o caminho correto, ensinando-me lições de prudência e abrindo meu horizonte para novas possibilidades e desaprenderes. Além do mais, me encorajou a alimentar esperanças e lutas por uma educação intercultural, libertadora, transformadora e decolonial. Quando fui conversar com ele sobre minha desistência, Davi tinha um mês e o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE) estava lotado de gente para fazer a matrícula, e o professor Elison, que na época também era coordenador do programa, me chamou num canto, naquele ‘vuco-vuco’, me olhou nos olhos e disse para eu não desistir. Assim, ele me fez assinar o papel da matrícula, eu dando de mamar para o Davi, que não desgrudava do meu peito, assinei os papéis e saí faceira de lá. Em seguida, quando eu já estava em Araranguá, me mandou uma mensagem no meu Whatsapp dizendo que ofertaria uma disciplina quinzenal e que daria total apoio para eu prosseguir. Chorei demais quando li aquela mensagem e percebi que há gente sendo gente, há humanidade, há esperança, há solidariedade, há compaixão, há um verdadeiro professor, no sentido mais complexo e profundo do que é ser um professor. Sinto gratidão por todas as críticas que me fizeram amadurecer, pois elas constituíram em mim um espírito de pesquisadora que me incentiva a seguir adiante. Agradeço demais o professor Elison, porque por meio das suas inesquecíveis aulas fui instigada a pesquisar e compreender muitas questões do universo benjaminiano e da decolonialidade. Nas rodas do grupo de estudo, ele nos chamou para uma decolonialidade do saber, num constante exercício de desaprender os nós opressores da colonização que muitas vezes estão tão impregnados em nós. Além disso, sempre nos provocou para a importância de falar do lugar de onde viemos, das nossas experiências no dia a dia escolar. Por isso, o insight em trazer à tona as memórias das auxiliares de serviços gerais da minha escola a fim de escutá-las e valorizá-las. Agradeço também às/aos professoras/es do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina por ampliarem os horizontes de minha compreensão nesses anos de doutorado. Este agradecimento é válido também para outras/os tantas/os professoras/es desta universidade e de todo meu percurso estudantil, com os quais pude aprender e partilhar saberes. Meu agradecimento é também dirigido à banca que examinará esta tese: por aceitarem o convite e pelo trabalho, paciência e disposição que terão em lê-la. Além disso, sou grata a todes as/os colegas e amigas/os do curso de Doutorado em Educação, pelos excelentes debates e por tornarem o doutorado um lugar bom de estar e de se aprender, de se motivar, de construir afetos. Às colegas, que hoje não são apenas colegas, mas também amigos e amigas: Carol, Técia, Giovanna, Josi, Paty, Ana, Jéssica, Sil; aos amigos Pedro, Guilherme Big, Guilherme, Vavá, Odair e outros que não tive muito contato pessoal, mas que fazem parte do nosso grupo de pesquisa e sinto admiração e carinho. Vocês descortinaram muito o meu olhar com discussões que vou levar para meu modo de ser, viver, sentir, saber e pensar. Muitíssimo grata à Patrícia, Bruno e Giovanna pela disposição paciência e ajuda nas questões referentes às normas da ABNT e sugestões que me propuseram. A Paty que me ajudou com a Plataforma Brasil, etapa chata e burocrática, por não entenderem nossas outras lógicas que assumimos na área das ciências humanas. Inclusive, tive que fazer três cartas me justificando para Plataforma Brasil sobre as mônadas e minhas entrevistas com as auxiliares de serviços gerais escolares. A Giovanna, uma querida, amada que transcreveu as entrevistas e me ajudou a organizar o texto. Grata à direção, aos amigos e colegas da escola, que me encorajam, que me chamam de louca, de revolucionária, pois estou sempre mostrando outras visões de vida e de mundo e muitas vezes esse elogio à loucura é que me faz prosseguir e me agarrar na fé que tenho em Jesus. Meu grande mestre que nos ensina a amar sem discriminações, porque Ele mesmo foi exemplo de tudo isso ao amparar as prostitutas, ladrões, leprosos e tantas/os outros marginalizadas/os. Enfim, aprendo muito com todes que fazem parte do meu cotidiano, com detalhes ínfimos que a gente nem faz ideia, pois cada gesto, cada brincadeira, cada abraço, cada beijo e outras formas de afetos são ensinamentos e lições que se eternizam, que são imensuráveis e, numa visão pragmática, não nos damos conta, mas é através de todos esses afetos, partilhas e na coletividade que nos formamos. Por último, quero dizer que diante de todos os estudos e as leituras que venho fazendo desde criança, com meus pais nos contando histórias da coleção “O mundo da criança”, o que me vem à tona é que mesmo tendo momentos de tempestades, sempre vem o sol, o cheiro de mato, os passarinhos. Com todos aqueles que me rodeiam, tanto na minha profissão quanto no meu círculo familiar e meus amigos, quero me embasar nos ensinamentos do poeta Manoel de Barros, Walter Benjamin, Guimarães Rosa e os autores decoloniais. Como diz Manoel de Barros, devemos ser apanhadores de desperdícios e de lindezas, ou seja, minha intenção é ser luz mesmo em noite escura, é mostrar modos outros de ser, saber, sentir e viver, mostrar outras possibilidades de epistemologias mais atentas às vozes silenciadas, aquilo que foi expulso da história e que não nos foi contado. Quero procurar as bonitezas e as brechas que há em meio às ruínas. Apesar de haver tristezas, altos e baixos, foco no bem que encontro pelo caminho, assim tento ser como uma passarinha carregando a bagagem de bondade, catando gravetos de cheiro para esquentar e sustentar quem se achegue a mim, mostrando possibilidades outras de se viver. Talvez a vida tenha nos feito acreditar que há mais ruínas, injustiças e desafetos. Mas como vocês sabem, eu sou chata e até insistente em falar: há as brechas, é fácil encontrar,pois nós pulsamos amor e isso é nossa essência, está em cada um de nós. Basta a gente buscar e nos contrapormos aos automatismos da vida cotidiana para produzir enraizamentos mais profundos. A vida é assim, são vários fios que vão nos construindo, é uma dialética como uma teia de aranha, é um mosaico. Quebra aqui, remenda ali, retoma lá, volta aqui, vai de novo, junta os caquinhos novamente e reconstrói. E diante de tudo isso, temos que focar na altivez da alma, no belo, no bem, na justiça, no amor e na gratidão. Que sejamos sempre catadores de amor, de justiça social, de justiça epistemológica. Está é minha gana. Obrigada por fazerem parte da minha vida. PREÂMBULO Nesta primeira etapa agradeço a Deus por ter nascido nesta dimensão e me conceder essa rebeldia e desejo que tenho por revolucionar e virar do avesso os equívocos que nos foram impostos. Essa indignação me trouxe até aqui e possibilitou, mesmo com tantas adversidades, trabalhar de corpo e alma neste projeto que está entranhado dentro de mim. Uma missão que vem do Amor pela vontade de justiça, tanto social quanto epistemológica. Sou imensamente grata à Maria Jucélia (Nega), à Euza, à Leonir e à Cláudia por aceitarem participar e construir comigo esta tese de doutorado. Para começarem a conhecer as narradoras desta pesquisa deixo com as/os leitoras/es as fotografias e algumas linhas a seguir. No capítulo de introdução, voltarei a apresentá-las. A Euza, com seu jeitinho amoroso, sempre demonstrou preocupação, não só comigo, mas com todas/os1 que a cercam. Como na vida há altos e baixos, às vezes chego à escola um pouco aborrecida e logo vem a Euza conversar comigo e me animar. Ela percebe só em me olhar se estou triste ou não. E então diz: “Hoje não estás com aquele brilho, o que houve?” Tem muita sensibilidade, só em conversar com ela já me empolgo novamente, sempre carinhosa e atenciosa com todas/os. Também possui muito senso de humor, compartilhamos várias risadas com suas piadas. Além disso, com toda sua experiência sempre me transmite bons conselhos sobre a vida, os quais gravo na minha alma. Figura 1 – Fotografia Maria Cecília e Euza. Fonte: Arquivo pessoal (2020). 1 Opto por trazer na tese tanto o feminino quanto o masculino, marcando uma posição política mais inclusiva. A Nega2 possui um silêncio que é repleto de sabedoria, nós nos olhamos e, mesmo sem ela me dizer nada, já sinto uma profundidade gigantesca em sua alma. Abraçamo-nos bem apertado e compartilhamos muito afeto uma com a outra, mas percebo que ela é assim com todo mundo, sempre carinhosa e muito sábia, uma sabedoria que verdadeiramente se baseia em Jesus. Só em ficar perto dela já me sinto bem. Figura 2 – Fotografia de Maria Cecília e Maria Jucélia (Nega). Fonte: Arquivo pessoal (2020). A Leonir é engraçada demais, apesar das angústias que ela sofre, com problemas familiares, está sempre bem humorada e adoramos conversar e colocar o papo em dia, ela procura sempre estar de bem com a vida, a despeito das dificuldades. Figura 3 – Fotografia de Leonir e Maria Cecília. Fonte: Arquivo pessoal, 2020. 2 Refiro-me à Maria Jucélia, que consente com a uso desta denominação como forma afetuosa de tratamento. A Cláudia é cativante, um ser humano do bem e tem grande caráter. Além disso, possui um sorriso e um brilho no olhar que são contagiantes. Encho-me de orgulho em construir esta pesquisa junto com vocês, agradeço profundamente pelo afeto, carinho e companheirismo que temos no nosso cotidiano escolar. Figura 4 – Fotografia de Cláudia e Maria Cecília. Fonte: Arquivo pessoal (2020). Peço-lhes licença, agora, para explicar-lhes nesta primeira etapa o porquê desta pesquisa e do motivo de escolha por entrevistá-las. Acredito que tudo começou no exemplo que tive em casa com meu pai. No ir e retroceder do meu pensamento, ele paralisa e me remete a pensar como fui parar num doutorado em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e assim me deparar com teorias e assuntos que tanto mexem com minhas sensibilidades. Sem dúvida alguma, volto a pensar no meu pai, que vivia recitando poesias. Ex-seminarista, foi professor de literatura, amava a literatura, sempre com enorme senso de justiça social. Formou-se em Direito e sempre nos incentivou a ler e entender questões referentes às injustiças sociais. Num de meus relampejares, dou-me conta do quanto rememorar a imagem do meu pai recitando poesias para mim e para minhas/meus outras/os três irmã/ãos me moveu para o doutorado em Educação e para a escolha de entrevistá-las. Quando meu pai começava a recitar poesias, nós quatro riamos dele, pedíamos para parar, pois estávamos assistindo televisão, sua declamação estava nos atrapalhando. Em nossa racionalidade instrumental3, tudo isso parece algo tolo, mas não é, óbvio que não é. Ao contrário, fico refletindo o quanto essa ‘vivência’ (Erlebnis) no decorrer do 3 Adorno e Horkheimer fazem uma crítica a redução do pensamento racional da sociedade moderna que é incapaz de transcender o imediato, afetando o conhecimento ao torná-lo unidimensional e instrumental. Dessa tempo transformou-se numa ‘experiência’(Erfahrung); isso toca minha alma.4 Essa imagem de meu pai recitando poemas mexe demais comigo, permite esticar meu horizonte, coloca do avesso uma memória que estava adormecida. Desperta em mim uma relação artesanal com as palavras. Estou escrevendo e uma avalanche de pensamentos vem à tona. Com calma, reflito sobre esse pequeno fragmento de minha infância e me dou conta da dimensão do todo que nele está contido. Ao me reportar à imagem do meu pai, capturo que estou em toda essa trajetória de pesquisa por causa dele. O pensar poético dele e sua paixão pela literatura respingaram em mim. Seu entusiasmo, seu fascínio pela educação, pela literatura e a sua postura em olhar para o outro sempre de coração aberto e livre de amarras introduziram-no num caminho que foi contra todos os processos que promovem angústia, insatisfação, rivalidade, humilhação e formas de infelicidade. A pessoa mais incrível que eu já conheci, da qual tenho uma admiração que transcende esse plano terrestre. Não existe melhor herança, e com isso enfatizo o quanto sou agradecida a ele por nunca querer parar de ler e estudar. Peço-lhes licença também para explicar, nesta declaração inicial, de onde venho e porque me considero uma apanhadora de sensibilidades. Venho da cidade de Araranguá, no sul de Santa Catarina. Escrevo sob a perspectiva de uma professora, orientadora pedagógica e mãe que busca estimular todas/os a confiar em si mesmo, pregando uma generosidade que almeja um mundo mais justo. Durante toda minha trajetória acadêmica estudando Benjamin, desde o mestrado que defendi em 2016 na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), como também neste momento do doutorado, outras inúmeras perguntas surgiram. Decidi, então, após minha defesa da dissertação, investigar onde eu poderia dar continuidade aos meus estudos sobre as temáticas benjaminianas. Foi quando resolvi matricular-me numa disciplina do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFSC) que trata das temáticas referentes ao universo de Walter Benjamin.Tudo conspirou para eu conhecer meu maneira, utilizo racionalidade instrumental pensando na perspectiva da reprodução alienada da realidade em que o triunfo da racionalidade instrumental assume uma postura perversa e violenta. Pois, na medida em que dilacera o saber/conhecimento legitimando verdades ao renunciar a dialética que coexiste, reproduz uma totalidade repressiva que se submete ao conformismo da imposição de formas sociais determinadas, eliminando as contradições do que é dado. 4 O conceito de experiência atravessa toda a obra benjaminiana e nela o filósofo distingue duas definições que se desenvolveram de diferentes formas ao longo do tempo. Por Erfahrung (experiência autêntica ou experiência transmissível) definiu um fenômeno nas relações humanas que está em declínio, junto do modo de produção e de comunicação artesanal, característico da vida em comunidade. Já a Erlebnis (experiência vivida ou vivência) encontra-se em ascensão na modernidade, pois é aquela que corresponde ao indivíduo solitário. Utilizamos traduções propostas em Benjamin (2012), cujo o prefácio escrito Gagnebin (in BENJAMIN, 2012, p. 9) traz grandes contribuições para entender o conceito utilizado nesta tese. Nas palavras da autora: “O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, é o laço que Benjamin estabelece entre o fracasso da Erfahrung e o fim da arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas não explicitada em Benjamin), a ideia de que uma reconstrução da Erfahrung deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade”. professor e orientador-amigo, Elison Antonio Paim. Pensem o quanto fiquei comovida e muito inspirada a continuar meus estudos. Foi nítido para mim que esta postura do professor Elison em construir relações mais horizontais me motivou a continuar, pois em relações assim ocorrem experiências mais enraizadas, há atravessamentos, e com isso relações mais efetivas. Esse vínculo dele conosco, essa relação de amizade entre orientador e orientanda/o, me convidou a mergulhar no projeto e a encarar as turbulências. Posso afirmar que o envolvimento dialógico e criativo é o que se converte numa experiência plena, numa perspectiva benjaminiana. Nem me importava com o trânsito caótico de Florianópolis e a distância de Araranguá à capital catarinense. Nossos debates e rodas de conversa mexiam tanto comigo e com minha perspectiva de visão de vida e de mundo que me sinto grata ao Universo por estar no lugar certo e na hora certa. Sempre chegava em casa empolgada, partilhando com Josué, meu companheiro, toda a experiência que tinha experienciando, tudo fluiu na sua mais perfeita ordem, algo Divino. Fiz a disciplina isolada e logo participei do processo seletivo. Ao escrever meu projeto de pesquisa, pensei muito sobre o que o professor Elison falava nas aulas, perguntava-nos o que no nosso cotidiano nos atravessava, nos movia, nos incomodava, sobre que temáticas sentíamos uma paixão. Aí, conversando com minhas colegas Tati e Josi, comentei para elas o quanto me inquietava o silenciamento das auxiliares de serviços gerais da escola em que eu trabalhava e o quanto elas são primordiais no processo educativo, porém pouco valorizadas e escutadas. Isso permeia minhas indignações. Comentei com a Tati e com a Josi, e num desses relampejares nas conversas com elas, veio-me a ideia de rememorar essas vozes sequestradas. Certa vez, numa fala inusitada da Euza, servente da escola, captei um sentimento de cansaço e de desestímulo: “Pois é Cecília, fico chateada porque sempre que há confraternização dos professores, só lembram de nós quando é para cozinhar, caso contrário, nem nos convidam”. Esse fragmento de memória que me saltou e está saturado de tensões, deslocou-me para puxar esse fio e trazer essa questão da invisibilidade e da potência educativa dessas mulheres. Outro fato que me impulsionou no projeto de pesquisa para rememorar as histórias das auxiliares de serviços gerais foi uma vez que sugeri que, numa formatura do Terceirão, as auxiliares fossem homenageadas; ninguém acatou minha ideia e quem foi homenageado foi um político que nem faço questão de lembrar, nem mencionar. Ali começou minha mobilização em escrever, uma história individual, um passado que não passou porque ainda machuca. E, eu, enquanto pesquisadora trago à tona na mônada abaixo, nesse fragmento de história que me inquieta: Detalhes do cotidiano Para mim uma formatura de Terceirão tem que chamar quem está ali batalhando. Não é para se chamar lá o político, fulano ou ciclano. A Euza principalmente né, que está sempre ali pra abrir o portão, pra fechar o portão, pra atender uma pessoa que vem entregar uma coisa, é... Sempre está ali, sábado e domingo. Um alarme que toca, daí é tu que chama (Maria Jucélia, 2019). No movimento do meu pensamento, paro e penso que foi com a ajuda do professor Elison, das conversas informais com a Josi e a Tati, e também de uma inquietação que me corrói por dentro, que decidi por esta pesquisa. Além disso, em todo o percurso tive a honra de conhecer as/os autoras/es decoloniais, que me ajudam a pensar nas histórias menores, numa concepção contra hegemônica. Estava movida pelo entusiasmo em me despir, de me desprender de valores e de preconceitos que estão tão impregnados em nosso corpo e em nossa estrutura social. Considero-me uma buscadora de olhares outros para continuar pesquisando. Na disciplina isolada que fiz, antes de me tornar estudante regular, saía de Araranguá às 4h da manhã para participar da aula do professor Elison Paim, e voltava sentindo-me muito provocada e instigada. Até então ainda não tinha o Davi. Em todas as minhas reflexões, percebia que todos aqueles debates me afetavam demais. Nunca esqueço de quando fui entrar na sala do professor Elison, e ele estava recitando a poesia do Manoel de Barros, “O apanhador de desperdícios”. Esse poema acompanha-me desde minha infância, quando meu pai o recitava para minhas/eus irmãs/os e para mim. Também na época da graduação e sempre que eu o lia, era uma inspiração. Quando escutei-o novamente na voz do professor Elison, um sentimento de pertencimento tomou conta do meu ser. Ali, tive a certeza de que estava trilhando um caminho que tem tudo a ver com as minhas aspirações e anseios. Em minha escrita, atravessa-me uma vontade indomável de driblar o excesso de estímulos e as fantasmagorias que permeiam nosso cotidiano, que nos iludem e nos afastam do que realmente importa. O grande esfacelamento nas relações e nos silenciamentos me atormentam, porque nesse processo são desconsideradas outras vozes, outras concepções de mundo e de vida, inclusive no nosso ambiente educacional. Em toda a minha trajetória, sempre me inquietou sair do automatismo da ação para me atentar às novas rupturas, a fim de trazer outros elementos e questionamentos para tentar desestabilizar, deslocar e produzir outros efeitos que resistam à concepção do nosso atual sistema neoliberal. Todos nós narramos e o que me inspirou demais foi quando o professor nos encorajou a construir histórias em fragmentos, não lineares e não cronológicas, as mônadas. Em minha pesquisa no mestrado, abordei a escrita benjaminiana, que não se submete à imposição de nenhum sistema fechado, ou seja, nela há a possibilidade de se ter sempre uma reflexão crítica, devido à sua rebeldia constitutiva. O que interessa na escrita do filósofo é a sua não linearidade e a possibilidadede ir e vir. Assim sendo, quando reflito sobre a escrita benjaminiana, há a possibilidade de tornar o conhecimento aberto a novos olhares, considerá-lo mais plural e receptivo às novas perspectivas, vem a possibilidade de nos desvencilharmos de certas verdades e experimentarmos outras alternativas, diferentes das quais estávamos habituados. Para Benjamin há inúmeras histórias simultâneas e é a partir do presente que escolhemos o passado que nos interessa, podendo optar por uma outra história. Por exemplo, eu poderia investigar outras inúmeras temáticas no âmbito educacional e, no entanto, resolvi rememorar as vozes das auxiliares de serviços gerais da escola em que trabalho. Foi uma escolha, por acreditar numa outra concepção de valores e epistemes. Assim, encontro na metodologia da mônada benjaminiana a possibilidade de, a partir do momento presente, reconstruir uma memória repleta de complexidades e riquezas capaz de mudar permanentemente o passado, pois, para Benjamin, não é o passado que determina o presente, mas sim o presente que escolhe o passado que lhe interessa. E foi nessa perspectiva que o professor Elison nos motivou para uma escrita que oportuniza a experiência de “liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa para além do que vimos sendo” (LARROSA, 2014, p. 9). Em nossos encontros do Grupo de Pesquisas, Patrimônio, Memória e Educação (PAMEDUC/UFSC), nas aulas com professor Elison e nos seminários com a professora Cyntia Simioni França, uma constante reflexão era feita sobre a mônada benjaminiana e essa metodologia avessa ao convencional. É importante enfatizar, nesse Preâmbulo, que essa perspectiva metodológica da mônada, repleta de relampejares, compõe o estilo do pensamento benjaminiano que nos remete a pensar num mosaico, e conseguimos perceber o quanto a escrita em Benjamin se constrói nesta mistura do ir e do vir, imersa em totalidades que se estilhaçam e em seguida se recompõem. É, justamente, nesse exemplo da escrita benjaminiana que o professor Elison nos estimula a escrever, e para mim é empolgante demais esse estilo que se mostra repleto de fragmentos que contemplam uma perspectiva preocupada com o todo social e com o acolhimento de todas as possibilidades que uma época pode conter. Portanto, no decorrer desta tese de doutorado, visitando as memórias das auxiliares de serviços gerais da escola em que trabalho, quero tentar me inspirar na escrita benjaminiana e na autonomia que o professor Elison nos concedeu para tal. E, em meio à agitação de um cotidiano escolar, ao rememorar essas histórias, enxergo uma brecha para apanhar e detectar as sensibilidades que infelizmente estão tão adormecidas. Meu desejo é que esta pesquisa contribua para uma outra postura epistemológica e também para o grande desafio que é escrever com elas, as auxiliares de serviços gerais, pontuando seus saberes, angústias e anseios a partir do lugar e do tempo delas. Sinto-me honrada com a possibilidade de oportunizar, nesta pesquisa, que as auxiliares de serviços gerais se expressem e rememorem seus passados que estão muito vivos no presente, em seus corpos e narrações, enriquecidas de memórias e experiências. Coloco-me, humildemente, como uma apanhadora de sensibilidades para trazer à tona os relampejares que essas mulheres me trouxerem, esse passado que lateja no presente. Sinto paixão em percorrer outros caminhos, fora do sistemático, racional e pré-estabelecido. Esclareço também que tenho privilégios por ser mulher branca, nascida numa família que pode dar total apoio, não necessariamente sou uma representação das minhas lutas, mas com certeza elas representam os meus valores e princípios. Quando a definição sobre o lado da trincheira for além da motivação individual, teremos uma verdadeira revolução. RESUMO Esta tese tem como objetivo rememorar as narrativas de quatro mulheres, brancas, auxiliares de serviços gerais da Escola de Educação Básica Professora Neusa Ostetto Cardoso do município de Araranguá, Bairro Polícia Rodoviária, em Santa Catarina. Escutá-las a partir do universo que as abrigam, suas particularidades de serem mulheres, auxiliares de serviços gerais numa escola estadual de Santa Catarina, bem como identificar suas singularidades, é uma maneira de disseminar outra postura epistemológica para compreendermos de que forma as narrativas nos revelam o contexto social, cultural e histórico de uma época. Trata-se de romper com o silenciamento que estas vozes sofrem no âmbito educacional e assim evidenciar o valor de suas participações nos processos educativos. Como podemos nos decolonizar e encontrar brechas para fazer emergir modos outros de ser, saber, fazer, sentir e viver, decolonizando nosso tempo? De que formas podemos evidenciá-las enquanto sujeitos sociais que participam efetivamente do processo educacional em espaços informais da escola? Quais problemáticas atuais podemos extrair das sutilezas de suas narrativas? O estudo se desenvolveu a partir das narrativas orais, coletadas em entrevistas e transcritas para a posterior construção das mônadas, intercaladas com o estudo das fontes bibliográficas e documentais. A metodologia fundamenta-se na concepção de narrativa, experiência e memória, organizada na proposta das mônadas, ideia extraída do pensamento de Walter Benjamin, mas também motivada por leituras decoloniais. Estabeço aproximações com os textos do filósodo berlinense e seus intérpretes, tecendo relações com as/os autoras/es latinamericanos, como Catherine Walsh (2013), a partir da conceitualização das brechas (grietas), Aníbal Quijano (2007) com os conceitos de colonialidade do poder, do ser e do saber, e também com Santiago Castro Gómez (2007), a partir da sua análise sobre La Hybrys del punto cero. Somam-se também as contribuições de Boaventura de Souza Santos (2010) ao propor uma ecologia de saberes associada à transdisciplinaridade, e as poesias de Manuel Barros (2018), o poeta atento às desimportâncias. Interessa, nesta pesquisa, a construção de uma história aberta, capaz desestabilizar as estruturas de poder que se reproduzem no espaço escolar. O texto está organizado em quatro momentos. Na introdução, desenvolvo como se deu o processo da pesquisa, com a apresentação de um breve memorial. No primeiro capítulo introduzo a escola e as narradoras desta tese, explicitando a proposta das mônadas, para em seguida articular os conceitos benjaminianos e as leituras da decolonialidade a respeito da rememoração. No segundo capítulo, atento-me as passagens dos corredores da escola onde nossas trocas acontecem, e no terceiro me atenho ao estudo das correspondências tecidas entre os poemas de Manuel de Barros, a decolonialidade e a perspectiva benjaminiana para, no capítulo final, intervir em favor de uma escrita ensaística. Consideramos que a ação de dialogar com suas memórias e experiências desvelou a necessidade de melhorar suas condições de trabalho e de valorização no espaço escolar. Além disso, no processo de rememoração de pesquisa estabelecemos uma outra qualidade temporal, em comparação ao tempo corrido imposto pela dinâmica de funcionamento da escola. Um dos objetivos iniciais foi o de compreender a importância das auxiliares de serviços gerais para a educação, e ao final concluímos que elas mesmas se revigoraram em sua autoestima, chegando ao desfecho de que é pela linguagem, e em especial, pela narração que nossas relações se intensificam e adquirem sentido. Palavras-chave: Educação,Auxiliares de serviços gerais escolares; Memórias; Experiências; Decolonialidade. ABSTRACT This pdh aims to dialogue with the narratives of four white women, general service assistants at the Basic Education School Teacher Neusa Ostetto Cardoso in the city of Araranguá, Polícia Rodoviária district, in Santa Catarina. Listening to them from their universe, their particularities of being women, general service assistants in a state school in Santa Catarina, as well as identifying their singularities, is a way of disseminating another epistemological posture to understand how the narratives reveals the social, cultural and historical context that an epoch can contain. It’s about breaking with the silencing that these voices suffer in the educational sphere and thus highlighting the value of their participation in educational processes. How can we decolonize ourselves and find gaps to make other ways of being, knowing, doing, feeling and living emerge, decolonizing our time? In what ways can we highlight them as social subjects who effectively participate in the educational process in informal spaces of the school? What current issues can we extract from the subtleties of their narratives? The study was developed from oral narratives, collected in interviews and transcribed for the subsequent construction of monads, interspersed with the study of bibliographic and documentary sources. The methodology is based on the conception of narrative, experience and memory, organized in the proposal of the monads, an idea extracted from Walter Benjamin's thought, but also motivated by decolonial readings. I establish approximations with the texts of the Berlin philosopher and their interpreters, weaving relationships with Latin American authors, such as Catherine Walsh (2013), from the conceptualization of gaps (grietas), Aníbal Quijano (2007) with the concepts of coloniality of power, being and knowledge, and also with Santiago Castro Gómez (2007), based on his analysis of La Hybrys del punto cero. Added to this are the contributions of Boaventura de Souza Santos (2010) when proposing an ecology of knowledge associated with transdisciplinarity, and the poetry of Manuel Barros (2018), the poet attentive to unimportance. This research is interested in the construction of an open story, capable of destabilizing the power structures that are reproduced in the school space. The text is organized into four moments. In the introduction, I develop how the research process took place, with the presentation of a brief memorial. In the first chapter, I introduce the school and the narrators of this thesis, explaining the proposal of the monads, to then articulate the Benjaminian concepts and the readings of decoloniality regarding remembrance. In the second chapter, I pay attention to the passages in the school corridors where our exchanges take place, and in the third I focus on the study of the correspondences woven between Manuel de Barros' poems, decoloniality and the Benjaminian perspective, in order, in the final chapter, to intervene in favor of an essay writing. We believe that the action of dialoguing with their memories and experiences unveiled the need to improve their working conditions and value them in the school environment. In addition, in the research recall process, we establish another temporal quality, in comparison to the elapsed time imposed by the school's functioning dynamics. One of the initial objectives was to understand the importance of general service assistants for education, and in the end we concluded that they themselves were reinvigorated in their self-esteem, reaching the conclusion that it is through language, and in particular, through narration that our relationships become they intensify and acquire meaning. Keywords: Education; General school services assistant; Memories; Decoloniality; Experience. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Fotografia Maria Cecília e Euza. ............................................................... 34 Figura 2 – Fotografia de Maria Cecília e Maria Jucélia (Nega). ................................. 35 Figura 3 – Fotografia de Leonir e Maria Cecília. ........................................................ 35 Figura 4 – Fotografia de Cláudia e Maria Cecília. ...................................................... 36 Figura 5 – Mapas com a localização da cidade de Araranguá/SC............................... 34 Figura 6 – Vista lateral da Unidade Escolar. ............................................................... 37 Figura 7 – Ginásio de esportes. ................................................................................... 38 Figura 8 – Sala de aula. ............................................................................................... 41 Figura 9 – Cozinha.......................................................................................................40 Figura 10 – Cozinha Rizotolândia. .............................................................................. 41 Figura 11 – Corredores. ............................................................................................... 42 Figura 12 – Salvadora de sonhos, de vidas. ................................................................. 51 Figura 13 – Para nos reinventarmos com os ecos de vozes outras... ........................... 51 Figura 14 – Corredores: fragmentos de experiências. ................................................. 65 Figura 15 – Amanhecer na escola................................................................................ 87 Figura 16 – Espaço de acolhidas. ................................................................................ 91 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACT - Admissão de professores em Caráter Temporário APP - Associação de Pais e Professores CAp/UFRN - Núcleo de Educação da Infância CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEPSH/UFSC - Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos CLT - Consolidação das Leis do Trabalho GRES - Grêmio Recreativo Escola de Samba IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFC - Instituto Federal Catarinense ISCED-Huíla - Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla OMS - Organização Mundial da Saúde PAMEDUC - Grupo de pesquisa Patrimônio, memória e educação PPGE - Programa de Pós-graduação em Educação PPGICH - Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas PPP - Projeto Político Pedagógico SHE - Sociologia e História da Educação UEL - Universidade Estadual de Londrina UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina UNESC - Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESPAR - Universidade Estadual do Paraná UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 24 1.1 DECOLONIZAR PARA HUMANIZAR: PRODUZINDO ENRAIZAMENTOS MAIS PROFUNDOS ........................................................................................ 24 2CAPÍTULO 1: ELAS SÃO OS PILARES DAS ESTRUTURAS NAS ESCOLAS ......................................................................................................... 34 2.1 CIDADE DAS AVENIDAS: PARAÍSO DO EXTREMO SUL CATARINENSE ........................................................................................................................... 34 2.2 CONHECENDO NOSSA ESCOLA E AS NARRADORAS DA PESQUISA 36 2.3 FRAGMENTOS E NARRATIVAS: O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS MÔNADAS ....................................................................................................... 44 2.4 AUXILIARES DE SERVIÇOS GERAIS: EXPERIÊNCIAS ENTRETECIDAS ........................................................................................................................... 50 3 CAPÍTULO 2: DESFAZER O NORMAL DEVE SER A NORMA.............61 3.1 ESCAVANDO MEMÓRIAS ............................................................................ 61 3.2 NOS CORREDORES DA ESCOLA: POR ENTRE MEMÓRIAS E BRECHAS ........................................................................................................................... 63 3.3 RELAMPEJARES E DEVANEIOS: A RELAÇÃO COM AS POESIAS DE MANOEL DE BARROS E A TEMÁTICA ...................................................... 87 3.4 NO ÍNFIMO HÁ AS GRANDEZAS ................................................................ 93 4 CAPÍTULO 3: CONTRIBUIÇÕES BENJAMINIANAS ACERCA DA DECOLONIALIDADE ................................................................................. 101 4.1 PRATICANDO DESPRENDIMENTOS: LEITURAS QUE DESCORTINAM A COLONIALIDADE..................................................................................... 102 4.2 RELAÇÃO MEMÓRIA EM WALTER BENJAMIN E MEMÓRIA EM CATHERINE WALSH ................................................................................... 119 4.3 BENJAMIN E BOAVENTURA ..................................................................... 121 4.4 POR QUE O DIÁLOGO ENTRE BENJAMIN E OS DECOLONIAIS? ..........................................................................................................................126 5 CAPÍTULO 4: PARTILHANDO MEMÓRIAS ......................................... 136 5.1 PARTILHAS A CONTRAPELO PARA TRANSVER O MUNDO .............. 136 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 148 REFERÊNCIAS ............................................................................................. 153 ANEXO A – APRECIAÇÃO DO PROFESSOR NILTON MULLET PEREIRA SOBRE O DESFILE DA MANGUEIRA ................................. 160 ANEXO B – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA COM SERES HUMANOS APROVADO ............................................................... 162 24 1 INTRODUÇÃO 1.1. Decolonizar para humanizar: produzindo enraizamentos mais profundos Durante o mestrado em Educação, por meio da disciplina “O ensaio como forma em Walter Benjamin”, entrei em contato com os escritos deste autor e escrevi a minha dissertação analisando suas obras, principalmente em relação às preocupações e às consequências da história linear. No doutorado, segui me aprofundando nos estudos benjaminianos, mas também estabeleci contato com as/os autoras/es decoloniais, fazendo uma constante ponte dos diálogos entre essas concepções de mundo. Nesses diálogos, me vi instigada pelos poemas de Manoel de Barros. Eu preciso de poesia o tempo todo. Desse modo, escrevo sob a influência dessas três abordagens no despertar de resiliência, coexistência e esperança no ínfimo, naquilo que no dia a dia se encontra silenciado. Um despertar diário que me motiva a agir e a pensar sobre a maneira pela qual o mundo está caminhando. Por isso, a intenção central desta pesquisa consiste em trazer à tona as memórias, os saberes e as experiências das auxiliares de serviços gerais escolares, a fim de mostrar uma brecha para nos decolonizarmos e consolidarmos uma relação mais profunda de experiência e de narratividade a partir das teorias das/os autoras/es já mencionadas/os.5 Não numa perspectiva metodológica, instrumental e doutrinária, mas no aspecto associado a um experienciar que possibilite a abertura e coexistência de saberes que provenham dessas narrativas, dos saberes cotidianos dessas mulheres. Dessa maneira, para subsidiar esse raciocínio, será considerado no decorrer da tese os pensamentos de autoras/es decoloniais, tais como Catherine Walsh (2013, 2020), Olgária Matos (2007), Boaventura de Sousa Santos (2010) e Santiago Castro-Gómez (2005), dentre outras/os autoras/es como Benjamin, além da motivação já mencionada nos poemas barrianos. Nessa perspectiva, o questionamento que suleou6 a tese é: de que maneira podemos nos decolonizar e encontrar brechas para fazer emergir modos outros de ser, saber, fazer, sentir, viver, inclusive decolonizando nosso tempo? 5 Ao longo do texto, optei por não distinguir conhecimento de saberes, partindo do pressuposto de que esta diferenciação coaduna com a colonialidade do saber e do poder, problematizadas nesta tese. Assim, ao me referir ao conhecimento institucionalizado, utilizo como complemento o adjetivo “científico” no intuito de destacar o perfil racionalista e empirista que consiste em sua produção. 6 Opto por usar o termo sulear em oposição a nortear, fazendo um giro decolonial e subvertendo o norte eurocêntrico como modelo universal. Já o uso do termo brechas (grietas) refere-se às provocações de Catherine Walsh (2013) no seu empenho de evidênciar a potência das prátocas de resistências que ocasionam rupturas nas estruturas dominantes da odem moderna/colonial. 25 A presente investigação se caracteriza por ser uma pesquisa-ação participativa, no qual o trabalho com as práticas de memória e narrativas são elementos-chave para apresentar essas vozes que resistem ao apagamento de suas experiências. Os procedimentos metodológicos fundamentam-se na categoria conceitual de mônada benjaminiana, pressupondo a construção das mônadas a partir das entrevistas e do diálogo com as memórias e experiências com o vivido dessas mulheres. Benjamin escreve que na mônada há a imagem do mundo, por isso tentarei explicar nossa intenção em trabalhar com mônadas. A potência e transgressão que as mônadas nos trazem é também estarmos atentos as nossas reminiscências, por exemplo, quando escuto as auxiliares de serviços gerais me narrando suas experiências, me despertam imagens da minha infância, principalmente, me atravessa a imagem do meu pai me presenteando com uma boneca preta e essa boneca que era a minha preferida traz o porquê dessa minha intenção de pesquisa. Nesse sentido, essa imagem seria uma parte-todo da minha infância, que nesse momento rememoro e essa imagem implica num por vir potente de futuro e possibilidades. Nas mônadas há essa dialética com nossas reminiscências, inclusive sobre o porque a escolhemos e construímos algumas e deixamos de lado outras. Por exemplo, as auxiliares me narraram muitas coisas, eu escolhi algumas narrativas para produzir as mônadas numa relação que está emaranhada com minha posição politica, posição de vida, posição também arraigada nas minhas reminiscências da infância. São fragmentos de histórias que tem a potência de contar sobre um todo. São centelhas de sentido que possuem essa ligação com o universal. Consigo eu mesma entender melhor e explicar as minhas leitoras quando visualizamos um mosaico. No mosaico, há aquelas miniaturas finitas que carregam em si um todo universal gerando uma pluralidade de relações dialéticas, uma multiplicidade na unidade. Nesta perspectiva, o coração desta tese está situadona potência da mônada em revelar uma singularidade das experiências das auxiliares articulando com o universal com minhas reminiscências, meu olhar subjetivo, minhas escolhas e de tantos outros sujeitos numa perspectiva que se torna coletiva. As mônadas surgem e resurgem nesta escrita como imagens que lampejam. Relampejar, numa perspectiva benjaminiana traduz-se em uma imagem, um pensamento que se constrói como luz na metáfora do conhecimento. Aparece como um relâmpago, um lampejo, uma faísca e dali brota uma força tal que cada imagem, pensamento que nos cintila se articula historicamente interferindo no presente. Assim, nos apropriamos de uma reminiscência, tal como ela nos relampeja, podendo atingir uma profundidade responsável por reconsiderar esse lampejo em seus “vários estratos de sua significação”. 26 Segundo Benjamin (1984, p. 51): “O valor desses fragmentos de pensamento é tanto maior quanto menor sua relação imediata com a concepção básica que lhes corresponde”. Desse modo, procuro, nesta pesquisa, atentar para meus relampejares enquanto escrevo e para as sutilezas das falas das narradoras no intuito de detectar esses vestígios cheios de potência. Além disso, me inspiro na escrita benjaminiana que ao contrário da lógica do texto linear que anseia acrescentar elementos novos, a escrita de Benjamin se distingue por “interrupções” e pelo “recomeço perpétuo”. A repetição das mesmas coisas em contextos diferentes não é mera repetição, o filósofo considera os “vários estratos de sua significação”. Como forma de gerar as narrativas, optei pela metodologia da história oral, processo que explicito durante o segundo tópico do primeiro capítulo. Nas entrevistas, muito disseram de si, de seus sonhos e de angústias. Para essa abertura, tivemos que pensar nossa metodologia de entrevistas e buscar estratégias outras na pesquisa em campo. Dentre elas, destaca-se a utilização de roteiros semi-estruturados de entrevistas, que permitiram às narradoras escolher aquilo que desejavam ou não partilhar. Nesse sentido, como pesquisadora coloquei-me na posição de ouvinte, interferindo minimamente na orientação do diálogo. Além disso, no que tange as transcrições das narrativas, guiei-me por determinadas orientações de Portelli (1994, p. 27) partindo do pressuposto de que transcrever implica em transformar objetos auditivos em visuais, acarretando, inveitávelmente, em mudanças na sua estrutura. Desse modo, durante a transcrição deu-se preferência à pontuação segundo a entonação, os silenciamentos e as pausas realizadas pelas narradoras, em detrimento das normas ortográficas. No entanto, retirei da sua textualidade os vícios de linguagem e as expressões repetidas a fim de destacar ideias centrais transmitidas na mônada. Desta forma, distancio-me da história oral quando descarto a noção de fontes narrativas para, a partir de Benjamin (1987b, p. 239), compreender que a memória não deva ser reduzida à propriedade das fontes (“como mero instrumento de exploração do passado”), pois ela configura o cenário para a reelaboração das experiências. Antes de começar a coleta das narrativas, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPSH/UFSC), seguindo as exigências e as prescrições orientadas pelo órgão. Apresentados os objetivos, a pesquisadora e o pesquisador responsáveis, bem como as condições para a realização da mesma, a autorização foi concedida no dia vinte e sete de novembro de 2019, quando se deu início ao agendamento dos encontros. 27 As conversas com Célia, Leonir, Euza e Maria Jucélia ocorreram inicialmente na escola, local de trabalho, porém nessas primeiras ocasiões as narradoras não conseguiram desabrochar em suas falas. Resolvemos fazer um encontro em casa, também localizada na cidade de Araranguá7, onde estiveram presentes no dia dois de dezembro de 2019, Maria Cecília Paladini Piazza, como anfitriã e pesquisadora, e as entrevistadas Maria Jucélia e Euza. A dinâmica funcionou bem na medida em que dispomos de uma mesa farta e mais privacidade, a conversa fluiu com leveza. Desse modo, ainda que seguindo um roteiro previamente estruturado, as entrevistas foram conduzidas em tom de diálogo e duraram a tarde toda, ora falavam todas de uma vez, pois estavam ávidas por narrar e serem ouvidas. Tendo em vista o resultado positivo, decidimos realizar as entrevistas em duplas. Já com a Célia e a Leonir fizemos inicialmente na escola, havíamos marcado para abril, mas devido à pandemia do COVID-19 tivemos que cancelar. Seguindo os protocolos de distanciamento social orientados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nos reunimos em um espaço público no dia 19 de outubro de 2020. Após a gravação das entrevistas em áudio foi feito o processo de transcrição para posterior montagem das narrativas. Na tentativa de captar a potencialidade de significados nesse cotidiano, em todas as entrevistas, o central foi deixar a conversa fluir para selecionar depois, e individualmente, as narrativas e poder criar as mônadas. Nesse sentido, as mônadas, orientam-me como aporte metodológico e enquanto pesquisadora percebo as miudezas/grandezas do que elas me narram. Nas suas falas, nos detalhes mais imperceptíveis, tenho a oportunidade de recriar a mônada e a partir dela problematizar a colonialidade do ser e do saber, que abordo com maior profundidade ao longo do segundo capítulo. Trata-se de um duplo movimento. Em primeiro lugar, flagro o relampejar da mônada presente na narrativa para, em seguida, recriar sua potência com base nas reminiscências da minha infância. Este segundo movimento, no entanto, mantém-se em aberto, pois a cada nova leitura encontro elementos distintos que me permitem ampliar a produção de conhecimento a partir das narrativas. Além disso, detecto a participação dessas mulheres para a educação, compreendendo-as também como educadoras. As leituras das mônadas me permitem recorrer a uma infinidade de sentidos e coexistência de realidades e, nessa diversidade, escolho trazer à tona de que maneira as 7 De acordo com as informações disponíveis no site da prefeitura Araranguá pertence a Microrregião do Extremo Sul Catarinense e possui, 62.308 habitantes. A área urbana do município é de 759 km² enquanto a área rural ocupa 2.135 km², totalizando 303.91 km², para saber mais acessar: <https://www.ararangua.sc.gov.br/>. Acesso: em 20 jul. 2020. https://www.ararangua.sc.gov.br/ 28 auxiliares de serviços gerais escolares agregam para nossa educação. Trabalhar com mônadas é uma ferramenta de conhecimento em ciências humanas que permite recriarmos formas de produções textuais que inspiram a busca por outros sentidos nas experiências que nos rodeiam. Aqui, sobretudo, experiências trazidas em memórias escolares e acadêmicas. As mônadas nos propiciam detectar no miúdo e nos relampejares das narrativas um terreno fértil para vislumbrar o todo social. Não se trata apenas de tirar do esquecimento a história dos vencidos, pois nas mônadas, reside a possibilidade de trazer mudanças na estrutura do conhecimento quando se mostra avessa ao conhecimento hegemônico. Por meio das mônadas perpetuamos as experiências que nos cercam e descobrimos que para as memórias o tempo não passa, elas fazem emergir aquilo que estava calado nas profundezas, rompe com hierarquias e nos impregna de sensibilidades para nos lembrar do que realmente importa, ser gente, estar com gentes, relacionar, se curar, rir, chorar e trazer outras epistemologias, que envolvam memórias particulares, sociais e subterrâneas. Além disso, trabalho nesta pesquisa com as críticas de Benjamin, das/os decoloniais e de Manoel de Barros em relação ao progresso e à colonialidade da sociedade, buscando por meio das narrativas das auxiliares de serviços gerais refletirmos em conjunto sobre os conceitos de experiência,narratividade, história e colonialidade com o objetivo de transvermos o mundo na possibilidade da coexistência de saberes outros. Colonialidade do poder é um conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano em 1989, mas que assume um lugar de destaque nos estudos decoloniais em conjunto de outras/os autoras/es. Essa formulação expõe que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não acabaram com a destruição do colonialismo. As zonas periféricas mantêm-se numa situação colonial, mesmo que, já não estejam sujeitas a uma administração colonial. A modernidade está associada à experiência colonial que se reproduz pelo poder, pelo saber e pelo ser. Nesse entendimento, a tese que defendo é que podemos sim nos decolonizar, nos humanizar, criar mais afetos e experiências plenas pautadas na vida humana. Trago a possibilidade de estarmos mais abertas/os e atentas/os às miudezas do nosso dia a dia para criarmos formas outras de viver. Sou contra modelos de vida fechados, acredito na superação do nosso atual sistema por meio da luta por valorização de fazeres, saberes e viveres outros. Por isso, a importância de forjarmos um local de escuta atenta à essas auxiliares de serviços gerais para enfatizar suas experiências. Essa é uma possibilidade de produção de conhecimento em ciências humanas que trabalha com narrativas para revelar percursos comprometidos com as justiças cognitivas e epistemológicas. O pressuposto desta tese é 29 também a possibilidade de produzir conhecimento histórico-educacional numa lógica decolonial, a fim de fortalecer e valorizar suas presenças na nossa escola, permitindo a revelação das potencialidades educativas dessas mulheres. Dialogo, então, as narrativas orais de quatro mulheres que compõem o grupo das auxiliares de serviços gerais, seus diferentes saberes, fazeres e experiências educativas não formalizadas. Na escola, espaço que apresento com mais elementos no primeiro capítulo, convivemos juntas com muito afeto, com choros, com olhares. Todos os dias conversamos, nos abraçamos, damos gargalhadas. São histórias, memórias, trocas e experiências que significam muito para mim. O dia a dia passa numa prática utilitarista, numa colonialidade desumana, mas estamos contornando obstáculos e encontrando brechas para estarmos na contramão da racionalidade técnica. Então, como tratá-las enquanto sujeitas/os sociais que participam efetivamente de todo processo educacional em espaços informais da escola? Quais problemáticas atuais podemos escavar nas sutilezas de suas narrativas? Durante esta pesquisa, dialoguei com narrativas orais das auxiliares de serviços gerais escolares trazendo questões cotidianas e de suas memórias. Elas narram constantes angústias relacionadas a desvalorização. Ao mesmo tempo, em suas narrativas, valorizam seu trabalho com as/os estudantes e o quanto gostam e prezam por elas/es. Consideram-se mães, conselheiras, amigas. Vivenciam experiências do modo de vida e de trabalho enquanto auxiliares de serviços gerais escolares. No Brasil, mesmo diante da brutalidade e da invisibilidade social que enfrentamos cotidianamente, queremos mobilizar as/os leitoras/es desta tese para que possam estar atentas/os a outras melodias de cantos maiores de histórias menores.8 Maiores no sentido de importância para se perceber por meio do vivido, das experiências passadas na busca por fortalecer os saberes plurais constituídos e construídos no cotidiano, e em rede de partilhas numa lógica aquém dos ponteiros do relógio da modernidade no capitalismo. Tocada por essas sensações e sentimentos, no meu processo de escrita, inspiro-me na narrativa benjaminiana na busca por formas outras, compatíveis com a história aberta. Defendo aqui uma escrita decolonial como uma brecha (grieta) para subverter nossa racionalidade instrumental tão pautada na “utilidade” do conhecimento científico (WALSH, 8 Por histórias menores fazemos referência à análise de Nilton Pereira (2017), que as contrasta com a existência de uma História Maior, por sua vez, marcada pela historiografia estrutural e linear, que descarta experiências outras para a compreensão do contexto histórico, em detrimento de uma narrativa oficial, encerrada e totalizante. 30 2013).9 Nesse sentido, tento escrever de modo mais inventivo, apostando no ensaio como forma de escrita. Espraiado por todos os capítulos abordo a força do fetiche pelas mercadorias e fantasmagorias10 em relação à ilusão do progresso capitalista, argumentando sobre as consequências da nossa noção de utilidade, nossa noção de tempo, a carência de modos outros de vivermos e nos relacionarmos, o que acaba por deixarmos esvaecer a nossa humanidade, o fato de sermos gente. Ancorada nas/os decoloniais, em Benjamin e nos poemas barrianos, faço críticas às concepções racionalistas que nos afastam cada vez mais da vida humana, dos afetos e da coletividade. Desta feita, pauto-me sobre o que está arraigado em mim desde a infância e que agora com mais maturidade enxergo: esse inconformismo que tenho sobre a colonialidade e a hierarquia de saberes e fazeres em que vivemos. Além disso, escrevo sobre a colonialidade do tempo e da impregnação desse nosso ritmo acelerado, que nos isola cada vez mais num individualismo doentio. Por outro lado, ao mesmo tempo em que discorro cada um dos capítulos me vejo emaranhada por essas indignações. Com isso, procuro construir brechas (grietas) em meio às ruinas e, na rememoração das experiências de Leonir, Euza, Nega e Claúdia tecemos alternativas mais relevantes e embasadas no bem comum, no altruísmo, na generosidade, assim como na coexistência de saberes e fazeres (WALSH, 2013). Quando opto pelo subtítulo “Produzindo enraizamentos mais profundos” nesta Introdução, me flagro pensando na precarização e no esvaziamento das relações da contemporaneidade que já foram diagnosticadas por Benjamin desde a primeira guerra mundial (1914-1918), quando os combatentes retornavam dos campos de combate emudecidos pelas atrocidades que viviam. De lá para cá, temos a sensação de que o domínio da racionalidade técnica, a contração do tempo e as fantasmagorias impossibilitam o desenvolvimento da imaginação e da recordação. As relações tendem a ser diluídas, promovem-se as novidades mercadológicas enquanto atrofia-se a arte de narrar. Benjamin (1994, p. 197-198) comenta que: 9 Catherine Walsh, em uma conferência online realizada em 17 de junho de 2020 para o Seminario de formación permanente en Pensamiento Crítico, definiu grietas como seu lugar de enunciação, localização a partir da qual sente, pensa e atua. Além disso, pontua a sua não identificação como educadora, uma vez que a educação institucionalizada cultiva a matriz de poder. Desta forma, identifica-se como semeadora de insurgências ou agrietadora, na medida em que trabalha em profl de criar fissuras no sistema vigente (capitalista/colonial, racista, machista, patriarcal e heteronormativo). 10 A partir do conceito de fantasmagoria Benjamin percebe a sutil intenção por trás das mercadorias, conduzindo as pessoas a uma visão fantasmagórica da realidade, ou seja, a fantasmagoria como uma das principais características da modernidade que leva o homem a criar uma imagem irreal do mundo, tanto para as relações com outros seres humanos, como para consigo mesmo. Uma realidade entorpecida por meio do mercado, no escritório, na divisão da vida pública e privada, na inversão do valor de uso das coisas, pelo valor de troca. 31 É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Saliento que,apesar de as relações sociais terem sido esvaziadas e estarem mais pobres de “experiências comunicáveis” podemos sim encontrar saídas. Por isso, convido as/os leitoras/es a percorrerem os espaços da escola na busca coletiva por brechas (grietas), capazes de florir novas visões de mundo, enquanto somos guiados pelas histórias e memórias da Nega, Leonir, Euza e Claúdia (WALSH, 2013). Nesse entendimento, a experiência a qual o autor se refere e que proponho nesta pesquisa traduz-se em mobilizar as memórias de Nega, Leonir, Euza e Claúdia, atravessadas por sensibilidades plurais, à luz das tensões sociais, disputas simbólicas e conflitos de interesses intrínsecos a modernidade. E com essa possibilidade, construirmos uma associação baseada em outra lógica de conhecimento. Significa percorrermos em coletivo outras posturas perante a vida, que vão ao encontro das epistemologias decoloniais. Escutá-las a partir do universo que as abrigam, suas particularidades de serem mulheres, brancas, auxiliares de serviços gerais numa escola estadual de Santa Catarina, bem como identificar suas singularidades e identidades, é uma forma de disseminar outra postura epistemológica para compreendermos de que forma as narrativas nos revelam matizes plurais de uma época. Procuro nesta tese problematizar as hierarquias entre conhecimentos que (in)visibilizaram saberes, culturas, epistemologias, modos de ser e viver, subalternizando sujeitos e espaços. As contribuições teóricas de Benjamin, na interface com as/os autoras/es decoloniais, são fundamentais para pensar que outros modos de produção de conhecimento são possíveis. Desta forma, mobilizo os conceitos de colonialidade do poder, do ser e do saber, associadas à ideia da hybris del punto cero, em busca da construção histórica dessas violências que estruturam nossa sociedade e impulsionam a hierarquização de saberes. Por outro lado, procuro em Benjamin, Manuel de Barros e na perspectiva de Catherine Walsh brechas para superar as condições vigentes, uma vez que Benjamin e as/os decoloniais questionam e desestabilizam a hierarquização de saberes e o esfacelamento das relações humanas, dos conhecimentos ancestrais, da marginalização de determinados saberes. Assim, no primeiro capítulo, situo as/os leitoras/ores ao apresentar o município de Aranguá e adentro os muros da Escola de Educação Básica Professora Neusa Ostetto Cardoso para iniciar o diálogo com as narradoras. Ao final do capítulo, argumento em favor da opção monadológica para fundamentar os caminhos trilhados nesta tese e dialogo também com 32 trabalhos de interesses afins, ressaltando a urgência de pesquisas que se ocupem desta temática. No segundo capítulo, Desfazer o normal deve ser a norma, discorro sobre o conceito de experiência e narratividade ao retomar os textos de Benjamin, como Experiência e pobreza (1987, publicado em 1933) e O Narrador (1994, publicado em 1936), impulsionada pelos meus relampejares a partir do diálogo com as/os decoloniais e os poemas barrianos. Coloco-me como uma escavadora de passados, uma decolonizadora de saberes e de viveres trazendo minha relação com as auxiliares de serviços gerais escolares, principalmente rememorando a imagem dos corredores da escola onde nossas trocas acontecem. Também questiono a colonialidade do nosso tempo, referenciando a filósofa e professora Olgária Matos (2007), o filósofo Santiago Castro-Gómez (2005; 2007), dentre outras/os. Busco dialogar com o poeta Manoel de Barros a fim de demonstrar sua relação com as ideias da decolonialidade e de Benjamin. No decorrer deste capítulo, também problematizo o conceito de Castro-Gómez (2007) sobre La hybris del punto cero e a relação com o conceito de história em Walter Benjamin, abordando a preocupação desses autores em relação à nossa herança colonial e linear da história, favorecendo a perspectiva dos vencedores. Projeto entoar as leituras teóricas reunindo-as às vozes da escola de samba carioca Mangueira, em especial, as representadas no samba enredo de 2019 - Histórias Para Ninar Gente Grande. Nele, descrevo as sensações causadas pela experiência que tive na Marques de Sapucaí, quando assisti o desfile da Mangueira que nos mostrou que desde 1500 temos mais invasão do que descobrimento, havendo muito sangue retido atrás dos heróis emoldurados. Com isso, discuto a resistência dessa escola de samba em relação à noção de história linear, o que nos fez refletir sobre quem são os vencedores e vencidos, além de levantar questões particulares da nossa atual política fascista num atento olhar para quem de fato devesse ser referenciado em uma história a contrapelo. No terceiro capítulo, Contribuições benjaminianas acerca da decolonialidade, estabeleço uma relação entre a temática e a perspectiva decolonial a fim de conjecturar sobre a possibilidade desta perspectiva oportunizar a superação da colonialidade do poder, do saber e do ser com os saberes das auxiliares de serviços gerais escolares na educação. Dialogo com o grupo de pesquisadores latino-americanos denominado “Modernidade/Colonialidade”, dentre eles Edgard Lander, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Catherine Walsh, entre outras/os, trazendo o seguinte questionamento: é possível ressignificar as memórias das auxiliares de serviços gerais escolares para além da matriz colonial europeia e subverter essa hierarquia que subalterniza o outro? Também pontuo considerações em torno 33 do texto benjaminiano Sobre o conceito da história e a relação com o pensamento decolonial para pensar nos processos do conhecimento em seus diversos vieses. No quarto capítulo, Partilhando memórias, reflito sobre a dimensão política em revisitar as memórias das auxiliares de serviços gerais escolares, também abordo a recuperação da nossa afetividade cotidiana, da alegria e da autoestima, escrevendo sobre minha experiência com elas. Além disso, trago as seguintes perguntas: como romper com as hierarquias de saberes e vinculá-las ao processo educativo, como protagonistas? Como fortalecê-las em meio à nossa racionalidade e colonialidade com mais protagonismo e menos silenciamento? Também, neste capítulo, retomo o debate entre a visão barriana, a colonialidade do poder e as leituras benjaminianas, principalmente dialogando com o texto A vida dos estudantes (1914-1915) e alguns poemas de Manoel de Barros. O quarto capítulo faço outros recortes, aprofundo-me no conceito de memória e escrevo sobre minha experiência de escrita na tentativa por uma escrita decolonial. O questionamento que levanto é: apesar de estramos inseridas/os nesse contexto da colonialidade, de escritas coloniais, de que maneira podemos propor formas outras de escrever, de expressar como brechas em nossas práticas? 34 2 CAPÍTULO 1: Elas são os pilares das estruturas nas escolas Neste capítulo apresento a cidade de Araranguá e a Escola de Educação Básica Professora Neusa Ostetto Cardoso. Inicío também o diálogo com as narrativas das auxiliares de serviços gerais escolares apresentadas em forma de mônadas, opção metodologica que explicito na última seção do capítulo. 2.1 Cidade das Avenidas: paraíso do extremo sul catarinense O local de nossa pesquisa fica na cidade de Araranguá que é conhecida como a “Cidade das Avenidas”, caracterização que se deve ao planejamento urbanístico de ruas amplas e avenidas características do século XIX, idealizadas pelo engenheiro Antonio Lopes de Mesquisa, como forma de aderir ao progresso urbano e valorizar o fluxo de automóveis. Pertencemos a Microrregião do Extremo Sul Catarinense e nossa população, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) é de sessenta e três mil habitantes. Além disso, nossa cidade é banhada pelo Rio Araranguá e está localizada bem próxima da BR-101. Possui
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