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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Juliana Evelyn dos Santos Curadoria de materiais digitais por professores do Ensino Médio: um recorte do cenário educacional brasileiro durante o ensino remoto ocasionado pela pandemia de Covid-19 Florianópolis 2021 Juliana Evelyn dos Santos Curadoria de materiais digitais por professores do Ensino Médio: um recorte do cenário educacional brasileiro durante o ensino remoto ocasionado pela pandemia de Covid-19 Dissertação submetida ao Programa de Pós- graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, para a obtenção do título de Mestra em Educação. Orientadora: Prof.ª Drª. Juliana Cristina Faggion Bergmann Florianópolis 2021 3 4 Juliana Evelyn dos Santos Curadoria de materiais digitais por professores do Ensino Médio: um recorte do cenário educacional brasileiro durante o ensino remoto ocasionado pela pandemia de Covid-19 O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros: Profº Leandro Duso, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina Daiana Zanelato dos Anjos, Dra. Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina Profª Roseli Zen Cerny, Dr.(a) Universidade Federal de Santa Catarina Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Educação. ____________________________ Coordenação do Programa de Pós-Graduação ____________________________ Profª. Juliana Cristina Faggion Bergmann, Dra. Orientadora Florianópolis, 2021. 5 Dedico este trabalho aos meus filhos, Arthur e Isabela, e também ao meu marido, Leandro. 6 AGRADECIMENTOS Já se passaram quase três anos desde o momento em que me inscrevi para a seleção de mestrado na UFSC. E, sinceramente, ainda mal acredito que cheguei até aqui. Fazer essa pós-graduação em meio a uma pandemia, com dois empregos, tendo dois filhos pequenos, foi um processo muito cansativo. Mas, “cansativo” não é a palavra que eu gostaria de usar para definir esse período da minha vida. Prefiro dizer que foi um privilégio. O mestrado foi um tempo de muito aprendizado em que eu voltei a ocupar um lugar do qual eu gosto muito: o de estudante e pesquisadora. E, para conseguir acrescentar mais esses papeis à minha vida, precisei de uma grande rede de apoio, que caminhou junto comigo até aqui. Por isso, peço licença a você leitor/a, para agradecer à essas pessoas sem as quais esse trabalho não seria possível. Agradeço primeiramente à minha família, que eu amo mais do que tudo nesse mundo. Ao meu marido, melhor amigo e companheiro de vida, Leandro, que acompanhou de perto essa caminhada, sempre me incentivou e acreditou no meu potencial, mesmo quando nem eu acreditava em mim mesma. E também aos meus filhos, Arthur e Isabela, que são as minhas principais inspirações e motivações. Espero que, quando crescerem, perdoem-me pelas minhas ausências e cansaços durante esse período, que se orgulhem de saber que a mãe deles lutou pelo sonho de ser mestra e entendam que a educação é a maior herança que posso deixar para eles. Agradeço aos meus pais, que sempre investiram na minha formação, que trabalharam duro a vida inteira para que nunca faltasse nada a mim e aos meus irmãos e que sempre nos ensinaram que o estudo é o melhor caminho para conquistarmos nosso lugar no mundo. Pai e mãe, hoje eu entendo e amo vocês ainda mais. Agradeço aos meus irmãos, Paulinho e Lucas, por todo o companheirismo, amor e incentivo. Eu tenho muito orgulho de quem vocês se tornaram. Um abraço também nas minhas cunhadas e cunhado queridos: Jana, obrigada por sempre botar fé em mim e pelas conversas que abraçam; Grasi e Cássio, obrigada pelas risadas e pelos papos; Fê, obrigada pela escuta atenta e por me ajudar com os gráficos. Agradeço aos meus sogros, Osmar e Jucênia, por todo o apoio que sempre me deram e por me ajudarem com as crianças tantas vezes. Agradeço também a minha amiga, irmã que escolhi, Valesca, por me ouvir e me apoiar incondicionalmente em todos os momentos. Não sei o que seria de mim sem você. Agradeço à equipe da E.E.B. Ursulina de Senna Castro, em especial à direção que tem me apoiado e acolhido, e também aos meus alunos e alunas por todas as trocas e aprendizados. Agradeço aos meus colegas do Grupo de Pesquisa Tema Didático, em especial Gabi e Kadhiny que tantas vezes me apoiaram e tranquilizaram ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Agradeço à UFSC, instituição onde me formei como bióloga e que me acolheu novamente para cursar o Mestrado em Educação. Sou cria orgulhosa dessa Universidade pública, gratuita e de qualidade. Agradeço ainda todos/as meus/minhas professores/as do PPGE que me encantaram com suas aulas e fizeram o possível para chegar até os/as estudantes durante o ensino remoto. Por fim, agradeço à minha orientadora, Dra Juliana Bergmann por todo o carinho e tudo que me ensinou ao longo desse período. Por ter sido uma orientadora afetuosa e respeitosa, que sempre esteve disposta a ouvir minhas inseguranças e acolher meus pontos de vista. Eu tive muita sorte de tê-la como mentora nesse processo. Foi uma honra acompanhar uma pesquisadora e professora tão incrível ao longo desses anos. 7 Uns anjos tronchos do Vale do Silício Desses que vivem no escuro em plena luz Disseram: vai ser virtuoso no vício Das telas dos azuis mais do que azuis Agora a minha história é um denso algoritmo Que vende venda a vendedores reais Neurônios meus ganharam novo outro ritmo E mais e mais e mais e mais e mais (...) Um post vil poderá matar Que é que pode ser salvação? Que nuvem, se nem espaço há Nem tempo, nem sim nem não Sim: nem não (VELOSO, 2021) 8 RESUMO Em um mundo com excesso de informações propagadas agilmente pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, faz-se cada vez mais necessário que os/as usuários/as tenham a habilidade de selecionar, interpretar e alinhavar as informações que chegam até eles/as, de modo que não só façam sentido, mas que também se evite que o excesso de informações se transforme em dispersão. E, no contexto da educação, essa habilidade é ainda mais essencial, especialmente quando os/as docentes precisaram adaptar abruptamente seus cotidianos escolares ao ensino remoto emergencial provocado pela necessidade de isolamento social para mitigar a propagação da Covid-19. Sendo assim, esta pesquisa buscou investigar diferentes conceitos relacionados a curadoria de materiais digitais no contexto educacional e a influência dos algoritmos dos mecanismos de busca e técnicas de SEO na elaboração de aulas, bem como coletar dados e narrativas sobre essas práticas por professores/as do Ensino Médio brasileiros durante no contexto pandêmico de 2020 e, assim, compreender quais foram os principais fatores que contribuíram ou limitaram o uso de recursos digitais no ensino remoto emergencial. Para isso, realizamos duas partes empíricas, utilizando como ferramentas investigativas um questionário autoaplicado e entrevistas semiestruturadas através de webconferência com professores/as voluntários. Foram obtidas respostas de cento e treze professores/as de diferentes estados brasileiros e, dessaamostra alguns/as foram selecionados/as para a segunda etapa empírica da pesquisa, resultando em cinco entrevistas com professores/as de escolas públicas estaduais de Santa Catarina. A partir dessas etapas, foi possível perceber que os/as docentes encontraram várias dificuldades para inserir de maneira efetiva a prática da curadoria em seus planejamentos e práticas, pelos mais diversos motivos, passando pelas dificuldades geradas pelos impactos da pandemia de coronavírus até a falta de critérios para a busca, seleção, catalogação e uso de materiais digitais por esses/as professores/as. Palavras-chaves: Educação. Curadoria. Curadoria educacional. Materiais didáticos. Recursos educacionais digitais. 9 ABSTRACT In a world overwhelmed with information that is easily spread through digital information and communication technologies, it is essential that users have the right skills to select, interpret and fully comprehend it. Not only in a way that the information makes sense, but also to avoid the excess of it interfering with attention and focus. When talking about education, these skills are even more important, especially when teachers were forced to adapt abruptly, from school routine to emergency remote teaching, as to follow the lockdown guidelines to avoid COVID-19 dissemination. Therefore, this research aimed to investigate different concepts related to the curatorship of digital materials in the educational context, to collect data and narratives about this practice from Brazilian high school teachers during the pandemic, and thus comprehend what the main contributing or limiting factors to the use of digital resources on the emergency remote teaching were. To achieve this, we performed two empirical parts, using as investigative tools a self- applied questionnaire and semi-structured interviews via web conferences with volunteer teachers. First we collected 113 answers from teachers from different Brazilian states and from these samples some were selected for the second part of the research, resulting in five interviews with teachers from state schools in Santa Catarina, Brazil. Based on this it was possible to conclude that the teachers faced several difficulties to effectively implement the curatorship in their planning for a variety of reasons, ranging from the ones caused by the coronavirus pandemic to the lack of criteria for searching, cataloging and using the materials by these teachers. Keywords: Education, Curatorship, Educational curatorship, Teaching material, Digital educational resources 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1- Print da parte inicial do questionário respondido pelos/as participantes em que se observa a “capa” do questionário no topo e a carta de apresentação. ........................ 59 Figura 2- Print da postagem convite em grupo de professores do Facebook. ................ 61 Figura 3- Estados de atuação dos/as cento e treze respondentes do questionário autoaplicado. ................................................................................................................... 67 Figura 4- Níveis de formação acadêmica dos/as participantes da pesquisa. .................. 68 Figura 5- Disciplinas lecionadas pelos/as professores/as ............................................... 69 Figura 6- Redes de atuação dos/as professores/as .......................................................... 70 Figura 7- Porcentagem das redes de atuação dos/as professores/as ............................... 70 Figura 8- Formato das aulas nas escolas públicas onde atuaram os/as professores/as respondentes. .................................................................................................................. 72 Figura 9 – Formato das aulas nas escolas privadas onde atuaram os/as professores/as respondentes. .................................................................................................................. 73 Figura 10 - Produção/seleção dos materiais utilizados pelos/as professores/as das escolas públicas. .......................................................................................................................... 77 Figura 11- Produção/seleção dos materiais utilizados pelos professores das escolas privadas. .......................................................................................................................... 78 Figura 12- Como as práticas dos/as professores/as de escolas públicas foram guiadas. 79 Figura 13- Como as práticas dos/as professores/as de escolas privadas foram guiadas. 80 Figura 14- Conhecimento prévio das plataformas digitais antes da pandemia. ............. 84 Figura 15 - Como eram as aulas dos/as professores/as respondentes antes da pandemia. ........................................................................................................................................ 85 Figura 16 - Gráfico demonstrando a importância da curadoria de materiais digitais na prática dos/as professores/as. .......................................................................................... 87 Figura 17 – Frequência de uso de diferentes recursos digitais. ...................................... 89 11 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 14 1.1 UMA CARTA. ...................................................................................................... 14 1.2 UM CONVITE. .................................................................................................... 18 1.3 SOBRE O INÍCIO DE UMA PESQUISADORA E O INTERESSE PELA CURADORIA ............................................................................................................. 19 1.4 DAS VIRULÊNCIAS DE UMA PANDEMIA E SEUS EFEITOS SOBRE OS PROFESSORES. ........................................................................................................ 22 1.5 JUSTIFICATIVA DA PESQUISA - O QUE QUEREMOS INVESTIGAR? ..... 24 1.6 problema de pesquisa e OBJETIVOS DA PESQUISA ........................................ 25 2. DOS LIVROS-TEXTO ÀS MÍDIAS DIGITAIS – OS RECURSOS DIDÁTICOS EM MEIO AO MAR DE INFORMAÇÕES .............................................................. 26 2.1 TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS ................................................................... 26 2.2 A HEGEMONIA DOS LIVROS-TEXTO COMO TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS ...................................................................................................... 28 2.3 MATERIAIS OU RECURSOS DIDÁTICOS ...................................................... 31 2.4 OBJETOS DE APRENDIZAGEM ...................................................................... 32 3. O PROBLEMA DO EXCESSO DE INFORMAÇÕES ........................................ 34 3.1 DA ESCASSEZ À SUPERABUNDÂNCIA ........................................................ 34 3.2 ALGORITMOS, GOOGLEARCHY e SEO .......................................................... 37 4. A CURADORIA ....................................................................................................... 42 4.1 O DESLOCAMENTO DO TERMO CURADORIA ........................................... 42 4.2 CURADORIA DE CONTEÚDO OU DE INFORMAÇÕES ............................... 43 4.3 CURADORIA DE DADOS E CURADORIA DIGITAL .................................... 46 4.4 CURADORIA EDUCACIONAL ......................................................................... 48 4.4.1 O impacto das TDIC e da superabundância de informações no ambiente escolar ................................................................................................................................. 48 4.4.2 A importância da seleção no planejamento.................................................... 50 4.4.3 Curadoria: uma prática não tão nova assim ................................................... 51 12 4.4.4 A curadoria de materiais digitais como ferramenta didática .......................... 52 5. METODOLOGIA ..................................................................................................... 55 5.1 QUESTIONÁRIO AUTOAPLICADO ................................................................ 56 5.1.1 Construção do questionário autoaplicado ...................................................... 57 5.1.2 Divulgação do questionário e busca por participantes ................................... 60 5.1.3 Análise dos dados obtidos pelo questionário ................................................. 61 5.2 Entrevistas semiestruturadas ................................................................................. 61 5.2.1 Construção das perguntas para a entrevista semiestruturada ......................... 62 5.1.2 Escolha dos/as participantes das entrevistas .................................................. 63 5.1.3 Realização das entrevistas semiestruturadas .................................................. 65 6. RESULTADOS ......................................................................................................... 66 6.1 ESTADO DE ATUAÇÃO DOS/AS PROFESSORES/AS RESPONDENTES... 66 6.2 FORMAÇÃO ACADÊMICA DOS/AS PARTICIPANTES ................................ 67 6.3 Disciplinas lecionadas pelos/AS professores/AS participantes ............................ 68 6.4 REDE DE ATUAÇÃO DOS/AS PROFESSORES/AS RESPONDENTES ........ 69 6.5 COMO FORAM AS AULAS DURANTE O ENSINO REMOTO NAS DIFERENTES REDE DE ENSINO? ......................................................................... 71 6.6 QUE OUTROS FATORES FORAM IMPORTANTES NA ESCOLHA DOS MATERIAIS UTILIZADOS PELOS/AS PROFESSORES/AS DURANTE O ENSINO REMOTO? .................................................................................................. 76 6.7 QUAL O PAPEL DA CURADORIA DE MATERIAIS DIGITAIS NA PRÁTICA DOS/DAS PROFESSORES/AS? ............................................................................... 83 6.8 TIPOS DE RECURSOS DIGITAIS UTILIZADOS PELOS/AS PROFESSORES/AS ................................................................................................... 88 6.9 ENTREVISTAS – SOBRE O Inédito viável ........................................................ 90 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 101 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 104 APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO AUTOAPLICADO ........................................ 110 APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO ... 124 13 APÊNDICE C – TRASNCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ..................................... 127 Entrevista 1: .............................................................................................................. 127 Entrevista 2: .............................................................................................................. 140 Entrevista 3: .............................................................................................................. 147 Entrevista 4: .............................................................................................................. 156 Entrevista 5: .............................................................................................................. 166 14 1. INTRODUÇÃO 1.1 UMA CARTA. Querida Marília.1 Abraços! Espero que ao ler esta carta estejas bem e com saúde. Há dias venho pensando em você e na tarefa que você me deu. Na minha cabeça tenho simulado conversas contigo. Foi difícil achar uma brechinha na correria dos dias pra sentar e materializar esse encontro. Mas, finalmente arrumei um tempinho e escrevo esta carta que, já vou logo avisando, será um desabafo. Sendo assim, começo minha fala repetindo aqui uma frase comum desses tempos virulentos: os dias não têm sido fáceis. E essa é uma verdade dolorida, que a gente tenta esconder, mas que volta e meia nos consome. Já se passaram mais de seis meses do início do isolamento social e ainda é difícil acreditar no que estamos vivendo. Afinal, tantas coisas ruins nos atravessam nesse momento, né Marília? Algumas delas já existiam, convivendo com a poeira embaixo do tapete. Mas, com tudo que vem acontecendo, parece que perdemos um pouco da capacidade de escondê-las lá. Ou, talvez, não tenha mais espaço mesmo. Estamos todos fartos, saturados. Há dias em que tudo isso me soterra e sufoca, sabe? É a mais pura sensação paralisante de impotência. Sou atravessada por todas essas coisas que têm acontecido. Eu não consigo ficar imune. Sofro com o cinismo do presidente e de sua corja, com os milhares de mortos pela Covid no Brasil e toda a negligência do poder público, com a covardia das pessoas e da sua ignorância. E tem o “ser professora” no meio disso tudo. E, ser professora tem sido uma das partes mais difíceis dessa tarefa de viver em um mundo pandêmico. Isso porque, apesar de há anos estar em contato com ensino remoto através do meu trabalho no Blog do Enem, eu não estava preparada para dar aulas remotamente. Não estava preparada para ser afetada de tantas maneiras. Ainda assim, há algum tempo tenho me perguntado o porquê de me sentir tão incomodada com isso. Por que é tão difícil dar aulas remotamente? Afinal, estou mais tempo em casa com as crianças. Estou livre do trânsito que me consumia as horas. Sou privilegiada por poder trabalhar de casa, quando tantos de nós se veem obrigados a se expor ao vírus para se sustentarem. 1 A Marília dessa carta é Marília Gomes, uma concluinte do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Escrevi esta carta a ela como resposta a um pedido seu para que eu contribuísse com sua pesquisa para seu Trabalho de Conclusão de Curso. A carta foi publicada integralmente em seu trabalho “Cartas sobre a docência em Ciências e Biologia em tempos de confinamento” e o uso dela aqui neste trabalho foi autorizado pela autora. Ao longo deste texto explico a presença dela abrindo esta pesquisa. O trabalho de Marília está disponível no link https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228355 https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/228355 15 Acontece, Marília, que a missão que me desses me ajudou a encontrar algumas respostas para esse meu incômodo. E a primeira delas é que o isolamento me tirou a coisa que mais me atrai para a sala de aula: o estar junto. Ah, Marília! Eu sinto tanta falta do barulho! Do som dos passos no corredor, do burburinho do recreio. Sinto falta até da bagunça na sala de aula! Tenho saudades dos cheiros do laboratório, da cor dos uniformes, do arrastar das carteiras, de ouvir confissões de paixões adolescentes, de ficar brava com a desorganização dos papéis em cima da mesa da sala dos professores. Sei o quanto isso provavelmente soa cafona. É brega, mas é verdade. Nós, professores e professoras, fomos apartados dos beijos melados na bochecha, dos abraços carentes, dos olhares de acolhimento. Como dar aulas sem ler meus alunos através das suas expressões? Como podemos nos reconhecer através das telas ou de uma folha de papel? Como ter aquele misto de nervoso e expectativa que nos faz dar uma aula inspiradora olhando apenas para a lente de uma câmera? Simplesmente não dá. Nas escolas em que trabalho, temos transitado por várias maneiras de “dar aulas” durante o ensino remoto. Tateamos as possibilidades, mas estamos longe de encontrarmos a maneira ideal. Ainda assim, seguimos tentando, após todo esse tempo. Produzimos materiais impressos,gravamos videoaulas, traçamos trilhas de aprendizagem, temos aulas ao vivo através do Google Meet... Mas, nem mesmo as trocas dos momentos síncronos são capazes de amenizar as saudades. Cada um na sua casa, não tem o mesmo efeito do conjunto dividindo o mesmo espaço. Nós somos humanos cada vez mais digitais, mais adaptados a esse mundo que avança sem pedir licença. Mas, quanto de nós é perdido nessa secura das telas? Não sei, Marília. Só sei que é difícil fazer caber em uma videoaula as vivências que se espera de uma aula de ciências! Que é quase impossível entusiasmar uma turma fragmentada. E que é um verdadeiro malabarismo dar aulas nesse momento. Pensa comigo: a gente sabe que é preciso estimular os alunos em suas casas, instigá-los, certo? Mas, ao mesmo tempo, como incentivar a experimentação com turmas de ensino fundamental, ou mesmo de ensino médio, sem que isso aumente ainda mais a carga de trabalho dos pais que acumulam home office, ensino remoto dos filhos, medo do vírus, do desemprego, do incerto? Difícil, né? E tem também a rotina, Marília! Ou a falta dela? Aqui em casa, eu e meu marido somos professores. Então, nunca acaba. NUNCA ACABA! Quando não sou eu, é ele gravando aula. Quando não é ele, sou eu pendurada no computador dando aula para as bolinhas do Meet. E aí edita vídeo e sobe no YouTube e faz capinha de vídeo e escreve e grava e sobe. E corrige. Corrige. Digita nota. E responde aluno no Whats. E lida com reclamação de pais. Reunião de professores. E tem alerta do Classroom às 2 horas da manhã. E falta energia. A internet cai. E a gente se vira, porque professor não pode parar e deixar aluno desamparado, né? Seguimos teimando. E começa tudo de novo. 16 E permeando todo esse fazer acelerado e insano, misturam–se medos e aflições outros, além daqueles que a maior parte de nós está se “acostumando” nesta pandemia. São os medos gerados por toda a exposição a que nós professores e professoras estamos sendo submetidos neste momento de ensino remoto. O medo de estar entrando na casa dos teus alunos, de conversar sobre temas polêmicos e ser mal interpretada pela família das crianças, de ter sua imagem deturpada, sua casa exposta. E ainda no meio de tudo isso, Marília, tem também o “ser mãe”. E tem doído, guria. Porque, mais do que nunca, boa parte do tempo a mais com eles não tem qualidade. Como você deve ter percebido, o on-line não tem nos deixado muito tempo para estar off-line. Então, boa parte do dia é estar junto estando ausente, porque precisamos trabalhar. Tentar explicar que eles precisam ficar quietinhos por horas no quarto, enquanto gravamos aula ou damos aula pelo Meet, acaba comigo. Imagino que a esta altura da minha carta você já tenha se entristecido com meu relato cansado. Mas, peço que não desanimes aqui. Como eu te disse lá no começo dessa conversa, eu sabia que quando começasse a escrever, minha fala teria um tom de desabafo. Desculpe-me por isso. Mas é necessário. Não há como falar desse momento enquanto professora sem te mostrar as dores que estamos vivendo. Mas, fique sabendo que este é um desabafo de uma professora muito cansada, porém, ainda assim, otimista. Acontece que apesar de continuar vivendo essas angústias aqui relatadas, com o tempo me lembrei daquilo que dizia o Guimarães Rosa, que felicidade se encontra nas horinhas de descuido. Vesti-me também de Manuel de Barros, e me lembrei de como é importante encontrar beleza nas miudezas. Correndo o risco de ser piegas mais uma vez, o que quero te dizer é que tenho percebido, e agora com maior clareza à medida que escrevo esta carta, que essas horinhas de descuido têm me salvado. Quando a correria me sufoca, vou pro quintal e mecho na terra. Contemplo a minha horta bagunçada, que para mim é quase um latifúndio de riquezas. Observo a desimportância das brigas dos pardais. Contemplo o ritmo das plantas. Brigo com as lesmas e cochonilhas que insistem em comer as suculentas. E me apaixono todos os dias pela beleza das pequenas abelhas jataís que passei a guardar. Quando não é possível estar lá fora, torno o serviço doméstico, mecânico e tedioso, em algo um pouco mais prazeroso ouvindo podcasts. Com eles aprendo sobre livros, sobre ciência, história... E devo dizer que sou grata por esse hábito que adquiri na quarentena. Tenho aprendido tanto! (Inclusive, Marília, minha orientadora do mestrado me indicou um podcast lindíssimo. É de fazer qualquer biólogo chorar de emoção: Vinte Mil Léguas. O podcast se propõe a ler o Darwin como escritor. É tão lindo, Marília! As jornalistas guiam os episódios com maestria e tecem o contexto da construção de “A origem das espécies” de uma maneira incrível. Se você ouvir, depois me conte o que achou.) 17 E, veja só Marília, essas miudezas que encontrei por esse caminho, como não poderia deixar de ser, contaminaram também minhas aulas. Há algumas semanas, quando o meu desânimo tinha me deixado muito abatida, decidi que deixaria de lado as correções e conteúdos programados na aula ao vivo. Decidi fazer uma aula mais leve, jogar um pouco de conversa fora e contar para os meus alunos das minhas pequenas aventuras pelo quintal. Contei das abelhas, dos beija-flores que conheci, das flores que plantei, da composteira que construí, dos livros que li, dos podcasts que ouvi. E ~obviamente~ eles se interessaram mais por essas miudezas do que pelos conteúdos da apostila. E também me contaram das belezas dos dias deles. Dessas aulas mais livres surgiram ideias e curiosidades. E para sanar essas curiosidades a gente chamou outras pessoas pra conversar, gente que eles queriam conhecer. E surgiram as Tardes Científicas. Nessas tardes os alunos me encheram de orgulho e até me fizeram esquecer de todo o peso que tem sido viver esses dias. Os convidados das tardes conversaram com eles sobre os corais e o aquecimento global, sobre as abelhas nativas no meio urbano e até mesmo sobre a teoria da relatividade! Eles ficaram tão empolgados que decidiram, veja só, fazer um podcast deles. Já tem até um nome: Já sou cientista2! O primeiro episódio será sobre as abelhas. Falando assim, você pode perceber que não sei bem como tudo isso aconteceu. E é isso mesmo, fugiu do roteiro. E espero, Marília, que esta seja para você a coisa mais importante da minha carta. Esses passos fora do planejamento me trouxeram alento. Você entende o que quero dizer? Ver os alunos pela tela, ouvir suas vozes ecoando no meu computador não chega nem perto da potência da experiência que é tê-los por perto. Mas, nesses momentos pude perceber os tons diferentes das suas vozes. Notar as pequenas variações de empolgação nos discursos deles nesses dias me deu um pouquinho de esperança, sabe? Acalmou um pouquinho as angústias, diminuiu os medos. Veja, Marília. Um dia você, creio eu, se tornará professora. E, você talvez encontre prazer na organização e nos planos saindo como esperado. Mas, espero que você não precise de uma pandemia para se dar conta de que a alegria de ser professora está nas miudezas dos dias, no inesperado das coisas. Um beijo grande. Fique bem. Juliana 2 O podcast realmente foi produzido e ficou muito bonito. Se você tiver interesse em ouvi-lo, pode encontrá- lo no Spotify e em outras plataformas de áudio com o nome “Já sou cientista”. 18 1.2 UM CONVITE. A carta que abre esta dissertação tem vários objetivos e subjetividades. Ela foi escrita por mim durante a quarentena por conta da pandemia de Covid-19 em meados do ano de 2020. Eu a escrevi respondendo a um pedido de uma graduanda em Ciências Biológicas, Marília, para integrar a pesquisa do seu Trabalho de Conclusão de Curso. A ideia era que eu escrevesse uma carta a ela, contando como estava sendo a minha vida como professora durante o isolamento social. Inicialmente encarei a tarefa como mais uma coisa queeu tinha que fazer no meio das tantas outras na urgência daqueles dias. Mas, sentar para escrever a carta, acabou sendo, mais do que tudo, um momento, uma oportunidade, em que eu me permiti, por um tempo, parar com as correrias dos dias e olhar com calma e afeto para tudo aquilo que eu estava vivendo, para tudo o que me atravessou no ano de 2020. E, como eu disse, o fato de ela estar no início da minha dissertação não é mero acaso. Ela tem como objetivo te trazer para esse meu mundo, ou para o meu recorte de mundo, caro leitor, cara leitora. Ela ventila alguns dos trajetos que fiz para chegar a essa pesquisa. Ela dá pistas de quem eu sou além da pesquisadora que escreve esse texto, o que talvez ajude a entender algumas das minhas motivações. Além disso, ao lê-la novamente durante a construção desse trabalho, percebi que ela pode constituir um rico retrato daquele momento, onde posso vislumbrar o que mudou de lá para cá, onde é possível olhar para mim mesma, para uma Juliana de meses atrás. E eu espero, que você também tenha tido essa sensação: a de olhar para uma imagem que tentava descrever aquilo que as câmeras não podiam capturar. Afinal, no contexto desse texto, tenho esperança que ela te lembre que além da curadoria de materiais digitais que é o foco desse trabalho, há muito mais nas miudezas do tecer dos dias de nós, professores e professoras, em meio à tantas virulências. Tendo isso em mente, eu te convido a ler esse trabalho que busca entre muitas coisas, compreender como os/as professores/as se reinventaram abruptamente para construir novos cotidianos escolares, como lançaram mão das ferramentas que tinham para costurar suas aulas aos interesses dos/as estudantes nesse momento tão marcante de nossas vidas. E, principalmente, entender como os materiais digitais permearam as costuras das suas práticas. Por fim, deixo marcado aqui que eu faço parte desse grupo, como observadora enquanto escrevo, mas sem deixar de lado a experiência de quem vivenciou ser professora em um contexto pandêmico. 19 1.3 SOBRE O INÍCIO DE UMA PESQUISADORA E O INTERESSE PELA CURADORIA Minha história na educação não é recente. Apesar de ter ingressado no Curso de Ciências Biológicas movida por uma forte paixão pela natureza e uma vontade muito idealista de atuar como bióloga, logo interessei-me pela sala de aula. Isso porque, durante a graduação, participei ativamente de projetos educacionais em escolas da região promovidos pelo PET-Biologia3, do qual fazia parte. Esses projetos me inspiraram a pesquisar sobre educação ambiental e, por fim, acabei construindo meu Trabalho de Conclusão de Curso nesse campo, estudando as relações de pessoas com um Parque Urbano do qual eram vizinhas. Tais experiências me levaram a gostar muito da carreira docente, sendo assim, passei a atuar como professora de Ciências e Biologia no início de 2007, ministrando aulas em escolas da Rede Pública e Privada da Grande Florianópolis antes mesmo de me concluir a graduação, há mais de catorze anos. E, no meio dessa caminhada, também comecei a trilhar um outro caminho no campo educacional, bastante diferente da educação formal a que eu estava habituada. Há pouco mais de oito anos, me tornei escritora de materiais didáticos de Biologia para os portais educacionais da Rede Enem4. No começo, essa produção era só mais um trabalho, “um bico” para complementar o parco salário de professora e ajudar a pagar as contas. Mas, com o tempo, ganhou novos contornos. Passei também a ser a coordenadora pedagógica dos sites da Rede, organizando conteúdos e orientando os/as professores/as de outras disciplinas nas suas produções. Além disso, com o surgimento do canal do grupo no YouTube, também me aventurei a produzir videoaulas de Biologia para o Enem. Assim, o trabalho que era temporário foi se tornando cada vez mais relevante para mim. Com minhas produções sendo publicadas em sites de grande circulação, pude vê-lo chegando a muitos lugares distantes. E, para minha alegria e satisfação, muitos foram os feedbacks positivos recebidos de estudantes de todo o país. Cheguei, inclusive, a receber mensagens até mesmo de estudantes de outros países falantes da língua portuguesa, como Angola e Moçambique. 3 PET é a sigla para “Programa de Educação Tutorial”. Esse programa está presente em alguns cursos de universidades de todo país. E em cada grupo PET há doze bolsistas que elaboram e colocam em prática projetos em ensino, pesquisa e extensão. O principal objetivo do programa é ampliar a formação de estudantes de graduação, incentivando sua participação no tripé do ensino universitário. Participei do grupo PET-Biologia entre os anos de 2004 e 2006. 4 A Rede Enem é um ecossistema educacional composto por três sites, o Blog do Enem, o Curso Enem Gratuito e o Curso do Encceja, um canal no Youtube e perfis em várias redes sociais. Todos os canais da Rede disponibilizam conteúdos didáticos de todas as disciplinas do Ensino Médio voltadas para o Enem e vestibulares. Todos os conteúdos oferecidos são totalmente gratuitos. 20 Assim, o “aprender-fazendo” que era minha prática na construção dos materiais didáticos publicados no Blog do Enem e no Curso Enem Gratuito foi dando lugar a uma produção cada vez mais crítica, questionadora, especialmente em relação às questões dos parâmetros do SEO5, que muitas vezes precisavam ser priorizados em detrimento de questões didáticas, como abordarei mais para frente nesta dissertação. Aos poucos fui percebendo que eu precisava estudar mais sobre o impacto desses materiais didáticos que eu produzia, queria entender como os/as estudantes se apropriavam desses materiais e se os/as professores/as os achavam úteis. Enfim, queria saber se nossos materiais realmente faziam “a diferença” na vida dos/as nossos/as visitantes. Foi assim que busquei o curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Mais de dez anos após me graduar em Ciências Biológicas na mesma instituição, ingressei na pós-graduação para adquirir novas ferramentas para aperfeiçoar meu trabalho. Sendo assim, a partir das minhas experiências profissionais, inicialmente meu foco de pesquisa era investigar os/as estudantes que visitavam sites educacionais como os em que trabalho, tentando entender como eles/as se apropriavam desses materiais didáticos digitais e como eles/as avaliavam os conteúdos disponíveis nos grandes portais educacionais. Entretanto, a pandemia aconteceu. E, como não poderia deixar de ser, ela sacudiu a minha vida, profissional e pessoal, como contei na carta que abre essa dissertação, atravessando também a minha pesquisa. Assim, a ideia inicial de trabalhar com estudantes começou a ficar distante, já que eu via nos contextos educacionais em que eu estava atuando uma enorme desigualdade. Os/as estudantes de escola pública, que eram meu recorte inicial, tinham pouco acesso ao ensino remoto emergencial6 on-line pelos mais variados motivos, o que praticamente inviabilizava meu trabalho naquele momento. Mas, como já aprendi, muitas vezes é nos descaminhos que a gente encontra interesses outros, às vezes até mais instigantes do que os objetivos iniciais. Acontece que neste recorte de tempo, do ano de 2020, eu estava vivendo um momento importante da minha carreira enquanto professora, que foi crucial para pensar nessa pesquisa que aqui descrevo. No começo de 2020 eu fui chamada no concurso para professora efetiva do 5 SEO - Search Engine Optimization corresponde a um conjunto de práticas para melhorar a performance de sites em buscadores de conteúdo, como o Google. Discutiremos mais sobre esse mecanismo mais a frente neste trabalho. 6 Neste trabalho optamos por usar o termo “ensino remoto emergencial” ou apenas “ensino remoto” para nos referirmos às práticas de ensino e aprendizagem adotadas em resposta à pandemia. Concordamos assimcom Moreira, Henriques, Barros, Goulão e Caeiro (2020) e outros/as tantos/as autores/as que entendem que devemos evitar o uso do termo “educação a distância” para o que ocorreu no ano de 2020, já que durante esse momento, frequentemente, “as tecnologias foram utilizadas numa perspectiva meramente instrumental, reduzindo as metodologias e as práticas a um ensino apenas transmissivo” (p.2) 21 Estado de Santa Catarina. Sendo assim, assumi felicíssima 10 horas/aula em uma escola pública bem perto da minha casa, no município de Palhoça. Entretanto, por questões financeiras e também em consideração aos 13 anos de trabalho na instituição, continuei ministrando 19 horas/aula na escola privada em que já trabalhava. E foi desse jeito que em 17 de março de 2020, juntamente com os/as outros/as tantos professores/as do Estado de Santa Catarina, eu aderia ao isolamento social a partir da suspensão das aulas presenciais em todo o território estadual e precisei pensar, pela primeira vez na minha vida, em como transpor a minha sala de aula para o ambiente virtual. Talvez nesse momento você, leitor(a), esteja pensando: “mas, espera aí, você já não produzia materiais didáticos para sites? Já não gravava videoaula para um canal do YouTube? Não deve ter sido tão difícil para você!”. Mas, eu digo a você: foi difícil. Foi traumático. Nos sites, meu trabalho se dirigia geralmente a usuários/as esporádicos/as, em geral adolescentes e estudantes do Ensino Médio que buscavam um bom texto para uma pesquisa de um seminário da escola, um conteúdo para tirar uma dúvida ou aprofundar alguma disciplina, ou ainda, aqueles/as que queriam estudar online para um vestibular já carregando a bagagem da sala de aula nas suas experiências. Para resumir, eu sabia, através de pesquisas que havíamos feito com o público dos nossos sites, que os conteúdos que publicávamos eram essencialmente utilizados como complementos à escola. Mas, no contexto da pandemia as relações eram muito mais complexas. Era necessário transpor a educação formal, o ambiente escolar, as aulas presenciais, para um ensino remoto que ninguém sabia muito bem como fazer. E não foi só o meu trabalho enquanto professora que sofreu uma reviravolta com as restrições impostas pela pandemia. Na Rede Enem também tivemos dificuldades. Ao contrário do que muitos poderiam pensar (e até nós mesmos), inicialmente nossa audiência caiu muito. Com todas as incertezas que estavam postas no início da pandemia, estudar para um vestibular estava no fim das listas das prioridades dos/as estudantes. Além disso, os sites perderam outras fontes de renda, já que nossos principais anunciantes (faculdades privadas que anunciavam bolsas), recuaram nesse cenário em que não havia previsões e terrenos seguros. A solução que vislumbramos foi tentar entrar em contato com as secretarias de educação do país inteiro, para firmar parcerias e apresentar nosso material, que era totalmente gratuito e poderia ajudar bastante os/as professores/as nesse momento. Foi aí, provavelmente, o ponto de virada da minha pesquisa. Depois de uma dezena de reuniões com secretários da educação de Estados e municípios de diferentes regiões do país, vi que muitos me pediam para ajudá-los a montar um cronograma das 22 disciplinas com os nossos materiais. Eles relatavam que estavam enfrentando sérias dificuldades em montar sistemas para manter as aulas acontecendo de alguma forma e, uma das principais preocupações, era a de ter materiais didáticos on-line de qualidade sistematizados. Sendo assim, pediam que selecionássemos entre nossas aulas escritas, simulados e videoaulas, aqueles materiais que se encaixavam em cada conteúdo e em cada ano do ensino médio. Sendo assim, eu me vi por várias vezes ajudando a construir trilhas de aprendizado7 fazendo a curadoria dos nossos conteúdos, para que os/as professores/as de diferentes redes pudessem encontrar um pouquinho de calmaria em meio ao mar de mudanças que estavam acontecendo. Assim surgiu o meu interesse em investigar as relações /as professores/as com os materiais digitais nesse momento de pandemia. 1.4 DAS VIRULÊNCIAS DE UMA PANDEMIA E SEUS EFEITOS SOBRE OS PROFESSORES. Todos nós temos sentido na pele o fato de que os anos de 2020 e 2021 foram profundamente marcados pela pandemia do SARS-COV-2019. A infecção viral que foi inicialmente identificada na cidade de Wuhan, na China, no fim do ano de 2019, rapidamente se espalhou pelo planeta, fazendo com que os países ficassem em alerta. E não demorou muito tempo para que fossem necessárias medidas mais drásticas para contenção do vírus nos países atingidos. Dessa maneira, termos como “quarentena”, “isolamento social” e “lockdown” passaram a ser termos recorrentes nas mídias e em nossos cotidianos. Sem vacina ou tratamento eficaz, a necessidade de afastamento para evitar a transmissão da doença fez com que as rotinas de todos fossem profundamente afetadas, fechando temporariamente comércios, adiando eventos e interrompendo e bloqueando viagens. E, a escola, nesse contexto, não passou ilesa. Sendo um local onde a aglomeração e o convívio estreito são comuns, a educação formal precisou ser reconfigurada. Consequentemente, entre março e dezembro de 2020, a maior parte das escolas de todo o país ficou fechada para o ensino presencial, que passou para a modalidade remota de maneira abrupta, sem planejamento e sem que a comunidade escolar pudesse se organizar de maneira satisfatória. Tentando a todo custo manter as escolas funcionando 7 Ao longo desse trabalho usaremos o termo “trilha de aprendizado” para nos referirmos à “sequência de conteúdo e atividades definida pelo professor, ao planejar sua disciplina e, posteriormente, disponibilizá-la no ambiente virtual” (RAMOS, OLIVEIRA, RAMOS e OLIVEIRA, 2015) e também nos materiais impressos utilizados durante o ensino remoto emergencial. 23 em meio à virulência do Covid-19, boa parte das redes de ensino apelaram para a manutenção de turmas em plataformas educacionais digitais, como o Google Classroom e o Moodle, onde os/as professores/as traçaram trilhas de aprendizado utilizando materiais didáticos adotados pelas escolas e/ou adicionado objetos de aprendizagem, ou ainda ferramentas de webconferência ligadas ou não a ambientes virtuais de ensino- aprendizagem, como o Google Meet, o Jitsi e o Zoom, que possibilitaram a reunião simultânea dos/as estudantes para as aulas expositivas e dialogadas. A partir dessas decisões, em grande parte impostas sem maiores discussões entre os corpos docentes das instituições de ensino básico, pude observar que meus/minhas colegas professores/as, tanto de escolas públicas quanto da Rede Privada, precisaram se adequar apressadamente à nova realidade, adaptando planos de aula e modos de fazer e construir seus cotidianos escolares. Dessa forma, apesar de a vida de muitos/as de nós, assim como as relações nela tecidas, já serem muito mediadas pelas tecnologias digitais, nesse contexto, muitos/as docentes tiveram que aprender “do zero” a navegar e operar as ferramentas digitais escolhidas pelas redes de ensino. Em muitos casos, esse aprendizado se deu sem um auxílio ou apoio das equipes escolares, e os/as professores/as precisaram aprender por conta própria através de tutoriais disponíveis na web ou contando com a ajuda de seus pares. Por experiência própria talvez eu possa afirmar que nas escolas privadas a pressão sobre os/as professores/as foi ainda maior, já que a educação mercantilizada por muitas dessas instituições responsabilizou os/as professores/as nesse momento, cobrando agilidade e habilidades até então nunca requisitadas, na tentativa de manter matrículas. Em muitos casos, vi colegas (e aqui novamente me incluo) passando a atuarem forçadamente também como produtores/as de conteúdo, gravando e editando videoaulas e disponibilizando textosdidáticos, para enriquecer o ambiente virtual. Tudo isso sob uma lógica perversa, com insumos próprios, de maneira improvisada, dentro de suas casas, custeando os recursos necessários para manter as escolas funcionando (como internet, smartphones, eletricidade) e, muitas vezes, cientes de que disso dependiam seus empregos e meios de sustento. No meio disso tudo, vi que muitos/as colegas professores/as passaram também a realizar a seleção de materiais já disponíveis nos meios digitais com mais frequência do que faziam antes do contexto pandêmico ou mesmo tentando aprender a otimizar essa seleção, incorporando essa prática de maneira inédita em seus cotidianos. Muitos/as desses/as colegas me pediram ajuda, já que sabiam que eu trabalhava em sites e queriam 24 dicas de onde poderiam encontrar materiais de qualidade para aliviar um pouco de suas exaustivas cargas de trabalho durante o ano de 2020. 1.5 JUSTIFICATIVA DA PESQUISA - O QUE QUEREMOS INVESTIGAR? Estávamos nós, envolvidos em atividades rotineiras e, bem rápido, muitos dos problemas e dilemas que pareciam extremamente relevantes viraram pó. A pandemia infectou milhões, nos fez lembrar de nossas fragilidades e do que é essencial. Infectou, também, e de forma mortal, dogmas, certezas e comportamentos naturalizados sem razão de ser. Temos outro contexto, agora, e para continuarmos a ensinar-aprender teremos que construir novas bases de relacionamento entre professores, estudantes e escolas/universidades (MARTINS, 2020, p. 250-251). Como dito acima, a pandemia expôs nossas dificuldades e nos fez lembrar do essencial que, por força das rotinas, ficava em segundo plano. Na correria dos dias de nós, professores/as da Educação Básica, muitas vezes comprometidos/as com uma grande carga-horária e com a meta “de dar conta do currículo de cada ano” imposta, a importância do protagonismo estudantil, da necessidade de enriquecer as aulas com materiais além dos livros didáticos e de se atualizar constantemente em relação à novas tecnologias educacionais, muitas vezes são deixadas de lado. Entretanto, na ausência do chão de escola ao sermos apartados/as do cotidiano escolar típico por conta de um vírus, as fragilidades da educação formal, já “enferrujada” e muitas vezes desconectada, ficaram ainda mais escancaradas. E, dessa maneira, a conta das essencialidades que deixamos por fazer foi cobrada de uma só vez. Como discutido anteriormente, a despeito dessas rachaduras expostas e da falta de tempo para se organizar e planejar um ensino remoto minimamente estruturado, o que se viu foi um movimento das redes de ensino para manter as escolas “funcionando”, já que para nossa sociedade é “difícil conceber uma organização social que funcione sem o sistema educativo, uma vez que ele sempre esteve ativo. Sua paralisia ou reformulação gera incerteza e medo” (ROGERO-GARCÍA, 2020, p. 178). Assim, professores/as de todo o país tiveram que se reinventar dentro de condições bastante adversas. A partir das minhas vivências diárias no contexto pandêmico e das conversas fragmentadas pelo distanciamento social (já que a sala dos/as professores/as se dissolveu e o espaço de troca ficou reduzido aos grupos dos apps de mensagem) fui percebendo que a seleção de materiais digitas e objetos de aprendizagem digitais dentro do cotidiano dos/as professores/as passou a ter maior destaque, sendo uma ferramenta valiosa na produção dos planos de aula e na construção das trilhas de aprendizado durante o ensino 25 remoto emergencial. Se antes muitos dos/as meus/minhas colegas professores/as, impelidos/as pelos mais diversos fatores, limitavam-se a ministrar suas aulas baseados apenas nos objetos de aprendizagem trazidos e selecionados pelos materiais didáticos adotados pelas escolas, com a necessidade de produzir planos de aulas para uma nova realidade adequada ao ensino no contexto da pandemia, essa prática já não configurava mais como uma possibilidade. Dito isso, esse trabalho busca justamente investigar esse ponto de virada no cotidiano dos/as professores/as e as maneiras como a curadoria de materiais digitais, de forma inédita ou com maior intensidade, passou a atravessar seus cotidianos. Através dessa pesquisa, busca-se compreender de que maneira os/as professores/as elaboraram seus planos de aula durante o ensino remoto emergencial no ano de 2020 e como a curadoria dos materiais pré-existentes nos meios digitais auxiliou o trabalho desses/as professores durante esse período. 1.6 PROBLEMA DE PESQUISA E OBJETIVOS DA PESQUISA Dessa maneira, essa pesquisa tem como objetivo central tentar responder à seguinte pergunta: “De que maneira a curadoria de materiais digitais permeou o cotidiano dos/as professores/as durante o ensino remoto emergencial provocado pela pandemia do novo coronavírus?” Além desse objetivo central, podemos elencar outros três objetivos secundários dessa pesquisa: - Compreender os principais fatores que contribuíram ou limitaram a construção das trilhas de aprendizagem para o ensino remoto emergencial. - Investigar o entendimento dos/as professores/as em relação à curadoria de materiais digitais. - Averiguar se a prática da curadoria e a inserção de materiais didáticos digitais e outros materiais digitais nos cotidianos escolares aumentou durante o ensino remoto no ano de 2020 em relação às práticas dos/as docentes em contextos típicos de sala de aula. 26 2. DOS LIVROS-TEXTO ÀS MÍDIAS DIGITAIS – OS RECURSOS DIDÁTICOS EM MEIO AO MAR DE INFORMAÇÕES Antes de pensar sobre como a pandemia e o isolamento social impactaram as relações dos/as professores/as com os materiais digitais na construção de suas trilhas de aprendizado, entendemos que é pertinente discutir alguns conceitos-base utilizados nessa pesquisa. Portanto, neste Capítulo, revisaremos brevemente o conceito de tecnologias e materiais didáticos, sua importância e influência nos contextos escolares, bem como discutiremos como a hegemonia dos livros-texto vem sendo aos poucos enfraquecida pela influência dos recursos didáticos digitais e pelos novos objetos de aprendizagem. 2.1 TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS Inicialmente é preciso delimitar o conceito de tecnologia empregado nesta pesquisa. Rotineiramente costumamos utilizar a palavra “tecnologia” para nos referirmos às máquinas modernas que fazem parte do nosso cotidiano, especialmente àquelas ligadas às mídias, como a TV, os smartphones e os computadores. Consequentemente, com frequência usamos o termo como sinônimo para novidade e inovação, compondo assim o nosso imaginário referente à tecnologia com objetos vistosos, brilhosos e dotados de certa autonomia ou inteligência artificial. Imaginário esse que é constantemente reforçado pela incrível velocidade com que certas tecnologias vêm sendo renovadas e aperfeiçoadas nas últimas décadas, em especial, quando pensamos nas tecnologias digitais. Entretanto, podemos dizer que o conceito de tecnologia é algo muito mais abrangente. Segundo Kenski (2007): As tecnologias são tão antigas quanto a espécie humana. Na verdade, foi a engenhosidade humana em todos os tempos que deu origem às mais diferenciadas tecnologias. O uso do raciocínio tem garantindo ao homem um processo constante de inovações. Os conhecimentos daí derivados, quando postos em prática, dão origem a diferentes equipamentos, instrumentos, recursos, processos, ferramentas, enfim, as tecnologias (KENSKI, 2007, p.15). Em outras palavras, poderíamos considerar que as tecnologias são produtos da tentativa humana de se adaptar ao ambiente e garantir sua sobrevivência, ou ainda torná-la mais fácil, cômoda e confortável, o que tem produzido desde ferramentas rudimentares, como utensílios feitos de pedras lascadas para manipular alimentos, até as últimas gerações de aparatos digitais e eletrônicos, além de certaspráticas, processos e acúmulo de 27 conhecimento. Dessa forma, podemos ainda considerar que elas são também uma “construção social – um campo de batalha – historicamente determinado, sendo resultado de um processo onde intervêm múltiplos atores com distintos interesses” (NOVAES e DAGNINO, 2004, p.206) e, portanto, constituem-se “fruto da crescente criação da mente humana, transformando as relações de produção e de vida em sociedade ao longo da história da humanidade, diferenciando-nos dos demais seres vivos” (FERRARINI, SAHEB e TORRES, 2019, p. 5). A partir desse conceito geral, é possível pensar também nas tecnologias dentro do contexto da escola. Ao observarmos uma sala de aula comum, poderíamos identificar a presença de diferentes ferramentas que para muitos, segundo o senso comum, não seriam identificadas como “tecnologias”, como os livros, a lousa, os cadernos, os lápis. Mas que, como vimos, são ferramentas produzidas para facilitar uma ação ou tarefa e, portanto, também se constituem como tecnologias. Além desses artefatos, nos últimos anos, é fato que outras tecnologias mais modernas têm marcado presença no contexto escolar, como os computadores, os smartphones e os projetores multimídias. Tecnologias essas que têm incentivado debates e provocado novas mediações entre os/as professores/as, os conteúdos abordados e a aprendizagem mais ativa dos/as estudantes. Muitos dessas tecnologias citadas acima foram criadas intencionalmente para a utilização nos processos de ensino-aprendizagem e, dessa maneira, podem ser consideradas como tecnologias educacionais, como é o caso dos livros didáticos. Além dessas tecnologias que se materializam em ferramentas e objetos, Ferrarini, Saheb e Torres (2019) também afirmam que metodologias de ensino e avaliação também podem ser consideradas como tecnologias educacionais, que retratam um momento histórico, suas limitações e inovações dentro das salas de aula. Já outras tecnologias encontradas nos contextos escolares não foram criadas para fins educativos, mas sim buscando objetivos diversos, dentro de tempos históricos variados em resposta a necessidades outras. Entretanto, no contexto escolar, podem possibilitar novas experiências e significados, modificando relações e possibilitando a formação de diferentes redes, como é o caso das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC). Segundo Braga e Menezes (2014), o uso de recursos tecnológicos na educação, mais especificamente da internet, tem provocado grandes mudanças nas maneiras de se pensar o ensino e a aprendizagem. Trata-se não apenas de enxergar a internet como uma fonte de recursos e materiais úteis à educação, mas de ressignificar o processo educacional como um todo, uma vez que a comunicação, a pesquisa e a aprendizagem assumem dimensões diferenciadas, diante da velocidade com 28 que muitas informações chegam aos alunos (BRAGA e MENEZES, 2014, p.19). Esses aparatos passam, então, pelo que vem sendo chamado de “transposição midiática”. Essa designação é inspirada na teoria da transposição didática do educador francês Chevallard (1985), em que ele discute sobre o fato de que o saber a ser ensinado, o saber sábio, o conhecimento acadêmico e científico, passa por um conjunto de transformações adaptativas para ocupar o lugar de objeto de ensino e ser aplicado ao que o autor chama de saber ensinado, que se refere ao conhecimento que é apresentado aos estudantes através das práticas escolares. Segundo Garonce e Santos (2012, p.1014), no caso da transposição midiática, os aparatos criados para outros fins, que não os educacionais, acabam sendo inseridos nas práticas educacionais, tendo suas funções iniciais alteradas, convertidas. Como, por exemplo, o que tem acontecido durante a pandemia como os aplicativos de webconferência, como o Jitsi, o Google Meet e o Zoom. Esses softwares criados inicialmente para conectar pessoas e promover comunicação através da internet, passaram a ter funções pedagógicas, sendo utilizados para aulas síncronas. 2.2 A HEGEMONIA DOS LIVROS-TEXTO COMO TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS No momento em que nós professores/as iniciamos o nosso trabalho em uma nova escola, ou simplesmente começamos um novo ano letivo, é muito comum que depositem em nossas mãos uma pilha de apostilas ou livros didáticos “do professor” e nos digam: “esse é o seu material didático, você tem que dar conta dele ao longo desse ano”. Essa frase instrucional, geralmente em tom de determinação, vem carregada de significados e nos dá um rápido retrato da maneira como essa tecnologia educacional é entendida nas comunidades escolares em que estamos inseridos/as, especialmente se estamos em um contexto de escola privada, onde os livros didáticos e apostilas fazem parte do “pacote de produtos” vendido por essas instituições. O fato é que o livro didático é um material hegemonicamente adotado em escolas de todo o país, o que o torna um material icônico que representa muito da visão de escola que temos em nossa sociedade. A escolha e o uso dessa tecnologia educacional são tão importantes que a adoção de certas coleções de livros muitas vezes é utilizada como bandeira de propaganda para atrair novas matrículas nas escolas privadas, frequentemente suplantando a importância de outras questões metodológicas na escolha de uma escola pelas famílias dos estudantes. 29 Há muitos motivos para que os livros didáticos tenham essa relevância dentro do contexto escolar. Mas, talvez um dos mais pungentes seja o fato de que o livro didático organiza o conteúdo a ser trabalhado em linguagem predominantemente escrita e sequencial no material impresso. Segundo Area (2017), Resumidamente poderíamos sugerir que o livro texto é um artefato ou dispositivo impresso caracterizado por apresentar o conhecimento mediante a combinação verbo-icônica das mensagens imitando o formato organizativo de uma enciclopédia. Ou seja, é uma tecnologia educativa que oferece o conhecimento empacotado, encerrado e estruturado em um suporte de papel (AREA, 2017, p. 17, tradução nossa8). Ainda segundo o autor, a organização enciclopedista do conhecimento presente nos livros didáticos se configura como um recurso mediador entre o currículo oficial e as práticas de aula, o que o reforça como um objeto cultural da tecnologia de imprensa e um produto da indústria cultural, características que ajudam a validar “sua autoridade educativa” perante a sociedade. A partir dessa visão do livro didático como uma tecnologia educacional “clássica”, que detém conhecimento a ser aprendido e sobre o qual pesa a valoração da linguagem escrita, muitas vezes o/a professor/a acaba tendo sua prática engessada pelas amarras das coleções didáticas escolhidas, em um contexto que exige a utilização total do material, não só seguindo sua ordem de conteúdos, mas também na resolução de todas as suas atividades pelos/as estudantes, “fazendo valer” o valor pago por esse produto. Isso se aprofunda ainda mais quando as escolas adotam pacotes de apostilados, chamados por vezes de “sistemas de ensino”, que comummente acompanham além do material impresso, uma coletânea de materiais digitais selecionados pela própria editora. Nesses casos, muitas vezes a ideia é auxiliar o/a professor/a fazendo uma pré-seleção de objetos de aprendizagem que possam complementar os livros-textos. Entretanto, o que na prática muitas vezes se vê é que no afã de cumprir as exigências da escola em relação às coleções elegidas, os/as professores/as acabam, entre outros motivos, tendo pouca liberdade para buscar alternativas. Dentro dessa prática há uma série de problemas que podem ser apontados e discutidos. Entre eles, como afirma Zabala Vidiella (2000), as várias críticas tecidas pelos movimentos educacionais progressistas ao uso dos livros-textos como únicos materiais 8 Traduçãonossa do original: “A modo de síntesis pudiéramos sugerir que el libro de texto es un artefacto o dispositivo impreso caracterizado por presentar el conocimiento mediante la combinación verboicónica de los mensajes imitando el formato organizativo de una enciclopedia. Es decir, es una tecnología educativa que ofrece el conocimiento empaquetado, encerrado y estructurado en un soporte de papel” (AREA, 2017, p. 17). 30 didáticos, como o fato de que cada livro didático encerra nele uma narrativa, permeada de ideologias e discursos que nem sempre fazem parte da realidade daquelas turmas onde ele está sendo utilizado ou contemplam as intencionalidades do plano de aula dos/as professores/as. Além disso, o autor ainda destaca que os livros didáticos muitas vezes “fomentam estratégias didáticas baseadas primordialmente em aprendizagem por memorização mecânica” e, consequentemente “fomentam a atitude passiva dos meninos e meninas, já que impedem que participem tanto do processo de aprendizagem como da determinação dos conteúdos” (ZABALA VIDIELLA, 2000, p. 181, tradução nossa9). Ressaltaria ainda um outro problema sobre essa visão do livro como material didático único ou principal: o fato de que essa prática pode servir de base para a crescente “fiscalização” de parte da sociedade sobre os trabalhos dos/as professores/as, onde um dos principais contrapontos de movimentos como o “Escola sem partido” é afirmar que os/as professores/as deveriam se ater aos conteúdos e visões contidos nas páginas dos livros-texto para evitar ideologização dos contextos escolares. Entretanto, é também fato que o livro didático pode figurar como um elemento norteador, e um dos seus papéis pode ser o de ajudar os/as professores/as a encontrarem uma direção na composição dos currículos das suas trilhas de aprendizado, servindo com um esqueleto das práticas docentes, um ponto de partida para que os/as professores/as elejam outros olhares e discussões. Além disso, sua estruturação de texto, organização didática e o enriquecimento com imagens podem ser muito úteis e proveitosos para alguns momentos de uma aula, como em momentos de consulta e observação, podendo ser, inclusive, disparadores de práticas de metodologias ativas. Todavia, apesar da sabida importância do livro didático e também do senso comum propagado em algumas comunidades escolares de que eles se bastam enquanto materiais didáticos, sabemos que uma aula que inspire nos/as estudantes um olhar crítico sobre o conhecimento e forneça a eles/as ferramentas para guiar seus questionamentos e aprendizado necessita de outros olhares para além daqueles trazidos de maneira majoritariamente unidirecional nos livros didáticos. É preciso materiais outros para o processo de ensino-aprendizagem. Como afirma Zabala Vidiella (2000), a complexidade da tarefa educativa exige dispor de instrumentos e recursos que facilitem a tarefa de ensinar. Em todo caso, são necessários materiais que estejam ao serviço das nossas propostas didáticas e não o inverso; que não 9 Tradução nossa do original: “Fomentan unas estrategias didácticas basadas primordialmente en aprendizajes por memorización mecánica.” “Fomentan la actitud pasiva de los chicos y chicas, ya que impiden que participen tanto en el proceso de aprendizaje como en la determinación de los contenidos” (ZABALA VIDIELLA, 2000, p. 181). 31 suplantem a dimensão estratégica e criativa dos professores, mas sim que a fomentem (ZABALA VIDIELLA, 2000, p.181, tradução nossa10). Os materiais digitais vêm ganhando espaço dentro do cotidiano dos/as professores/as, especialmente quando pensamos nas facilidades que dispositivos portáteis como os notebooks e smartphones têm proporcionado. Dessa maneira, os limites entre o que é ou não material didático vêm se dissolvendo, ou então poderíamos também dizer que os conceitos sobre material didático vêm se transformando. Então, afinal, o que entendemos por materiais didáticos? 2.3 MATERIAIS OU RECURSOS DIDÁTICOS Quando nós professores/as pensamos em materiais didáticos, uma miríade de representações pode vir à nossa cabeça, apesar do arquétipo representado pelos livros didáticos. Isto porque os materiais ou recursos didáticos são tecnologias educacionais que têm papel importantíssimo em nossas práticas. “Mesmo não sendo o foco central do processo, ele representa o currículo e, por vezes, determina a maneira como o professor aborda o conteúdo a ser trabalhado em sala” (BERGMANN, 2020, p.1). Dessa maneira, podemos tomar por definição de materiais didáticos o que afirma Zabala Vidiella (2000) os materiais curriculares (ou didáticos) ou de desenvolvimento curricular são todos aqueles instrumentos e meios que proporcionam ao educador diretrizes e critérios para a tomada de decisões, tanto no planejamento quanto na intervenção direta no processo de ensino-aprendizagem e em sua evolução. Sendo assim, consideramos como materiais didáticos aqueles meios que ajudam os professores a dar resposta aos problemas concretos que se apresentem nas diferentes fases do processo de planejamento, execução e evolução (ZABALA VIDIELLA, 2000, p.173 tradução nossa11). E, com a diversificação dos tipos de suporte surgidos nas últimas décadas, especialmente com o avanço das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação, esses materiais didáticos ganharam formatos e possibilidades, diversificando-se em uma 10 Tradução nossa a partir do original: “La complejidad de la tarea educativa nos exige disponer de instrumentos y recursos que faciliten la tarea de enseñar. En todo caso, se requieren materiales que estén al servicio de nuestras propuestas didácticas y no a la inversa; que no suplanten la dimensión estratégica y creativa de los profesores, sino que la fomenten” (ZABALA VIDIELLA, 2000, p.181). 11 Tradução nossa do original: “Los materiales curriculares o materiales de desarrollo curricular son todos aquellos instrumentos y medios que proporcionan al educador pautas y criterios para la toma de decisiones, tanto en la planificación como en la intervención directa en el proceso de enseñanza/aprendizaje y en su evaluación. Así pues, consideramos materiales curriculares aquellos medios que ayudan al profesorado a dar respuesta a los problemas concretos que se le plantean en las diferentes fases de los procesos de planificación, ejecución y evaluación” (ZABALA VIDIELLA, 2000, p.173). 32 grande variedade. Consequentemente, podemos considerar como materiais ou recursos didáticos todos os materiais pensados e produzidos com intencionalidades educativas, ou como resume Area (2017), qualquer “objeto cultural, físico o digital, elaborado para gerar aprendizagem em uma situação educativa” (p.17, tradução nossa12). Recursos esses que, segundo Machado (2017), têm inúmeras funções, dentre as quais: motivar e despertar o interesse pela apresentação; favorecer o desenvolvimento da capacidade de observação; aproximar o aluno da realidade; visualizar ou concretizar os conteúdos da aprendizagem; oferecer informações e dados; permitir a fixação da aprendizagem; ilustrar situações mais abstratas, e desenvolver a experimentação concreta (MACHADO, 2017, p.24910). A partir desses conceitos, para este trabalho consideraremos como exemplos de materiais didáticos aparatos como livros-texto impressos ou digitais das diversas disciplinas, plataformas educativas, videoaulas, apps educativos, entre outros. Tendo em mente que, dependendo do tipo de suporte que esses materiais utilizam, eles podem apresentar diferentes aplicações e usos. Entretanto, nesta pesquisa, em especial, discutiremos a utilização dos materiais didáticos digitais, ou seja, aqueles que estão disponíveis na web em sites, blogs, plataformas educativas, apps ou repositórios educacionais. 2.4 OBJETOS DE APRENDIZAGEM Com o avanço das tecnologiasdigitais e as incontáveis possibilidades de compartilhamento de informações e dados, surge a possibilidade de produzirmos pequenos componentes para ilustrar um determinado conceito ou conteúdo durante uma aula, ou ainda disparar discussões ou outros tipos de interações no contexto educativo. Assim, hoje contamos com inúmeros repositórios de componentes educativos, como animações, imagens, infográficos, áudios etc, que podem ser utilizados para enriquecer uma aula das mais variadas áreas do conhecimento. Esses componentes podem ser chamados de objetos de aprendizagem e, segundo Braga e Menezes (2014, p. 21), podem ser definidos “como componentes ou unidades digitais, catalogados e disponibilizados em repositórios na internet para serem reutilizados para o ensino”. Ainda segundo a autora, podemos também dizer que os objetos de aprendizagem são “qualquer entidade, 12 Tradução nossa do original: “(...) el material didáctico podemos definirlo como un objeto cultural, físico o digital, elaborado para generar aprendizaje en una determinada situación educativa” (AREA, 2017, p. 17). 33 digital ou não, que pode ser usada, reutilizada ou referenciada durante o aprendizado apoiado pela tecnologia.” Dessa maneira, tomamos por definição o fato de que esses objetos se diferem dos recursos didáticos porque não compõem uma aula completa, não estão inseridos em um contexto limitador. Eles são componentes isolados, que podem ser encaixados e reutilizados em diferentes contextos e conteúdos. Para deixar essa ideia mais clara, poderíamos, por exemplo, pensar em um pequeno vídeo que demonstra o processo da mitose (uma divisão celular) através de uma animação. Esse pequeno componente audiovisual poderia ser considerado um objeto de aprendizagem porque ele é um objeto virtual que pode ser utilizado em diferentes contextos, podendo ser inserido em uma aula de biologia do ensino médio sobre divisões celulares ou sobre genética, ou ainda em uma aula de embriologia de um curso de graduação na área da saúde. Area (2017) conceitua ainda um outro tipo de objeto que pode ser utilizado no contexto educacional: o objeto digital. Segundo o autor, os/as professores/as podem utilizar vários outros objetos cuja função não é educacional, mas que no contexto de uma aula podem corroborar para o processo de ensino-aprendizagem de determinados conteúdos. Sendo assim, uma reportagem de jornal, um site que permite uma visita a um museu, um documentário, um simulador de movimentos, um clipe de uma música seriam objetos digitais que, em um contexto educacional, se tornariam objetos de aprendizagem. 34 3. O PROBLEMA DO EXCESSO DE INFORMAÇÕES 3.1 DA ESCASSEZ À SUPERABUNDÂNCIA No momento em que nós professores/as nos demos conta da imensidão do nosso trabalho em meio a um mundo pandêmico, muitos/as de nós (e aqui me incluo) ficamos desnorteados. Entretanto, em uma análise rasa, à primeira vista, poderíamos até pensar que nossa queda nessa imensidão não seria assim tão longa. Afinal, em um mundo amplamente conectado, os conteúdos já disponíveis em abundância na internet seriam uma rede de segurança, uma maneira de termos à mão algumas ferramentas que poderiam nos servir de objetos de aprendizagem e até mesmo materiais didáticos que, talvez, aliviassem um pouco nossa carga de trabalho. Entretanto, a urgência do ensino remoto na pandemia nos mostrou duramente que essa fartura de conteúdos dispostos nos meios digitais nem sempre é sinônimo de facilidade. E essa dificuldade pode ser evidenciada se pensarmos nas rápidas mudanças que ocorreram nas formas como nos comunicamos e propagamos conhecimento e informação. Se olharmos para o passado da humanidade não é difícil perceber que até poucos séculos atrás a informação erudita e o acesso a ela eram coisas raras. Produzir e armazenar conhecimento de forma organizada e hierarquizada eram atividades realizadas por poucos, já que exigiam letramento (um raro privilégio), tomavam longo tempo, dependiam de um grande esforço e utilizavam materiais caros e frágeis. Basicamente, a comunicação humana durante um longo período se baseava em “formas culturais desenvolvidas oral e visualmente: desenhos, pinturas, narrativas, representações teatrais, esculturas, conferências, mímica, música...” (AREA, 2017, p. 14, tradução nossa13). Sendo assim, podemos facilmente concluir que as informações sistematizadas em registros escritos eram praticamente inacessíveis para a maior parte da população, estando geralmente restritas a círculos de nobreza. Entretanto, desde a invenção da imprensa “que impulsionou a hegemonia de uma cultura letrada distribuída em massa” (AREA, 2017, p. 14, tradução nossa14) esse cenário tem mudado radicalmente. Atualmente, a informação contida em um grande jornal como o The New York Times em um único dia é maior do que uma pessoa do século XVII teria 13 Tradução nossa a partir do original: “Básicamente este concepto sugiere que la historia de la comunicación humana se basa en formas culturales desarrolladas oral y visualmente: dibujos, pinturas, narraciones, representaciones teatrales, esculturas, conferencias, mímica, música, …” (AREA, 2017, p. 14). 14 Tradução nossa a partir do original: “Así ocurrió durante veinte mil años hasta la invención de la imprenta que impuso la hegemonía de una cultura letrada distribuida en masa” (AREA, 2017, p. 14). 35 acesso durante toda a sua vida (PÉREZ GÓMEZ, 2015; BHASKAR, 2020). E, nas últimas décadas com as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação, a velocidade com que as informações são produzidas e distribuídas foi enormemente amplificada. Essas tecnologias possibilitaram avanços em um curto espaço de tempo e continuam evoluindo vertiginosamente. Contudo é importante destacar que “com a expansão das linguagens audiovisuais, da internet e, em particular das redes sociais, estamos voltando a recuperar a oralidade e o icônico como formato expressivo mais estendido na comunicação (AREA, 2017, p. 14, tradução nossa15). Com isso, informações e conhecimentos que antes se restringiam a locais e pessoas específicas, como o conhecimento acadêmico e erudito, têm rompido as barreiras dos espaços tradicionais e ganharam novos lugares, não só no sentido geográfico, mas também social. Tornaram-se ubíquos. Passaram a habitar canais no YouTube, discussões no Facebook, posts no Instagram. Dessa forma, a produção da informação tomou novos contornos. A massa que em sua maior parte assumia o papel de espectadora até bem pouco tempo atrás, passou também, especialmente com o surgimento da internet 2.0 e das redes sociais, a produzir e propagar conteúdo, amplificando a produção de dados. Como afirma Santaella (2013), a internet aliada à mobilidade, aumenta a quantidade de informação e o conhecimento não apenas cresce, mas também se diversifica. Diversidade diz respeito tanto ao cruzamento de culturas, quanto à forma pela qual o conhecimento é codificado e em que se torna acessível, a saber, as transmutações do universo da imagem da linguagem e da hipermídia que só o computador tornou possível (SANTAELLA, 2013, p. 14). Além dos computadores, citados no trecho acima, o advento e popularização dos smartphones, tornou a internet ainda mais onipresente em nossas vidas. Através desses aparelhos conectados às redes podemos rapidamente acessar inúmeros livros de todas as áreas, encontrar mapas, pesquisar os mais variados dados, compartilhar conhecimento, narrar experiências e debater conceitos, já que o ciberespaço se caracteriza por “difundir obras culturais fracionadas, dispersas, intangíveis, interconectadas, abertas, audiovisuais, multimídias e em constante transformação” (AREA, 2017, p. 15, tradução nossa16). 15 Tradução nossa do original: “(...) con la expansión de los lenguajes audiovisuales, de Internet y,
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