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EDITORA DA U N IV ERSID AD E ESTADUAL DE CAMPINAS UNICAM P Reitor: José Martins Filho C o ordenador G eral da Universidade: André Villalobos C onselho E d itor ia l: Alfredo M iguel Ozorio de Almeida, Antonio Carlos Bannwart, César Francisco Ciacco {Presidente), Eduardo Guimarães, Hermógenes de Freitas Leitão Filho, Hugo Horácio Torriani, Jayme Antunes Maciel Júnior, Luiz Roberto Monzani, Paulo José Samcnho Moran D iretor E xecu tivo : Eduardo Guimarães LUIZ ROBERTO MONZANI DESEJO E PRAZER NA IDADE MODERNA FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP Monzani, Luiz Roberto M769d Desejo e prazer na idade moderna / Luiz Roberto Monzani. - - Campinas, SP: Edilora da UNICAMP, 1995. (Coleção Repertórios) l. Filosofia moderna. 2. Materialismo. 3. Desejo. I. Título. 20. CDD - 190 -146.3 -152.4 ISBN 85-268-0338-7 índices para Catálogo Sistemático: 1. Filosofia moderna 190 2. Materialismo 146.3 3. Desejo 152.4 Coleção Repertórios Copyright © by Luiz Roberto Monzani Projeto Gráfico Camila Cesarino Costa Eliana Kestenbaum Coordenação Editorial Carmen Silvia P. Teixeira Produção Editorial Sandra Vieira Alves Preparação de originais Paula M. Senatore Revisão Vera Luciana Morandim Rosa Dalva V. do Nascimento Tradução das citações Carlos Alberto Ribeiro de Moura Composição e Fotolitos Trianon Editora S/C LTDA. 1995 Edilora da Unicam p Caixa Postal 6074 C idade Universitária - Barão Geraldo C EP 13083-970 - C am pinas - SP - Brasil Tel.: (0192) 39.8412 Fax: (0192) 39.3157 Agradecimentos Ao CNPq, que me conferiu, por dois anos, uma bolsa para que desenvolvesse esta pesquisa; A Josette, minha mulher, que teve a paciência de decifrar meus garranchos e fazer a primeira versão datilografada; Dos amigos, aos quais devo muito, gostaria de agradecer espe cialmente a Moacyr Nunes de Oliveira e Adalberto Tripicchio, o primeiro por ter me auxiliado muito na bibliografia e o segundo por suas fórmulas mágicas. Por último, aos professores Michel Debrun, Fausto Castilho, Marilena Chaui, Bento Prado e Arley R. Moreno, primeiros leitores deste texto. Foi, para mim, um privilégio escutar suas observações sempre pertinentes. Que eles encontrem aqui a expressão de meu respeito, admiração e amizade. Para Josette: Tant ai en liferm assis mon corage Qu’ailleurs ne pens, et Diex m 'en lait joïr! C’onques Tristanz, qui but le beverage, Plus loiaument n'ama sans repentir; Quar g ’i met tout, cuer et cors et désir, Force et pooir, ne sai se fa iz fo lage; Encor me dout qu’en trestout mon eage Ne puisse assez li et s’amour servir. (Le Châtelain de Coucy) e Para Juliana, J. Marcelo e Luiz Henrique I SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................... 11 I. LUXO...................................................................................................17 II. DESEJO............................................................................................. 63 III. INQUIETUDE.............................................................................. 115 IV. PRAZER.........................................................................................163 CONCLUSÃO.................................................................................... 223 BIBLIOGRAFIA................................................................................ 228 INTRODUÇÃO O trabalho que o leitor tem em mãos é fruto de uma suspeita e resulta numa hesitação. Por isso, talvez seja melhor retraçar rapida mente o itinerário que resultou na sua confecção, para que se possa ter uma idéia mais clara de suas reais dimensões. Há poucos anos, mais precisamente quando caíram em minhas mãos os primeiros volumes da recente reedição das obras completas de Sade pela editora Pauvert,1 propus a mim mesmo uma leitura mais sis temática desse autor um tanto quanto esquisito. Já conhecia, há tem pos, boa parte de sua obra. Mas, minhas leituras foram sempre esparsas, desorganizadas e sem nenhuma finalidade precisa, a não ser a curiosidade e a impressão de que esse autor havia produzido uma obra única, incomparável e demolidora. Por outro lado, meu conheci mento lacunar — não tinha tido acesso, por exemplo, até então, à Histoire de Juliette — impedia-me de formar qualquer opinião que pudesse julgar solidamente estabelecida. Depois dessa leitura, agora mais metodicamente elaborada, e pas sado o impacto que a obra do Marquês traz inevitavelmente, procurei examiná-la mais friamente, e nasceu a suspeita não só de que Sade dependia muito, nas suas concepções, de certas matrizes de pensa mento do século XVIII, como também, sob muitos aspectos, ele era a realização completa e acabada dessas mesmas matrizes. Conhecia, é claro, a tese de Horkheimer e Adorno sobre Sade. Mas, nunca pude concordar com suas premissas. Curiosamente, con cordava com algumas de suas conclusões. Nasceu em mim, então, a 11 suspeita de que era necessário encontrar o solo real do qual o discurso de Sade brotava. De qualquer maneira, resolvi abandonar, provisoria mente, a idéia tão difundida — sobretudo pelos próprios estudiosos de Sade na sua grande maioria2 — de que sua obra seria um a exceção monstruosa e única, e passei a trabalhar com a idéia de que talvez Sade apenas tivesse levado às últimas conseqüências, no plano moral, certas premissas de pensamento estabelecidas na idade modema. Indícios sobre isso não faltavam, mas sentia a falta de um fio condutor. Meus primeiros passos, realizados um pouco instintivamente, foram os de examinar um pouco a literatura libertina da época e aqueles autores — na sua maioria filósofos — que Sade insistentemente faz questão de afirmar que constituem o estofo e o fundamento de seu pensamento. No primeiro caso, o exame da literatura libertina foi praticamente inútil, a não ser para reforçar minha convicção de que Sade, no seu gênero, é realmente um escritor de excepcional qualidade e que uma grande edi tora nada mais fez que um ato de justiça ao incluí-lo entre os clássicos. No segundo caso, as coisas passaram-se de forma ligeiramente diferente. O referencial imediato de Sade — no plano filosófico — são os materialistas franceses. Particularmente, La Mettríe, Helvétius e Holbach. Sade seguramente conhecia muito bem esses autores, de alguns dos quais pilha páginas e páginas.3 No caso desses pensadores, a filiação realmente era inegável. Nem sempre da forma colocada pelo próprio Sade. Ele faz questão de afirmar, por exemplo, que as bases do que denomina “seu sistema” estão, basicamente, nos textos de Holbach. Isso é verdade, no que concerne às linhas gerais, isto é, à idéia de uma matéria em eterno movimento produzindo e destruindo incessantemente novas formas, o ateísmo integral etc. Mas, com relação ao problema ético,4 Sade é, na verdade, um profundo devedor com relação a La Mettrie. Se se quer achar os antecedentes imediatos das concepções de Sade, elas estão seguramente muito mais no Anti- Sêneca, do que no Sistema da Natureza. O que impressiona profundamente o leitor é o fato de que, em La Mettrie, encontramos praticamente as mesmas teses de Sade, com a diferença de que não são desenvolvidas com a crueza cirúrgica do Marquês, mas sim no calmo plano das idéias abstratas. Aproveitando- me de uma fórmula de Foucault, podemos dizer que La Mettrie é o lado aveludado de Sade. Não se trata aqui de mostrar essa semelhança, o que implicaria escrever um trabalho de proporções mais ou menos iguais ao deste, 12 mas sim de apontar para aquilo que acabou ficando claro nesse primeiro momento. Por um lado, isso reforçava a suspeita de que Sade não era uma estrela solitária, a não ser pelo modo como escolheu para expor, mas não por certos esquemas de pensamento. Por outro lado, isso fazia adiantar muito pouco o tratamento da questão. Pode ser inte ressante constatar fortes convergências nas teses de dois autores mas issoapenas mostra que ambos trabalham sobre um estofo conceituai, um certo universo mental já constituído, do qual ambos se nutrem. Ora, a questão particularmente mais instigante era exatamente ten tar explicar quais eram as linhas mestras dessa concepção. E, sobre esse ponto, as obscuridades eram muito fortes e as idéias que tinha, muito vagas.5 Refletindo sobre isso, não foi difícil concluir que o que estava provavelmente norteando tudo isso era uma concepção sobre os funda mentos da vida passional que pouco ou nada tinha a ver com a con cepção clássica. Era preciso, de uma certa maneira, operar um recuo ainda maior e questionar onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar os primeiros indícios dessa concepção. Tudo levava a crer que isso de veria ser buscado no século XVII, mais particularmente em T. Hobbes. Acreditei, então, poder isolar, dizendo as coisas de forma muito rude, um bloco conceituai que ia de Hobbes até os denominados mate rialistas franceses. Houve um trabalho intenso na tentativa de isolar certos conceitos capitais, certas noções-chaves e ir vendo, por assim dizer, como se mantinham ou se transformavam no decorrer do tempo. Esse projeto, durante um certo tempo, revelou-se frutífero, e parecia, de fato, que se poderia isolar um conjunto de conceitos que se per filavam de forma a indicar que uma nova concepção da vida passional delineava-se na modernidade. Mas, um estudo mais atento dos textos revelou que estava tratando, como uma unidade algo que não possuía esse atributo. Considerações mais cuidadosas acabaram mostrando que dever-se-ia considerar duas grandes mutações — operadas, no entanto, sobre uma mesma matriz — uma em Hobbes e a outra, surpreendentemente, no Traité des Sensations de Condillac. Esse intervalo, tudo levava a crer, estava recheado de interrogações e hesitações. Percebi também, nesse meio tempo, que um autor que não tinha cogitado de início exercia um papel fundamental: Malebranche. Ao mesmo tempo que esse trabalho desenrolava-se nessa linha, um pouco por acaso, no início, deparei-me com a famosa “querela do luxo”. Estudando-a com mais atenção percebi que ela refletia de forma 13 exemplar, embora vaga, esse conjunto de novas concepções, o que aumentou a convicção sobre o caminho que havia escolhido. Daí, por diante, fazendo uma espécie de jogo de vai-e-vem, procurei ir pro gressivamente isolando os temas centrais que funcionavam como pólo — muitas vezes distantes — de orientação na “querela do luxo” e ir examinando como essas mesmas concepções se articulavam de forma mais clara e fundamentada em certos textos centrais. Gostaria, no entanto, de prevenir o leitor de que as coisas não se passam de forma cristalina como esse quadro esquemático que acabo de traçar pode dar a entender. Neste terreno pode-se achar correspondências mas nunca a tal ponto que de um conjunto a outro a relação seja biunívoca. Elas funcionam muito mais como quadros orientadores. A partir disso, este trabalho ordenou-se de forma mais ou menos natural. Parti de uma exposição sobre os problemas conceituais envolvidos na “querela do luxo” — querela longa e multifacetada. Em seguida, procurei isolar um grupo de conceitos que articulam peia primeira vez na modernidade uma nova concepção da vida passional. Depois tratei desse período intermediário — que aos meus olhos aparece como muito hesitante e embrulhado conceitualmente. Por fim, tentei examinar como esses conceitos, de uma certa forma, rearticu- lam-se na segunda metade do século XVIII. Uma palavra quanto ao título deste estudo. Como percebi que o que estava no horizonte de minhas inquietações eram os fundamentos da vida passional na idade moderna, meu primeiro impulso foi assim intitulá-lo. Mas, logo percebi a enorme pretensão aí contida, e a que, nem de longe, este trabalho faz jus. Procurei um título mais modesto que indicasse melhor o seu conteúdo, Cheguei a este, mas confesso que ainda não estou satisfeito. Ele reflete muito mal a limitação do campo de estudo. Infelizmente não encontrei outro melhor e espero que esta introdução possa contribuir para dissipar possíveis mal-entendidos. Afirmei que este texto nasceu de uma suspeita e que acaba numa hesitação. A primeira já explicitei. Com relação à segunda, embora considere, levando em conta meu ponto de partida, que tenha avança do razoavelmente, hesito muito sobre o valor e o alcance do que aqui é afirmado. Tendo, na verdade, a conferir um peso muito relativo e, embora considere esta pesquisa suficientemente autônoma, tenho consciência de que nada mais é que uma etapa e que precisa ir mais longe. Por essa razão evitei, no final, extrair algumas conclusões que considero apressadas. 14 Quanto ao modo de tratamento, resolvi, em primeiro lugar, que era melhor, na medida do possível, deixar que os próprios textos falassem por si mesmos. Tenho freqüentemente a impressão de que muito comentário acaba, às vezes, por obscurecer. Não que tenha me eximi do da tarefa. Quando julguei necessário, o fiz. Mas procurei reduzir ao que considero razoável. Isso tem sua contrapartida: em alguns momen tos há um excesso de citações. Foi o preço a pagar. Por fim, gostaria de salientar dois ou três pontos que, talvez, chamem a atenção do leitor. Em primeiro lugar, constatar-se-á isso facilmente, evitei cuidadosamente certas generalizações no decorrer do trabalho. Generalizações que, talvez, sejam válidas mas a respeito das quais não estou totalmente seguro. Não procurei, enfim, reconsti tuir epistemés de diferentes épocas. Em segundo lugar, esta pesquisa não teve a pretensão de ser exaustiva. Não foi minha intenção arrolar e analisar todos os autores que, na época, trataram do tema. Procurei seguir um filão, como já indiquei, trabalhando retroativamente, como um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem dúvida mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não preten di também, nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um tema num determinado autor. Salientei apenas aquilo que julguei per tinente para esclarecer a trama de uma problemática. Assim, o espe cialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o tratamento a eles conferido. Tenho consciência dessa limitação, mas é a conseqüência de inserir um autor ou texto numa determinada questão que se desenrola historicamente. 15 NOTAS 1 Sade, Oeuvres Completes, Paris, Pauvert, 1986. Até agora foram publicados, ao que me consta, quinze volumes. 2 Uma honrosa exceção é J. Deprun que tem realizado estudos notáveis sobre o enraizamento de Sade no século XVIII. Veja-se, por exemplo, seu estudo “Sade et la Philosophie Biologique de son Temps” in Le Marquis de Sade, Paris, Armand Colin, 1968, p. 189 e seg. 3 Assim, por exemplo, todo o longo discurso de Delbène no início da Histoire de Julielte é uma cópia do Le Bon Sens du Cure Meslier de Holbach. Foi Deprun o primeiro a apontar isso. 4 Que, é bom não esquecer, é o núcleo do pensamento dos materialistas franceses, como mostrou Cassirer no seu A Filosofia do Iluminismo, Campinas, Editora da Unicamp, 1992, p. 103. 5 Para não criar falsas expectativas, como o leitor verá logo mais, não temos a preten são de ter elucidado totalmente essa questão. Podemos dizer que, agora, elas não são tão vagas para nós. 16 LUXO 1. Como fio condutor de nossa análise seguiremos uma sugestão de R, Hubert, contida no seu clássico Les Sciences Sociales dans l ’ Encyclopédie, onde ele afirma: “O problema do luxo é um daqueles onde a evolução das idéias, no decorrer do século XVIII, é a mais característica”.1 De fato, o exame da chamada “querela do luxo” mostra-se exemplar para se tentar compreender o conjunto das trans formações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o sécu lo XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das novas concepções (sobre o desejoe o prazer). 2. Em 1736 Voltaire publica um poema, com mais ou menos uma centena e meia de versos, intitulado Le Mondain. Enviou aos amigos com a recomendação expressa de que não se desse publicidade, o que não aconteceu e acabou redundando num exílio rápido do autor na Holanda. Nesse meio tempo, escreve um outro poema: Défense du Mondain ou Apologie du Luxe.2 Examinemos, o mais rapidamente pos sível, os conteúdos e os problemas levantados. Em linhas gerais, o Le Mondain obedece mais ou menos ao seguinte esquema: os v. 1-4 tentam mostrar que é inútil pensar que os tempos antigos (austeros e rústicos) foram melhores que os tempos atuais; os v. 5-10 realizam uma apologia dos tempos modernos (“Eu agradeço à Natureza sábia / Que, para meu bem, me fez nascer nesta 19 época / Tão difamada por nossos pobres doutores: / Esta época profana é perfeita para meus costumes / Amo o luxo e até mesmo a volúpia, / Todos os prazeres, as artes de toda espécie / O asseio, o paladar, os ornamentos: / Todo homem de bem tem tais sentimentos'’). Os v. 11- 12 constituem a defesa dos efeitos da abundância; os v. 30-60, uma contraposição do estado de natureza e o de sociedade. Os v. 22-30 e 61-112 mostram que o luxo é responsável pelo incremento do comér cio, sendo, portanto, vantajoso para o desenvolvimento e a riqueza da.s sociedades. O final do poema é uma crítica ao Telêmaco de Fénelon. 3. A primeira coisa a se destacar é que esses textos representam uma reviravolta nas posições de Voltaire. No poema épico Henriade (1713-18), publicado nos anos 20, ele tinha uma concepção diferente sobre o assunto. No canto VI (v. 26-7), dizia o seguinte: “O luxo, sempre nascido das misérias públicas Prepara com brilho estes estados tirânicos".' Nesse momento Voltaire ainda exprime uma mentalidade que logo será ultrapassada pelos espíritos mais sensíveis às mudanças. Nesse meio tempo, é bom não esquecer, Voltaire realizou sua viagem à Inglaterra, importantíssima na moldagem de suas concepções. Depois de 1736, Voltaire ainda modificará um pouco suas concepções, mas não substancialmente. Em segundo lugar, o poema evoca uma discussão que já vem do século XVII, aquela que se denominou a questão dos antigos e dos mo dernos, que consistia em se saber se os antigos ou os modemos eram superiores nos diferentes campos (civilização, costumes, saber, ciência etc.). No ponto que nos interessa, as posições eram claras e inconci liáveis. Havia os que defendiam a pureza, a frugalidade, a austeridade e a virtude dos antigos, em contraposição ao amolecimento geral dos cos tumes nas sociedades modemas, sofisticadas, fúteis, efeminadas e dissi padoras. Os partidários da posição contrária procuravam mostrar que esse refinamento e essa sofisticação não implicavam nada disso. Fénelon e Fontenelle foram, respectivamente, os representantes típicos dessas posições: o primeiro, predominantemente no plano moral, e o segundo, 20 no intelectual. Exemplos não faltavam de ambos os lados. Esparta e Roma eram os exemplos preferidos dos primeiros. As comodidades e o bem-estar alcançados nos tempos modernos eram os dos segundos. Em terceiro lugar, os imensos e inegáveis avanços científicos e tecnológicos realizados na formação dos tempos modernos também colocavam problemas pois, segundo uns, acabavam levando a um des perdício que era fatal às sociedades, enquanto outros (aí incluído Voltaire, é claro) afirmavam e defendiam vivamente que a criação e a circulação maciça de bens, possibilitada por esses avanços, consti tuíam uma contribuição inestimável para o enriquecimento das nações e para o seu desenvolvimento. Assim, em quarto lugar, por trás dessa discussão antigos/moder nos, está uma discussão, muito confusamente vislumbrada, de caráter econômico que, exatamente por ser apenas entrevista, acabou assumin do um aspecto moral. O problema, de fato, foi colocado em termos de virtude/vício: qual das cidades oferece melhores condições para o desenvolvimento das virtudes morais dos sujeitos: aquela antiga, rústi ca, que só fornecia o necessário, ou a moderna, mais sofisticada tecno logicamente que, além do necessário, oferece também a possibilidade do supérfluo e, portanto, condições à aparição e manutenção do luxo? Em quinto lugar, todo o peso da tradição cristã — mais especifi camente católica — vem embaralhar um pouco mais a discussão. Principalmente em dois níveis. De um lado, toda tradição ascética, de desprezo aos bens terrenos é mobilizada em contraposição à superio ridade dos bens espirituais. Basta relembrar a Dissertação sobre a Honra, de Bossuet. De fato, em boa lógica, os apologistas da moder nidade, cedo ou tarde, entram em rota de colisão com a moral cristã, na medida em que (veremos isso mais claramente) defendem um mundo regulado pelo conforto dos bens materiais, concepção que está ancora da numa concepção egoísta dos seres humanos. Já Mersenne, tão pouco interessado em questões morais, marca essa oposição numa de suas obras, tratando do amor a Deus. E certo, afirma, que cada um busca seu próprio bem e que encontrar-se-á “... sempre esta verdade se examinamo-nos geometricamente” e mesmo quando muitos querem persuadir “que eles amam seus amigos apenas para o bem destes, e de um amor de simples benevolência, sem dele desejar nem pretender nenhum benefício, todavia eles se enganam, como confessarão inge nuamente se se examinam como é preciso, pois eles acharão sempre que o amor de si mesmo, que é chamado de amor próprio, é a fonte e 21 a origem de tudo aquilo que nós fazemos”. Isso é tão certo, continua Mersenne, que esse amor próprio é proposto como protótipo daquele que devemos conceder ao próximo.4 Mas, a verdadeira dificuldade está, nos diz o autor, em saber se podemos amar Deus de forma pura, já que, nesse caso, essa é a única forma de amor admissível. E isso nos é concedido.-1 Eis aqui o ponto limite onde o cristão não pode transigir. Por outro lado, no interior dessa ótica, um outro problema emer girá cedo ou tarde. A apologia do luxo está intrinsecamente ligada à apologia da sociedade moderna, na medida em que foi ela a possibi litá-lo. E isso tem como contrapartida uma crítica às sociedades arcaicas, o que, no limite, implica a condenação das primeiras sociedades e do estado de natureza, o que, aos olhos da Igreja, signifi cava desvalorizar a vida tão perfeita de Adão e Eva no paraíso. Nada mais inadmissível. Mas Voltaire não hesitou em seu poema: ‘Meu caro Adão, meu lambão, meu bom pai Que fazias nos recantos do Éden Trabalhavas para esse tolo gênero humano? Acariciavas madame Eva, minha mãe? Contem-me o que tinham vocês dois As unhas longas, um pouco negras e sujas A cabeleira mal ordenada Sem limpeza, o amor mais feliz Não é mais amor: é uma necessidade vergonhosa Eis o estado de pura natureza” .6 4. Coloquemos um pouco de ordem nessa discussão. O fato de, em 1736, o poema de Voltaire ter tido tanta repercussão, mostra que a dis cussão sobre o assunto estava extremamente acirrada. Delineemos mais claramente os argumentos, conforme eles vão se apresentando, nas suas linhas gerais.7 O partido dos adversários do luxo subdividia- se em duas facções: a Igreja, que sempre condenou o luxo, pelo menos retoricamente; e um certo número de autores que ainda estavam presos a valores mundanos já caducos, representantes do neo-estoicismo, onde a glória, a honra, a prudência, bem dosadas e na hora certa, cons- 22 tituíam os parâmetros principais. Já os apologistas vêm sobretudo das camadas mais intelectualizadas e são difíceis de ser classificados, representando, na verdade, tendências muito diversificadas. No início têm, pelo menos, dois traços comuns: uma certa dose de ceticismo e uma boa tintura de empirismo. Gostaríamos de assinalar que essa discussão acompanha uma série enorme e maciça de transformações materiais pela qual passou a socie dade ocidental nessa época. Todos os historiadores estão de acordo, nos parece,que nossa sociedade foi, até os primórdios da modernidade, uma sociedade na qual se pode bem aplicar o conceito, utilizado por um filósofo contemporâneo, de rareza. De fato, tomada globalmente, a sociedade ocidental viveu, até essa época, sob o regime da raridade dos bens. Desde os gregos até meados do século XVI a produção dos bens esteve regulada pelas necessidades, quando não esteve abaixo delas. Nesse tipo de economia, o luxo sempre guardou um caráter figurativo e simbólico. Ele basicamente existiu sobre essa forma, salvo em algu mas épocas e para algumas camadas da população. Tapeçarias, jóias, vestuários e utensílios suntuosos eram signos de uma condição e uti lizados em certas circunstâncias e ocasiões: festas, aparições públicas da realeza, procissões da Igreja etc. O luxo funcionou mais como uma marca de respeito do que como um objeto de desejo. Ele era requerido, no ciclo da vida social, de tempos em tempos e, neste ponto, diferia pouco dos cerimoniais dos povos primitivos. O cotidiano das pessoas, no entanto, é de um nível de vida, em geral, baixo. O dia-a-dia de um nobre medieval não faria muita inveja a um burguês do século XVIII. Foi só com o ciclo das descobertas marítimas e tecnológicas, e a con seqüente circulação cada vez maior do dinheiro, que foi possível começar a passar da economia de rareza para uma economia da abundância, onde os artefatos, os utensílios (as comodidades da vida) puderam começar a se expandir tanto no sentido horizontal (consome- se cada vez mais e diversificadamente no interior de uma camada social), como no vertical (muito lentamente, outras começam a ter acesso a bens até então inacessíveis). É por essa época que se inicia o ataque ao luxo, não como algo extraordinário, mas como algo que começa a fazer parte do cotidiano da vida das pessoas. Tomemos, em primeiro, o ataque oriundo da Igreja, tomando como figura exemplar Fénelon e, depois, a versão laica dessa crítica, através de La Bruyère. 23 5. Fénelon, arcebispo de Cambray, foi nomeado preceptor do delfim, ocasião que utilizou para escrever, para deleite e educação do mesmo, um texto denominado As Aventuras de Telêmaco. O livro tem um cardápio variado mas, em dois momentos, descreve duas sociedades (Bética e Salento), que figuram como modelos onde impera a frugalidade e o rigorismo dos costumes é a regra. São utopias, não restam dúvidas. Mas todo leitor da época (e o livro foi o que hoje denominamos um best-seller) sabia muito bem que. por contraste, Fénelon estava criticando os desmandos administrativos e financeiros de Luís XIV, que ao construir Versailles drenou literalmente os cofres públicos deixando uma França ainda mais combalida economicamente e com uma alta taxa de pobreza e miséria. Fénelon prega uma ordem rígida, uma sociedade regrada segundo a norma do bem comum onde não tem lugar nem o luxo nem a miséria. Condena o desperdício e mostra que, além de provocar a pobreza, o luxo é corruptor. Elogia ardorosamente a frugalidade (tópico comum nos escritores antigos) e toma como modelo a virtude espartana ou a austeridade da Roma Republicana. Ele trabalha por oposição: ao mesmo tempo que descreve a simplicidade de Bética, por exemplo, a opõe claramente aos Estados onde reina o fasto e a suntuosidade: “ Quando lhes faiam os dos povos que têm a arte de fazer construções soberbas, móveis de ouro e prata, tecidos ornados com bordados e pedras preciosas, perfumes maravilhosos, iguarias deliciosas, instrumentos cuja harmonia encanta, eles respondem nestes termos: Esses povos são muito infelizes por ter empregado tanto tra balho e indústria para corromper-se a si mesmos! Esse supérfluo enfraquece, inebria e atormenta aqueles que o possuem; ele tenta aqueles que dele são privados a que rer adquiri-lo pela injustiça e pela violência. Pode-se chamar de bem um supérfluo que só serve para tom ar os homens maus? Os homens desses países são mais sãos e mais robustos do que vós? Vivem mais tempo? São mais unidos entre si? Levam uma vida mais livre, mais tranqüila, mais alegre? Ao contrário, eles devem ser invejosos uns dos outros, corroídos por um temor, pela avareza, incapazes dos prazeres puros e simples, 24 visto que eles são escravos de tantas falsas necessidades das quais fazem depender toda a sua felicidade” .s A campanha de Fénelon é sistemática. O luxo é, para ele, um dos maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como de deter a inconstância das modas. A disseminação do luxo e do gosto pelo supérfluo é o princípio da indolência: “Se vós colocais (...) os povos na abundância, eles não trabalharão mais, tornar-se-ão arrogantes, indóceis, e estarão sempre prestes a se revoltarem...” ? O luxo e a autoridade injusta são as duas coisas mais perniciosas para um governo e, instaurados, é muito difícil achar os bons remédios.10 Mais: o luxo é como a peste. Alastra-se por todo tecido social, infecciona-o, cor rói tudo nas suas mínimas partes e leva fatalmente ao desastre: "... o luxo envenena toda uma nação. Dizem que este luxo serve para alimentar os pobres às expensas dos ricos; como se os pobres não pudessem ganhar sua vida mais utilmente, multiplicando os frutos da terra, sem enfraque cer os ricos por refinamentos de volúpia. Toda uma nação acostuma-se a ver as coisas as mais supérfluas como as necessidades da vida: todos os dias inventam-se novas necessidades, e não se pode mais passar-se de coisas que não se conhecia trinta anos antes... Este vício, que atrai tantos outros, é louvado como uma virtude: ele dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do povo. Os parentes próximos do rei querem imitar sua magnificência; os grandes, aquela dos parentes do rei; as pessoas medíocres querem igualar-se aos grandes; ... os pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz mais do que pode; uns por ostentação, ... outros por má vergonha e para esconder sua pobreza... Toda uma nação arruína-se, todas as condições confundem-se” .“ 25 r Através dessa crítica delineiam*se os contornos da verdadeira, boa e saudável sociedade: aquela onde os homens “vivem simplesmente”, con tentam-se em satisfazer suas “verdadeiras necessidades”, vida esta que constitui a fonte da “abundância, alegria, paz e união”.12 Daqui à reva lorização da cidade e dos costumes antigos, o passo é imediato. “Nada é mais amável”, diz o autor, “que essa vida dos primeiros homens”, que viviam segundo a razão e amavam a virtude, e que é incomparável ao luxo vão e ruinoso de nossos tempos.13 É, de fato, essa “amável simpli cidade do mundo nascente: essa simplicidade dos costumes, tão distante do luxo”.14 E, para ele não existe nenhuma hesitação possível: “Prefiro cem vezes a pobre Itaca de Vlysses a uma cidade brilhante graças a uma magnificência tão odiosa” Trata-se agora, para os tempos atuais, de empreender uma gigan tesca reforma dos costumes para ver se é possível deter essa praga que está disseminada pela sociedade. É preciso reformar o governo, criar leis suntuárias rigorosas,1'' incentivar o trabalho que produz o necessário, eliminar o supérfluo em todos os níveis imagináveis, desde o fasto público até os costumes dos jovens. Assim, no seu tratado sobre a educação das jovens aconselha “o gosto de uma verdadeira mode ração”, onde não apareça no exterior “nenhuma afetação”: “E preciso fazer entender a esta jovem pessoa que é o luxo que confunde todas as condições, que eleva as pes soas de baixo nascimento e enriquecidas depressa por meios odiosos, acima das pessoas de condição a mais distinguida; que é esta desordem que corrompe os cos tumes de uma nação, que excita a avidez, que habitua às intrigas e às baixezas, e que pouco a pouco sapa todos os fundamentos da probidade. Ela deve compreender também que uma mulher, por maiores que sejam os bens que esta traga a uma casa, logo a arruina se introduz ali o luxo, com o qual nenhum bem pode ser suficiente” n 26 As teses de Fénelonsão bem claras. Elas apontam também para certas características da natureza humana às quais nosso autor prende- se firmemente: um ideal estrito de predomínio da razão, que deve dominar as paixões e conduzir a vida do sujeito, a qual deve ser regra da e produtora do útil necessário. A inquietude não deve fazer parte da vida humana. Deve ser banida: ‘‘Uma vida sóbria, moderada, simples, isenta de inquie- tudes e de paixões, regrada e laboriosa, retém a viva juventude nos membros de um homem sábio..." Um outro ponto a salientar é a idéia presente em Fénelon de que houve, no decorrer dos séculos, uma espécie de desvio, de desvio patológico entre as inclinações naturais do indivíduo e as que viciosa mente adquiriu, mas que não fazem parte de sua natureza. O luxo não é uma inclinação natural, é um desvio. Num de seus diálogos,19 um dos interlocutores recrimina o outro pelas suas excessivas despesas nos banquetes, ao qual ele responde que assim o faz por vergonha de pas sar por avaro: os “pródigos tomam sempre a frugalidade por uma avareza infame”. “Não devias fazer isso”, retruca o crítico, “pois não é essa a nossa inclinação”. Vida calma e regrada, da qual a inquietude deve ser banida, e com bate feroz ao desvio com relação ao supérfluo, já que este não faz parte de nossas inclinações naturais, tais são os fundamentos da análise de Fénelon e que serão impiedosamente demolidos pelos seus críticos. 6. A vertente mundana ou laica da crítica do luxo teve muito menos importânòia e extensão. La Bruyère é um de seus melhores representantes. Seii universo é bem distante do de Fénelon, embora chegue a conclusões muito semelhantes. Trata-se de um mundo da honra, da coragem, da glória pelos grandes feitos e da simplicidade dos costumes oferecidos pela vida rústica, da qual a cidade aparece como o contraponto negativo. Seu universo é o das “coisas rurais e campestres”,2" que verdadeiramente admira. E nada mais distante desse ideal do que o habitante das grandes cidades pelo qual La Bruyère tem verdadeira alergia. Esse “vil rábula”, 27 por exemplo, “do fundo de seu estudo sombrio e esfumaçado”, ocupa do das mais “negras chicanas”, acha-se não só superior ao homem que labora a terra, goza o céu aberto e bem semeia como “se alguma vez ele escuta fa la r dos primeiros homens ou dos patriarcas, de sua vida campestre e de sua economia, ele se espanta de que se tenha podido viver em tais épocas onde ainda não havia nem escritórios, nem comissões, nem presidentes, nem procuradores; ele não compreende que alguma vez se tenha podido passar-se do cartório, do ministério público e do botequim" .21 Seu desprezo por esse tipo de gente acresce-se ainda mais pela sua “molesse”, desconhecida dos antigos, nos quais não se os via, quando saíam de um jantar, montarem numa carruagem, já que estavam persuadidos de que os “homens têm pernas para andar e eles andavam”/ 2 Seus costumes eram austeros, cuidando de seus próprios negócios: “Em todas as coisas eles contavam consigo mesmos”.2-1 Sua “despesa era proporcional à sua receita” e tudo era medido segundo suas rendas e sua condição e assim “passavam de uma vida moderada à uma morte tranqüila”2'1: “Eles tinham menos do que nós e tinham o suficiente, mais ricos por sua economia e por sua modéstia do que por seus rendimentos e por seus domínios. Enfim , esta va-se então penetrado por esta máxima de que aquilo que nos grandes é esplendor, suntuosidade, magnificên cia, no particular é dissipação, loucura, inépcia” P É essa visão que conduz La Bruyère a valorizar o mundo antigo na sua frugalidade e simplicidade. Foi preciso que escoasse o tempo para que os homens percebessem que tanto nas ciências quanto nas artes o melhor era retomar às origens, ao gosto dos antigos, e “retomar enfim o simples e o natural”.26 E por isso que lhe seduz tanto “a vida simples dos atenienses” quanto a vida dos “primeiros homens”, grandes por eles mesmos. Ao fim e ao cabo, toda essa miríade de invenções poste riores vieram apenas: “talvez para substituir essa verdadeira grandeza que não existe mais”.27 Nesses homens, a natureza mostrava-se em toda sua pureza e sua dignidade, “não estava ainda manchada pela vaidade, pelo luxo e pela tola ambição”28 e o homem não era honrado sobre a face da terra senão “pela sua força e virtude”.29 Não era rico em função de cargos ou pensões mas “por seu campo, por sua manada, suas crian ças e servidores”, e sua alimentação era sã e natural.3" Vê-se bem que toda crítica de La Bruyère é aquela feita por um homem que já não pertence mais ao seu tempo. O estofo de sua análise é uma nostalgia que a atravessa de ponta a ponta e que faz com que expresse com azedume o mundo que vê ao seu redor. 7. A resposta a essas análises não demorou. E veio de uma das inteligências mais profundas e mais polêmicas da época: P. Bayle. A crítica de Bayle é executada em regra: ataca tanto a posição laica, quanto a inspirada na religião. Ambas, é fácil de perceber, têm um ponto em comum: um certo saudosismo, quando realizam a apologia dos costumes antigos mais puros e virtuosos. Outro ponto comum é a denúncia do relaxamento geral dos costumes do presente. E exata mente sobre esse dois pontos que Bayle inicia sua análise. Um dos inúmeros méritos de Bayle foi começar a colocar em questão (o que não tinha sido feito seriamente até então) o mito da frugalidade e da simplicidade dos antigos. Lança a suspeita de que, na verdade, trata-se de uma construção retroativa elaborada com fins específicos e nem sempre confessáveis. O que ele quer dizer é, por exemplo, que essa Esparta, rústica, austera, simples, frugal, honesta, dotada enfim de todas a&aualidades cívicas e morais, teria muito menos a ver com a Esparta histórica do que com a projeção retroativa de um conjunto de valores qu i pouco ou nada teriam a ver com ela. O mesmo pode-se dizèr-da-Roma Republicana. E sabemos o quanto Bayle foi mestre na crítica histórica. Sabia e mostrava que as reconstruções de um Tito Lívio ou um Comélio Nepos eram falsas. Podiam estar repletas de intenções morais (e não negava as vantagens resultantes disso) mas não tinham a menor validade histórica. O que Bayle mostra, de forma cristalina, é que, se os antigos viveram na frugalidade, isso não se deveu a nenhuma escolha de ordem moral, mas a uma coação natural. Em outros termos: as sociedades antigas eram pobres. E não é muito honesto transformar uma necessidade numa virtude: “Não é um grande mérito renunciar... ao luxo quando se é pobre”.31 A austeridade só deve ser elogiada no campo moral quando, na presença de um bem, opta-se por renunciai- a ele. Não há nenhum mérito no caso daquele que, além de não ter escolha, nem sequer saber que ele existe: "Quanto a essa frugalidade tão elogiada, ela não era uma supressão das coisas supérfluas, ou uma abstinên cia voluntária das agradáveis, mas um uso grosseiro daquilo que se tinha entre as mãos. Não se desejava as riquezas que não se conheciam: contentavam-se com pouco por não imaginar nada a mais; passavam-se dos prazeres dos quais não tinham idéia”.32 Mas a própria ótica cristã na análise do problema é colocada em questão por Bayle. E aqui o alvo é, sem dúvida, Fénelon. E não se pode negar: toda a análise de Fénelon com relação ao luxo e o pro blema que instaura estão elaborados por um pensador que, no essen cial, é fiel à tradição do ascetismo cristão. A problemática dele insere-se na ótica de condutor (ou conselheiro) real, de um preceptor espiritual do futuro rei, no qual quer inculcar esses princípios contra o que pensava serem as perversões engendradas pela busca do con forto e do prazer. O que significa dizer, aos olhos de Bayle, que a questão, por princípio, está decidida. O retrato que ele nos traça do cristão deixa isso muito claro: "Os verdadeiros Cristãos, parece-me, consideravam-se na terra como viajantes e peregrinos que se dirigem ao Céu, sua verdadeira pátria. Eles veriam o mundo comoum lugar de banimento, afastariam dele seu coração, lutariam sem fim e sem cessar com sua própria natureza para impedir-se de tomar gosto pela vida mortal, sem pre atentos em mortificar sua carne e suas cobiças, em reprimir o amor pelas riquezas, pelas dignidades e pelos prazeres corporais, e em domar este orgulho que torna as injúrias tão pouco suportáveis" .33 30 Mas Bayle não se contenta em simplesmente elaborar uma crítica. Engaja-se claramente na nova mentalidade e faz-se apologista de novos valores nascentes. Liberal, um pouco “avant la lettre”, já declara sua pouca preocupação com os problemas morais, deixando-os para o futuro, e incita à inserção nas novas práticas e concepções: “Conservai à avareza e à ambição toda a sua vivacidade... Prometei uma pensão àqueles que inventarão novas manufaturas e novos meios de ampliar o comércio” M E se isso, um dia, configurar-se como problemático: “Vbjjoi descendentes cuidarão disso; então, como agora, deixai o cuidado com o futuro a quem este per tencerá, pensai na opulência do tempo presente...” .35 8. O contra-ataque de Bayle era de um enorme peso e tudo levava a crer que pouca coisa mais poder-se-ia dizer sobre o assunto, quando aparece uma verdadeira bomba: a Fable o f Bees de B. Mandeville. Originalmente (1705) apareceu na forma de um pequeno poema intitu lado The Grumbling Hive: or Knaves Turn’d Honest e a ele deu-se pouca atenção. Reaparece com o título pelo qual é conhecido, consi deravelmente aumentado, em 1714, e desde então chama a atenção e a ira.3* Por fim, em 1729, aparece um volume suplementar contendo seis diálogos. Eis a história sucinta do texto. O'poema inicial, germe de todos os desenvolvimentos posterio res, diz basicamente o seguinte. Trata-se de uma colméia, espelho da sociedade tmmana (o poema é uma alegoria), onde reina livremente a desonestidade e o egoísmo e se vive em plena prosperidade. Num determinado momento, ela experimenta a nostalgia da virtude e pede aos deuses esse dom, no que é atendida. Satisfeito o desejo da colméia ela passa a ser o lugar onde reinam irrestritamente a virtude e a justiça. Mas, coisa extraordinária, essa perfeição moral alcançada pelos indivíduos acaba por engendrar a ruína do conjunto que se toma imóvel, congelado e estéril. Desaparece a atividade, a prosperidade se 31 4 esvanece, e começa a imperar a pobreza e o tédio numa população cada vez mais reduzida. Todos os analistas de Mandeville concordam muito pouco entre si, a não ser num ponto: seu pensamento é extremamente complicado, complexo, praticamente impossível de ser resumido mesmo se ficamos com as poucas páginas do poema inicial. Quando se aborda a obra toda, então, a questão complica-se ainda mais. Seu pensamento move- se quase sempre em torno de paradoxos, de sinuosidades, de distinções extremamente difíceis de serem captadas. A começar pelo próprio sub título da obra: “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, fórmula que pode ser entendida de várias maneiras e o foi. Tomemos, como hipótese, a idéia de que o poema inicial foi, de fato, a semente original a partir da qual a obra foi brotando. Se é assim, o sentido original encontra-se exatamente aí. Os desenvolvimentos pos teriores são o “commentaire raisonné” dessa intuição original. Partindo dessa hipótese, já podemos fazer uma constatação. Se Bayle foi extremamente perspicaz ao perceber e denunciar as fraquezas das críti cas elaboradas contra o luxo, não teve, no entanto, a mesma perspicá cia para perceber que a apologia do luxo deveria se basear numa nova escala de valores, numa reavaliação global à qual Mandeville foi sen sível. O termo sensível está sendo usado aqui intencionalmente. Estamos querendo dizer que Mandeville percebeu muita coisa, vislum brou coisas novas, mas nem sempre exprimiu isso com a clareza necessária. Mas não sejamos anacrônicos. Não imputemos falhas a um pensador que, esboçando uma nova cartografia conceituai, deixou-a ainda um pouco embaralhada. Embaralhada para nós, que sabemos o rumo posterior das idéias. Mandeville foi um pensador, não um profe ta. Talvez a melhor grade para se ler Mandeville seja aquela que seguem seus predecessores (sobretudo Hobbes e La Rochefoucauld): na consti tuição lenta, mas progressiva, de uma antropologia laica que vê o motor fundamental das ações humanas no egoísmo. Essa tese é uma constante na obra de Mandeville e Hutcheson dispendeu anos, cursos e livros para tentar desmontá-la.’7 É provavelmente através desse operador que con seguiremos reagrupar algumas articulações fundamentais. Dessa perspectiva, uma primeira linha de interpretação impõe-se. O que, à primeira vista, aparece como um paradoxo — afinal de contas, por que a retitude moral é incompatível com a pTOsperidade? — pode começar a se resolver se pensarmos que Mandeville pensa o par vício/virtude numa acepção estritamente rigorosa e ascética. Conferindo 32 um sentido rigoroso aos termos, ele consegue colocar em evidência que estamos, de fato, frente a uma dupla escala de valores que são incom patíveis. Aponta, de forma clara, para o fato de que a moral da perfeição individual (lembremos o quadro pintado por Bayle, citado há pouco) não é compatível com a moral que é exigida pelo interesse social. Entendendo-se por moral, norma de comportamento. Aponta-se, então, para uma irredutível separação entre os preceitos da pureza, moral indi vidual e os imperativos exigidos para o desenvolvimento material da sociedade. Separação que supõe, vimos, o caráter inconciliável de ambas as posturas, se se quiser mantê-las simultaneamente. Em segundo lugar, os diferentes sujeitos são colocados frente a uma opção: ou a busca da salvação pessoal e a conseqüente estagnação e dete rioração da sociedade, ou a atitude inversa. Ora, o sentido e o tom do poema de Mandeville — sobretudo o seu final — não podem deixar muita dúvida com relação à posição ou à sua tese. Ele afirma claramente que o vício é tão necessário ao Estado quanto é a fome para comer, e percebe muito bem que seus contemporâneos já escolheram a segunda via.38 Podemos raciocinar de maneira ligeiramente diferente e chegare mos à mesma conclusão: um rigorista moral, absolutamente convenci do da veracidade de sua doutrina, como Fénelon, não teria hesitado frente a esse quadro: se é assim, é preciso abandonar esse falso rumo tomado pela sociedade e reconduzi-la ao bom caminho, reeditando várias Espartas modernas. Ora, já vimos, a crítica de Bayle apontava claramente o ponto fraco dessa argumentação. Mas pode-se inverter o raciocínio de Bayle: qual seja, os antigos tinham um tipo de vida deter minado pela necessidade e não pela virtude. Mas nós, modernos, que temos diante dos nossos olhos as duas opções, temos também o direito de escolha e podemos perfeitamente optar, com conhecimento de caüsa, pelo rigor e a frugalidade, se esse é o preço de nossa salvação ou/ pelo menos, de nossa retitude moral. Fica claro, portanto, que o paradoxo de Mandeville só pode instaurar-se como tal numa sociedade que produz bens no regime de abundância e que sabe que há outra opção possível, a famosa “opção zero” de um político eminente. É sintomático, no entanto, que essas possibilidades nunca apareçam seriamente no texto de Mandeville. Essa volta para trás é, evidentemente, uma impossibilidade aos seus olhos, e isso por uma razão muito simples: sua concepção da natureza humana. A nota domi nante do pensamento de Mandeville é a de que o móvel central das ações humanas é o egoísmo: 33 “Nada existe na terra tão universalmente sincero como o amor que todas as criaturas, capazes de senti-lo, se pro fessam a si mesmas; e como não há amor que não desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade, seu desejo e seu empenho de conservar-se a si mesma. É lei da Natureza que todos os apetites ou paixões da criatura tendam diretamente ou indiretamente à preser vaçãotanto de si como de sua espécie” .w E, na medida em que esse egoísmo é a tônica dominante, oni presente em toda obra, isso faz com que seja “impossível que o homem possa ter melhores desejos para com os demais do que para consigo mesmo”.40 Esse egoísmo nos leva a tender a satisfazer todas as nossas paixões e desejos, variáveis em cada um, e que constituem seu bem, seu prazer.41 Diante desse quadro, como pensar numa volta para trás? É por isso que, se isso é impossível, o melhor caminho é a reformu lação do nosso código de valores. Isso significou aos olhos de Mandeville abandonar ostensivamente os cânones da moral tradicional? Não. Ele apenas aponta que a vida cotidiana, comum e material dos homens, implica regras de conduta internas, próprias à sua esfera. Mandeville pode não ter partido o cristal que mantinha a unidade do moral e do econômico, ou melhor, a unidade que fazia com que o segundo fosse julgado pelo primeiro, mas intro duziu uma enorme rachadura. É como se ele dissesse: cada um quê opte, é seu direito (já que não existe “summum bonum”). Mas sabe muito bem, de antemão, o resultado, já que cada um, segundo Virgílio, “Trahit sua quenque voluptas”.42 A história lhe deu razão. Assim, assistimos não à pulverização da moral tradicional, mas sua dissociação da esfera material. Se os sujeitos só cometessem ações vir tuosas, isto é, desinteressadas, sabemos que cessariam o comércio, as artes (técnicas) e a maioria das profissões perderiam seu sentido, na medida em que existem para satisfazer apetites sensíveis (e, na maioria das vezes, supérfluos). Só as ações interessadas, portanto, dizem respeito à esfera do social enquanto social. Ou seja, só as ações que, desse ponto de vista, obedeçam a um critério utilitário, isto é, que sejam úteis, boas e benéficas para a sociedade enquanto tal e os indivíduos que a compõem, enquanto componentes do social. A utilidade deve ser 34 II o critério, já que é ela quem contribui para a prosperidade e a felici dade de seus membros. É nesse nível, portanto, que encontramos a razão de ser da ação social: ações interessadas, produtoras de benefícios e bens que satis façam os desejos humanos e lhes tragam bem-estar. É na produção e sobretudo no consumo dos bens materiais que encontramos a razão de ser do mecanismo social, já que os outros pertencem a outra esfera. Neste ponto, Dumont percebeu agudamente que Mandeville teve um papel central na constituição da ideologia modema, pois foi um dos primeiros (senão o primeiro) a mostrar que as relações entre os homens e as coisas é que são primárias e não as relações entre os homens.43 Posta a questão nesses termos, o problema do luxo coloca-se, na perspectiva de Mandeville, de maneira relativamente simples. Se é a ordem da utilidade social que impera, basta inclinar-se diante dos fatos: uma civilização nova está nascendo e oferece, aos indivíduos, um número cada vez maior de bens, dos quais os outros séculos não faziam a menor idéia. E a função da sociedade é produzir esses bens, fazer com que circulem e, sobretudo, que sejam consumidos, pois é para isso que existem. Eles são o motor da sociedade e, nesse sentido, benéficos. Devem ser progressivamente incrementados. Quanto maior o número de bens, maior o número de beneficiários e benefícios, não importando nem a qualidade, nem sua origem, dada a extinção da idéia de “summum bonum”. O luxo é algo perfeitamente natural e normal. Mais ainda: deve ser estimulado, já que no círculo das necessidades estritamente naturais, uma sociedade pode subsistir, mas só se desen volve e floresce, quando penetra e explora o domínio do supérfluo. E é inútil argumentar que o luxo corrompe, amolece e afemina os cos tumes. Os bens que acarretam são bem maiores que os males. E isso é o que interessa. Os famosos exemplos do incêndio de Londres e o da fabricação de bebidas são evidentemente provocativos, mas significa tivos da lógica de Mandeville. Em 1732, Berkeley, no Alcyphron, reproduz de forma perfeita o argumento de Mandeville através de um dos personagens (Lisicles) do diálogo com relação à bebida: “A embriaguez, por exemplo, é considerada por vossos sábios moralistas um vício funesto, mas isso se deve à falta de consideração dos bons efeitos que dela.provêm. Porque, em primeiro lugar, aumenta a arrecadação do imposto da 35 cerveja, um dos principais artigos do fisco de sua majes tade, e, por conseguinte, promove a segurança, o poder e a glória da nação. Em segundo lugar, fornece emprego a um grande número de trabalhadores: cervejeiros, fabri cantes de malte, trabalhadores, carpinteiros, fabricantes de latão, junto com os demais artesãos necessários para subministrar aos mencionados seus respectivos instrumen tos e utensílios. Todos esses benefícios são produzidos pela embriaguêz vulgar, da cerveja forte” .44 Esse é o sentido principal da fórmula: “vícios privados, benefícios públicos” e, realizando essa operação, Mandeville já começa a afirmar a separação entre bondade e felicidade, algo incompreensível para a tradição predominante desde a Grécia clássica. De agora em diante, está aberta a possibilidade de se pensar esses dois conceitos em esferas dife rentes, embora, em Mandeville, eles ainda não tenham uma tópica clara mente definida. Será na Crítica da Razão Prática que isso se instaurará definitivamente e onde o campo da moralidade não se confundirá mais com o campo da felicidade. Quer dizer, Mandeville, de uma forma ainda enevoada, prenuncia a distinção kantiana que, através do imperativo categórico, instalará o campo da moralidade de forma completamente independente dos fatos e mostrará que a felicidade é um simples ideal da imaginação, restrita ao campo empírico, fatual. Não deixa de ser sur preendente essa abertura contida principalmente na Fábula das Abelhas?* Uma operação importante realizada por Mandeville foi a rela- tivização do conceito de luxo: “Se determinamos as origens das nações mais prósperas, encontraremos que, nos remotos princípios de todas as sociedades, os homens então mais ricos e considerados foram privados durante longo tempo de muitas das comodidades de que agora desfrutam os mais humildes e miseráveis; de modo que muitas coisas que em outros tempos consideravam-se uma invenção do luxo estão agora ao alcance de pobres tão indigentes que vivem da caridade pública e conceituam-se tão necessárias que nos parece impossível que algum ser humano possa estar desprovido delas”46. 36 É impossível considerar essas noções tendo como marco um ponto absoluto. Riqueza e pobreza, necessário e supérfluo, desperdício o frugalidade são noções relativas: o que é privilégio de aJguns numa época toma-se, com o decorrer do tempo, objeto de consumo corrente. É muito difícil, em primeiro lugar, dizer quando começa o luxo. Voltaire, no Dicionário Filosófico, afirma: “Num país onde todos andam descalços, o que fez o primeiro par de sapatos tinha luxo? Não era um homem muito sensato e muito industrioso? Isso não vale também para quem fe z a primeira camisa? Quem a fe z esbran quiçar fo i um gênio pleno de recursos capaz de governar um Estado. Entretanto, aqueles que não estavam acostu mados a vestir camisas o tomaram por um rico efemina- do que corrompia a nação” .47 Da mesma forma, como não se sabe quando começa, é difícil detectar também quando termina ou quando passa a ser nocivo: “Se há de chamar-se de luxo (como deveria estritamente ser chamada) cada coisa que não seja imediatamente necessária para permitir ao homem subsistir como criatura vivente que é, não há outra coisa que exista no mundo, nem sequer entre os selvagens nus, dos quais é improvável que haja alguns que nessa época não tenham melhorado em alguma coisa sua maneira de viver, seja na preparação de seus alimentos, na distribuição de suas choças ou, pelo menos, adicionando algo ao que, em ou tros tempos, consideraram suficiente. Todos dirão que esta definição é demasiadorigorosa; sou da mesma opinião, mas se vamos mitigar, por mínimo que seja, esta severidade, temo que já não saberemos onde deter-nos” ,48 Trata-se de um conceito vago, indefinido, onde nunca se sabe exata mente como demarcar o território. Quando as pessoas dizem que apenas 37 querem estar limpas e apresentáveis, por exemplo, diz Mandeville, nunca se sabe direito o que estão querendo dizer com isso. Mas, esses “pequenos adjetivos são tão extensos, especialmente no dialeto de algu mas damas que ninguém pode suspeitar de seu alcance”.41' A réplica con tinental não demorou muito: “O que é, com efeito , o luxo? É uma palavra sem idéia precisa, mais ou menos como quando dizemos os cli mas do oriente e do ocidente: não existe, com efeito, oriente e ocidente. Não há ponto onde a terra se le vanta ou se deita, ou, se querem , cada ponto é oriente e ocidente. Dá-se o mesmo com o luxo: ou não existe ou está em todo lugar" ,w 9. Voltaire, mesmo amenizando um pouco as fórmulas provocati vas do Le Mondain, nunca deixou de ser um apologista ferrenho do luxo mostrando sempre que ele é um dos grandes benefícios que a ci vilização nos trouxe. Ele é o resultado da indústria e do gênio e avança com os progressos da primeira. E esse avanço da indústria faz com que, progressivamente, os produtos se barateiem.31 Mesmo essa fru galidade e essa pureza dos costumes, tão decantada nos antigos, além de falsa, como mostram Bayle e Mandeville, não produziram, ao que parece, grande coisa para a humanidade. Só uma miopia histórica pode fazer alguém preferir Esparta a Atenas: “Citam a Lacedemônia... Que bem Esparta fe z à Grécia? Teve ela Demóstenes, Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo de Atenas produziu grandes hom ens".52 Voltaire, como é fácil de ver, pode ter provocado grande ebulição quando publicou o Le Mondain. Mas, nem nesse texto, nem na grande maioria dos que escreveu posteriormente foi, propriamente, um ino vador. Retoma quase sempre os argumentos de Bayle e, sobretudo, de Mandeville. Colore-os, embeleza-os, dá a eles sua tintura particular, produzindo textos brilhantes e inigualáveis. Mas não vai muito mais 38 longe. Exceto em dois pontos, onde seu papel parece ter sido decisivo, lixaminemos o primeiro. Num desses giros muito característicos de Voltaire, ele acaba fazendo o feitiço virar contra o feiticeiro e é, não sobre a noção de supérfluo que joga sua atenção, mas sim sobre a de excesso. Foi esse o grande golpe de gênio de Voltaire, quando acaba por inverter as posições e passa do papel de advogado de defesa ao de acusador. Trata-se de um momento importante e delicado nessa longa c intrincada disputa sobre o luxo e, de agora em diante, serão os próprios apologistas da frugalidade que se vêm na obrigação de dar explicações. Isso tudo, Voltaire conseguiu com uma simples frase: “Se por luxo entendem o excesso, sabe-se que o excesso é pernicioso em todo gênero: na abstinência como na glutoneria, na economia como na liberalidade" .53 Esse argumento já andava difuso e representou uma verdadeira viragem na questão do luxo. O que se defende agora é que, bem dosado e usado com bom espírito, ele realmente constitui um bem precioso da civilização. Por outro lado, já vimos, atingido esse ponto, que os ri- goristas ficam numa posição verdadeiramente incômoda. Aquilo mesmo que apontavam como a raiz dos males do luxo não só agora é negado como se volta contra eles mesmos. A partir desse momento a causa está perdida. Tratava-se de uma realidade que era preciso aceitar e conferir direito de cidadania teórica. Como comenta, com humor, P. Hazard: “Quem abordava a questão do luxo estava perdido; qual quer incompetente se julgava com direito a pegar na pena, compondo uma apologia ou um requisitório; um não acabar de disparates, ‘inesgotável mina de tolices’. O luxo não era perigoso em si, o luxo só se tornava perigoso nos estados mal governados. Havia dois luxos, um culpa do e outro virtuoso. Dois luxos ainda, um aristocrático e outro popular. E ainda dois outros, um no início, que era legítimo; o outro que se tornava ilegítimo a partir do momento em que o desejo de brilhar leva o indivíduo a adquirir atavios acima de suas posses. Concluíam outros 39 que bem vão era discutir sobre o luxo, posto ser este uma realidade: boa ou má, era necessário aceitá-la" .5i Foi esta última opinião que acabou prevalecendo. A tese de Mandeville, deixando de lado seus exageros e seus exemplos bombás ticos, é, em linhas gerais, aceita e, afora os ultratradicionalistas e duas honrosas e poderosas exceções (Rousseau e Condillac), trata-se agora de uma questão de ajuste, de nível e de enquadramento. É o que vão fazer os textos de Hume, de um lado, e o verbete “Luxo” na Enciclopédia, de outro. 10. A abordagem de Hume foi discreta, mas nem por isso deixou de ser importante: "Luxo, afirma ele, é uma palavra de significação incerta e pode ser tomada tanto no bom quanto no mau sentido. Em geral, significa grande refinamento na satisfação dos sentidos e em qualquer grau pode ser inocente ou culpá vel, conforme a idade, país ou condição da pessoa... Imaginar que a satisfação de qualquer dos sentidos, ou a adoção de qualquer requinte em carnes, bebidas ou ornamentos seja por si um vício só poderá ocorrer a uma mente desorganizada pelo furor do entusiasmo” .5S Sua posição é ao mesmo tempo clara e nuançada. Clara porque, nas pegadas de Mandeville e Voltaire, considera o luxo como algo que per tence à classe do consumo produtivo e, portanto, em geral, benéfica. Nuan çada porque realiza a distinção entre um luxo inocente e outro vicioso. O que entende por luxo vicioso deixa apenas entrever num exemplo: “Ocupar-se inteiramente com o luxo à mesa, por exemplo, sem nenhum gosto pelos prazeres da ambição, do estudo ou da conversação, é sinal de estupidez, e é incompatível com qualquer força de temperamento ou de gênio. 40 Dedicar as despesas inteiramente a tal satisfação, sem consideração para com os amigos ou a família, indica um coração destituído de humanidade ou benevolência; mas se um homem reserva tempo suficiente para todos os fin s generosos, está livre de qualquer sombra de culpa ou reprovação”.56 O que ele chama luxo vicioso parece ser o que entendemos por monomania ou idéia fixa. Não deixa de lembrar também Luís XIV e Versailles. A idéia que nos vem, por exemplo, é a de um jogador cuja paixão foi levada a tal ponto que absorve toda sua vida e drena todos os seus bens. Mas, nem nesses casos, Hume considera o luxo como “o pior dos males da sociedade política”.57 A análise de Hume centraliza-se num ponto de vista socio- econômico. Os homens, desde que deixaram o estado selvagem onde viviam principalmente da caça e da pesca, dedicaram-se à agricultura, que de início ocupou a parte mais numerosa da sociedade. Mas, o aper feiçoamento da técnica levou ao estado em que bem poucos homens, proporcionalmente, são necessários para garantir a subsistência dessa mesma sociedade. Todo o problema, diz Hume, está em o que fazer com esse excedente de mão-de-obra da agricultura. Pode-se usá-lo ou para o engrandecimento e o poder do Estado (exércitos, frotas) e o aumento de seus domínios, ou pode-se usá-lo para a produção de ma nufaturas e objetos mais refinados. Alguns Estados antigos preferiram a primeira via e só se tomaram poderosos exatamente pela “ausência do comércio e do luxo”.58 Mas esses casos são excepcionais e não instau ram uma regra e, neste caso, podemos seguramente dizer que “a políti ca antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das coisas”.59 Já que tudo no mundo é “adquirido pelo trabalho”, causado pelas nossas paixões, e é natural que toda pessoa goze “dos frutos de seu trabalho, em plena posse de todo o necessário e de muitas das comodidades da vida”.60 E esse é o “curso comum das coisas humanas” e a boa política consiste em “concordar com a inclinação comum da humanidade e dar-lhe todos os melhoramentosde que é suscetível” e, conforme o “curso natural das coisas, a indústria, as artes e os negócios aumentam tanto o poder do soberano quanto a felicidade dos súditos e é política violenta aquela que engrandece o público à custa da pobreza dos indivíduos”.61 É sob essa ótica que os indivíduos conseguem 41 realizar sua felicidade pois os homens, quando a indústria e a técnica florescem “mantêm-se em ocupação constante e desfrutam da própria ocupação como sua recompensa, bem como dos prazeres que são o fruto do seu trabalho”.62 As vantagens de se seguir as inclinações natu rais dos homens são múltiplas: quanto mais se requintam no prazer, menos se abandonam ao excesso de qualquer tipo.63 Essa produção e consumo desses artigos ornamentam a vida multiplicando as satisfações inocentes, e são úteis também à sociedade porque produzem não só um excesso, que pode ser estocado em caso de necessidade futura, como também mantém uma mão-de-obra potencial disponível ao Estado, caso ele venha precisar dela, já que ela não produz o essencial.64 Distribui melhor a riqueza no interior da sociedade, e “onde as riquezas estão na mão de poucos”, estes detêm todo o poder e, inevitavelmente, conspirarão para deixar todos os encargos aos pobres.65 E falso, enfim, pensar numa opção frente ao problema de excedente provocado pelo excesso de refinamento da agricultura. E mais: mesmo nos estados onde o Estado era o valor único e primeiro, não foi o luxo o causador de suas desordens. Este “não possui a tendência natural de acarretar a venalidade e a corrupção”.06 Suas desordens procederam de um “governo mal formado e da extensão ilimitada de suas conquistas”.67 Essa é a fonte de seus males e é por isso que o luxo, mesmo vicioso, não é o pior dos males num Estado. De nada adianta combater o luxo. Ele por si só é geralmente beneficioso ou, pelo menos, inócuo. De um só golpe Hume praticamente inocenta o luxo, insere-o na cadeia natural dos eventos sociais (econômicos, seria melhor) e desloca o acento das neces sidades do Estado para as necessidades do indivíduo. O luxo agora é a conseqüência natural das matrizes passionais do ser humano — desejo de ação, de prazer, e de consumo — e insere-se no plano econômico, ligado ao desenvolvimento da indústria e do comércio. Ele é um dos ele mentos essenciais do desenvolvimento do corpo produtivo. Dupla ação, portanto, alocação do luxo como um problema econômico (e desliga mento da esfera moral), que deve ser tratado como tal, e sinalização de que os males do Estado têm por causa — não o luxo — mas algo que está na esfera do político. Se ainda pode-se dizer com Hume que o “luxo” é uma palavra polissêmica e que se trata, portanto, de uma questão de delimitação, ninguém melhor que Hume até então realizou esta operação de precisão do conceito. Pode-se argüir indefinidamente sobre onde o luxo começa e onde acaba, argumentai- sobre a relatividade geográfica e histórica; o 42 fato c que seu único ponto sólido de ancoragem é o econômico, susten tado por uma teoria do valor baseada em constantes da natureza humana. 11. Depois da abordagem humeana, ao que parece, assistimos a uma espécie de calmaria nessa discussão que só será realmente reavivada nos anos 70. Nesse ínterim, Montesquieu dedica-se em vários pontos do Espírito das Leis ao problema, sobretudo no livro VII. Mas o tom já é bem outro que o das C anas Persas. Não que condene o luxo, ao contrário. Mas a apologia é mais que discreta.68 Vincula estreitamente, no entanto, o luxo e a Monarquia.6'' Uma outra observação de Montesquieu é interessante: “O luxo está sempre em proporção com a desigualdade das fortunas. Se em um Estado as riquezas são igual m ente partilhadas, ali não haverá luxo; po is ele só está fun da do nas com odidades que as pessoas se dão pelo trabalho dos ou tros” Desde M andeville, tem -se clara consciência da distinção de classes e sua necessidade, num regim e econôm ico baseado em novas prem issas. M as nenhum dos autores parecia m uito preocupado com isso, e nem com o destino das classes m enos favorecidas. N a verdade, propugnava- se que se deveriam m an ter no seu lugar e sob rigorosa e estrita vig ilân cia. M ontesquieu m esm o não em ite nenhum ju íz o de valor. Quem , prim eiro, ao que parece, foi m ais longe nessa questão (no âm bito dos defensores do luxo) parece, para variar, ter sido Voltaire, que ex trai um a das conseqüências fundam entais para a abo rdagem de um nível da questão (e aqu i está o segundo ponto onde é original): “Se entendemos por luxo tudo aquilo que é além do necessário, o luxo é uma conseqüência natural dos pro gressos da espécie humana; e para raciocinar conse qüentemente, todo inimigo do luxo deve crer, com Rousseau, que o estado de felicidade e de virtude para o homem é aquele, não de Selvagem,n mas de orangotango. Sentimos que seria absurdo ver como um mal comodi dades das quais todos os homens desfrutariam; por isso, em geral, só se dá o nome de luxo às superfluidades das 43 quais apenas um pequeno número de indivíduos pode des frutar. Neste sentido o luxo é uma decorrência necessária da propriedade, sem a qual nenhuma sociedade pode sub sistir, e de uma grande desigualdade entre as fortunas, que é a conseqüência não do direito de propriedade, mas de más leis. São portanto as más leis que fazem nascer o luxo, e são as boas leis que podem destruí-lo. Os moralis tas devem dirigir seus sermões aos legisladores, e não aos particulares, porque está na ordem das coisas possíveis que um homem virtuoso e esclarecido tenha o poder de fazer leis razoáveis, e porque não é da natureza humana que todos os ricos de um país renunciem, por virtude, a obter a preço de dinheiro desfrutes de prazer e vaidade” .72 Esse texto é revelador, em primeiro lugar, da distância que foi per corrida nessa discussão e que Voltaire espelha tão bem. Uma certa acepção do termo luxo já não se discute mais: sua bondade, sua utili dade e seu caráter natural à espécie humana. Em segundo lugar, se há um sentido em que o luxo pode ser condenado (“Neste sentido...") é aquele supérfluo, que é o privilégio de uma minoria rica. Mas isso diz respeito, diretamente, à legislação e não à moral privada. Trata-se de um problema de política, não de ética: da boa gestão e distribuição dos bens que são gerados e produzidos na sociedade. Essa espécie de luxo condenável nem é má em si mesma, como veremos, já que é um efeito e, mesmo como efeito, nem sempre é condenável. 12. Isso ficará claro no extenso verbete “Luxo” da Enciclopédia.73 St.-Lambert parte de uma definição mínima de luxo: “Ele é o uso que se fa z das riquezas e da indústria para . se conseguir uma existência agradável” .1A Em seguida, realiza um longo exame dos argumentos que foram arrolados pró e contra o luxo. Não vale a pena deter-se neste ponto na medida em que não apresenta novidade em relação ao que já discuti mos. A primeira coisa interessante a constatar é a conclusão que 44 extraí após esse balanço: tanto os elogios como as censuras que se fazem ao luxo não são contraditos pela história. O que significa dizer que a história não é um bom “topos” para se trabalhar a questão. É preciso encará-la sob outro ângulo. E a maneira como ele a coloca pode ser expressa da seguinte forma: se os apologistas do luxo vêem neíe o motor dos progressos das nações, enquanto que seus detratores vêem nele o motor de sua decadência, e como ambas as coisas podem ser constatadas no plano histórico, não se estaria tomando como causa e como efeito algo que não é nem uma coisa nem outra?” E, logo em seguida, afirma: “O interesse pessoal, sem que ele se tenha tornado amor pelas riquezas e pelos prazeres, enfim, se tornado estas paixões que levam ao luxo, já não produziu , seja junto aos magistrados, seja junto ao soberano ou ao povo, mudanças na constituição do Estado que o corrompe ram? Ou este interesse pessoal, o hábito,os prejuízos impediram de fazer mudanças que as circunstâncias ti nham tornado necessárias? Enfim , na constituição, na administração, não existem defeitos, imperfeições que, muito independentemente do luxo levaram à corrupção dos governos e à decadência dos impérios?” ,76 Percebe-se através desse texto (e é interessante acompanhar os exemplos históricos que St.-Lambert fornece) qual a mudança, a guina da que ele está operando: em vez de considerar o luxo como um motor fundamental, seja para o bem, seja para o mal, como se tinha feito até então, coloca a questão nos seguintes termos: não haveria, por trás desse motor aparente, um outro primordial, este sim, responsável pelos bens e pelos males dos homens, isso que denominamos o interesse pes- soaP. E essa produção do supérfluo (tão elogiada ou denegrida) não é um efeito concomitante? Operação dupla: desvincula-se o luxo como causa e simultaneamente o enraíza em algo mais originário da natureza humana. Começa a se explicitar de forma clara algo que, na verdade, já está presente em Mandeville: que existe um núcleo originário, algo que habita as entranhas dos homens e que, este sim, deve ser considerado. Tomemos um outro texto de St.-Lambert: 45 “O luxo tem como causa primeira este descontentamento com nosso estado; este desejo de ser melhor, que existe e deve existir em todos os homens. Nestes, ele é a causa de suas paixões, de suas virtudes e de seus vícios. Este desejo deve necessariamente fazê-los amar e procurar as riquezas; portanto, o desejo de enriquecer-se deve contar entre os motivos de todo governo que não é fu n dado na igualdade e na comunidade dos bens; ora, o objeto principal deste desejo deve ser o luxo; portanto, existe luxo em todos os Estados, em todas as sociedades: o selvagem tem sua rede, que ele compra por peles de animais; o Europeu tem seu canapé, seu leito; nossas mulheres usam azul e contas de vidro" .77 Esse texto, precioso, e ao qual teremos de voltar, mostra clara mente que existe um desejo natural de produzir e gozar dos bens, das comodidades, o que excita a produção das artes e indústrias. É esse desejo que conduz os homens a instalarem-se no luxo e, num governo onde a propriedade está instalada, esses desenvolvimentos acontecerão inevitavelmente. Como a sociedade igualitária é uma utopia e algo contra essas inclinações naturais, elas até podem cristalizar-se historicamente, mas estão condenadas ao fracasso, porque não seguem o curso natural. St.-Lambert leu Hume, que é citado7“ e soube aproveitar as lições do filósofo. Os homens podem produzir um excesso e querem usufruir dele. Nada mais natural. O importante, nos avisa, é, de agora em diante, não confundir mais as coisas. Sc há uma raiz dos males e dos benefícios, esta se encontra na noção chave de interesse próprio e, para bem administrá-lo — sendo fiel discípulo de Shaftesbury e seu tradutor, Diderot79 — basta subordiná-lo ao “espírito de comunidade que torna o luxo benéfico e indefinido temporalm ente”. D eve-se também ligá-lo às outras paixões, formando assim um todo, uma cadeia coerente, coesa e funcional. Como diz Hubert: “Saint-Lambert vangloria-se de ter demonstrado que o luxo contribui para a grandeza e a força dos estados, e que é preciso encorajá-lo, esclarecê-lo, mas também 46 dirigi-lo. O luxo desenfreado leva a sobrecarregar os campos de impostos, e despovoá-los, a exagerar a desigualdade das riquezas. O luxo moderado enriquece o estado, desenvolve-o e sustenta-o. Este não é ameaça do enquanto as paixões que conduzem ao luxo per manecem subordinadas ao espírito de comunidade” .8n Assim, são os estados mal administrados que conduzem esse efeito concomitante do social — o luxo — aos descaminhos, assim como os bens administrados farão com que ele só produza efeitos benéficos. Nos primeiros ele se torna excessivo todas as vezes que os particulares sacrificam, absolutamente, ao seu fasto e às suas comodi dades e fantasias, os seus deveres para com os interesses da comu nidade. Mas é preciso ter consciência de que, nestes casos, os particu lares assim conduzem porque há um grave defeito na constituição do Estado. Agora, o luxo está inocentado: “Visto que o desejo de enriquecer e od e desfrutar de suas riquezas estão na natureza humana desde que ela está em sociedade; visto que estes desejos sustentam, enri quecem, vivificam todas as grandes sociedades; visto que o luxo é um bem, e que por si mesmo ele não fa z nenhum mal, não se deve portanto, nem como filósofo nem como soberano, atacar o luxo em si mesmo” O texto de St.-Lambert enfeixa numa unidade admirável um con junto de teses que estavam mais ou menos esparsas entre os autores que analisamos até agora. Praticamente recupera todas e essa síntese pode ser esquematizada nos seguintes pontos principais: 1- Ele opera um deslocamento da questão mostrando que o luxo enquanto tal é um efeito concomitante de causas mais profundas e que, dependendo da ação dessas causas, pode produzir efeitos benéfi cos ou não; 47 2- O luxo, enquanto tal, é inerente ao estado de sociedade e, enquanto esta existir, ele a acompanhará, a não ser nos casos de exceção, não naturais; 3- Quando produz efeitos nocivos, não é por si mesmo, mas em conseqüência da má administração do Estado, que não está sabendo guiar, canalizar bem o interesse próprio;*2 4- Mostra que o luxo é o resultado de certos desejos oriundos de uma particular disposição da natureza humana, a qual ele vem exata mente preencher.*' 13. Partimos de uma sugestão de R. Hubert84 que dizia que o desen volvimento da questão do luxo era uma das mais características para se compreender a transformação das idéias no século XVIII. Chegou o momento de verificarmos se ela é correta ou não. E, ao que tudo indi ca, a aposta valeu a pena. O exame da “querela do luxo” fornece-nos um conjunto precioso de indicações que, num primeiro momento, con figuram-se ou, pelo menos, apontam para um conjunto de interrogações cujas respostas não brotam ao simplesmente serem formuladas. Em primeiro lugar, é interessante notar que essa questão perdurou por mais de um século. A lentidão é impressionante. Na verdade ela não terminou por volta do início do último terço do século XVIII. Ela conti nuará por longo tempo.” E, vez por outra, ela reaparece periodicamente. Quando falamos em lentidão não estamos nos referindo ao tempo que foi necessário para resolver a questão. Esse é um dos problemas que provavelmente subsistirá enquanto o mesmo fizer a humanidade e depende, na escolha que o sujeito fez, de um conjunto de opções prévias radicais no plano filosófico. Assim, quando falamos em lentidão, esta mos nos referindo a uma outra coisa. O que foi extremamente lento foi o tempo necessário para que os apologistas do luxo pudessem formar um corpo coerente de argumentos que tornasse sustentáveis suas teses. Poder-se-ia utilizar o operador “resistência” para tentar explicar o fenômeno. De fato, a “Resistência das Mentalidades” ao novo, essa viscosidade que nos liga fortemente ao já conhecido, essa inércia na tural a que estamos submetidos tem muito a ver com tudo isso. Mas, no caso, pensando bem, isso só serve realmente para recuarmos o problema, não para resolvê-lo. O que estamos querendo saber é exata mente porque a explicitação dos argumentos que sustentam os defen sores do luxo levou tanto tempo para se articular de forma coerente, e já estamos dando por suposta essa resistência. Estamos mais interessa dos em suas razões. Foi de uma forma trabalhosa que se conseguiu perceber algo que para nós é uma verdade elementar: a produção e consumo do supérfluo é um fenômeno econômico que tem implicações morais e não vice-versa. Por outro lado, e aqui talvez esteja realmente um dos focos centrais do problema, o desenrolar da análise da questão vai progressivamente apontando para o fato de que existe algo, algu ma coisa, uma espécie de atributo da natureza na qual esse
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