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Desejo e prazer na idade moderna (Luiz Roberto Monzani)

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EDITORA DA 
U N IV ERSID AD E ESTADUAL DE CAMPINAS 
UNICAM P
Reitor: José Martins Filho 
C o ordenador G eral da Universidade: André Villalobos 
C onselho E d itor ia l: Alfredo M iguel Ozorio de Almeida, 
Antonio Carlos Bannwart, César Francisco Ciacco 
{Presidente), Eduardo Guimarães, Hermógenes de Freitas 
Leitão Filho, Hugo Horácio Torriani, Jayme Antunes Maciel 
Júnior, Luiz Roberto Monzani, Paulo José Samcnho Moran 
D iretor E xecu tivo : Eduardo Guimarães
LUIZ ROBERTO MONZANI
DESEJO E PRAZER 
NA IDADE MODERNA
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA 
BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP
Monzani, Luiz Roberto 
M769d Desejo e prazer na idade moderna / Luiz Roberto Monzani.
- - Campinas, SP: Edilora da UNICAMP, 1995.
(Coleção Repertórios)
l. Filosofia moderna. 2. Materialismo. 3. Desejo.
I. Título.
20. CDD - 190 
-146.3 
-152.4
ISBN 85-268-0338-7
índices para Catálogo Sistemático:
1. Filosofia moderna 190
2. Materialismo 146.3
3. Desejo 152.4
Coleção Repertórios
Copyright © by Luiz Roberto Monzani
Projeto Gráfico 
Camila Cesarino Costa 
Eliana Kestenbaum
Coordenação Editorial 
Carmen Silvia P. Teixeira
Produção Editorial
Sandra Vieira Alves
Preparação de originais 
Paula M. Senatore
Revisão 
Vera Luciana Morandim 
Rosa Dalva V. do Nascimento
Tradução das citações 
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Composição e Fotolitos 
Trianon Editora S/C LTDA.
1995
Edilora da Unicam p 
Caixa Postal 6074 
C idade Universitária - Barão Geraldo 
C EP 13083-970 - C am pinas - SP - Brasil 
Tel.: (0192) 39.8412 
Fax: (0192) 39.3157
Agradecimentos
Ao CNPq, que me conferiu, por dois anos, uma bolsa para que 
desenvolvesse esta pesquisa;
A Josette, minha mulher, que teve a paciência de decifrar meus 
garranchos e fazer a primeira versão datilografada;
Dos amigos, aos quais devo muito, gostaria de agradecer espe­
cialmente a Moacyr Nunes de Oliveira e Adalberto Tripicchio, o 
primeiro por ter me auxiliado muito na bibliografia e o segundo por 
suas fórmulas mágicas.
Por último, aos professores Michel Debrun, Fausto Castilho, 
Marilena Chaui, Bento Prado e Arley R. Moreno, primeiros leitores 
deste texto. Foi, para mim, um privilégio escutar suas observações 
sempre pertinentes. Que eles encontrem aqui a expressão de meu 
respeito, admiração e amizade.
Para Josette:
Tant ai en liferm assis mon corage 
Qu’ailleurs ne pens, et Diex m 'en lait joïr! 
C’onques Tristanz, qui but le beverage, 
Plus loiaument n'ama sans repentir;
Quar g ’i met tout, cuer et cors et désir, 
Force et pooir, ne sai se fa iz fo lage;
Encor me dout qu’en trestout mon eage 
Ne puisse assez li et s’amour servir.
(Le Châtelain de Coucy)
e
Para Juliana, 
J. Marcelo e 
Luiz Henrique
I
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................... 11
I. LUXO...................................................................................................17
II. DESEJO............................................................................................. 63
III. INQUIETUDE.............................................................................. 115
IV. PRAZER.........................................................................................163
CONCLUSÃO.................................................................................... 223
BIBLIOGRAFIA................................................................................ 228
INTRODUÇÃO
O trabalho que o leitor tem em mãos é fruto de uma suspeita e 
resulta numa hesitação. Por isso, talvez seja melhor retraçar rapida­
mente o itinerário que resultou na sua confecção, para que se possa ter 
uma idéia mais clara de suas reais dimensões.
Há poucos anos, mais precisamente quando caíram em minhas 
mãos os primeiros volumes da recente reedição das obras completas de 
Sade pela editora Pauvert,1 propus a mim mesmo uma leitura mais sis­
temática desse autor um tanto quanto esquisito. Já conhecia, há tem­
pos, boa parte de sua obra. Mas, minhas leituras foram sempre 
esparsas, desorganizadas e sem nenhuma finalidade precisa, a não ser 
a curiosidade e a impressão de que esse autor havia produzido uma 
obra única, incomparável e demolidora. Por outro lado, meu conheci­
mento lacunar — não tinha tido acesso, por exemplo, até então, à 
Histoire de Juliette — impedia-me de formar qualquer opinião que 
pudesse julgar solidamente estabelecida.
Depois dessa leitura, agora mais metodicamente elaborada, e pas­
sado o impacto que a obra do Marquês traz inevitavelmente, procurei 
examiná-la mais friamente, e nasceu a suspeita não só de que Sade 
dependia muito, nas suas concepções, de certas matrizes de pensa­
mento do século XVIII, como também, sob muitos aspectos, ele era a 
realização completa e acabada dessas mesmas matrizes.
Conhecia, é claro, a tese de Horkheimer e Adorno sobre Sade. 
Mas, nunca pude concordar com suas premissas. Curiosamente, con­
cordava com algumas de suas conclusões. Nasceu em mim, então, a
11
suspeita de que era necessário encontrar o solo real do qual o discurso 
de Sade brotava. De qualquer maneira, resolvi abandonar, provisoria­
mente, a idéia tão difundida — sobretudo pelos próprios estudiosos de 
Sade na sua grande maioria2 — de que sua obra seria um a exceção 
monstruosa e única, e passei a trabalhar com a idéia de que talvez Sade 
apenas tivesse levado às últimas conseqüências, no plano moral, certas 
premissas de pensamento estabelecidas na idade modema. Indícios 
sobre isso não faltavam, mas sentia a falta de um fio condutor.
Meus primeiros passos, realizados um pouco instintivamente, foram 
os de examinar um pouco a literatura libertina da época e aqueles autores
— na sua maioria filósofos — que Sade insistentemente faz questão de 
afirmar que constituem o estofo e o fundamento de seu pensamento. No 
primeiro caso, o exame da literatura libertina foi praticamente inútil, a 
não ser para reforçar minha convicção de que Sade, no seu gênero, é 
realmente um escritor de excepcional qualidade e que uma grande edi­
tora nada mais fez que um ato de justiça ao incluí-lo entre os clássicos.
No segundo caso, as coisas passaram-se de forma ligeiramente 
diferente. O referencial imediato de Sade — no plano filosófico — são 
os materialistas franceses. Particularmente, La Mettríe, Helvétius e 
Holbach. Sade seguramente conhecia muito bem esses autores, de 
alguns dos quais pilha páginas e páginas.3 No caso desses pensadores, 
a filiação realmente era inegável. Nem sempre da forma colocada pelo 
próprio Sade. Ele faz questão de afirmar, por exemplo, que as bases do 
que denomina “seu sistema” estão, basicamente, nos textos de 
Holbach. Isso é verdade, no que concerne às linhas gerais, isto é, à 
idéia de uma matéria em eterno movimento produzindo e destruindo 
incessantemente novas formas, o ateísmo integral etc. Mas, com 
relação ao problema ético,4 Sade é, na verdade, um profundo devedor 
com relação a La Mettrie. Se se quer achar os antecedentes imediatos 
das concepções de Sade, elas estão seguramente muito mais no Anti- 
Sêneca, do que no Sistema da Natureza.
O que impressiona profundamente o leitor é o fato de que, em La 
Mettrie, encontramos praticamente as mesmas teses de Sade, com a 
diferença de que não são desenvolvidas com a crueza cirúrgica do 
Marquês, mas sim no calmo plano das idéias abstratas. Aproveitando- 
me de uma fórmula de Foucault, podemos dizer que La Mettrie é o 
lado aveludado de Sade.
Não se trata aqui de mostrar essa semelhança, o que implicaria 
escrever um trabalho de proporções mais ou menos iguais ao deste,
12
mas sim de apontar para aquilo que acabou ficando claro nesse 
primeiro momento. Por um lado, isso reforçava a suspeita de que Sade 
não era uma estrela solitária, a não ser pelo modo como escolheu para 
expor, mas não por certos esquemas de pensamento. Por outro lado, 
isso fazia adiantar muito pouco o tratamento da questão. Pode ser inte­
ressante constatar fortes convergências nas teses de dois autores mas 
issoapenas mostra que ambos trabalham sobre um estofo conceituai, 
um certo universo mental já constituído, do qual ambos se nutrem.
Ora, a questão particularmente mais instigante era exatamente ten­
tar explicar quais eram as linhas mestras dessa concepção. E, sobre esse 
ponto, as obscuridades eram muito fortes e as idéias que tinha, muito 
vagas.5 Refletindo sobre isso, não foi difícil concluir que o que estava 
provavelmente norteando tudo isso era uma concepção sobre os funda­
mentos da vida passional que pouco ou nada tinha a ver com a con­
cepção clássica. Era preciso, de uma certa maneira, operar um recuo 
ainda maior e questionar onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar 
os primeiros indícios dessa concepção. Tudo levava a crer que isso de­
veria ser buscado no século XVII, mais particularmente em T. Hobbes.
Acreditei, então, poder isolar, dizendo as coisas de forma muito 
rude, um bloco conceituai que ia de Hobbes até os denominados mate­
rialistas franceses. Houve um trabalho intenso na tentativa de isolar 
certos conceitos capitais, certas noções-chaves e ir vendo, por assim 
dizer, como se mantinham ou se transformavam no decorrer do tempo. 
Esse projeto, durante um certo tempo, revelou-se frutífero, e parecia, 
de fato, que se poderia isolar um conjunto de conceitos que se per­
filavam de forma a indicar que uma nova concepção da vida passional 
delineava-se na modernidade.
Mas, um estudo mais atento dos textos revelou que estava tratando, 
como uma unidade algo que não possuía esse atributo. Considerações 
mais cuidadosas acabaram mostrando que dever-se-ia considerar duas 
grandes mutações — operadas, no entanto, sobre uma mesma matriz
— uma em Hobbes e a outra, surpreendentemente, no Traité des 
Sensations de Condillac. Esse intervalo, tudo levava a crer, estava 
recheado de interrogações e hesitações. Percebi também, nesse meio 
tempo, que um autor que não tinha cogitado de início exercia um papel 
fundamental: Malebranche.
Ao mesmo tempo que esse trabalho desenrolava-se nessa linha, 
um pouco por acaso, no início, deparei-me com a famosa “querela do 
luxo”. Estudando-a com mais atenção percebi que ela refletia de forma
13
exemplar, embora vaga, esse conjunto de novas concepções, o que 
aumentou a convicção sobre o caminho que havia escolhido. Daí, por 
diante, fazendo uma espécie de jogo de vai-e-vem, procurei ir pro­
gressivamente isolando os temas centrais que funcionavam como pólo
— muitas vezes distantes — de orientação na “querela do luxo” e ir 
examinando como essas mesmas concepções se articulavam de forma 
mais clara e fundamentada em certos textos centrais. Gostaria, no 
entanto, de prevenir o leitor de que as coisas não se passam de forma 
cristalina como esse quadro esquemático que acabo de traçar pode dar 
a entender. Neste terreno pode-se achar correspondências mas nunca a 
tal ponto que de um conjunto a outro a relação seja biunívoca. Elas 
funcionam muito mais como quadros orientadores.
A partir disso, este trabalho ordenou-se de forma mais ou menos 
natural. Parti de uma exposição sobre os problemas conceituais 
envolvidos na “querela do luxo” — querela longa e multifacetada. Em 
seguida, procurei isolar um grupo de conceitos que articulam peia 
primeira vez na modernidade uma nova concepção da vida passional. 
Depois tratei desse período intermediário — que aos meus olhos 
aparece como muito hesitante e embrulhado conceitualmente. Por fim, 
tentei examinar como esses conceitos, de uma certa forma, rearticu- 
lam-se na segunda metade do século XVIII.
Uma palavra quanto ao título deste estudo. Como percebi que o 
que estava no horizonte de minhas inquietações eram os fundamentos 
da vida passional na idade moderna, meu primeiro impulso foi assim 
intitulá-lo. Mas, logo percebi a enorme pretensão aí contida, e a que, 
nem de longe, este trabalho faz jus. Procurei um título mais modesto 
que indicasse melhor o seu conteúdo, Cheguei a este, mas confesso que 
ainda não estou satisfeito. Ele reflete muito mal a limitação do campo 
de estudo. Infelizmente não encontrei outro melhor e espero que esta 
introdução possa contribuir para dissipar possíveis mal-entendidos.
Afirmei que este texto nasceu de uma suspeita e que acaba numa 
hesitação. A primeira já explicitei. Com relação à segunda, embora 
considere, levando em conta meu ponto de partida, que tenha avança­
do razoavelmente, hesito muito sobre o valor e o alcance do que aqui 
é afirmado. Tendo, na verdade, a conferir um peso muito relativo e, 
embora considere esta pesquisa suficientemente autônoma, tenho 
consciência de que nada mais é que uma etapa e que precisa ir mais 
longe. Por essa razão evitei, no final, extrair algumas conclusões que 
considero apressadas.
14
Quanto ao modo de tratamento, resolvi, em primeiro lugar, que era 
melhor, na medida do possível, deixar que os próprios textos falassem 
por si mesmos. Tenho freqüentemente a impressão de que muito 
comentário acaba, às vezes, por obscurecer. Não que tenha me eximi­
do da tarefa. Quando julguei necessário, o fiz. Mas procurei reduzir ao 
que considero razoável. Isso tem sua contrapartida: em alguns momen­
tos há um excesso de citações. Foi o preço a pagar.
Por fim, gostaria de salientar dois ou três pontos que, talvez, 
chamem a atenção do leitor. Em primeiro lugar, constatar-se-á isso 
facilmente, evitei cuidadosamente certas generalizações no decorrer 
do trabalho. Generalizações que, talvez, sejam válidas mas a respeito 
das quais não estou totalmente seguro. Não procurei, enfim, reconsti­
tuir epistemés de diferentes épocas. Em segundo lugar, esta pesquisa 
não teve a pretensão de ser exaustiva. Não foi minha intenção arrolar 
e analisar todos os autores que, na época, trataram do tema. Procurei 
seguir um filão, como já indiquei, trabalhando retroativamente, como 
um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem dúvida 
mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não preten­
di também, nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um 
tema num determinado autor. Salientei apenas aquilo que julguei per­
tinente para esclarecer a trama de uma problemática. Assim, o espe­
cialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o 
tratamento a eles conferido. Tenho consciência dessa limitação, mas é 
a conseqüência de inserir um autor ou texto numa determinada 
questão que se desenrola historicamente.
15
NOTAS
1 Sade, Oeuvres Completes, Paris, Pauvert, 1986. Até agora foram publicados, ao que 
me consta, quinze volumes.
2 Uma honrosa exceção é J. Deprun que tem realizado estudos notáveis sobre o 
enraizamento de Sade no século XVIII. Veja-se, por exemplo, seu estudo “Sade et la 
Philosophie Biologique de son Temps” in Le Marquis de Sade, Paris, Armand Colin,
1968, p. 189 e seg.
3 Assim, por exemplo, todo o longo discurso de Delbène no início da Histoire de 
Julielte é uma cópia do Le Bon Sens du Cure Meslier de Holbach. Foi Deprun o 
primeiro a apontar isso.
4 Que, é bom não esquecer, é o núcleo do pensamento dos materialistas franceses, 
como mostrou Cassirer no seu A Filosofia do Iluminismo, Campinas, Editora da 
Unicamp, 1992, p. 103.
5 Para não criar falsas expectativas, como o leitor verá logo mais, não temos a preten­
são de ter elucidado totalmente essa questão. Podemos dizer que, agora, elas não são 
tão vagas para nós.
16
LUXO
1. Como fio condutor de nossa análise seguiremos uma sugestão 
de R, Hubert, contida no seu clássico Les Sciences Sociales dans 
l ’ Encyclopédie, onde ele afirma: “O problema do luxo é um daqueles 
onde a evolução das idéias, no decorrer do século XVIII, é a mais 
característica”.1 De fato, o exame da chamada “querela do luxo” 
mostra-se exemplar para se tentar compreender o conjunto das trans­
formações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o sécu­
lo XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes 
direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das 
novas concepções (sobre o desejoe o prazer).
2. Em 1736 Voltaire publica um poema, com mais ou menos uma 
centena e meia de versos, intitulado Le Mondain. Enviou aos amigos 
com a recomendação expressa de que não se desse publicidade, o que 
não aconteceu e acabou redundando num exílio rápido do autor na 
Holanda. Nesse meio tempo, escreve um outro poema: Défense du 
Mondain ou Apologie du Luxe.2 Examinemos, o mais rapidamente pos­
sível, os conteúdos e os problemas levantados.
Em linhas gerais, o Le Mondain obedece mais ou menos ao 
seguinte esquema: os v. 1-4 tentam mostrar que é inútil pensar que os 
tempos antigos (austeros e rústicos) foram melhores que os tempos 
atuais; os v. 5-10 realizam uma apologia dos tempos modernos (“Eu 
agradeço à Natureza sábia / Que, para meu bem, me fez nascer nesta
19
época / Tão difamada por nossos pobres doutores: / Esta época profana 
é perfeita para meus costumes / Amo o luxo e até mesmo a volúpia, / 
Todos os prazeres, as artes de toda espécie / O asseio, o paladar, os 
ornamentos: / Todo homem de bem tem tais sentimentos'’). Os v. 11- 
12 constituem a defesa dos efeitos da abundância; os v. 30-60, uma 
contraposição do estado de natureza e o de sociedade. Os v. 22-30 e 
61-112 mostram que o luxo é responsável pelo incremento do comér­
cio, sendo, portanto, vantajoso para o desenvolvimento e a riqueza da.s 
sociedades. O final do poema é uma crítica ao Telêmaco de Fénelon.
3. A primeira coisa a se destacar é que esses textos representam 
uma reviravolta nas posições de Voltaire. No poema épico Henriade 
(1713-18), publicado nos anos 20, ele tinha uma concepção diferente 
sobre o assunto. No canto VI (v. 26-7), dizia o seguinte:
“O luxo, sempre nascido das misérias públicas 
Prepara com brilho estes estados tirânicos".'
Nesse momento Voltaire ainda exprime uma mentalidade que logo 
será ultrapassada pelos espíritos mais sensíveis às mudanças. Nesse 
meio tempo, é bom não esquecer, Voltaire realizou sua viagem à 
Inglaterra, importantíssima na moldagem de suas concepções. Depois 
de 1736, Voltaire ainda modificará um pouco suas concepções, mas 
não substancialmente.
Em segundo lugar, o poema evoca uma discussão que já vem do 
século XVII, aquela que se denominou a questão dos antigos e dos mo­
dernos, que consistia em se saber se os antigos ou os modemos eram 
superiores nos diferentes campos (civilização, costumes, saber, ciência 
etc.). No ponto que nos interessa, as posições eram claras e inconci­
liáveis. Havia os que defendiam a pureza, a frugalidade, a austeridade e 
a virtude dos antigos, em contraposição ao amolecimento geral dos cos­
tumes nas sociedades modemas, sofisticadas, fúteis, efeminadas e dissi­
padoras. Os partidários da posição contrária procuravam mostrar que 
esse refinamento e essa sofisticação não implicavam nada disso. Fénelon 
e Fontenelle foram, respectivamente, os representantes típicos dessas 
posições: o primeiro, predominantemente no plano moral, e o segundo,
20
no intelectual. Exemplos não faltavam de ambos os lados. Esparta e 
Roma eram os exemplos preferidos dos primeiros. As comodidades e o 
bem-estar alcançados nos tempos modernos eram os dos segundos.
Em terceiro lugar, os imensos e inegáveis avanços científicos e 
tecnológicos realizados na formação dos tempos modernos também 
colocavam problemas pois, segundo uns, acabavam levando a um des­
perdício que era fatal às sociedades, enquanto outros (aí incluído 
Voltaire, é claro) afirmavam e defendiam vivamente que a criação e a 
circulação maciça de bens, possibilitada por esses avanços, consti­
tuíam uma contribuição inestimável para o enriquecimento das nações 
e para o seu desenvolvimento.
Assim, em quarto lugar, por trás dessa discussão antigos/moder­
nos, está uma discussão, muito confusamente vislumbrada, de caráter 
econômico que, exatamente por ser apenas entrevista, acabou assumin­
do um aspecto moral. O problema, de fato, foi colocado em termos de 
virtude/vício: qual das cidades oferece melhores condições para o 
desenvolvimento das virtudes morais dos sujeitos: aquela antiga, rústi­
ca, que só fornecia o necessário, ou a moderna, mais sofisticada tecno­
logicamente que, além do necessário, oferece também a possibilidade 
do supérfluo e, portanto, condições à aparição e manutenção do luxo?
Em quinto lugar, todo o peso da tradição cristã — mais especifi­
camente católica — vem embaralhar um pouco mais a discussão. 
Principalmente em dois níveis. De um lado, toda tradição ascética, de 
desprezo aos bens terrenos é mobilizada em contraposição à superio­
ridade dos bens espirituais. Basta relembrar a Dissertação sobre a 
Honra, de Bossuet. De fato, em boa lógica, os apologistas da moder­
nidade, cedo ou tarde, entram em rota de colisão com a moral cristã, na 
medida em que (veremos isso mais claramente) defendem um mundo 
regulado pelo conforto dos bens materiais, concepção que está ancora­
da numa concepção egoísta dos seres humanos. Já Mersenne, tão 
pouco interessado em questões morais, marca essa oposição numa de 
suas obras, tratando do amor a Deus. E certo, afirma, que cada um 
busca seu próprio bem e que encontrar-se-á “... sempre esta verdade se 
examinamo-nos geometricamente” e mesmo quando muitos querem 
persuadir “que eles amam seus amigos apenas para o bem destes, e de 
um amor de simples benevolência, sem dele desejar nem pretender 
nenhum benefício, todavia eles se enganam, como confessarão inge­
nuamente se se examinam como é preciso, pois eles acharão sempre 
que o amor de si mesmo, que é chamado de amor próprio, é a fonte e
21
a origem de tudo aquilo que nós fazemos”. Isso é tão certo, continua 
Mersenne, que esse amor próprio é proposto como protótipo daquele 
que devemos conceder ao próximo.4 Mas, a verdadeira dificuldade 
está, nos diz o autor, em saber se podemos amar Deus de forma pura, 
já que, nesse caso, essa é a única forma de amor admissível. E isso nos 
é concedido.-1 Eis aqui o ponto limite onde o cristão não pode transigir.
Por outro lado, no interior dessa ótica, um outro problema emer­
girá cedo ou tarde. A apologia do luxo está intrinsecamente ligada à 
apologia da sociedade moderna, na medida em que foi ela a possibi­
litá-lo. E isso tem como contrapartida uma crítica às sociedades 
arcaicas, o que, no limite, implica a condenação das primeiras 
sociedades e do estado de natureza, o que, aos olhos da Igreja, signifi­
cava desvalorizar a vida tão perfeita de Adão e Eva no paraíso. Nada 
mais inadmissível. Mas Voltaire não hesitou em seu poema:
‘Meu caro Adão, meu lambão, meu bom pai 
Que fazias nos recantos do Éden 
Trabalhavas para esse tolo gênero humano? 
Acariciavas madame Eva, minha mãe? 
Contem-me o que tinham vocês dois 
As unhas longas, um pouco negras e sujas 
A cabeleira mal ordenada
Sem limpeza, o amor mais feliz
Não é mais amor: é uma necessidade vergonhosa
Eis o estado de pura natureza” .6
4. Coloquemos um pouco de ordem nessa discussão. O fato de, em
1736, o poema de Voltaire ter tido tanta repercussão, mostra que a dis­
cussão sobre o assunto estava extremamente acirrada. Delineemos 
mais claramente os argumentos, conforme eles vão se apresentando, 
nas suas linhas gerais.7 O partido dos adversários do luxo subdividia- 
se em duas facções: a Igreja, que sempre condenou o luxo, pelo menos 
retoricamente; e um certo número de autores que ainda estavam presos
a valores mundanos já caducos, representantes do neo-estoicismo,
onde a glória, a honra, a prudência, bem dosadas e na hora certa, cons-
22
tituíam os parâmetros principais. Já os apologistas vêm sobretudo das 
camadas mais intelectualizadas e são difíceis de ser classificados, 
representando, na verdade, tendências muito diversificadas. No início 
têm, pelo menos, dois traços comuns: uma certa dose de ceticismo e 
uma boa tintura de empirismo.
Gostaríamos de assinalar que essa discussão acompanha uma série 
enorme e maciça de transformações materiais pela qual passou a socie­
dade ocidental nessa época. Todos os historiadores estão de acordo, nos 
parece,que nossa sociedade foi, até os primórdios da modernidade, 
uma sociedade na qual se pode bem aplicar o conceito, utilizado por 
um filósofo contemporâneo, de rareza. De fato, tomada globalmente, a 
sociedade ocidental viveu, até essa época, sob o regime da raridade dos 
bens. Desde os gregos até meados do século XVI a produção dos bens 
esteve regulada pelas necessidades, quando não esteve abaixo delas. 
Nesse tipo de economia, o luxo sempre guardou um caráter figurativo 
e simbólico. Ele basicamente existiu sobre essa forma, salvo em algu­
mas épocas e para algumas camadas da população. Tapeçarias, jóias, 
vestuários e utensílios suntuosos eram signos de uma condição e uti­
lizados em certas circunstâncias e ocasiões: festas, aparições públicas 
da realeza, procissões da Igreja etc. O luxo funcionou mais como uma 
marca de respeito do que como um objeto de desejo. Ele era requerido, 
no ciclo da vida social, de tempos em tempos e, neste ponto, diferia 
pouco dos cerimoniais dos povos primitivos. O cotidiano das pessoas, 
no entanto, é de um nível de vida, em geral, baixo. O dia-a-dia de um 
nobre medieval não faria muita inveja a um burguês do século XVIII. 
Foi só com o ciclo das descobertas marítimas e tecnológicas, e a con­
seqüente circulação cada vez maior do dinheiro, que foi possível 
começar a passar da economia de rareza para uma economia da 
abundância, onde os artefatos, os utensílios (as comodidades da vida) 
puderam começar a se expandir tanto no sentido horizontal (consome- 
se cada vez mais e diversificadamente no interior de uma camada 
social), como no vertical (muito lentamente, outras começam a ter 
acesso a bens até então inacessíveis). É por essa época que se inicia o 
ataque ao luxo, não como algo extraordinário, mas como algo que 
começa a fazer parte do cotidiano da vida das pessoas.
Tomemos, em primeiro, o ataque oriundo da Igreja, tomando 
como figura exemplar Fénelon e, depois, a versão laica dessa crítica, 
através de La Bruyère.
23
5. Fénelon, arcebispo de Cambray, foi nomeado preceptor do 
delfim, ocasião que utilizou para escrever, para deleite e educação do 
mesmo, um texto denominado As Aventuras de Telêmaco. O livro tem 
um cardápio variado mas, em dois momentos, descreve duas 
sociedades (Bética e Salento), que figuram como modelos onde impera 
a frugalidade e o rigorismo dos costumes é a regra. São utopias, não 
restam dúvidas. Mas todo leitor da época (e o livro foi o que hoje 
denominamos um best-seller) sabia muito bem que. por contraste, 
Fénelon estava criticando os desmandos administrativos e financeiros 
de Luís XIV, que ao construir Versailles drenou literalmente os cofres 
públicos deixando uma França ainda mais combalida economicamente 
e com uma alta taxa de pobreza e miséria. Fénelon prega uma ordem 
rígida, uma sociedade regrada segundo a norma do bem comum onde 
não tem lugar nem o luxo nem a miséria. Condena o desperdício e 
mostra que, além de provocar a pobreza, o luxo é corruptor. Elogia 
ardorosamente a frugalidade (tópico comum nos escritores antigos) e 
toma como modelo a virtude espartana ou a austeridade da Roma 
Republicana. Ele trabalha por oposição: ao mesmo tempo que 
descreve a simplicidade de Bética, por exemplo, a opõe claramente aos 
Estados onde reina o fasto e a suntuosidade:
“ Quando lhes faiam os dos povos que têm a arte de fazer 
construções soberbas, móveis de ouro e prata, tecidos 
ornados com bordados e pedras preciosas, perfumes 
maravilhosos, iguarias deliciosas, instrumentos cuja 
harmonia encanta, eles respondem nestes termos: Esses 
povos são muito infelizes por ter empregado tanto tra­
balho e indústria para corromper-se a si mesmos! Esse 
supérfluo enfraquece, inebria e atormenta aqueles que o 
possuem; ele tenta aqueles que dele são privados a que­
rer adquiri-lo pela injustiça e pela violência. Pode-se 
chamar de bem um supérfluo que só serve para tom ar 
os homens maus? Os homens desses países são mais 
sãos e mais robustos do que vós? Vivem mais tempo? 
São mais unidos entre si? Levam uma vida mais livre, 
mais tranqüila, mais alegre? Ao contrário, eles devem 
ser invejosos uns dos outros, corroídos por um temor, 
pela avareza, incapazes dos prazeres puros e simples,
24
visto que eles são escravos de tantas falsas necessidades 
das quais fazem depender toda a sua felicidade” .s
A campanha de Fénelon é sistemática. O luxo é, para ele, um dos 
maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como 
de deter a inconstância das modas. A disseminação do luxo e do gosto 
pelo supérfluo é o princípio da indolência:
“Se vós colocais (...) os povos na abundância, eles não 
trabalharão mais, tornar-se-ão arrogantes, indóceis, e 
estarão sempre prestes a se revoltarem...” ?
O luxo e a autoridade injusta são as duas coisas mais perniciosas para 
um governo e, instaurados, é muito difícil achar os bons remédios.10 Mais: 
o luxo é como a peste. Alastra-se por todo tecido social, infecciona-o, cor­
rói tudo nas suas mínimas partes e leva fatalmente ao desastre:
"... o luxo envenena toda uma nação. Dizem que este luxo 
serve para alimentar os pobres às expensas dos ricos; 
como se os pobres não pudessem ganhar sua vida mais 
utilmente, multiplicando os frutos da terra, sem enfraque­
cer os ricos por refinamentos de volúpia. Toda uma 
nação acostuma-se a ver as coisas as mais supérfluas 
como as necessidades da vida: todos os dias inventam-se 
novas necessidades, e não se pode mais passar-se de 
coisas que não se conhecia trinta anos antes... Este vício, 
que atrai tantos outros, é louvado como uma virtude: ele 
dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do 
povo. Os parentes próximos do rei querem imitar sua 
magnificência; os grandes, aquela dos parentes do rei; as 
pessoas medíocres querem igualar-se aos grandes; ... os 
pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz 
mais do que pode; uns por ostentação, ... outros por má 
vergonha e para esconder sua pobreza... Toda uma nação 
arruína-se, todas as condições confundem-se” .“
25
r
Através dessa crítica delineiam*se os contornos da verdadeira, boa e 
saudável sociedade: aquela onde os homens “vivem simplesmente”, con­
tentam-se em satisfazer suas “verdadeiras necessidades”, vida esta que 
constitui a fonte da “abundância, alegria, paz e união”.12 Daqui à reva­
lorização da cidade e dos costumes antigos, o passo é imediato. “Nada é 
mais amável”, diz o autor, “que essa vida dos primeiros homens”, que 
viviam segundo a razão e amavam a virtude, e que é incomparável ao 
luxo vão e ruinoso de nossos tempos.13 É, de fato, essa “amável simpli­
cidade do mundo nascente: essa simplicidade dos costumes, tão distante 
do luxo”.14 E, para ele não existe nenhuma hesitação possível:
“Prefiro cem vezes a pobre Itaca de Vlysses a uma cidade 
brilhante graças a uma magnificência tão odiosa”
Trata-se agora, para os tempos atuais, de empreender uma gigan­
tesca reforma dos costumes para ver se é possível deter essa praga que 
está disseminada pela sociedade. É preciso reformar o governo, criar 
leis suntuárias rigorosas,1'' incentivar o trabalho que produz o 
necessário, eliminar o supérfluo em todos os níveis imagináveis, desde 
o fasto público até os costumes dos jovens. Assim, no seu tratado sobre 
a educação das jovens aconselha “o gosto de uma verdadeira mode­
ração”, onde não apareça no exterior “nenhuma afetação”:
“E preciso fazer entender a esta jovem pessoa que é o 
luxo que confunde todas as condições, que eleva as pes­
soas de baixo nascimento e enriquecidas depressa por 
meios odiosos, acima das pessoas de condição a mais 
distinguida; que é esta desordem que corrompe os cos­
tumes de uma nação, que excita a avidez, que habitua às 
intrigas e às baixezas, e que pouco a pouco sapa todos 
os fundamentos da probidade. Ela deve compreender 
também que uma mulher, por maiores que sejam os bens 
que esta traga a uma casa, logo a arruina se introduz ali 
o luxo, com o qual nenhum bem pode ser suficiente” n
26
As teses de Fénelonsão bem claras. Elas apontam também para 
certas características da natureza humana às quais nosso autor prende- 
se firmemente: um ideal estrito de predomínio da razão, que deve 
dominar as paixões e conduzir a vida do sujeito, a qual deve ser regra­
da e produtora do útil necessário. A inquietude não deve fazer parte da 
vida humana. Deve ser banida:
‘‘Uma vida sóbria, moderada, simples, isenta de inquie- 
tudes e de paixões, regrada e laboriosa, retém a viva 
juventude nos membros de um homem sábio..."
Um outro ponto a salientar é a idéia presente em Fénelon de que 
houve, no decorrer dos séculos, uma espécie de desvio, de desvio 
patológico entre as inclinações naturais do indivíduo e as que viciosa­
mente adquiriu, mas que não fazem parte de sua natureza. O luxo não 
é uma inclinação natural, é um desvio. Num de seus diálogos,19 um dos 
interlocutores recrimina o outro pelas suas excessivas despesas nos 
banquetes, ao qual ele responde que assim o faz por vergonha de pas­
sar por avaro: os “pródigos tomam sempre a frugalidade por uma 
avareza infame”. “Não devias fazer isso”, retruca o crítico, “pois não 
é essa a nossa inclinação”.
Vida calma e regrada, da qual a inquietude deve ser banida, e com­
bate feroz ao desvio com relação ao supérfluo, já que este não faz parte 
de nossas inclinações naturais, tais são os fundamentos da análise de 
Fénelon e que serão impiedosamente demolidos pelos seus críticos.
6. A vertente mundana ou laica da crítica do luxo teve muito 
menos importânòia e extensão. La Bruyère é um de seus melhores 
representantes. Seii universo é bem distante do de Fénelon, embora 
chegue a conclusões muito semelhantes. Trata-se de um mundo da 
honra, da coragem, da glória pelos grandes feitos e da simplicidade dos 
costumes oferecidos pela vida rústica, da qual a cidade aparece como 
o contraponto negativo. Seu universo é o das “coisas rurais e 
campestres”,2" que verdadeiramente admira.
E nada mais distante desse ideal do que o habitante das grandes 
cidades pelo qual La Bruyère tem verdadeira alergia. Esse “vil rábula”,
27
por exemplo, “do fundo de seu estudo sombrio e esfumaçado”, ocupa­
do das mais “negras chicanas”, acha-se não só superior ao homem que 
labora a terra, goza o céu aberto e bem semeia como
“se alguma vez ele escuta fa la r dos primeiros homens ou 
dos patriarcas, de sua vida campestre e de sua economia, 
ele se espanta de que se tenha podido viver em tais 
épocas onde ainda não havia nem escritórios, nem 
comissões, nem presidentes, nem procuradores; ele não 
compreende que alguma vez se tenha podido passar-se 
do cartório, do ministério público e do botequim" .21
Seu desprezo por esse tipo de gente acresce-se ainda mais pela 
sua “molesse”, desconhecida dos antigos, nos quais não se os via, 
quando saíam de um jantar, montarem numa carruagem, já que 
estavam persuadidos de que os “homens têm pernas para andar e eles 
andavam”/ 2 Seus costumes eram austeros, cuidando de seus próprios 
negócios: “Em todas as coisas eles contavam consigo mesmos”.2-1 Sua 
“despesa era proporcional à sua receita” e tudo era medido segundo 
suas rendas e sua condição e assim “passavam de uma vida moderada 
à uma morte tranqüila”2'1:
“Eles tinham menos do que nós e tinham o suficiente, 
mais ricos por sua economia e por sua modéstia do que 
por seus rendimentos e por seus domínios. Enfim , esta­
va-se então penetrado por esta máxima de que aquilo 
que nos grandes é esplendor, suntuosidade, magnificên­
cia, no particular é dissipação, loucura, inépcia” P
É essa visão que conduz La Bruyère a valorizar o mundo antigo na 
sua frugalidade e simplicidade. Foi preciso que escoasse o tempo para 
que os homens percebessem que tanto nas ciências quanto nas artes o 
melhor era retomar às origens, ao gosto dos antigos, e “retomar enfim 
o simples e o natural”.26 E por isso que lhe seduz tanto “a vida simples 
dos atenienses” quanto a vida dos “primeiros homens”, grandes por
eles mesmos. Ao fim e ao cabo, toda essa miríade de invenções poste­
riores vieram apenas: “talvez para substituir essa verdadeira grandeza 
que não existe mais”.27 Nesses homens, a natureza mostrava-se em toda 
sua pureza e sua dignidade, “não estava ainda manchada pela vaidade, 
pelo luxo e pela tola ambição”28 e o homem não era honrado sobre a 
face da terra senão “pela sua força e virtude”.29 Não era rico em função 
de cargos ou pensões mas “por seu campo, por sua manada, suas crian­
ças e servidores”, e sua alimentação era sã e natural.3"
Vê-se bem que toda crítica de La Bruyère é aquela feita por um 
homem que já não pertence mais ao seu tempo. O estofo de sua análise 
é uma nostalgia que a atravessa de ponta a ponta e que faz com que 
expresse com azedume o mundo que vê ao seu redor.
7. A resposta a essas análises não demorou. E veio de uma das 
inteligências mais profundas e mais polêmicas da época: P. Bayle. A 
crítica de Bayle é executada em regra: ataca tanto a posição laica, 
quanto a inspirada na religião. Ambas, é fácil de perceber, têm um 
ponto em comum: um certo saudosismo, quando realizam a apologia 
dos costumes antigos mais puros e virtuosos. Outro ponto comum é a 
denúncia do relaxamento geral dos costumes do presente. E exata­
mente sobre esse dois pontos que Bayle inicia sua análise. Um dos 
inúmeros méritos de Bayle foi começar a colocar em questão (o que 
não tinha sido feito seriamente até então) o mito da frugalidade e da 
simplicidade dos antigos. Lança a suspeita de que, na verdade, trata-se 
de uma construção retroativa elaborada com fins específicos e nem 
sempre confessáveis. O que ele quer dizer é, por exemplo, que essa 
Esparta, rústica, austera, simples, frugal, honesta, dotada enfim de 
todas a&aualidades cívicas e morais, teria muito menos a ver com a 
Esparta histórica do que com a projeção retroativa de um conjunto de 
valores qu i pouco ou nada teriam a ver com ela. O mesmo pode-se 
dizèr-da-Roma Republicana. E sabemos o quanto Bayle foi mestre na 
crítica histórica. Sabia e mostrava que as reconstruções de um Tito 
Lívio ou um Comélio Nepos eram falsas. Podiam estar repletas de 
intenções morais (e não negava as vantagens resultantes disso) mas 
não tinham a menor validade histórica. O que Bayle mostra, de forma 
cristalina, é que, se os antigos viveram na frugalidade, isso não se 
deveu a nenhuma escolha de ordem moral, mas a uma coação natural. 
Em outros termos: as sociedades antigas eram pobres. E não é muito
honesto transformar uma necessidade numa virtude: “Não é um grande 
mérito renunciar... ao luxo quando se é pobre”.31 A austeridade só deve 
ser elogiada no campo moral quando, na presença de um bem, opta-se 
por renunciai- a ele. Não há nenhum mérito no caso daquele que, além 
de não ter escolha, nem sequer saber que ele existe:
"Quanto a essa frugalidade tão elogiada, ela não era 
uma supressão das coisas supérfluas, ou uma abstinên­
cia voluntária das agradáveis, mas um uso grosseiro 
daquilo que se tinha entre as mãos. Não se desejava as 
riquezas que não se conheciam: contentavam-se com 
pouco por não imaginar nada a mais; passavam-se dos 
prazeres dos quais não tinham idéia”.32
Mas a própria ótica cristã na análise do problema é colocada em 
questão por Bayle. E aqui o alvo é, sem dúvida, Fénelon. E não se 
pode negar: toda a análise de Fénelon com relação ao luxo e o pro­
blema que instaura estão elaborados por um pensador que, no essen­
cial, é fiel à tradição do ascetismo cristão. A problemática dele 
insere-se na ótica de condutor (ou conselheiro) real, de um preceptor 
espiritual do futuro rei, no qual quer inculcar esses princípios contra 
o que pensava serem as perversões engendradas pela busca do con­
forto e do prazer. O que significa dizer, aos olhos de Bayle, que a 
questão, por princípio, está decidida. O retrato que ele nos traça do 
cristão deixa isso muito claro:
"Os verdadeiros Cristãos, parece-me, consideravam-se 
na terra como viajantes e peregrinos que se dirigem ao 
Céu, sua verdadeira pátria. Eles veriam o mundo comoum lugar de banimento, afastariam dele seu coração, 
lutariam sem fim e sem cessar com sua própria natureza 
para impedir-se de tomar gosto pela vida mortal, sem­
pre atentos em mortificar sua carne e suas cobiças, em 
reprimir o amor pelas riquezas, pelas dignidades e pelos 
prazeres corporais, e em domar este orgulho que torna 
as injúrias tão pouco suportáveis" .33
30
Mas Bayle não se contenta em simplesmente elaborar uma crítica. 
Engaja-se claramente na nova mentalidade e faz-se apologista de 
novos valores nascentes. Liberal, um pouco “avant la lettre”, já declara 
sua pouca preocupação com os problemas morais, deixando-os para o 
futuro, e incita à inserção nas novas práticas e concepções:
“Conservai à avareza e à ambição toda a sua vivacidade... 
Prometei uma pensão àqueles que inventarão novas 
manufaturas e novos meios de ampliar o comércio” M
E se isso, um dia, configurar-se como problemático:
“Vbjjoi descendentes cuidarão disso; então, como 
agora, deixai o cuidado com o futuro a quem este per­
tencerá, pensai na opulência do tempo presente...” .35
8. O contra-ataque de Bayle era de um enorme peso e tudo levava 
a crer que pouca coisa mais poder-se-ia dizer sobre o assunto, quando 
aparece uma verdadeira bomba: a Fable o f Bees de B. Mandeville. 
Originalmente (1705) apareceu na forma de um pequeno poema intitu­
lado The Grumbling Hive: or Knaves Turn’d Honest e a ele deu-se 
pouca atenção. Reaparece com o título pelo qual é conhecido, consi­
deravelmente aumentado, em 1714, e desde então chama a atenção e a 
ira.3* Por fim, em 1729, aparece um volume suplementar contendo seis 
diálogos. Eis a história sucinta do texto.
O'poema inicial, germe de todos os desenvolvimentos posterio­
res, diz basicamente o seguinte. Trata-se de uma colméia, espelho da 
sociedade tmmana (o poema é uma alegoria), onde reina livremente a 
desonestidade e o egoísmo e se vive em plena prosperidade. Num 
determinado momento, ela experimenta a nostalgia da virtude e pede 
aos deuses esse dom, no que é atendida. Satisfeito o desejo da colméia 
ela passa a ser o lugar onde reinam irrestritamente a virtude e a 
justiça. Mas, coisa extraordinária, essa perfeição moral alcançada 
pelos indivíduos acaba por engendrar a ruína do conjunto que se toma 
imóvel, congelado e estéril. Desaparece a atividade, a prosperidade se
31
4
esvanece, e começa a imperar a pobreza e o tédio numa população 
cada vez mais reduzida.
Todos os analistas de Mandeville concordam muito pouco entre si, 
a não ser num ponto: seu pensamento é extremamente complicado, 
complexo, praticamente impossível de ser resumido mesmo se ficamos 
com as poucas páginas do poema inicial. Quando se aborda a obra 
toda, então, a questão complica-se ainda mais. Seu pensamento move- 
se quase sempre em torno de paradoxos, de sinuosidades, de distinções 
extremamente difíceis de serem captadas. A começar pelo próprio sub­
título da obra: “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, fórmula que 
pode ser entendida de várias maneiras e o foi.
Tomemos, como hipótese, a idéia de que o poema inicial foi, de 
fato, a semente original a partir da qual a obra foi brotando. Se é assim, 
o sentido original encontra-se exatamente aí. Os desenvolvimentos pos­
teriores são o “commentaire raisonné” dessa intuição original. Partindo 
dessa hipótese, já podemos fazer uma constatação. Se Bayle foi 
extremamente perspicaz ao perceber e denunciar as fraquezas das críti­
cas elaboradas contra o luxo, não teve, no entanto, a mesma perspicá­
cia para perceber que a apologia do luxo deveria se basear numa nova 
escala de valores, numa reavaliação global à qual Mandeville foi sen­
sível. O termo sensível está sendo usado aqui intencionalmente. 
Estamos querendo dizer que Mandeville percebeu muita coisa, vislum­
brou coisas novas, mas nem sempre exprimiu isso com a clareza 
necessária. Mas não sejamos anacrônicos. Não imputemos falhas a um 
pensador que, esboçando uma nova cartografia conceituai, deixou-a 
ainda um pouco embaralhada. Embaralhada para nós, que sabemos o 
rumo posterior das idéias. Mandeville foi um pensador, não um profe­
ta. Talvez a melhor grade para se ler Mandeville seja aquela que seguem 
seus predecessores (sobretudo Hobbes e La Rochefoucauld): na consti­
tuição lenta, mas progressiva, de uma antropologia laica que vê o motor 
fundamental das ações humanas no egoísmo. Essa tese é uma constante 
na obra de Mandeville e Hutcheson dispendeu anos, cursos e livros para 
tentar desmontá-la.’7 É provavelmente através desse operador que con­
seguiremos reagrupar algumas articulações fundamentais.
Dessa perspectiva, uma primeira linha de interpretação impõe-se. O 
que, à primeira vista, aparece como um paradoxo — afinal de contas, 
por que a retitude moral é incompatível com a pTOsperidade? — pode 
começar a se resolver se pensarmos que Mandeville pensa o par 
vício/virtude numa acepção estritamente rigorosa e ascética. Conferindo
32
um sentido rigoroso aos termos, ele consegue colocar em evidência que 
estamos, de fato, frente a uma dupla escala de valores que são incom­
patíveis. Aponta, de forma clara, para o fato de que a moral da perfeição 
individual (lembremos o quadro pintado por Bayle, citado há pouco) 
não é compatível com a moral que é exigida pelo interesse social. 
Entendendo-se por moral, norma de comportamento. Aponta-se, então, 
para uma irredutível separação entre os preceitos da pureza, moral indi­
vidual e os imperativos exigidos para o desenvolvimento material da 
sociedade. Separação que supõe, vimos, o caráter inconciliável de 
ambas as posturas, se se quiser mantê-las simultaneamente.
Em segundo lugar, os diferentes sujeitos são colocados frente a uma 
opção: ou a busca da salvação pessoal e a conseqüente estagnação e dete­
rioração da sociedade, ou a atitude inversa. Ora, o sentido e o tom do 
poema de Mandeville — sobretudo o seu final — não podem deixar muita 
dúvida com relação à posição ou à sua tese. Ele afirma claramente que o 
vício é tão necessário ao Estado quanto é a fome para comer, e percebe 
muito bem que seus contemporâneos já escolheram a segunda via.38
Podemos raciocinar de maneira ligeiramente diferente e chegare­
mos à mesma conclusão: um rigorista moral, absolutamente convenci­
do da veracidade de sua doutrina, como Fénelon, não teria hesitado 
frente a esse quadro: se é assim, é preciso abandonar esse falso rumo 
tomado pela sociedade e reconduzi-la ao bom caminho, reeditando 
várias Espartas modernas. Ora, já vimos, a crítica de Bayle apontava 
claramente o ponto fraco dessa argumentação. Mas pode-se inverter o 
raciocínio de Bayle: qual seja, os antigos tinham um tipo de vida deter­
minado pela necessidade e não pela virtude. Mas nós, modernos, que 
temos diante dos nossos olhos as duas opções, temos também o direito 
de escolha e podemos perfeitamente optar, com conhecimento de 
caüsa, pelo rigor e a frugalidade, se esse é o preço de nossa salvação 
ou/ pelo menos, de nossa retitude moral. Fica claro, portanto, que o 
paradoxo de Mandeville só pode instaurar-se como tal numa sociedade 
que produz bens no regime de abundância e que sabe que há outra 
opção possível, a famosa “opção zero” de um político eminente.
É sintomático, no entanto, que essas possibilidades nunca 
apareçam seriamente no texto de Mandeville. Essa volta para trás é, 
evidentemente, uma impossibilidade aos seus olhos, e isso por uma 
razão muito simples: sua concepção da natureza humana. A nota domi­
nante do pensamento de Mandeville é a de que o móvel central das 
ações humanas é o egoísmo:
33
“Nada existe na terra tão universalmente sincero como o 
amor que todas as criaturas, capazes de senti-lo, se pro­
fessam a si mesmas; e como não há amor que não 
desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada 
há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade, 
seu desejo e seu empenho de conservar-se a si mesma. É 
lei da Natureza que todos os apetites ou paixões da 
criatura tendam diretamente ou indiretamente à preser­
vaçãotanto de si como de sua espécie” .w
E, na medida em que esse egoísmo é a tônica dominante, oni­
presente em toda obra, isso faz com que seja “impossível que o homem 
possa ter melhores desejos para com os demais do que para consigo 
mesmo”.40 Esse egoísmo nos leva a tender a satisfazer todas as nossas 
paixões e desejos, variáveis em cada um, e que constituem seu bem, 
seu prazer.41 Diante desse quadro, como pensar numa volta para trás? 
É por isso que, se isso é impossível, o melhor caminho é a reformu­
lação do nosso código de valores.
Isso significou aos olhos de Mandeville abandonar ostensivamente 
os cânones da moral tradicional? Não. Ele apenas aponta que a vida 
cotidiana, comum e material dos homens, implica regras de conduta 
internas, próprias à sua esfera. Mandeville pode não ter partido o cristal 
que mantinha a unidade do moral e do econômico, ou melhor, a unidade 
que fazia com que o segundo fosse julgado pelo primeiro, mas intro­
duziu uma enorme rachadura. É como se ele dissesse: cada um quê 
opte, é seu direito (já que não existe “summum bonum”). Mas sabe 
muito bem, de antemão, o resultado, já que cada um, segundo Virgílio, 
“Trahit sua quenque voluptas”.42 A história lhe deu razão.
Assim, assistimos não à pulverização da moral tradicional, mas sua 
dissociação da esfera material. Se os sujeitos só cometessem ações vir­
tuosas, isto é, desinteressadas, sabemos que cessariam o comércio, as 
artes (técnicas) e a maioria das profissões perderiam seu sentido, na 
medida em que existem para satisfazer apetites sensíveis (e, na maioria 
das vezes, supérfluos). Só as ações interessadas, portanto, dizem 
respeito à esfera do social enquanto social. Ou seja, só as ações que, 
desse ponto de vista, obedeçam a um critério utilitário, isto é, que sejam 
úteis, boas e benéficas para a sociedade enquanto tal e os indivíduos 
que a compõem, enquanto componentes do social. A utilidade deve ser
34
II
o critério, já que é ela quem contribui para a prosperidade e a felici­
dade de seus membros.
É nesse nível, portanto, que encontramos a razão de ser da ação 
social: ações interessadas, produtoras de benefícios e bens que satis­
façam os desejos humanos e lhes tragam bem-estar. É na produção e 
sobretudo no consumo dos bens materiais que encontramos a razão de 
ser do mecanismo social, já que os outros pertencem a outra esfera. 
Neste ponto, Dumont percebeu agudamente que Mandeville teve um 
papel central na constituição da ideologia modema, pois foi um dos 
primeiros (senão o primeiro) a mostrar que as relações entre os homens 
e as coisas é que são primárias e não as relações entre os homens.43
Posta a questão nesses termos, o problema do luxo coloca-se, na 
perspectiva de Mandeville, de maneira relativamente simples. Se é a 
ordem da utilidade social que impera, basta inclinar-se diante dos 
fatos: uma civilização nova está nascendo e oferece, aos indivíduos, 
um número cada vez maior de bens, dos quais os outros séculos não 
faziam a menor idéia. E a função da sociedade é produzir esses bens, 
fazer com que circulem e, sobretudo, que sejam consumidos, pois é 
para isso que existem. Eles são o motor da sociedade e, nesse sentido, 
benéficos. Devem ser progressivamente incrementados. Quanto maior 
o número de bens, maior o número de beneficiários e benefícios, não 
importando nem a qualidade, nem sua origem, dada a extinção da idéia 
de “summum bonum”. O luxo é algo perfeitamente natural e normal. 
Mais ainda: deve ser estimulado, já que no círculo das necessidades 
estritamente naturais, uma sociedade pode subsistir, mas só se desen­
volve e floresce, quando penetra e explora o domínio do supérfluo. E 
é inútil argumentar que o luxo corrompe, amolece e afemina os cos­
tumes. Os bens que acarretam são bem maiores que os males. E isso é 
o que interessa. Os famosos exemplos do incêndio de Londres e o da 
fabricação de bebidas são evidentemente provocativos, mas significa­
tivos da lógica de Mandeville. Em 1732, Berkeley, no Alcyphron, 
reproduz de forma perfeita o argumento de Mandeville através de um 
dos personagens (Lisicles) do diálogo com relação à bebida:
“A embriaguez, por exemplo, é considerada por vossos 
sábios moralistas um vício funesto, mas isso se deve à falta 
de consideração dos bons efeitos que dela.provêm. Porque, 
em primeiro lugar, aumenta a arrecadação do imposto da
35
cerveja, um dos principais artigos do fisco de sua majes­
tade, e, por conseguinte, promove a segurança, o poder e 
a glória da nação. Em segundo lugar, fornece emprego a 
um grande número de trabalhadores: cervejeiros, fabri­
cantes de malte, trabalhadores, carpinteiros, fabricantes 
de latão, junto com os demais artesãos necessários para 
subministrar aos mencionados seus respectivos instrumen­
tos e utensílios. Todos esses benefícios são produzidos pela 
embriaguêz vulgar, da cerveja forte” .44
Esse é o sentido principal da fórmula: “vícios privados, benefícios 
públicos” e, realizando essa operação, Mandeville já começa a afirmar a 
separação entre bondade e felicidade, algo incompreensível para a 
tradição predominante desde a Grécia clássica. De agora em diante, está 
aberta a possibilidade de se pensar esses dois conceitos em esferas dife­
rentes, embora, em Mandeville, eles ainda não tenham uma tópica clara­
mente definida. Será na Crítica da Razão Prática que isso se instaurará 
definitivamente e onde o campo da moralidade não se confundirá mais 
com o campo da felicidade. Quer dizer, Mandeville, de uma forma ainda 
enevoada, prenuncia a distinção kantiana que, através do imperativo 
categórico, instalará o campo da moralidade de forma completamente 
independente dos fatos e mostrará que a felicidade é um simples ideal da 
imaginação, restrita ao campo empírico, fatual. Não deixa de ser sur­
preendente essa abertura contida principalmente na Fábula das Abelhas?* 
Uma operação importante realizada por Mandeville foi a rela- 
tivização do conceito de luxo:
“Se determinamos as origens das nações mais prósperas, 
encontraremos que, nos remotos princípios de todas as 
sociedades, os homens então mais ricos e considerados 
foram privados durante longo tempo de muitas das 
comodidades de que agora desfrutam os mais humildes 
e miseráveis; de modo que muitas coisas que em outros 
tempos consideravam-se uma invenção do luxo estão 
agora ao alcance de pobres tão indigentes que vivem da 
caridade pública e conceituam-se tão necessárias que 
nos parece impossível que algum ser humano possa 
estar desprovido delas”46.
36
É impossível considerar essas noções tendo como marco um 
ponto absoluto. Riqueza e pobreza, necessário e supérfluo, desperdício 
o frugalidade são noções relativas: o que é privilégio de aJguns numa 
época toma-se, com o decorrer do tempo, objeto de consumo corrente. 
É muito difícil, em primeiro lugar, dizer quando começa o luxo. 
Voltaire, no Dicionário Filosófico, afirma:
“Num país onde todos andam descalços, o que fez o 
primeiro par de sapatos tinha luxo? Não era um homem 
muito sensato e muito industrioso? Isso não vale também 
para quem fe z a primeira camisa? Quem a fe z esbran­
quiçar fo i um gênio pleno de recursos capaz de governar 
um Estado. Entretanto, aqueles que não estavam acostu­
mados a vestir camisas o tomaram por um rico efemina- 
do que corrompia a nação” .47
Da mesma forma, como não se sabe quando começa, é difícil 
detectar também quando termina ou quando passa a ser nocivo:
“Se há de chamar-se de luxo (como deveria estritamente 
ser chamada) cada coisa que não seja imediatamente 
necessária para permitir ao homem subsistir como 
criatura vivente que é, não há outra coisa que exista no 
mundo, nem sequer entre os selvagens nus, dos quais é 
improvável que haja alguns que nessa época não tenham 
melhorado em alguma coisa sua maneira de viver, seja na 
preparação de seus alimentos, na distribuição de suas 
choças ou, pelo menos, adicionando algo ao que, em ou­
tros tempos, consideraram suficiente. Todos dirão que 
esta definição é demasiadorigorosa; sou da mesma 
opinião, mas se vamos mitigar, por mínimo que seja, esta 
severidade, temo que já não saberemos onde deter-nos” ,48
Trata-se de um conceito vago, indefinido, onde nunca se sabe exata­
mente como demarcar o território. Quando as pessoas dizem que apenas
37
querem estar limpas e apresentáveis, por exemplo, diz Mandeville, 
nunca se sabe direito o que estão querendo dizer com isso. Mas, esses 
“pequenos adjetivos são tão extensos, especialmente no dialeto de algu­
mas damas que ninguém pode suspeitar de seu alcance”.41' A réplica con­
tinental não demorou muito:
“O que é, com efeito , o luxo? É uma palavra sem idéia 
precisa, mais ou menos como quando dizemos os cli­
mas do oriente e do ocidente: não existe, com efeito, 
oriente e ocidente. Não há ponto onde a terra se le­
vanta ou se deita, ou, se querem , cada ponto é oriente 
e ocidente. Dá-se o mesmo com o luxo: ou não existe 
ou está em todo lugar" ,w
9. Voltaire, mesmo amenizando um pouco as fórmulas provocati­
vas do Le Mondain, nunca deixou de ser um apologista ferrenho do 
luxo mostrando sempre que ele é um dos grandes benefícios que a ci­
vilização nos trouxe. Ele é o resultado da indústria e do gênio e avança 
com os progressos da primeira. E esse avanço da indústria faz com 
que, progressivamente, os produtos se barateiem.31 Mesmo essa fru­
galidade e essa pureza dos costumes, tão decantada nos antigos, além 
de falsa, como mostram Bayle e Mandeville, não produziram, ao que 
parece, grande coisa para a humanidade. Só uma miopia histórica pode 
fazer alguém preferir Esparta a Atenas:
“Citam a Lacedemônia... Que bem Esparta fe z à Grécia? 
Teve ela Demóstenes, Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo 
de Atenas produziu grandes hom ens".52
Voltaire, como é fácil de ver, pode ter provocado grande ebulição 
quando publicou o Le Mondain. Mas, nem nesse texto, nem na grande 
maioria dos que escreveu posteriormente foi, propriamente, um ino­
vador. Retoma quase sempre os argumentos de Bayle e, sobretudo, de 
Mandeville. Colore-os, embeleza-os, dá a eles sua tintura particular, 
produzindo textos brilhantes e inigualáveis. Mas não vai muito mais
38
longe. Exceto em dois pontos, onde seu papel parece ter sido decisivo, 
lixaminemos o primeiro. Num desses giros muito característicos de 
Voltaire, ele acaba fazendo o feitiço virar contra o feiticeiro e é, não 
sobre a noção de supérfluo que joga sua atenção, mas sim sobre a de 
excesso. Foi esse o grande golpe de gênio de Voltaire, quando acaba 
por inverter as posições e passa do papel de advogado de defesa ao de 
acusador. Trata-se de um momento importante e delicado nessa longa 
c intrincada disputa sobre o luxo e, de agora em diante, serão os 
próprios apologistas da frugalidade que se vêm na obrigação de dar 
explicações. Isso tudo, Voltaire conseguiu com uma simples frase:
“Se por luxo entendem o excesso, sabe-se que o excesso 
é pernicioso em todo gênero: na abstinência como na 
glutoneria, na economia como na liberalidade" .53
Esse argumento já andava difuso e representou uma verdadeira 
viragem na questão do luxo. O que se defende agora é que, bem dosado 
e usado com bom espírito, ele realmente constitui um bem precioso da 
civilização. Por outro lado, já vimos, atingido esse ponto, que os ri- 
goristas ficam numa posição verdadeiramente incômoda. Aquilo mesmo 
que apontavam como a raiz dos males do luxo não só agora é negado 
como se volta contra eles mesmos. A partir desse momento a causa está 
perdida. Tratava-se de uma realidade que era preciso aceitar e conferir 
direito de cidadania teórica. Como comenta, com humor, P. Hazard:
“Quem abordava a questão do luxo estava perdido; qual­
quer incompetente se julgava com direito a pegar na 
pena, compondo uma apologia ou um requisitório; um 
não acabar de disparates, ‘inesgotável mina de tolices’. O 
luxo não era perigoso em si, o luxo só se tornava perigoso 
nos estados mal governados. Havia dois luxos, um culpa­
do e outro virtuoso. Dois luxos ainda, um aristocrático e 
outro popular. E ainda dois outros, um no início, que era 
legítimo; o outro que se tornava ilegítimo a partir do 
momento em que o desejo de brilhar leva o indivíduo a 
adquirir atavios acima de suas posses. Concluíam outros
39
que bem vão era discutir sobre o luxo, posto ser este uma 
realidade: boa ou má, era necessário aceitá-la" .5i
Foi esta última opinião que acabou prevalecendo. A tese de 
Mandeville, deixando de lado seus exageros e seus exemplos bombás­
ticos, é, em linhas gerais, aceita e, afora os ultratradicionalistas e duas 
honrosas e poderosas exceções (Rousseau e Condillac), trata-se agora 
de uma questão de ajuste, de nível e de enquadramento. É o que vão 
fazer os textos de Hume, de um lado, e o verbete “Luxo” na 
Enciclopédia, de outro.
10. A abordagem de Hume foi discreta, mas nem por isso deixou 
de ser importante:
"Luxo, afirma ele, é uma palavra de significação incerta 
e pode ser tomada tanto no bom quanto no mau sentido. 
Em geral, significa grande refinamento na satisfação dos 
sentidos e em qualquer grau pode ser inocente ou culpá­
vel, conforme a idade, país ou condição da pessoa... 
Imaginar que a satisfação de qualquer dos sentidos, ou 
a adoção de qualquer requinte em carnes, bebidas ou 
ornamentos seja por si um vício só poderá ocorrer a uma 
mente desorganizada pelo furor do entusiasmo” .5S
Sua posição é ao mesmo tempo clara e nuançada. Clara porque, nas 
pegadas de Mandeville e Voltaire, considera o luxo como algo que per­
tence à classe do consumo produtivo e, portanto, em geral, benéfica. Nuan­
çada porque realiza a distinção entre um luxo inocente e outro vicioso. O 
que entende por luxo vicioso deixa apenas entrever num exemplo:
“Ocupar-se inteiramente com o luxo à mesa, por exemplo, 
sem nenhum gosto pelos prazeres da ambição, do estudo 
ou da conversação, é sinal de estupidez, e é incompatível 
com qualquer força de temperamento ou de gênio.
40
Dedicar as despesas inteiramente a tal satisfação, sem 
consideração para com os amigos ou a família, indica 
um coração destituído de humanidade ou benevolência; 
mas se um homem reserva tempo suficiente para todos 
os fin s generosos, está livre de qualquer sombra de 
culpa ou reprovação”.56
O que ele chama luxo vicioso parece ser o que entendemos por 
monomania ou idéia fixa. Não deixa de lembrar também Luís XIV e 
Versailles. A idéia que nos vem, por exemplo, é a de um jogador cuja 
paixão foi levada a tal ponto que absorve toda sua vida e drena todos 
os seus bens. Mas, nem nesses casos, Hume considera o luxo como “o 
pior dos males da sociedade política”.57
A análise de Hume centraliza-se num ponto de vista socio- 
econômico. Os homens, desde que deixaram o estado selvagem onde 
viviam principalmente da caça e da pesca, dedicaram-se à agricultura, 
que de início ocupou a parte mais numerosa da sociedade. Mas, o aper­
feiçoamento da técnica levou ao estado em que bem poucos homens, 
proporcionalmente, são necessários para garantir a subsistência dessa 
mesma sociedade. Todo o problema, diz Hume, está em o que fazer 
com esse excedente de mão-de-obra da agricultura. Pode-se usá-lo ou 
para o engrandecimento e o poder do Estado (exércitos, frotas) e o 
aumento de seus domínios, ou pode-se usá-lo para a produção de ma­
nufaturas e objetos mais refinados. Alguns Estados antigos preferiram 
a primeira via e só se tomaram poderosos exatamente pela “ausência do 
comércio e do luxo”.58 Mas esses casos são excepcionais e não instau­
ram uma regra e, neste caso, podemos seguramente dizer que “a políti­
ca antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das 
coisas”.59 Já que tudo no mundo é “adquirido pelo trabalho”, causado 
pelas nossas paixões, e é natural que toda pessoa goze “dos frutos de 
seu trabalho, em plena posse de todo o necessário e de muitas das 
comodidades da vida”.60 E esse é o “curso comum das coisas humanas” 
e a boa política consiste em “concordar com a inclinação comum da 
humanidade e dar-lhe todos os melhoramentosde que é suscetível” e, 
conforme o “curso natural das coisas, a indústria, as artes e os negócios 
aumentam tanto o poder do soberano quanto a felicidade dos súditos e 
é política violenta aquela que engrandece o público à custa da pobreza 
dos indivíduos”.61 É sob essa ótica que os indivíduos conseguem
41
realizar sua felicidade pois os homens, quando a indústria e a técnica 
florescem “mantêm-se em ocupação constante e desfrutam da própria 
ocupação como sua recompensa, bem como dos prazeres que são o 
fruto do seu trabalho”.62 As vantagens de se seguir as inclinações natu­
rais dos homens são múltiplas: quanto mais se requintam no prazer, 
menos se abandonam ao excesso de qualquer tipo.63 Essa produção e 
consumo desses artigos ornamentam a vida multiplicando as satisfações 
inocentes, e são úteis também à sociedade porque produzem não só um 
excesso, que pode ser estocado em caso de necessidade futura, como 
também mantém uma mão-de-obra potencial disponível ao Estado, 
caso ele venha precisar dela, já que ela não produz o essencial.64 
Distribui melhor a riqueza no interior da sociedade, e “onde as riquezas 
estão na mão de poucos”, estes detêm todo o poder e, inevitavelmente, 
conspirarão para deixar todos os encargos aos pobres.65
E falso, enfim, pensar numa opção frente ao problema de excedente 
provocado pelo excesso de refinamento da agricultura. E mais: mesmo 
nos estados onde o Estado era o valor único e primeiro, não foi o luxo o 
causador de suas desordens. Este “não possui a tendência natural de 
acarretar a venalidade e a corrupção”.06 Suas desordens procederam de 
um “governo mal formado e da extensão ilimitada de suas conquistas”.67 
Essa é a fonte de seus males e é por isso que o luxo, mesmo vicioso, não 
é o pior dos males num Estado. De nada adianta combater o luxo. Ele 
por si só é geralmente beneficioso ou, pelo menos, inócuo. De um só 
golpe Hume praticamente inocenta o luxo, insere-o na cadeia natural dos 
eventos sociais (econômicos, seria melhor) e desloca o acento das neces­
sidades do Estado para as necessidades do indivíduo. O luxo agora é a 
conseqüência natural das matrizes passionais do ser humano — desejo 
de ação, de prazer, e de consumo — e insere-se no plano econômico, 
ligado ao desenvolvimento da indústria e do comércio. Ele é um dos ele­
mentos essenciais do desenvolvimento do corpo produtivo. Dupla ação, 
portanto, alocação do luxo como um problema econômico (e desliga­
mento da esfera moral), que deve ser tratado como tal, e sinalização de 
que os males do Estado têm por causa — não o luxo — mas algo que 
está na esfera do político.
Se ainda pode-se dizer com Hume que o “luxo” é uma palavra 
polissêmica e que se trata, portanto, de uma questão de delimitação, 
ninguém melhor que Hume até então realizou esta operação de precisão 
do conceito. Pode-se argüir indefinidamente sobre onde o luxo começa 
e onde acaba, argumentai- sobre a relatividade geográfica e histórica; o
42
fato c que seu único ponto sólido de ancoragem é o econômico, susten­
tado por uma teoria do valor baseada em constantes da natureza humana.
11. Depois da abordagem humeana, ao que parece, assistimos a uma 
espécie de calmaria nessa discussão que só será realmente reavivada nos 
anos 70. Nesse ínterim, Montesquieu dedica-se em vários pontos do 
Espírito das Leis ao problema, sobretudo no livro VII. Mas o tom já é bem 
outro que o das C anas Persas. Não que condene o luxo, ao contrário. Mas 
a apologia é mais que discreta.68 Vincula estreitamente, no entanto, o luxo 
e a Monarquia.6'' Uma outra observação de Montesquieu é interessante:
“O luxo está sempre em proporção com a desigualdade 
das fortunas. Se em um Estado as riquezas são igual­
m ente partilhadas, ali não haverá luxo; po is ele só está 
fun da do nas com odidades que as pessoas se dão pelo 
trabalho dos ou tros”
Desde M andeville, tem -se clara consciência da distinção de classes 
e sua necessidade, num regim e econôm ico baseado em novas prem issas. 
M as nenhum dos autores parecia m uito preocupado com isso, e nem 
com o destino das classes m enos favorecidas. N a verdade, propugnava- 
se que se deveriam m an ter no seu lugar e sob rigorosa e estrita vig ilân­
cia. M ontesquieu m esm o não em ite nenhum ju íz o de valor. Quem , 
prim eiro, ao que parece, foi m ais longe nessa questão (no âm bito dos 
defensores do luxo) parece, para variar, ter sido Voltaire, que ex trai um a 
das conseqüências fundam entais para a abo rdagem de um nível da 
questão (e aqu i está o segundo ponto onde é original):
“Se entendemos por luxo tudo aquilo que é além do 
necessário, o luxo é uma conseqüência natural dos pro­
gressos da espécie humana; e para raciocinar conse­
qüentemente, todo inimigo do luxo deve crer, com 
Rousseau, que o estado de felicidade e de virtude para o 
homem é aquele, não de Selvagem,n mas de orangotango. 
Sentimos que seria absurdo ver como um mal comodi­
dades das quais todos os homens desfrutariam; por isso, 
em geral, só se dá o nome de luxo às superfluidades das
43
quais apenas um pequeno número de indivíduos pode des­
frutar. Neste sentido o luxo é uma decorrência necessária 
da propriedade, sem a qual nenhuma sociedade pode sub­
sistir, e de uma grande desigualdade entre as fortunas, 
que é a conseqüência não do direito de propriedade, mas 
de más leis. São portanto as más leis que fazem nascer o 
luxo, e são as boas leis que podem destruí-lo. Os moralis­
tas devem dirigir seus sermões aos legisladores, e não aos 
particulares, porque está na ordem das coisas possíveis 
que um homem virtuoso e esclarecido tenha o poder de 
fazer leis razoáveis, e porque não é da natureza humana 
que todos os ricos de um país renunciem, por virtude, a 
obter a preço de dinheiro desfrutes de prazer e vaidade” .72
Esse texto é revelador, em primeiro lugar, da distância que foi per­
corrida nessa discussão e que Voltaire espelha tão bem. Uma certa 
acepção do termo luxo já não se discute mais: sua bondade, sua utili­
dade e seu caráter natural à espécie humana. Em segundo lugar, se há 
um sentido em que o luxo pode ser condenado (“Neste sentido...") é 
aquele supérfluo, que é o privilégio de uma minoria rica. Mas isso diz 
respeito, diretamente, à legislação e não à moral privada. Trata-se de 
um problema de política, não de ética: da boa gestão e distribuição dos 
bens que são gerados e produzidos na sociedade. Essa espécie de luxo 
condenável nem é má em si mesma, como veremos, já que é um efeito 
e, mesmo como efeito, nem sempre é condenável.
12. Isso ficará claro no extenso verbete “Luxo” da Enciclopédia.73 
St.-Lambert parte de uma definição mínima de luxo:
“Ele é o uso que se fa z das riquezas e da indústria para . 
se conseguir uma existência agradável” .1A
Em seguida, realiza um longo exame dos argumentos que foram 
arrolados pró e contra o luxo. Não vale a pena deter-se neste ponto na 
medida em que não apresenta novidade em relação ao que já discuti­
mos. A primeira coisa interessante a constatar é a conclusão que
44
extraí após esse balanço: tanto os elogios como as censuras que se 
fazem ao luxo não são contraditos pela história. O que significa dizer 
que a história não é um bom “topos” para se trabalhar a questão. É 
preciso encará-la sob outro ângulo. E a maneira como ele a coloca 
pode ser expressa da seguinte forma: se os apologistas do luxo vêem 
neíe o motor dos progressos das nações, enquanto que seus detratores 
vêem nele o motor de sua decadência, e como ambas as coisas podem 
ser constatadas no plano histórico, não se estaria tomando como 
causa e como efeito algo que não é nem uma coisa nem outra?” E, 
logo em seguida, afirma:
“O interesse pessoal, sem que ele se tenha tornado amor 
pelas riquezas e pelos prazeres, enfim, se tornado estas 
paixões que levam ao luxo, já não produziu , seja junto 
aos magistrados, seja junto ao soberano ou ao povo, 
mudanças na constituição do Estado que o corrompe­
ram? Ou este interesse pessoal, o hábito,os prejuízos 
impediram de fazer mudanças que as circunstâncias ti­
nham tornado necessárias? Enfim , na constituição, na 
administração, não existem defeitos, imperfeições que, 
muito independentemente do luxo levaram à corrupção 
dos governos e à decadência dos impérios?” ,76
Percebe-se através desse texto (e é interessante acompanhar os 
exemplos históricos que St.-Lambert fornece) qual a mudança, a guina­
da que ele está operando: em vez de considerar o luxo como um motor 
fundamental, seja para o bem, seja para o mal, como se tinha feito até 
então, coloca a questão nos seguintes termos: não haveria, por trás 
desse motor aparente, um outro primordial, este sim, responsável pelos 
bens e pelos males dos homens, isso que denominamos o interesse pes- 
soaP. E essa produção do supérfluo (tão elogiada ou denegrida) não é 
um efeito concomitante? Operação dupla: desvincula-se o luxo como 
causa e simultaneamente o enraíza em algo mais originário da natureza 
humana. Começa a se explicitar de forma clara algo que, na verdade, já 
está presente em Mandeville: que existe um núcleo originário, algo que 
habita as entranhas dos homens e que, este sim, deve ser considerado.
Tomemos um outro texto de St.-Lambert:
45
“O luxo tem como causa primeira este descontentamento 
com nosso estado; este desejo de ser melhor, que existe 
e deve existir em todos os homens. Nestes, ele é a causa 
de suas paixões, de suas virtudes e de seus vícios. Este 
desejo deve necessariamente fazê-los amar e procurar 
as riquezas; portanto, o desejo de enriquecer-se deve 
contar entre os motivos de todo governo que não é fu n ­
dado na igualdade e na comunidade dos bens; ora, o 
objeto principal deste desejo deve ser o luxo; portanto, 
existe luxo em todos os Estados, em todas as 
sociedades: o selvagem tem sua rede, que ele compra 
por peles de animais; o Europeu tem seu canapé, seu 
leito; nossas mulheres usam azul e contas de vidro" .77
Esse texto, precioso, e ao qual teremos de voltar, mostra clara­
mente que existe um desejo natural de produzir e gozar dos bens, 
das comodidades, o que excita a produção das artes e indústrias. É 
esse desejo que conduz os homens a instalarem-se no luxo e, num 
governo onde a propriedade está instalada, esses desenvolvimentos 
acontecerão inevitavelmente. Como a sociedade igualitária é uma 
utopia e algo contra essas inclinações naturais, elas até podem 
cristalizar-se historicamente, mas estão condenadas ao fracasso, 
porque não seguem o curso natural. St.-Lambert leu Hume, que é 
citado7“ e soube aproveitar as lições do filósofo. Os homens podem 
produzir um excesso e querem usufruir dele. Nada mais natural. O 
importante, nos avisa, é, de agora em diante, não confundir mais as 
coisas. Sc há uma raiz dos males e dos benefícios, esta se encontra 
na noção chave de interesse próprio e, para bem administrá-lo — 
sendo fiel discípulo de Shaftesbury e seu tradutor, Diderot79 — basta 
subordiná-lo ao “espírito de comunidade que torna o luxo benéfico 
e indefinido temporalm ente”. D eve-se também ligá-lo às outras 
paixões, formando assim um todo, uma cadeia coerente, coesa e 
funcional. Como diz Hubert:
“Saint-Lambert vangloria-se de ter demonstrado que o 
luxo contribui para a grandeza e a força dos estados, e 
que é preciso encorajá-lo, esclarecê-lo, mas também
46
dirigi-lo. O luxo desenfreado leva a sobrecarregar os 
campos de impostos, e despovoá-los, a exagerar a 
desigualdade das riquezas. O luxo moderado enriquece 
o estado, desenvolve-o e sustenta-o. Este não é ameaça­
do enquanto as paixões que conduzem ao luxo per­
manecem subordinadas ao espírito de comunidade” .8n
Assim, são os estados mal administrados que conduzem esse 
efeito concomitante do social — o luxo — aos descaminhos, assim 
como os bens administrados farão com que ele só produza efeitos 
benéficos. Nos primeiros ele se torna excessivo todas as vezes que os 
particulares sacrificam, absolutamente, ao seu fasto e às suas comodi­
dades e fantasias, os seus deveres para com os interesses da comu­
nidade. Mas é preciso ter consciência de que, nestes casos, os particu­
lares assim conduzem porque há um grave defeito na constituição do 
Estado. Agora, o luxo está inocentado:
“Visto que o desejo de enriquecer e od e desfrutar de suas 
riquezas estão na natureza humana desde que ela está 
em sociedade; visto que estes desejos sustentam, enri­
quecem, vivificam todas as grandes sociedades; visto 
que o luxo é um bem, e que por si mesmo ele não fa z 
nenhum mal, não se deve portanto, nem como filósofo 
nem como soberano, atacar o luxo em si mesmo”
O texto de St.-Lambert enfeixa numa unidade admirável um con­
junto de teses que estavam mais ou menos esparsas entre os autores 
que analisamos até agora. Praticamente recupera todas e essa síntese 
pode ser esquematizada nos seguintes pontos principais:
1- Ele opera um deslocamento da questão mostrando que o luxo 
enquanto tal é um efeito concomitante de causas mais profundas e 
que, dependendo da ação dessas causas, pode produzir efeitos benéfi­
cos ou não;
47
2- O luxo, enquanto tal, é inerente ao estado de sociedade e, 
enquanto esta existir, ele a acompanhará, a não ser nos casos de 
exceção, não naturais;
3- Quando produz efeitos nocivos, não é por si mesmo, mas em 
conseqüência da má administração do Estado, que não está sabendo 
guiar, canalizar bem o interesse próprio;*2
4- Mostra que o luxo é o resultado de certos desejos oriundos de 
uma particular disposição da natureza humana, a qual ele vem exata­
mente preencher.*'
13. Partimos de uma sugestão de R. Hubert84 que dizia que o desen­
volvimento da questão do luxo era uma das mais características para se 
compreender a transformação das idéias no século XVIII. Chegou o 
momento de verificarmos se ela é correta ou não. E, ao que tudo indi­
ca, a aposta valeu a pena. O exame da “querela do luxo” fornece-nos 
um conjunto precioso de indicações que, num primeiro momento, con­
figuram-se ou, pelo menos, apontam para um conjunto de interrogações 
cujas respostas não brotam ao simplesmente serem formuladas.
Em primeiro lugar, é interessante notar que essa questão perdurou 
por mais de um século. A lentidão é impressionante. Na verdade ela não 
terminou por volta do início do último terço do século XVIII. Ela conti­
nuará por longo tempo.” E, vez por outra, ela reaparece periodicamente. 
Quando falamos em lentidão não estamos nos referindo ao tempo que 
foi necessário para resolver a questão. Esse é um dos problemas que 
provavelmente subsistirá enquanto o mesmo fizer a humanidade e 
depende, na escolha que o sujeito fez, de um conjunto de opções prévias 
radicais no plano filosófico. Assim, quando falamos em lentidão, esta­
mos nos referindo a uma outra coisa. O que foi extremamente lento foi 
o tempo necessário para que os apologistas do luxo pudessem formar 
um corpo coerente de argumentos que tornasse sustentáveis suas teses.
Poder-se-ia utilizar o operador “resistência” para tentar explicar o 
fenômeno. De fato, a “Resistência das Mentalidades” ao novo, essa 
viscosidade que nos liga fortemente ao já conhecido, essa inércia na­
tural a que estamos submetidos tem muito a ver com tudo isso. Mas,
no caso, pensando bem, isso só serve realmente para recuarmos o 
problema, não para resolvê-lo. O que estamos querendo saber é exata­
mente porque a explicitação dos argumentos que sustentam os defen­
sores do luxo levou tanto tempo para se articular de forma coerente, e 
já estamos dando por suposta essa resistência. Estamos mais interessa­
dos em suas razões. Foi de uma forma trabalhosa que se conseguiu 
perceber algo que para nós é uma verdade elementar: a produção e 
consumo do supérfluo é um fenômeno econômico que tem implicações 
morais e não vice-versa. Por outro lado, e aqui talvez esteja realmente 
um dos focos centrais do problema, o desenrolar da análise da questão 
vai progressivamente apontando para o fato de que existe algo, algu­
ma coisa, uma espécie de atributo da natureza na qual esse

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