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AS VÁRIAS POSSIBILIDADES DE LEITURA DE UM TEXTO

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AS VÁRIAS POSSIBILIDADES DE LEITURA DE UM TEXTO 
 
In: FIORIN e PLATÃO. Para entender o texto – 
Leitura e Redação. São Paulo: Ática, 2003. 
 
O LOBO E O CORDEIRO 
 
Vamos mostrar que a razão do mais forte é sempre a melhor. 
Um cordeiro matava a sede numa corrente de água pura, quando chega um lobo cuja 
fome o levava a buscar caça. 
— Que atrevimento é esse de sujar a água que estou bebendo? — diz enfurecido o lobo. 
— Você será castigado por essa temeridade. 
— Senhor — responde o cordeiro —, que Vossa Majestade não se encolerize e leve em 
conta que estou bebendo vinte passos mais abaixo que o Senhor. Não posso, pois, sujar a 
água que está bebendo. 
— Você a suja — diz o cruel animal. — Sei que você falou mal de mim no ano passado. 
— Como eu poderia tê-lo feito, se não havia sequer nascido? — responde o cordeiro. — 
Eu ainda mamo. 
— Se não foi você, foi seu irmão. 
— Eu não tenho irmãos. 
— Então, foi alguém dos seus, porque todos vocês, inclusive pastores e cães, não me 
poupam. Disseram-me isso e, portanto, preciso vingar-me. 
Sem fazer nenhuma outra forma de julgamento, o lobo pegou o cordeiro, estraçalhou-o 
e devorou-o. 
La Fontaine. Fables. Tours, Alfred Mame et Fils, 1918, p. 10. 
 
A primeira questão que se pode propor quando se lê uma fábula é a seguinte: ela é 
uma história de bichos ou de gente? O leitor poderia responder precipitadamente: de gente, é 
claro. Se lhe perguntássemos como é que ele sabe disso, certamente responderia que lhe 
ensinaram na escola que as fábulas contam histórias de seres humanos representados por 
animais, plantas etc. Caberia então a pergunta: como é que os estudiosos chegaram a essa 
conclusão? Inferiram-na do fato de que há nos textos uma reiteração de traços semânticos, isto 
é, de elementos que compõem o significado das palavras, que obriga a ler o texto de uma 
dada maneira. 
Vejamos o que ocorre em nossa fábula. Inicialmente, temos dois animais: o lobo e o 
cordeiro. Poderíamos, então, pensar que se trata de uma história de bichos. No entanto, 
atribuem-se a eles procedimentos próprios dos seres humanos (dizer, castigar, responder, 
encolerizar-se, falar mal, não poupar, vingar-se), qualidades e estados exclusivos dos homens 
(enfurecido, temeridade, ter irmãos), formas de tratamento utilizadas nas relações sociais 
estabelecidas entre os humanos (Senhor, Vossa Majestade, você). Essa repetição, essa 
recorrência, essa reiteração do traço semântico humano desencadeia um novo plano de 
leitura. O primeiro plano de leitura é história de animais. À medida, porém, que elementos com 
o traço humano se repetem, não se pode mais ler a fábula como uma história de bichos. Esses 
traços desencadeiam outro plano de leitura: o de uma história de homens. Nesse novo plano, o 
lobo é o homem forte que oprime o mais fraco, representado pelo cordeiro. 
A recorrência de traços semânticos é que estabelece que leituras devem ou podem ser 
feitas de um texto. Uma leitura não tem origem na intenção do leitor de interpretar o texto de 
uma dada maneira, mas está inscrita no texto como virtualidade, como possibilidade. 
Lido de modo fragmentário, o texto pode parecer um aglomerado desconexo de frases a 
que o leitor dá o sentido que quiser e bem entender. Não é assim: há leituras que não estão de 
acordo com o texto e, por isso, não podem ser feitas. Mas talvez alguém perguntasse: um texto 
não pode aceitar múltiplas leituras? É verdade, pode admitir várias interpretações, mas não 
todas. São inaceitáveis as leituras que não estiverem de acordo com os traços de significado 
reiterados, repetidos, recorrentes ao longo do texto. 
Há textos que possibilitam mais de uma leitura. Neles, as mesmas figuras têm mais de 
uma interpretação, segundo o plano de leitura em que forem analisadas. Para explicar isso, 
tomemos como exemplo um trecho do poema “Alguns toureiros”, de João Cabral de Melo Neto. 
 
Mas eu vi Manuel Rodriguez, 
Manolete, o mais deserto, 
o toureiro mais agudo, 
mais mineral e desperto, 
 
o de nervos de madeira, 
de punhos secos de fibra, 
o de figura de lenha, 
lenha seca da caatinga, 
 
o que melhor calculava 
o fluido aceiro da vida, 
o que com mais precisão 
roçava a morte em sua fímbria, 
 
o que à tragédia deu número, 
à vertigem, geometria, 
decimais à emoção 
e ao susto, peso e medida, 
 
sim, eu vi Manuel Rodriguez, 
Manolete, o mais asceta, 
não só cultivar sua flor 
mas demonstrar aos poetas: 
 
como domar a explosão 
com mão serena e contida, 
sem deixar que se derrame 
a flor que traz escondida, 
 
e como, então, trabalhá-la 
com mão certa, pouca e extrema: 
sem perfumar sua flor, 
sem poetizar seu poema. 
 
João Cabral de Melo Neto. Antologia poética. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 156. 
 
O poeta fala, no texto, sobre alguns toureiros que conheceu. O último de que fala é 
Manolete. Na primeira estrofe do trecho que transcrevemos, ele recebe qualificações de uma 
forma ou outra relativas a mineral; na segunda, ganha qualificações concernentes a vegetal. 
Seus predicados são a secura, a contenção, a agudeza. Ele é lenha, madeira, fibra (vegetal 
seco) e não planta; é deserto (figura que lembra a secura, a contenção); é mineral (também 
evoca o que é seco e agudo). Esses predicados estão presentes no interior (nervos) e no exterior 
(figura) do toureiro. 
Seus atos são figurativizados pelo percurso da matemática. A vida apresenta uma 
enorme fragilidade. Nela, a todo momento, roça-se a fímbria da morte. O poeta fala em fluido 
aceiro da vida (aceiro é um trecho da vegetação que se desbasta para que o fogo não salte 
para lugares indevidos). O ascetismo, a contenção, a secura de Manolete derivam da 
consciência dessa fragilidade, da certeza de que qualquer gesto menos preciso pode significar 
a morte. Por isso, à tragédia, à emoção, à vertigem e ao susto, que poderiam levar à ruptura 
com a realidade, ele contrapõe o cálculo, a precisão, o número, a geometria, os decimais, peso 
e medida. Os versos seguintes dizem que Manolete cultivava sua flor asceticamente, 
secamente. A flor é a emoção. É preciso conter a emotividade, domar sua explosão e, depois, 
trabalhá-la, não permitindo que se derrame. A emoção deve ser pouca. Não se deve nunca 
perfumar a flor, deixar que uma emotividade descontrolada se espalhe. 
Essas estrofes estão referindo-se ao toureiro, cujo trabalho lhe impõe condições tais que 
a presença da morte é uma constante e a vida existe apesar das circunstâncias adversas. 
Deixamos três versos de lado em nossa leitura: mas demonstrar aos poetas, sem 
poetizar seu poema e lenha seca da caatinga. Os dois primeiros versos não se integram ao 
plano de leitura proposto, o da vida de um toureiro. Como a atitude de Manolete é um 
ensinamento para os poetas? Esses versos determinam a criação de um outro plano de leitura: 
o do ato de poetar. Todas as figuras devem ser lidas agora também nesse plano. O poeta deve 
ser seco, contido, agudo, domar as emoções. Sua poética deve ser contida, para que, com um 
gesto menos calculado, não rompa ele com a realidade em que deve trabalhar. 
O último dos três versos leva a um plano de leitura social. Não se trata mais do toureiro 
espanhol, mas do nordestino (lenha seca da caatinga), que, vivendo em condições tão 
extremas, roça a todo instante a fímbria da morte, devendo, pois, com precisão, calcular o 
fluido aceiro da vida. É seco, contido, doma suas emoções, pois qualquer gesto menos preciso 
pode significar a ruptura definitiva. 
Esse texto admite, pelo menos, três leituras: a do tourear, a do poetar e a do viver no 
Nordeste. 
As anedotas, as frases maliciosas, de duplo sentido, os textos humorísticos jogam com 
dois planos de leitura. Neles, lê-se o que pertence a um plano em outro. Veja, por exemplo: 
 
— Então, o senhor sofre de reumatismo? 
—É claro. O que o senhor queria? Que eu usufruísse do reumatismo, que eu desfrutasse 
do reumatismo, que eu fruísse do reumatismo, que eu gozasse o reumatismo? 
 
Observeque, nessa anedota, o verbo sofrer está usado em dois sentidos diferentes: 
sofrer + de + nome designativo de doença significa “ter”; sofrer + de + nome abstrato significa 
“padecer” A questão foi formulada com o primeiro sentido, que determina um plano de leitura: 
o das doenças que se têm. Foi, no entanto, lida pelo interlocutor no segundo sentido, que gera 
outro plano de leitura: o dos sofrimentos da vida. 
Para que haja uma anedota, ou duplo sentido, é preciso que haja duas leituras em 
algum nível lingüístico. Na anedota abaixo, por exemplo, enuncia-se a frase com uma 
entonação e ela é lida com outra. 
 
A professora passou a lição de casa: fazer uma redação com o tema “Mãe só tem uma”. 
No dia seguinte, cada aluno leu sua redação. Todas dizendo mais ou menos as mesmas 
coisas: a mãe nos amamenta, é carinhosa conosco, é a rosa mais linda de nosso jardim etc. etc. 
etc. Portanto, mãe só tem uma... 
Aí chegou a vez de o Juquinha ler sua redação: 
“Domingo foi visita lá em casa. As visitas ficaram na sala. Elas ficaram com sede e 
minha mãe pediu para mim ir buscar coca-cola na cozinha. Eu abri a geladeira e só tinha uma 
coca-cola. Aí eu gritei para minha mãe: ‘Mãe, só tem uma!”. 
 
 
 
No cartum de Geandré, o efeito humorístico é obtido 
por meio da leitura desautomatizada de uma frase 
cotidiana 
 
 
Um texto pode ter várias leituras, bem como pode jogar com leituras distintas para criar 
efeitos humorísticos. Entretanto, o leitor não pode atribuir-lhe o sentido que bem entender. Ele 
contém marcas de possibilidade de mais de um plano de significação. A primeira são as 
palavras com mais de um significado. Elas são chamadas relacionadores de leituras, pois 
apontam para mais de um plano de sentido. É o caso do verbo sofrer ou da frase Mãe só tem 
uma tomados em dois sentidos nas piadas acima. A outra são palavras ou expressões que não 
se integram no plano de leitura proposto e, por isso, desencadeiam outro plano de sentido. São 
denominadas desencadeadores de leituras. No poema de Cabral analisado acima, são 
desencadeadores as palavras poeta, poetizar, poema e a expressão lenha seca da caatinga. 
O leitor cauteloso abandona interpretações que não estejam apoiadas no texto e em 
suas recorrências. 
 
 O TEXTO E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA 
 
Todos conhecem as aventuras do Super-homem. Ele não é um terráqueo, mas chegou à 
Terra, ainda criança, numa nave espacial, vindo de Crípton, planeta que estava para ser 
destruído por uma grande catástrofe. É dotado de poderes sobre-humanos; seus olhos de raio 
X permitem ver através de quaisquer corpos, a uma distância infinita; sua força é ilimitada, 
possibilitando-lhe escorar pontos prestes a desabar e levantar transatlânticos; a pressão de 
suas mãos submete o carbono a temperaturas tão altas que o transforma em diamante; sua 
apurada audição permite-lhe escutar o que se fala em qualquer ponto. Pode voar a uma 
velocidade igual à da luz e, quando ultrapassa essa velocidade, atravessa a barreira do tempo 
e transfere-se para outras épocas; pode perfurar montanhas com o próprio corpo; pode fundir 
metais com o olhar. Além disso, tem uma série de qualidades: beleza, bondade, humildade. 
Sua vida é dedicada à causa do bem. 
O Super-homem vive entre os homens sob a aparência do jornalista Clark Kent, que é 
um tipo medroso, tímido, pouco inteligente, míope. Clark Kent namora Louis Lane, sua colega, 
que, na verdade, o despreza e ama loucamente o Super-homem. 
Você já viu na lição 1 que todo texto é um pronunciamento sobre uma dada realidade. 
Ao fazer esse pronunciamento, o produtor do texto trabalha com as idéias de seu tempo e da 
sociedade em que vive. Com efeito, as concepções, as idéias, as crenças, os valores não são 
tirados do nada, mas surgem das condições de existência. As concepções racistas, por 
exemplo, aparecem numa época em que certos países, necessitando de mão-de-obra, iniciam 
a escravização de negros. A idéia de que certas raças são inferiores a outras não é uma 
maldade dos brancos, mas uma justificativa apaziguadora da consciência dos senhores de 
escravos. Essas concepções ganham um impulso maior quando os países europeus, 
precisando de matérias-primas, iniciam o processo de colonização da África e da Ásia. A 
colonização é, assim, justificada por um belo ideal: expandir a civilização. 
Todo texto assimila as idéias da sociedade e da época em que foi produzido. Neste 
momento, você poderia estar dizendo que o texto do Super-homem prova exatamente o 
contrário, pois nada tem ele a ver com a realidade histórica, onde não existem super-homens. 
Quando se afirma que os textos se relacionam com a história, não se quer dizer que eles 
narram fatos históricos de um país, mas que revelam os ideais, as concepções, os anseios e os 
temores de um povo numa determinada época. Nesse sentido, a narrativa do Super-homem 
mostra os anseios dos homens das camadas médias das sociedades industrializadas do 
século XX, massacrados por um trabalho monótono e por uma vida sem qualquer heroísmo. 
Esse homem, mediocrizado e inferiorizado, nutre a esperança de tornar-se um ser todo-
poderoso assim como Clark Kent, que se transforma em Super-homem. As condições de 
impotência do homem diante das pressões sociais geram um ideal de onipotência refletido na 
narrativa do Super-homem. 
Além disso, as concepções de sociedade em que esse texto foi produzido estão 
presentes na idéia de Bem. 
Como nota Umberto Eco, famoso autor italiano, um indivíduo dotado dos poderes do 
Super-homem poderia acabar com a fome, a miséria e as injustiças do mundo. No entanto ele 
não faz nada disso. Ao contrário, o bem que pratica é a caridade, e o mal que combate é o 
atentado à propriedade privada. Lutar contra o mal é assim combater ladrões. Dedica sua vida 
a isso. 
Como se vê, as idéias produzidas num determinado tempo, numa dada época estão 
presentes no texto. Cabe lembrar, no entanto, que uma sociedade não produz uma única forma 
de ver a realidade. Como ela é dividida pelos interesses antagônicos dos diferentes grupos 
sociais, produz idéias contrárias entre si. A mesma sociedade que gera as idéias racistas 
produz idéias anti-racistas. Por isso constroem-se nessa sociedade textos que fazem 
pronunciamentos antagônicos com relação aos mesmos dados da realidade. 
Há algumas idéias que predominam sobre suas contrárias numa dada época. Elas 
refletem os interesses dos grupos sociais dominantes. Fazer uma reflexão pessoal é analisar 
essas idéias de maneira crítica, verificando até que ponto elas têm apoio na realidade. 
Para entender com mais eficácia o sentido de um texto, é preciso verificar as 
concepções correntes na época e na sociedade em que foi produzido. Assim, não se corre o 
risco de considerar, por exemplo, como pronunciamentos idênticos um texto sobre a 
democracia ateniense e um sobre a democracia nas sociedades capitalistas modernas, que, 
na verdade, tratam de concepções distintas. As idéias de uma época estão presentes nos 
significados dos textos. 
Cabe lembrar ainda que as idéias de uma época são veiculadas por textos, uma vez 
que não existem idéias puras, ou seja, não transmitidas lingüisticamente. Assim, analisar as 
idéias presentes num texto é estudar o diálogo entre textos, em que um assimila ou registra as 
idéias presentes nos outros. 
 
 NÍVEIS DE LEITURA DE UM TEXTO 
 
Ao primeiro contato com um texto qualquer, por mais simples que ele pareça, 
normalmente o leitor se defronta com a dificuldade de encontrar unidade por trás de tantos 
significados que ocorrem na sua superfície. 
Numa crônica ou numa pequena fábula, por exemplo, surgem personagens diferentes, 
lugares e tempos desencontrados e ações as mais diversas. Na primeira leitura, parece 
impossível encontrar qualquer ponto para o qual convirjam tantas variáveis e que dê unidade 
à aparente desordem. 
Mas, quando se trata de um bom texto, por trás do aparente caos, há ordem. Quando, 
após várias leituras, encontra-se o fio condutor,a primeira impressão de desorganização cede 
lugar à percepção de que o texto tem harmonia e coerência. 
Para exemplificar o que acaba de ser dito, vamos ler uma pequena fábula de Monteiro 
Lobato e tentar demonstrar que, a partir da observação dos dados concretos da superfície, 
pode-se chegar à compreensão de significados mais abstratos, que dão unidade e 
organização ao texto. 
 
O galo que logrou a raposa 
 
Um velho galo matreiro, percebendo a aproximação da raposa, empoleirou-se numa 
árvore. A raposa, desapontada, murmurou consigo: “Deixe estar, seu malandro, que já te 
curo!...” E em voz alta: 
— Amigo, venho contar uma grande novidade: acabou-se a guerra entre os animais. 
Lobo e cordeiro, gavião e pinto, onça e veado, raposa e galinhas, todos os bichos andam 
agora aos beijos, como namorados. Desça desse poleiro e venha receber o meu abraço de paz 
e amor. 
— Muito bem! — exclama o galo. Não imagina como tal notícia me alegra! Que beleza 
vai ficar o mundo, limpo de guerras, crueldades e traições! Vou já descer para abraçar a 
amiga raposa, mas... como lá vêm vindo três cachorros, acho bom esperá-los, para também 
eles tomem parte na confraternização. 
Ao ouvir falar em cachorro, Dona Raposa não quis saber de histórias, e tratou de pôr-se 
ao fresco, dizendo: 
— Infelizmente, amigo Có-ri-có-có, tenho pressa e não posso esperar pelos amigos cães. 
Fica para outra vez a festa, sim? Até logo. 
E raspou-se. 
Contra esperteza, esperteza e meia. 
(LOBATO, Monteiro. Fábulas. 19. ed. São Paulo, Brasiliense, p. 47.) 
 
Num primeiro nível de leitura, podemos depreender os seguintes significados: 
— um galo espertalhão, consciente de que a raposa é inimiga, coloca-se sob proteção, fora do 
alcance das suas garras; 
— a raposa tenta convencer o galo de que não há mais guerra entre os animais e que se 
instaurou a paz; 
— o galo finge ter acreditado na fala da raposa, mostra-se alegre e convida-a a esperar três 
cães para que também eles participem da confraternização; 
— a raposa, sem negar o que dissera ao galo, alega ter pressa e vai embora. 
 
Num segundo nível, podemos organizar esses dados concretos num plano mais 
abstrato: 
 
— um dos personagens do texto (o galo) dá mostras de ter consciência de que os animais 
estão em estado de guerra; 
— outro personagem (a raposa) dá mostras de que os animais estão em estado de paz; 
— no nível do fingimento, isto é, da aparência, ambos percebem ter entrado em acordo, mas, 
no nível da realidade, isto é, da essência, os dois continuam em desacordo. 
 
Num terceiro nível, podemos imaginar uma leitura ainda mais abstrata, que resume o 
texto todo: 
— afirmação da belicosidade (da guerra) — negação da belicosidade 
— afirmação da pacificação. 
Tudo isso, como se viu, no nível apenas do fingimento, ou seja, do faz-de-conta. 
 
A esperteza do galo manifestou-se exatamente no fato de ter dado a impressão de estar 
de acordo com a raposa, quando na realidade continuou em desacordo e com isso preservou 
sua vida. 
Os três níveis de leitura, como se pode notar, distinguem-se um do outro pelo grau de 
abstração: o primeiro nível depreende os significados mais complexos e mais concretos; o 
terceiro nível depreende os significados mais simples e abstratos. 
As diversidades se manifestam no nível da superfície do texto, e a unidade se encontra 
no nível mais profundo. 
Desse modo, pode-se imaginar que o texto admite três planos distintos na sua estrutura: 
 
1) uma estrutura superficial, onde afloram os significados mais concretos e diversificados. É 
nesse nível que se instalam no texto o narrador, os personagens, os cenários, o tempo e as 
ações concretas; 
 
2) uma estrutura intermediária, onde se definem basicamente os valores com que os diferentes 
sujeitos entram em acordo ou desacordo; 
 
3) uma estrutura profunda, onde ocorrem os significados mais abstratos e mais simples. É 
nesse nível que se podem postular dois significados abstratos que se opõem entre si e 
garantem a unidade do texto inteiro. 
 
Após o que ficou exposto, pode-se concluir que o leitor cumpre o trajeto que parte da 
estrutura da superfície, passa pela intermediária e, por fim, chega à estrutura profunda. Parte 
dos significados dispersos na superfície para ir atingindo significados cada vez mais abstratos. 
Os três níveis que compõem a estrutura do texto serão designados, a partir desta lição, 
pela seguinte nomenclatura: 
— nível mais superficial: estrutura discursiva; 
— nível intermediário: estrutura narrativa; 
— nível mais profundo: estrutura profunda. 
 
FEXTO COMENTADO: Recado ao senhor 903 
 
Vizinho — 
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, 
que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. 
Recebi depois a sua própria visita pessoal — devia ser meia-noite — e a sua veemente 
reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O 
regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a 
Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 
903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir 
quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos 
reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me 
limito, a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, 
ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 — que é o senhor. Todos esses números são comportados 
e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos 
horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da 
lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento 
de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será 
convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 
deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na 
sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável 
quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de 
seus algarismos. Peço-lhe desculpas — e prometo silêncio. 
... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem 
batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua 
casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu 
vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é 
bela”. 
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do 
vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa 
nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz. 
BRAGA, Rubem. ——. In: ANDRADE, Carlos Drummond de et alii. 
Para gostar de ler: crônicas. São Paulo, Ática. 1975. p. 74-5. 
 
No nível da estrutura superficial, depreendem-se os seguintes dados: 
1) há dois vizinhos que não se conhecem pelo nome e por isso se chamam pelos números dos 
respectivos apartamentos: 1003 e 903; 
2) o 1003 responde uma carta ao 903, reconhecendo as reclamações deste contra o barulho que 
o 1003 faz em seu apartamento no horário em que todos deveriam estar dormindo. 
Sinceramente, promete atender às reclamações do 903; 
3) apesar de dar razão ao seu vizinho, o 1003 se dá o direito de sonhar com um mundo onde 
não existam as imposições do mundo em que vive e seja possível uma vida mais livre e mais 
humana. 
 
No nível da estrutura narrativa, pode-se construir a seguinte organização: 
 
— o 1003 está em desacordo com o regulamento do prédio e com as leis da sociedade em que 
vive; está em acordo com a espontaneidade dos própriosimpulsos; 
— o 903, por estar em acordo com o regulamento e as leis, exige que o 1003 também aja da 
mesma forma; 
— o 1003 passa, no nível do comportamento prático, a estar em acordo com as leis da 
sociedade, mas, no nível da sua visão de mundo, continua em desacordo com essas leis e em 
acordo com a liberdade e autonomia. 
 
No nível da estrutura profunda, podemos organizar todo o texto em torno de uma 
oposição básica: submissão x autonomia. 
 
Assim, 
— num primeiro momento existe a afirmação da autonomia caracterizada pelo desacato às 
leis da sociedade; 
— num segundo momento, a negação da autonomia, caracterizada pela repressão do vizinho, 
do zelador, das leis e da polícia; 
— num terceiro momento, a afirmação da submissão, caracterizada pela promessa sincera de 
acatar a reclamação do vizinho. 
 
Deve-se notar, entretanto, que, apesar de submeter-se às determinações impostas pela 
organização social, o narrador preserva a sua visão crítica, ironizando o mundo em que vive e 
imaginando uma sociedade em que se possa viver liberto de imposições.

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