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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Augusto Infanti Ribeiro da Costa Senhora da Anunciação: Memórias em Performance com Aurinda do Prato Florianópolis 2023 Augusto Infanti Ribeiro da Costa Senhora da Anunciação: Memórias em Performance com Aurinda do Prato Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Ciências Sociais do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Maria Eugenia Domínguez Florianópolis 2023 Augusto Infanti Ribeiro da Costa Senhora da Anunciação: Memórias em Performance com Aurinda do Prato Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do título de Bacharel e aprovado em sua forma final pelo Curso de Ciências Sociais. Florianópolis, 16 de outubro de 2023. ___________________________ Coordenação do Curso Banca examinadora ____________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Eugenia Domínguez Orientadora ____________________________ Prof.ª Dr.ª Vânia Zikán Cardoso Universidade Federal de Santa Catarina ____________________________ Prof.ª Dr.ª Yérsia Souza de Assis Universidade Federal do Recôncavo Baiano Florianópolis, 2023 Dedicado a Amaury Infanti e David Daruan, de cujas lembranças me trouxeram até aqui. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiro a meus pais, Valéria e Ari, que me ajudaram e apoiaram em todas as etapas da minha vida até chegar aqui, especialmente nesta fase de escrita mas também todas as vezes em que eu precisei mudar os meus caminhos. Agradeço também a Tânia e a Karina, minhas tias que sempre estiveram comigo como se fossem segundas mães, trazendo tanto afeto e cuidado independente do caminho que eu escolhesse trilhar. Agradeço, ainda, a UFSC e as pessoas que fazem parte dos Departamentos de Antropologia e de Sociologia e Ciência Política, professores, servidores e colegas, por me proporcionarem a estrutura, os conhecimentos e as experiências dessa minha formação que finalmente se encerra. Agradeço à minha orientadora Maria Eugenia Dominguez por me receber tão bem após tantos anos longe, me guiando num mar de sentimentos e reflexões que me arrebataram nesse processo de escrita. Agradeço principalmente a minha mãe-de-santo e minha mestra Aurinda por me presentear com lições tão importantes nessa minha vida, por cuidar da minha cabeça com uma lucidez mágica e me fortalecer tantos caminhos. Agradeço a Neinha, por me mostrar a sutileza do carinho e a profundidade do cuidado. Agradeço também ao Alê de Souza que me apresentou a capoeira e o mundo das brincadeiras populares, me indicando toda uma perspectiva de mundo naquelas rodas da lagoa. Agradeço ainda o meu mestre Jaime de Mar Grande que sempre me recebeu com o melhor dos sorrisos e me ensinar a calma de um verdadeiro observador, me conduzindo junto de Nenete, Munda, Rubinho, Madeira e Risadinha, pelos caminhos da imensa sabedoria da ilha de Itaparica. Agradeço particularmente a Tchure, Sofia e Renato, por terem me recebido de braços abertos e por compartilharem comigo tantas histórias, das desavenças aos júbilos, desvendando muitas sutilezas do mundo. Peço licença a meu pai Ogum, a quem devo e presto respeito, e que Oxalá nos traga paz. “Comigo só vem quem tem coragem, quem não tiver não vem. Que o que eu sei, ninguém sabe, não vou dar a ninguém, só a quem merecer que eu posso dar.” (Da Anunciação, Aurinda Raimunda apud Museu Virtual Origens, 2022) RESUMO Esta é uma etnobiografia de Aurinda Raimunda da Anunciação, ou Aurinda do Prato, Mestra de Samba de Roda e Yalorixá de Candomblé Ketu/Angola da Ilha de Itaparica, Bahia. A partir de uma crítica as possibilidades da relação entre pesquisador e pesquisado, utilizo das categorias “memória” e “performance” enquanto repertórios simbólicos para co-construir uma narrativa sobre os modos de viver e os atos ritualizados performados por Aurinda. Criada pelo irmão mais velho, o Mestre de Capoeira e Samba de Roda Gerson Quadrado, ela o acompanhou em ranchos e afoxés pelas ruas da ilha, além de levar seu renomado prato-e-faca para inúmeros sambas até participar da implementação da Salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Desde jovem ela organiza anualmente uma festa para o Caboclo Pedra do Ouro que a acompanha, contudo é após ser iniciada no Candomblé Ketu que passa a direcionar sua vida para o exercício religioso, se tornando popular para rezas, sacudimentos, banhos e o jogo de búzios. Nascida em 1936, Aurinda do Prato foi marisqueira, lavadeira, cozinheira, “baiana de acarajé”, costureira e artesã, sendo visitada por amantes das manifestações populares brasileiras de todo o mundo além de uma extensa rede de familiares e adjacentes. Palavras-chave: Etnobiografia; Performance; Samba de Roda; Candomblé. ABSTRACT This is an etnobiography of Aurinda Raimunda da Anunciação, or Aurinda do Prato, Samba de Roda’s Master and Candomblé Ketu/Angola’s Yalorixá of Itaparica Island, Bahia. Through a critical analysis of the possibilities within the scientific relations, I use “memory” and “performance” categories as a symbolic repertory to co-create a narrative about the ways of living and the ritualized acts performed by Aurinda. Raised by her older brother, the Capoeira and Samba de Roda’s Master Gerson Quadrado, they paraded together in “ranchos” and “afoxés” on the island’s streets, as well as taking her renowned “prato-e-faca” (plate-and-fork as a musical instrument) to uncountable “sambas” until participating in the Samba de Roda’s cultural heritage implementation. Since she was a teenager she organizes annually a ritual party for Caboclo Pedra de Ouro, who accompanies her, although is only after she was initiated in the Candomblé Ketu that she started directing her life towards the religious exercise, becoming well known for prayers, baths, “sacudimentos” and the “búzios” game. Born in 1936, Aurinda do Prato was an artisanal fisherwoman, a washerwoman, a cook, a “baiana de acarajé”, a seamstress and a craftswoman, being visited by many Brazilian popular manifestation’s lovers from all over the world and a wide network of relatives and friends. Keywords: Etnobiography; Performance; Samba de Roda; Candomblé. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Fechamento do Evento “Gingando por Autonomia” .................................. 13 Figura 2 - Aurinda em entrevista remota ................................................................... 16 Figura 3 - Dia de mutirão na reforma ........................................................................ 17 Figura 4 - Mapa do Recôncavo Baiano ..................................................................... 25 Figura 5 - Gerson Quadrado observando a roda de Capoeira .................................. 38 Figura 6 - “15 anos de Salvaguarda do Samba de Roda" em Mar Grande ............... 40 Figura 7 - Samba no aniversário de Aurinda .............................................................46 Figura 8 - Capa do disco “Aruê Pã” ........................................................................... 50 Figura 9 - Capa do disco “Tradição da Ilha” .............................................................. 51 Figura 10 - Apresentação remota durante a pandemia ............................................. 55 Figura 11 - Valdelice e Neinha trabalhando na cozinha ............................................ 57 Figura 12 - Yalorixás antes da Festa do Caboclo ...................................................... 58 Figura 13 - Festa do Caboclo Pedra do Ouro............................................................ 59 Figura 14 - Xirê durante Festa do Caboclo ............................................................... 60 Figura 15 - Aurinda e Gerson Quadrado ................................................................... 73 Figura 16 - Projeto “Mulheres do Samba de Roda” no Pelourinho ............................ 74 Figura 17 - Quadrado e o Afoxé “Netos de Gandhy” ................................................. 75 Figura 18 - Aurinda na roda de Capoeira .................................................................. 76 Figura 19 - Aurinda vestida de baiana ....................................................................... 79 Figura 20 - Aurinda e seu prato-e-faca ...................................................................... 80 Figura 21 - Aurinda e a bandeira nacional ................................................................ 86 Figura 22 - Aurinda e Tika catando búzios durante a pandemia de COVID-19 ......... 89 file:///C:/Users/Augusto/Downloads/Sra.d'Anunciação%20(1).docx%23_Toc146888246 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS .................................................................................................. 6 RESUMO..................................................................................................................... 8 LISTA DE FIGURAS ................................................................................................. 10 SUMÁRIO ................................................................................................................. 11 1 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................... 12 2 INTRODUÇÃO: Memória e Performance ................................................................... 18 3 “A ILHA DE DOIS MUNICÍPIOS, VERA CRUZ E ITAPARICA”: Histórias de uma comunidade entre o candomblé e o samba ............................................................. 25 4 “DONA DA CASA BOA NOITE”: Algumas descrições etnográficas ................... 43 4.1 SAMBA DE ANIVERSÁRIO, 7 DE SETEMBRO DE 2019 ....................................... 43 4.2 GRAVAÇÃO DO DISCO “TRADIÇÃO DA ILHA”, 2020 ........................................... 49 4.3 FESTA DO CABOCLO PEDRA DO OURO, 27, 28 E 29 DE OUTUBRO DE 2018 . 55 5 “VER, ENTENDER E DECIFRAR”: Entrevista e outras histórias .......................... 68 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 90 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 92 REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS .......................................................................... 95 APÊNDICE A - Lista de músicas e letras do disco “Tradição da Ilha” ...................... 96 APÊNDICE B - Íntegra da entrevista com Aurinda ................................................. 100 12 1 JUSTIFICATIVA Me parece que, simbolicamente, um “Trabalho de Conclusão de Curso” é o encerramento de um trajeto que se inicia quando se decide fazer determinada graduação. No meu caso foi quando, depois de morar dois anos fora trabalhando como um imigrante qualquer e desfrutando os prazeres e as agruras de uma vida longe do próprio círculo social, eu voltei para o Brasil decidido a fazer algo que eu considerasse edificante para a minha vida e que respondesse a um ímpeto de fazer a diferença para uma comunidade que eu considerasse como minha. A graduação em Ciências Sociais parece muito comumente buscar responder a um sonho bastante idealizado de “cidadania”, talvez até mesmo um impulso romântico de salvacionismo. A necessidade individualista de sucesso, ao mesmo tempo, é a força motriz de quem pretende se formar no ensino superior respondendo a uma exigência quase inalienável da nossa sociedade capitalista contemporânea. A tensão entre a busca de um sentimento comunitário junto a um ímpeto individualista pareceu me rondar nas diversas fases desse meu caminho. Foi enquanto eu cursava Ciências Sociais na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) que passei a frequentar as rodas de Capoeira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, com o Alê de Souza e fui pegando gosto pela filosofia e pela proposta holística da Capoeira e das “brincadeiras populares” de forma geral. A articulação entre consciência corporal, ritmo, história e filosofia de vida, entre outras características, me envolveram, moldando assim minhas expectativas e meus objetivos de vida a partir de então. O Samba de Roda mesmo me foi apresentado nessas circunstâncias, frequentemente convocado ao final das rodas da lagoa na potente voz do finado David Daruan, a quem presto esta ligeira homenagem. Minha trajetória acadêmica, entretanto, foi interrompida principalmente por certo desconforto com a forma como se dá a construção do conhecimento na Universidade, ao mesmo tempo que pela vontade de me aprofundar dentro desse mundo das “brincadeiras populares” de maneira orgânica, buscando vivenciar as tradições que fazem parte dessa categoria ao invés de estudá-las de forma “neutra”. Também a falta de perspectiva profissional dentro das Ciências Sociais e um certo pessimismo diante das transformações do mundo contemporâneo acabaram me fazendo decidir seguir um antigo sonho de quando era adolescente: eu ia vender miçangas na praia, ou qualquer outra coisa em qualquer outro lugar, viver de arte e do que o mundo dá, ou algo assim. 13 Já depois de um tempo mochilando pelo nordeste brasileiro, durante o ano de 2018, quando estava no Kilombo Tenondé - espaço cultural e fazenda agroecológica do Mestre de Capoeira Cobra Mansa em Valença (BA) - a também Mestra de Capoeira Gegê, na época morando na cidade, organizou um evento chamado “Gingando pela Autonomia” em que propunha a valorização da presença feminina na Capoeira. Neste momento eu me desdobrava na produção executiva do evento e não pude aproveitar muito; o fechamento do evento, entretanto, seria com uma famosa Mestra do Samba de Roda de Itaparica, a própria Mestra Aurinda do Prato, junto de alguns familiares e amigos. Foi ali que eu a conheci pela primeira vez, ela puxando o samba numa grande roda de mulheres. Após o fim do samba houve um almoço em que eu servia as convidadas, ao que Aurinda me pergunta: “Que folha é essa aqui?” - era uma rúcula orgânica produzida ali mesmo na horta do local - “Gostei muito dessa folha, quero levar um pouco”. Na minha visão tudo começou ali, no meu papel de servir à minha mãe- de-santo: fui até a horta, busquei um maço de rúcula e levei de volta para ela. Ela gargalhou e disse: “te espero em minha casa” Figura 1 - Fechamento do Evento “Gingando por Autonomia” Fonte: Acervo pessoal Não fui logo, contudo. Passaram-se meses, eu “mangueando” pelas ruas de Salvador, em dúvida sobre que caminho deveria seguir, até que reencontrei um amigo de estrada: Fabrício, que eu havia conhecido no interior de Pernambuco, tinha formado uma trupe de palhaços, estava ficando na ilha de Itaparica e tinha vindo a Salvador para uma convenção de circo. Ele me chamou para ir lá visitar a ilha, onde estava ficando, e alguns diasdepois, quando chego lá, descubro que a trupe era com Sofia e Renato, o casal de paulistas que eu havia conhecido tocando junto de Aurinda no evento de Gegê. 14 Finalmente fui visitar a casa de Aurinda. Chegando lá ela disse se lembrar de mim, me apresentou sua família e me mostrou todos os cômodos da casa e de seu terreiro. Uma de suas filhas olhava para mim e dizia, dando risada: “esse aí já vai virar filho de mainha”, acho que em referência a minha cara fascinada. Aurinda me levou para dentro da casa de seu caboclo, quando numa pequena mesa no centro do ambiente ela fez um rápido jogo de búzios. Ela jogava, ria e jogava de novo, fazendo um ou outro comentário. O jogo era para me testar, ela me disse depois, para ela saber com quem ela estava “labutando”. Os comentários dela naquele momento foram certeiros e pegaram fundo onde eu estava precisando escutar. Estabelecido um contato profundo com a casa de Aurinda, passei a morar na ilha de Itaparica e visitar sua casa cotidianamente. Ia lá ouvir suas histórias, ver seus modos de lidar com a vida e imaginava assim poder restabelecer algum equilíbrio entre as minhas aspirações e as determinações da vida na sociedade contemporânea. Lá, a convite de Tchure, Sofia e Renato, fui morar no espaço do Mestre de Capoeira Jaime de Mar Grande, a sede da Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassú, que fica na Gamboa, bairro vizinho ao da casa de Aurinda. Foi então que comecei meu processo iniciático dentro do Candomblé, além de acompanhar Aurinda em seus compromissos do samba. Lá éramos conhecidos como os “gringos”, embora apenas Tchure, chileno, fosse estrangeiro. Indiferente, na Gamboa éramos os “gringos da capoeira” (Jaime fora professor de alguém em praticamente todas as famílias daquela comunidade) e na Ilhota, bairro em que mora Aurinda, éramos os “gringos de dona Aurinda” (ela é uma personalidade muito conhecida na comunidade candomblecista, sambadora e marisqueira da localidade). Para mim, naquela época, foi curioso o fato de que ali o “branco”, igualmente chamado de “claro”, tinha pele morena clara e cabelo enrolado. Nós de cabelo liso, as vezes olhos claros ou cabelos aloirados, éramos tratados muitas vezes num inglês confuso, constantemente confundidos com turistas europeus que frequentemente visitam a costa da Bahia. Dona Nenete, irmã de Jaime a quem visitávamos diariamente, dizia sequer diferenciar meu sotaque paulista do forte sotaque chileno de Tchure. Compreende-se disso que, embora participe de grupos com relações e acordos estabelecidos, este pesquisador não deixa de ser visto enquanto alguém de fora, essencialmente diferente daqueles que ali cresceram, o que pressupõe diferentes abordagens para a minha participação junto daqueles grupos. Veio o ano de 2020 e assim implodiram muitos projetos pessoais mundo afora. Eu me considero bastante privilegiado neste momento de pandemia pelo local em que me encontrava. Na ilha de Itaparica custou a que as pessoas percebessem que aquilo não era “doença de gringo” 15 ou “doença de gente rica” (num primeiro momento muitas pessoas atravessavam a rua quando me viam passar), a calamidade pública excedeu os limites da televisão apenas na segunda onda, quando os hospitais em Salvador e Santo Antônio de Jesus lotaram e os doentes da ilha se acumularam em camas improvisadas no chão do único hospital que existe ali ou nas duas UPAs. Aquele primeiro choque, quando ninguém entendia o que estava acontecendo e que as ruas das cidades ficaram completamente vazias por semanas fora, principalmente ali na ilha, como um lugar fora do tempo. As pessoas que atravessavam a Baía-de-Todos-os-Santos todos os dias para trabalhar não precisavam ir mais, quem tinha ali casas de veraneio se mudou para lá e o auxílio emergencial causou um grande rebuliço naquelas comunidades periféricas marcadas por séculos de exploração e miséria. Ao mesmo tempo, a pandemia de COVID-19 foi decretada no Brasil logo após um grande derramamento de óleo que marcou a vida das comunidades litorâneas do Nordeste e muitos ali ficaram com medo de consumir peixe e marisco nessa época. Mar Grande, onde eu estava, é um tradicional polo marisqueiro e o óleo permaneceu como a maior desgraça sanitária ainda por alguns meses naquela localidade. Esse ano, por outro lado, ficou marcado por muitas dificuldades, principalmente para Aurinda. Ainda antes de decretada a pandemia no Brasil, a ilha vivia uma epidemia de Chikungunya que acabou derrubando nossa mestra na cama por meses. Com sua idade avançada ela passou muito tempo com intensas dores no corpo que ainda, anos depois, parecem reverberar na artrite que ela desenvolveu. A Chikungunya, infelizmente, não veio à toa. Aquele ano ficou marcado por longas e fortes chuvas na região que eventualmente terminaram por abrir buracos demais no telhado da casa de Aurinda e o quarto dela era o pior cômodo, ficando completamente ensopado pelas tantas “pingueiras” que caiam. Esse foi um momento crucial nessa história toda: um grupo se organizou para difundir uma campanha de arrecadação de recursos e fazer uma reforma naquela casa. A campanha foi um sucesso, largamente compartilhada inclusive por algumas pessoas de considerável popularidade, proporcionando assim uma ação ainda maior do que a proposta inicial. Aurinda, que não aceitava que fosse dado a ela um dinheiro pelo qual ela não tivesse trabalhado para ganhar, buscava compensar participando de diversas aulas ou entrevistas virtuais, algumas ainda disponíveis em serviços de streaming. 16 Figura 2 - Aurinda em entrevista remota Fonte: Acervo pessoal1 Esse intenso e complexo processo me fez refletir, entretanto, sobre alguns limites entre o que é “apoio” ou “contribuição” e o que é a “imposição de categorias de pensamento”, para usar um jargão antropológico. Naquela época muitas decisões, infelizmente inclusive minhas, foram tomadas a despeito da vontade da mestra, a qual havia construído sua casa tijolo a tijolo no decorrer de sua vida e que não concordava, mesmo que às vezes aparentemente por alguma teimosia inerente a idosos de idade muito avançada, com a maneira como as coisas eram não só feitas mas principalmente decididas. Quem tem o direito de fazer determinadas escolhas? Há escolhas que não podem ser feitas? São perguntas mais complexas do que parecem. Da mesma forma como um pesquisador e seu pesquisado, nós, enquanto implementadores de reformas na casa, acabamos tomando decisões unilaterais sobre o que deveria ser feito na obra, quais eram as premissas consideradas e as disposições feitas. Com o mote de fazer o que era melhor para ela, de lhe trazer conforto, passamos por cima de decisões, vontades e costumes de quem deveria estar mais ao centro do processo. 1Canal de Youtube da “Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassú”, 2020 17 Figura 3 - Dia de mutirão na reforma Fonte: Acervo pessoal Eventualmente o chacoalhão que a pandemia causou na minha cabeça acabou por mais uma vez me realocar dentro daquele caminho dialógico de busca por sucesso individual e profissional junto de uma pretensão comunitária transformadora. Eu retornei para as Ciências Sociais buscando abrir portas e criar oportunidades para assim ter mais ferramentas para a transformação do meu entorno e principalmente de mim mesmo, entendendo agora que o ensino superior é uma condição para seguir determinados caminhos na sociedade contemporânea ao mesmo tempo que também é um multiplicador de dispositivos e ferramentas para o desenvolvimento pessoal e social. Este trabalho, portanto, visa preencher algumas lacunas que se abriram tanto com o hiato da minha vida acadêmica, quanto naquela época da reforma. Não em minha relação com minha mãe-de-santo, mas sim dentro do meu próprio entendimento sobre os limites entrea minha intencionalidade e a intencionalidade do outro, ou mesmo entre a minha vontade e a realidade concreta que se apresenta diante de mim. Aqui se apresenta um paradoxo: como pode ser possível refletir a relação hierárquica presente nas Ciências Sociais, e de forma análoga também entre os aprendizes das manifestações populares brasileiras, a partir de um trabalho em que eu falo em nome de outra pessoa, reproduzindo assim novamente essa relação desigual entre pesquisador e pesquisado? Este trabalho, portanto, deve considerar sua inevitável limitação, afinal é apenas um TCC, assim como não pode pretender algo além de trazer algumas reflexões e críticas para dentro do já estabelecido processo científico. 18 2 INTRODUÇÃO: Memória e Performance O conceito principal a nortear este trabalho é o de “memória”: a memória que suscita a leitura de um texto, a memória que sobressai numa entrevista, a memória que se perpetua em um ritual, a memória que se constrói sobre categorias conhecidas, a memória resguardada num patrimônio. É, afinal, a partir da memória que construímos o “eu” em relação ao outro e em relação ao que já passou. A memória, de fato, parece ser tudo o que há de tangível ao pensamento: não existe comunicação sem memória, não existe relação (ou “ação” em sentido antropológico) sem memória. Ela vai muito além de uma história que nos lembramos ou do desenvolvimento linear de uma tradição; a memória é o que uma lembrança nos suscita, o que nos causa materialmente, assim como é também o que fazemos dessa lembrança, o que é provocado na relação com o outro. Dessa forma, percebemos que: [a memória do conhecimento] constantemente se recria e se transmite pelos ambientes de memória, ou seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes. (Nora, Pierre apud Martins, 2002, p.71) É, ao mesmo tempo, efêmera e contínua, volátil e constante, já que a todo momento se transforma ao mesmo tempo que se perpetua. Ações são formadas pelas memórias de antes, porém tão logo se formam elas se transformam em memória, gerando novas atitudes e repetindo infinitamente este mesmo ciclo. É essencialmente a constante reestruturação de todas as possibilidades que existem, não de maneira indistinta, mas a partir de ligações reais em cadeia, da conexão e ativação dessas memórias em contato com o mundo em volta. “Assim, a ideia de sucessividade temporal é obliterada pela reativação e atualização da ação, similar e diversa, já realizada tanto no antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento.” (Martins, 2002, p.85) A partir da reflexão proposta por Leda Martins (2002, p.88) temos que “o corpo é, por excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal, esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado.” Sobre o corpo em performance nas “Congadas”, ela diz que: o corpo (...) é o lugar do que curvilianemente ainda e já é, do que pôde e pode vir a ser, por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença. O evento encenado no e pelo corpo inscreve o sujeito e a cultura numa espacialidade descontínua que engendra uma temporalidade cumulativa e acumulativa, compacta e fluida. (2002, p.87) 19 Como traz Yvonne Daniel (apud Giesbrecht, 2015, p.13), a dança nos rituais de candomblé funciona como momento de reconstrução de cosmologias, conhecimentos e estados emocionais possibilitando a resistência às estruturas de dominação a partir da articulação de sistemas cosmológicos, filosóficos, econômicos, históricos e comunitários e desempenhando um papel de “medicina social” pelo empoderamento de indivíduos e de grupos sociais. Já segundo Muniz Sodré (2002), no Candomblé o uso do corpo é como um canal do sagrado através do transe e da incorporação, assim como também passa a ser o terreiro através de uma reorganização comunitária, condensando suportes simbólicos geograficamente localizados de uma cosmologia exilada. O culto aos Orixás, ou afro-brasileiros em geral, é “uma ‘pulsão coletiva’, uma multiplicidade de forças que permite à existência advir, isto é, chegar e instalar- se”. “Axé” é o próprio princípio de constituição da cultura já que cada um ali torna-se receptor e impulsor desse “axé” simbolicamente conservado e reestruturado através do ritual. Aqui o corpo, na verdade o corpo em performance, é a intersecção entre o visível (Ayê) e o invisível (Orun), entre a comunidade e o cosmos, entre o indivíduo e a tradição. A performance ritualizada, como colocada, é um ponto de intersecção entre a tradição e a improvisação, entre a ancestralidade e a individualidade. É um lugar de “encruzilhada”, ou seja, é a intersecção de influências múltiplas, de fusões, rupturas e desvios, de centramento e descentramento, de unidade e pluralidade (Martins, 2002). A “encruzilhada”, ou o ritual/performance, é um lugar terceiro, um operador de linguagens e representações gerador de signos e sentidos plurais, é uma concentração emergente. É aonde o ciclo volta a se repetir, ou seja, quando o passado se revisita de maneira heterogênea formando um presente único e um futuro potente de novas possibilidades. É, portanto, um lugar de memória por excelência, um lugar de reestruturação da memória, de criação de memória. Cada ritual é ao mesmo tempo original e repetido, e esse processo de tradição e transmissão institui um movimento não-linear que sincronicamente reativa e integra, no ato performático, o passado, o presente e o futuro. Como um logos em movimento do ancestral ao performer e deste ao ancestre e ao infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo mas a sua concepção linear e consecutiva. (Martins, 2002, p.85) 20 O rito performático considerado como “lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, textos e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação” (Martins, 2002, p.73) evidencia-se enquanto operador de linguagens e discursos de natureza cinética e diversificada produzindo um lugar terceiro de enunciados e representações híbridas não estáticas. A noção de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. (Martins, 2002, p.73) Por mais que esses autores estejam falando sobre o “corpo” em grupos não caracterizados pela escrita, podemos ainda assim dizer que em qualquer sociedade se constrói o “eu” a partir do entendimento de alteridade produzido em relação ao próprio corpo e sua revisitação ritual. O “corpo” inevitavelmente repete as marcas de antepassados e de acontecimentos da própria vida sem deixar de ser continuamente ressignificado enquanto expressão do meu eu manifestado, do meu eu criativamente exposto em relação com o mundo concreto, não de maneira indeterminada mas segundo costumes, usos e intencionalidades de indivíduos de grupos sociais em tempos históricos. A antropologia contemporânea e os estudos da performance em geral vêm trazendo esse paradigma, muito usado para explicar culturas não colonizadas, para a totalidade das sociedades humanas. “Performance”, assim visto, passa a ser uma:categoria universal, no sentido de que corresponde a eventos que acontecem em todas as culturas. (...) Todas as sociedades humanas têm vários gêneros de performance, especificamente marcados pela função poética, e que exibem as características descritas acima. As formas dos atos performáticos são variadas e diversas, construídas em contextos culturais específicos. (Langdon, 2007, p.11) Considerando esta construção de “memória” e “performance”, o presente trabalho possui três objetivos principais: (a) Construir com Aurinda uma narrativa sobre a sua vida que terá uma circulação acadêmica - por tanto diferenciada de outras narrativas que ela constrói no seu cotidiano e, assim, (b) refletir sobre a dualidade clássica das ciências sociais entre pesquisador e pesquisado, desenvolvendo um trabalho de perspectiva antropológica baseado na 21 relação que estabeleci com Aurinda, e desta forma, (c) contribuir com os conhecimentos existentes sobre as artes, brincadeiras e religiosidades da ilha de Itaparica. Para essa tarefa pretendo intercalar alguns conceitos e abordagens que me parecem ser complementares e que muitas vezes até se unem na busca do mesmo objetivo. Trago para tanto o conceito de “etnobiografia” como trabalhado em Gonçalves; Marques; Cardoso (2012) assim como desenvolvido por Prelorán (apud Domínguez, 2021) e de “performance” como abordado por Baumann; Briggs (2006), Domínguez (2021), Langdon (2007) e Martins (2002) além de recorrer aos conceitos de “entextualização” de Baumann; Briggs (2006) assim como o já citado “lugar de encruzilhada” de Leda Martins (2002). A etnobiografia, como tratada por Gonçalves; Marques; Cardoso (2012), aparece como uma ferramenta apropriada para a busca desses objetivos por ser “um discurso autoral proferido por um sujeito num processo de reinvenção identitária mediada por uma relação” (Carvalho apud Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.24). Ao mesmo tempo, como tratada por Domínguez (2021, p.18) a partir de Prelorán, “é explicitamente um diálogo, tem um destinatário e uma intenção, que é a de dar a conhecer determinados aspectos de uma realidade”. Nesse processo “a etnógrafa deixa de ser a narradora onisciente a descrever um mundo que acredita conhecer, ela também não segura as rédeas que definem o rumo da etnografia” (Domínguez, 2021, p.18) permitindo que o protagonismo na narrativa seja de quem conta sua vida. Para essa construção etnobiográfica consideramos a ideia de que o sujeito é uma construção social e política com características morais, éticas e estéticas, ou seja, é uma pessoa culturalmente constituída a partir de representações e vivências histórico-culturais. Ao falar, portanto, sobre sua vida, como via e se relacionava com os outros, esse indivíduo nos dá acesso ao seu modo de estar no mundo, a sua experiência sociocultural e política. É, de fato, a “subjetivação da experiência cultural ou objetivação da intimidade” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.36) produzindo o típico conhecimento etnográfico. A etnobiografia nos oferece ainda outra reflexão de viés subjetivo e ambivalente por se tratar de uma construção criativa do eu em relação com um ouvinte interessado, ou seja, é o produto de uma narração operada através da alteridade entre o pesquisador e o pesquisado. É “uma narrativa que produz o sujeito e que é produzida pelo mundo na produção do próprio sujeito” (Carvalho; Ricouer apud Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.27). Não é, portanto, a categoria “indivíduo” que buscamos analisar “mas sim a pessoa-personagem tomada enquanto manifestação criativa, pois é justamente através dessa interpretação pessoal que as ideias culturais se precipitam e tem-se acesso à cultura” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.30). 22 Este encontro entre quem conta a história e quem a pesquisa é exatamente o que torna a narrativa não definitiva já que operada através de um contexto de interação e suas implicações, na “condição de uma relação em que pessoas se transformam através do contato, alterando seus discursos e narrativas” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.24). O principal valor da etnobiografia parece estar na “possibilidade de compreender a vida e a filosofia de pessoas (...) com [as] quais podemos nos identificar, abandonando noções – como ‘comunidades’ ou ‘sociedades’ – que poderiam resultar em generalizações” (Prélorán apud Domínguez, 2021, p.4), buscando-se assim dissolver a dualidade entre uma homogeneidade etnográfica através de generalizações sociológicas e contradições pessoalizadas na construção de personagens individualizados. Tanto pesquisador quanto pesquisado são personagem e pessoa ao mesmo tempo pois não há maneira de garantir que as narrativas não são de personagens construídos e que não possuem interesses individuais envolvidos, ou seja, que existam verdades essenciais imbricadas ali. Assim posto, demonstra- se que a diferença entre personagem e pessoa real é muito tênue já que inevitavelmente uma narrativa é construída a partir de representações situadas em complexas relações pessoais e sociais que se tencionam e se formam criativamente no momento da comunicação. Não se trata, no entanto, de buscar integrar a dualidade entre “indivíduo” e “sociedade” ou entre “fato social” e “ação individual” mas “simplesmente aceitar uma terceira dimensão desta relação entre indivíduo e sociedade, ou identidade pessoal e papel social, que é a consciência de algo construído” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.38). A categoria de pessoa-personagem é mediada não por essências individualizantes mas sim por relações de alteridade, pela emergência da consciência de si a partir da relação complexa com o outro. “Assim, a pessoa- personagem é justamente aquela que faz a indissociável junção entre vivido e pensado, dado e construído, individual e social, ação e representação” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.39). A partir da virada conceitual que parte da antropologia conduziu, trazendo uma maior reflexividade e a compreensão de que o conhecimento é produto das relações entre pesquisador e pesquisado (Domínguez, 2021), como explica Langdon (2007), o novo paradigma dos estudos da performance vem deslocando a ênfase de padrões e conteúdos simbólicos para a significação da interação social, o exame crítico de eventos performáticos heterogêneos assim como para a reflexão da interação comunicativa entre os colaboradores e a representação de suas falas. Transferindo para cá a proposta de Tim Ingold (apud Domínguez, 2021, p.17) a performance, no caso tratada enquanto “som musical”, “é significativo não pelo que representa, mas 23 simplesmente por sua presença afetiva no ambiente do ouvinte” explicitando assim a complexa gama de significações de um ato performático. Como nos traz Baumann; Briggs (2006, p.189) a “performance oferece um enquadre que convida à reflexão crítica sobre os processos comunicativos” através da análise de eventos que precedem, sucedem e englobam a ação performática, requerendo estudos sensíveis de como forma e significado são índices de uma gama ampla de discursos. Para esses autores os estudos da performance reformularam a distinção entre texto e contexto, ou seja, retiraram a ênfase do produto para os processos e negociações entre os participantes das interações sociais. Dentro desta perspectiva os estudos da performatividade fazem o movimento de “entextualização”, quero dizer, retiram a ação performática de seu contexto interacional para analisar ela em seus diferentes aspectos e usos (descentramento), para então recontextualizá-la em novos momentos históricos (como o presente trabalho). Abre-se, assim, caminho para a análise de estruturas sistêmicas mais amplas onde a performance desempenha um papel constitutivo nas interações sociais, de maneira que a fala em si, assim como a própria sociedade, são questionadas e transformadas.Busca-se, portanto, não apenas a emergência da significação relativa entre aqueles participantes como também a reflexão sobre a forma que é usada a palavra na enunciação do trabalho científico, trazendo uma abordagem heterogênea e mutável da ação social. A “contextualização” envolve um processo ativo de negociação no qual participantes examinam reflexivamente o discurso em sua emergência, inserindo avaliações sobre sua estrutura e significado na própria fala. Atores (performers) estendem tais avaliações de modo a incluir previsões sobre como a competência comunicativa, histórias pessoais e identidades sociais de seus interlocutores darão forma à recepção do que é dito. (Baumann; Briggs, 2006, p.201) Tradicionalmente os estudos da performatividade fazem o movimento de considerar uma ação performática (e, mais recentemente, comunicativa) enquanto um ritual (entendido no sentido clássico de evento comunicativo em relevo com uso de metalinguagem) no sentido de que transmite e institui “saberes estéticos, filosóficos e metafísicos, dentre outros, além de procedimentos, técnicas, quer em sua moldura simbólica, quer nos modos de enunciação” (Martins, 2002, p.72). É, portanto, ato semântico e simbólico de uma ação re-apresentada. A partir de Victor Turner, Martins (2002) considera festas e brincadeiras populares enquanto ritos de “aflição e religação” que se formam a partir de enredos cosmológicos que se desenvolvem através de uma elaborada estrutura simbólica, ou seja, “uma orquestração de ações, objetos 24 simbólicos e códigos sensoriais”. Carregam em si, portanto, valores estéticos, cognitivos e filosóficos através de procedimentos e técnicas de expressão e visibilidade que dinamicamente modificam e recriam os códigos culturais modificando assim a ordem simbólica e histórico- social da vida cotidiana. Como nos conta Renata de Lima Silva (2010), o jogo ritual presente nas manifestações populares afro-brasileiras podem ser analisadas a partir da oposição entre paidia e ludus presente no trabalho de Roger Callois sobre jogos. Paidia configura o caráter de improvisação, espontaneidade e originalidade do jogo enquanto ludus é o cálculo e as regras do jogo, sua estrutura tradicional. Assim, o prazer daquele que participa do jogo está no envolvimento com normas e regras que dão espaço para um impulso de exuberância e expansão de forma disciplinada. Uma relação harmônica entre a paidia e o ludus, entre a musicalidade, as relações do jogo e as matrizes corporais, proporciona uma espécie de “transe”, ou seja, uma entrega apaixonada propiciada pela capacidade de espontaneidade que surge apenas através de estruturas de jogo pré-concebidas e fielmente acordadas. Já segundo Eloisa Leite Domenici: as brincadeiras populares são exercícios coletivos de significação - exercícios privilegiados onde a experiência corporal atua como elemento propiciador dos processos de semiose”, ou seja, a brincadeira popular não segue exatamente um modelo, uma maneira de fazer ou tocar, mas uma série de informações organizadas em relação a um todo em forma de metáforas corporais e linguísticas, em continuidade com os movimentos, em cadeias de significação onde a experiência corporal ocupa um papel central. (Domenici apud Lopes, 2013, p.95) Assim, pretendo demonstrar através da relação etnobiográfica com Aurinda os processos de significação que englobam os ritos e brincadeiras como performados por ela e em sua comunidade, de forma a evidenciarmos as características cosmológicas e lúdicas dessas representações culturais. Através da análise dessa relação de alteridade, pretendo construir um conhecimento não estático sobre essas categorias simbólicas, evidenciando-se suas articulações de forma complexa e não as apresentando como um modelo idealizado. 25 3 “A ILHA DE DOIS MUNICÍPIOS, VERA CRUZ E ITAPARICA”2: Histórias de uma comunidade entre o candomblé e o samba Figura 4 - Mapa do Recôncavo Baiano Fonte: Ilustração do autor3 A história documentada sobre a ilha de Itaparica data das primeiras viagens dos europeus ao continente americano e está, até mesmo, presente em um dos mitos fundadores da “identidade brasileira”. As primeiras incursões de portugueses tiveram o intuito de reconhecer aquele “novo mundo” e transportar de volta bens comerciáveis, principalmente o pau-brasil de valorizada pigmentação vermelha que deu nome ao país colonizado. Essa era, de certa forma, uma nova fase das cruzadas cristãs que desde o século XI buscaram expandir o cristianismo e estabelecer rotas comerciais com o oriente, resultando na criação do próprio Reino de Portugal, ainda em 1143, e na chegada de Vasco da Gama a Calcutá, na Índia, em 1497. As também chamadas “Grandes Navegações” - nome dado àquela nova fase do expansionismo mercantil- cristão - foram desenvolvidas inicialmente do acordo estabelecido entre Portugal, Castela (posteriormente Espanha) e o Papa, entrecruzando iniciativas de caráter privado de portugueses e espanhóis mas também italianos, sendo progressivamente confrontado pelas outras potências europeias da época, Holanda, Inglaterra e França. É, no entanto, em um navio francês que inesperadamente chega o português Diogo Álvares Correia, ou “Caramuru” (como é chamada a “moreia” na região da baía-de-Todos-os- Santos), o “primeiro brasileiro”. Em uma das versões conta-se que este navio naufragou próximo de onde hoje fica o bairro do Rio Vermelho, em Salvador, e que seus tripulantes foram encontrados por alguns dos Tupinambás que ocupavam vastas áreas da região. Os tupinambás, 2 Trecho de chula cantada por Quadrado e Manteguinha no disco “Aruê Pã” 3 A partir do “Atlas Histórico do Brasil” da FGV, 2023 26 no entanto, mataram todos os tripulantes a não ser um, Caramuru, que de alguma forma teria convencido o líder, chamado Taparica, de se casar com sua filha Paraguaçu. Diogo Álvares de fato passou a viver ali, casado dentro do cristianismo com uma indígena batizada como Catarina e serviu de intermediário entre os tupinambás da região e os portugueses e franceses no início do século XVI (Lopes, 2013; Paraíso, 2011). Um pouco mais tarde, Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão, se torna donatário da capitania da Baía-de-Todos-os-Santos. Quando chega ao Brasil, em 1536, funda o Arraial do Pereira e acaba entrando em diversos conflitos tanto com os tupinambás quanto com outros europeus com interesses naquela região. Depois de ter de se exilar em Porto Seguro, quando já em 1547 retornava para o arraial, teoricamente para um acordo de paz com os tupinambás, houve mais um naufrágio. Desta vez o navio afundou próximo a Cacha-Pregos, na ponta sul da ilha de Itaparica, oportunidade em que os tupinambás até se alimentaram ritualisticamente de Pereira Coutinho (Paraíso, 2011). Este episódio precede a vinda de Tomé de Souza e a fundação da cidade de São Salvador da Bahia-de-Todos-os-Santos como a Capital-Geral do Brasil, ainda que Olinda, em Pernambuco, fosse o grande destaque dessa época. Aquele local foi escolhido devido a sua posição geograficamente estratégica e localização central dentro da colônia, mas também em represália aos indígenas do local e pela facilidade na compra da capitania dos herdeiros de Pereira Coutinho (Paraíso, 2011). Como conta Ubaldo Osório (apud Lopes, 2013), a ocupação portuguesa na ilha de Itaparica é caracterizada primeiro por vilas de controle jesuíta, as quais, enquanto catequizavam os indígenas tamoios e tupinambás, buscavam formar redes de manufatura e comércio; e posteriormente pelo desenvolvimento de redes de engenhos de açúcar operadas por colonos portugueses com mão-de-obra proveniente principalmente do comércio de pessoas escravizadas vindas da África. A economia açucareira encabeçou as exportações das colônias portuguesasna América por mais de um século até que a produção de açúcar da ocupação holandesa no Caribe e o crescimento do garimpo de ouro e depois da produção de café no sudeste brasileiro levaram a decadência dos engenhos no decorrer do século XVIII. Isso acabou levando à transferência da capital para o Rio de Janeiro, resultando, principalmente após a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, em uma crescente centralização política no país. Esse período - até meados do século XIX - foi suprido pela maior atividade comercial dentro do Império Português (e Brasileiro): o comércio de africanos escravizados, fechando assim a intensa rede marítima entre África, América e Europa que caracterizaria paralelamente grande parte das manifestações culturais em volta do Oceano Atlântico desde então. 27 Inicialmente, no século XVII, o comércio de pessoas escravizadas se deu principalmente através do porto de Uidá (ou São João Baptista d’Ajudá), hoje Benim, e pela costa noroeste africana - a Costa da Mina, que chegou a ser chamada de “Costa dos Escravos”, indo da Senegâmbia ao Golfo de Biafra - aonde chegaram, no caso brasileiro, majoritariamente a Cidade da Bahia. E posteriormente - principalmente a partir do século XVIII e chegando ao seu ápice em meados do século XIX (já perante sua proibição) - substancialmente através dos portos de Luanda e também Benguela, hoje Angola, em direção maiormente ao Rio de Janeiro em escala global (Emory University, 2021). O comércio de escravizados na Costa da Mina foi decorrente de uma fase de ocupação europeia inicial, feita em sua maior parte por portugueses, que fundaram fortes e portos para garantir o estabelecimento de seus interesses na região, compondo alianças que fomentaram diversas guerras entre aqueles povos, principalmente através do Reino de Daomé. Com o tempo, entretanto - especialmente pela crescente participação das outras potências que avançavam na corrida das “Grandes Navegações” -, o monopólio do comércio de escravizados que era de Daomé deu espaço para a participação de outros reinos, o que eventualmente levou a uma nova fase da ocupação europeia. A ligação entre o Reino de Daomé e o Governo da Bahia foi tão forte que emissários do primeiro chegaram a pedir que o Governador da Bahia intercedesse junto ao Imperador de Portugal para o retorno do monopólio daomeano, já no final do século XVIII (Gonçalves, 2021). Uma nova fase então se desenvolveu a partir do estabelecimento do domínio completo sobre regiões inteiras da África sob a forma de colônias e assim o Império Português, que havia fundado Luanda, apropriou-se de Angola sob a concorrência de franceses e ingleses, os quais acabaram colonizando a maior parte do continente. Este período acompanhou a proibição do tráfico de escravizados segundo o interesse destas últimas potências europeias, limitando drasticamente o comércio dos portugueses principalmente na colônia angolana, os quais resistiram a essa proibição durante grande parte do século XIX em conluio com as elites brasileiras especialmente no Rio de Janeiro (Curto; Gervais, 2002). Em quase toda a costa brasileira, mas principalmente no Nordeste, grandes fazendas de cultivo de cana com engenhos de açúcar foram gerenciadas por portugueses de estirpe no alto de suas “casas-grandes”. Alguns até eram heróis das campanhas nas Índias Orientais, mas muitos foram obrigados a se exilar de sua terra natal; a grande maioria, entretanto, não alcançou grande sucesso. No Recôncavo Baiano (meia lua situada no entorno da Baía-de-Todos-os- 28 Santos4), entre as regiões de melhor desempenho na produção açucareira, ainda se desenvolveu nesta época a produção de tabaco e de farinha de mandioca, além da extração de óleo de baleia para combustível na Ilha de Itaparica. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica exercia um papel ideológico fundamental no desenvolvimento daquela sociedade através de suas igrejas, freguesias e festas, conjuntura esta violentamente garantida pela Santa Inquisição aqui herdada no final do século XVI, pela intensa repressão do período da escravidão e mais tarde pelas “leis de vadiagem” já no século XIX. Neste período aparecem os primeiros relatos de “batuques” na Ilha de Itaparica, a partir pelo menos de 1718, como conta Osório (apud Lopes, 2013), todos conectados às festas de santos católicos que, nos momentos de comemoração pós-liturgia, causavam estranheza nos viajantes europeus por serem demasiadamente enérgicas e voluptuosas, unindo “homens, mulheres e crianças brancos, pretos e mulatos, com violas e pandeiros e adufes” em um “saracoteio delirante” ou uma “dança furiosa”, para citar alguns dos comentários proferidos. O europeu dessa época chocava-se com a liberdade corporal dos “brasileiros”: a proximidade entre os corpos, a coexistência entre homens e mulheres em momentos festivos e certa característica sedutora e debochada das brincadeiras populares foram repetidamente averiguadas em escritos antigos (Sodré, 2002; Lopes, 2013; IPHAN, 2004). A palavra “samba” (corruptela de “semba” que na raiz banto significa “umbigada”), entretanto, não passaria a ser largamente usada na Bahia antes de 1864, quando passa a aparecer em jornais e em registros policiais principalmente em Salvador (Bastos, 2005; IPHAN, 2004). Não faltaram considerações de celebrações de populações não-brancas enquanto “algazarra”, “baderna”, “barulho” e “desordem” em que acompanhavam de maneira indeterminada termos genéricos como principalmente “batuque” mas também “samba”, “macumba”, “pernada”, entre outras, tornando difícil a determinação das diferentes manifestações culturais. Como nos conta Rafael de Menezes Bastos (2005), nessa época termos generalizantes como “batuque”, “samba” e até mesmo “tango” foram usados em toda a América Latina e posteriormente ressignificados por e para a intelectualidade do início do século XX na busca de raízes pertinentes à elaboração de um imaginário nacional universalizante. Para Osório (apud Lopes, 2013), entretanto, na ilha de Itaparica ocorriam “sambas-de-roda”, “cheganças”, “afoxés”, “corta-jacas”, “candomblés” e 4 Nessa passagem “Recôncavo Baiano” inclui todo o entorno da Baía-de-Todos-os-Santos e mesmo as antigas comunidades rurais de Salvador, no entanto a Ilha de Itaparica é considerada como um Território de Identidade diferente, ligado a Região Metropolitana de Salvador. Neste trabalho, entretanto, se evidenciará como a comunidade da ilha hora se liga a Salvador e hora se liga a outros territórios, em ligação à Santo Amaro ou à Santo Antônio de Jesus. 29 “batuques” após as missas ou concomitantemente a festividades católicas como a “Festa de São Gonçalo” e a “Festa de Santo Antônio Velásquez” assim como as mais clássicas “Festa do Divino Espírito Santo”, “Festa de Santo Antônio" e “Festa de Santa Bárbara”. O “batuque” foi relacionado a diferentes manifestações específicas pelo menos na Bahia, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, geralmente relacionados à religiosidade africana. Segundo Katharina Döring (2004), Gerson Quadrado contou a ela que chegou a vivenciar o Batuque em festas de largo em Salvador quando era mais novo, num formato que misturava a dança com pernadas que colocariam aquela manifestação próxima à capoeira. O “samba”, por outro lado, era cantado para embalar o ritmo do trabalho, acelerar a passagem do tempo e manifestar uma cultura (IPHAN, 2004), como também em “brincadeiras de roda” e jogos educativos cantados a crianças (Lopes, 2003). Essas manifestações estão profundamente enraizadas nas comunidades de descendentes de africanos escravizados em contato com as populações indígenas, principalmente no estabelecimento de quilombos, e os europeus, através das bandas militares, fraternidades religiosas e outras associações obrigatórias ou não. Os primeiros notadamente atravésdo uso do tempo em células binárias não simétricas e de cantos com improviso e refrão e os últimos através do uso da língua portuguesa (vale lembrar aqui que o uso do Português se tornou mandatório no Brasil a partir de 1757), da delimitação de uma banda e do uso de determinados instrumentos, principalmente de corda, entre outros. A documentação anterior à proclamação da República e principalmente sobre o controle de escravizados foi, em diversas ocasiões, propositalmente destruída, tornando difícil a análise sobre os modos de vida naquele tempo, ainda assim existem diversos episódios registrados por viajantes e estudiosos europeus, além de leis escritas, que podem elucidar como se garantiu a “manutenção da ordem" nessa época. Na ilha de Itaparica, especificamente, temos registros de que já em 1579 moradores da ilha foram condenados por “tatuagem” e “feitiçaria”, durante festejos em 1718 foram proibidas manifestações culturais por seus modos desordenados e seus excessos, em 1726 proibiu-se a ocupação de cargos públicos por “mulatos ou brancos casados com mulheres de cor” e em 1860 proibiu-se por seus excessos a “Encomendação das Almas”, popular procissão que ocorria no povoado de Ponta das Baleias, hoje o povoado do Baiacu (LOPES, 2003). No início do século XIX começam a aparecer registros de rodas de capoeira quando, segundo Osório (apud Lopes, 2013), autoridades policiais chegavam a ferir e matar participantes e até mesmo o público presente. Já em 1940, forças policiais invadiram um terreiro por “constante desassossego” apreendendo diversos objetos no local (Tavares; Caroso, 2015). 30 No século XIX o debate intelectual no Brasil era profundamente ligado às chamadas “teorias eugenistas”, buscando um “aprimoramento” da sociedade brasileira a partir do deslocamento ideológico do espaço europeu, suas estéticas e costumes, para as colônias sob o discurso da “higienização”, algo que se tornou uma espécie de “senso comum” atualmente. Segundo Muniz Sodré (2002) nessa fase ocorreram um intenso êxodo rural junto a desalojamentos em massa de populações urbanas pobres, uso de materiais e estéticas neoclássicas e fomento a imigração europeia acompanhando o fim da escravidão e a instituição das chamadas “leis de vadiagem”, as quais tinham o intuito de controlar a ocorrência de manifestações populares e sua presença nas ruas. O derradeiro abandono da elite açucareira do Recôncavo Baiano - assim como o posterior fim da produção do óleo de baleia (com o crescimento do uso do petróleo ocorre a proibição da caça de baleias que já estavam em processo de extinção) - fizeram com que a economia local minguasse para a subsistência através principalmente da pesca e da mariscagem (a exceção seria a indústria de fumo em Cachoeira e São Félix). Isto ocasionou grandes migrações tanto entre as localidades da região - o que, inclusive, é considerado um dos motivos por certa coesão social da região (IPHAN, 2004) -, quanto em direção às minas de ouro e às lavouras de café, assim como às capitais Salvador e principalmente Rio de Janeiro e São Paulo. Para Sodré (2002), tamanha deserção por parte das elites do nordeste brasileiro fortaleceria a autonomia daqueles descendentes de escravizados que promovem, nesta época, a organização de diversos terreiros e espaços de resistência cultural em diversas capitais da região, especialmente em Salvador onde do fundamental terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (o Ilê Iyá Nassô Axé Oká) viria o terreiro do Gantois (o Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê), entre outros. Essa fase marca profundas transformações nos cultos africanos através da adaptação do ambiente rural para o urbano e a ampliação da associação com festas populares católicas e outras manifestações culturais como práticas de conservação e continuidade (Sodré, 2002). Na ilha de Itaparica, de forma paralela, se desenvolveu primeiro a notoriedade de líderes espirituais como curandeiros ou médicos populares e depois a organização de importantes terreiros de Candomblé (Tavares; Caroso, 2015). É o caso dos terreiros de “Babás”, culto iorubá aos eguns (antepassados) e a “Babá Egun”, cuja linhagem parece estar ligada a casa de Pai Eduardo fundado já na década de 1930 em Ponta de Areia (Tavares; Caroso, 2015) mas também ao Xangô de Tio Serafim ainda em 1820 em Ponta das Baleias (Lopes, 2013). Outro caso é o de Pai João Caipó, renomado curandeiro o qual fundou sua casa de culto na década de 40 em Porto Santo - chega até a ser considerado por alguns como o primeiro Candomblé de Caboclo 31 da ilha - e ficou famoso pelas grandes festas tanto dentro de seu terreiro quanto durante festividades católicas (Tavares; Caroso, 2015). Nesta fase se dá o desenvolvimento de uma intelectualidade nacionalista que buscava se estruturar no Brasil com a virada para o século XX e a recente proclamação da República. A partir do contato de intelectuais com terreiros de Candomblé em Salvador e no Rio de Janeiro, os quais tornavam-se ambientes de grande efervescência cultural, e também com estudos sobre as manifestações culturais colocadas como brasileiras, o “Lundu” e a “Modinha”, o desenvolvimento do samba no Rio de Janeiro, a Capoeira, entre outras expressões culturais, delimitando um modelo de identidade nacional e de entretenimento de massas (o quase inconteste Carnaval) a partir de uma síntese entre a “cultura baiana” (muitas vezes genericamente tratada de forma paralela a cultura “africana” ou “nordestina”) e a "cultura urbana” do Rio de Janeiro do século XX (Bastos, 2005). É nessa época, ainda antes do surgimento da rádio, que aparece a forte influência da Valsa e da Polca, caracterizadas pela forma específica de se dançar em pares (a “dança de salão”) e pela formatação de uma banda, entre outras características da nova modernidade. Intelectuais desse período buscaram delimitar grandes gêneros dentro da cultura popular induzindo generalizações e invisibilizando discursos dissidentes criando produtos comercializáveis pelas novas tecnologias sociais em proporções inéditas - o samba tocado na rádio passa a ser a manifestação da essência brasileira e commodity no mercado internacional ainda antes do que o futebol. Embora houvessem medidas inéditas de amparo a cultura assim como o desenvolvimento de políticas populares com crescente participação de intelectuais e artistas na esfera governamental, o que se estipulou como “cultura brasileira” - desenvolvida a partir das diretrizes traçadas pela “antropofagia” da Semana de Arte Moderna de 22 -, era, afinal, uma homogeneização da diversidade brasileira além de ser a fabricação de um modelo cultural que atendia as necessidades das elites brasileiras da época no desenvolvimento de uma nova configuração política. Como nos conta Bastos (2005), a antropofagia modernista era a busca da solução entre a oposição “moderno” e “antigo”, antes colocada em termos de moderno, urbano, europeu e bom ao contrário de antigo, rural, primitivo e ruim. A cultura brasileira passaria a ser a exaltação do heterogêneo, da criatividade junto da tradição; a miscigenação deixaria de ser a causa do subdesenvolvimento para se tornar a solução da falta de identidade brasileira. A partir deste momento, e de alguma forma até hoje, o debate intelectual parece se pautar por: (i) a valorização de uma mestiçagem romântica; e (ii) a nostalgia de uma história racializada e mítica. Dentro do contexto da Guerra Fria, no século XX, segundo Bastos (2005), 32 eleva-se o ideal de “baianidade pura” que passa a ser ligada à tradição dos grandes terreiros Ketu de Salvador e ao samba “baiano” do Rio de Janeiro. É aqui que se estabelece o modelo que conhecemos de “baiana” de volumosa e colorida saia rodada e pano de cabeça engomado e do “malandro” de terno branco e chapéu, ambos ligados a uma memória revisitada dos engenhos canavieiros do Recôncavo Baiano. O idealde “Bahia” surge aqui como mito originário da nação brasileira, a matriz característica da “verdadeira brasilidade”. Tal ideário viria como resposta ao sincretismo religioso, principalmente com o crescimento do espiritismo e o desenvolvimento da “Umbanda Carioca” a partir de 1918, e à música comercial e de forte influência estrangeira surgida com o advento das rádios a partir de 1922. Nota-se a importância das migrações de baianos para o Rio de Janeiro: primeiro por serem em comunidades periféricas com grande presença de baianos (embora não só) que surgiram muitas das referências culturais da época, mas também porque uma parte da elite brasileira era descendente direta das oligarquias açucareiras baianas, principalmente através a transferência da capital administrativa. A influência mútua entre o samba carioca e o samba baiano parece averiguada através da influência da estrutura rítmica ligada ao “Paradigma da Estácio”, em referência ao bairro tido como berço do samba no Rio de Janeiro, presente de forma heterogênea tanto no Samba de Roda do Recôncavo Baiano quanto nos sambas do Rio de Janeiro (IPHAN, 2004; Bastos, 2005). Esta estrutura rítmica está ligada ao que Gerhard Kubik (apud Döring, 2004) determinou como dois ciclos rítmicos principais no Brasil: um com 12 pulsações e que estaria ligado a África Ocidental (a costa noroeste) e que predominaria na Bahia; e outro com 16 pulsações e que estaria ligado a África Central, dos povos Banto, e predominaria no Rio de Janeiro. Dentro do debate religioso essa virada resultou na desvalorização dos candomblés Kongo-Angola (considerando um grande leque de macumbas derivadas deste tronco além daquelas chamadas de “Nação Angola”) provenientes da região de predominância do tronco linguístico Banto (onde hoje fica, aproximadamente, Congo, Angola, Zâmbia e Moçambique) considerados por alguns intelectuais enquanto excessivamente miscigenados e descaracterizados. As muitas entidades nativas - caboclos, boiadeiros, marujos, etc. - indicariam um afrouxamento das formas de culto originais, ou seja, seriam a introdução de elementos exógenos colocados como inapropriados a espaços definidos idealmente enquanto cultos originários africanos (Aragão; Rabelo, 2018). A partir da década de 60 e principalmente na década de 80 com o “Manifesto das Yalorixás”, existiram movimentos tradicionalistas que desenvolveram o que chegou a ser 33 chamado de “reafricanização dos cultos afro-brasileiros”, isso por se caracterizarem pela busca em África das origens e representações “puras” das cosmologias africanas no Brasil. Esse movimento foi encabeçado principalmente por lideranças de cultos Jeje-Nagô (ou de “Nação Ketu”), fortalecendo um entendimento de superioridade dessa tradição, a qual estaria assim superando as influências europeias e a mistura entre as diferentes nações de Candomblé. Um pouco mais tarde também passariam por esse processo muitas lideranças de cultos Kongo- Angola, movimento que chega a ser chamado de “New Angola” por ter sido caracterizado pela negação das adaptações e sincretismos, também em relação a povos indígenas, do culto aos caboclos ao mesmo tempo que aprofundou o processo de embranquecimento desse culto afro- brasileiro. Segundo Meirelles (2017), tais críticas surgem do fato de que o movimento de intelectualização desses cultos, embora também encabeçado por lideranças de tradicionais terreiros na Bahia, marca uma nova fase do Candomblé em que tira-se a centralidade dos cultos do nordeste para colocá-los numa África histórica, servindo de pano de fundo para a valorização de terreiros no eixo Sul-Sudeste mais abastados e de presença majoritariamente branca, além do enfraquecimento de terreiros de comunidades periféricas. Nesse contexto, as tradições Kongo-Angola seriam enfraquecidas pela influência dos cultos de origem Jeje-Nagô na esteira da valorização intelectual daqueles terreiros. Considera- se, no entanto, a característica de “culto a terra” e aos “antepassados” (representados pelos caboclos), a indumentária colorida, porém rústica e a capacidade de metamorfose como provenientes da tradição Banto (Meirelles, 2017). Sodré (2002), por outro lado, considera que a capacidade de articulação de diferentes representações simbólicas seria característica de origem Ketu, valorizando a articulação política dos grandes terreiros de Salvador e Rio de Janeiro, onde teria sido unificado um diverso panteão de divindades Ketu e Jeje (sendo a nação Ketu ligada aos povos Iorubas, também chamados de Nagôs, e a nação Jeje ligado aos povos Mahins, Fons, Minas, Ewes e outros), afirmando o terreiro enquanto uma África qualitativa reterritorializada num espaço político-mítico-religioso. Vale ressaltar que nesses terreiros a tradição em língua ioruba dos Orixás se sobrepôs à tradição Jeje (que em si já é um termo ioruba) dos Voduns, daí o uso do termo “Ketu”. Miriam C. M. Rabelo e Ricardo Aragão (2018) vão dizer que, em Salvador, antigamente quase toda festa aos Orixás se transformava em um culto aos caboclos, ou seja, virava um “Samba de Caboclo”. Estes autores, entretanto, defendem que há uma separação clara entre as formas de manifestações de Orixás, Voduns e Inquices (entidades quase paralelas das diferentes nações do Candomblé) e os caboclos, simbolizando que não haveria, portanto, enfraquecimento 34 das diferentes tradições e sim uma inter-relação simbiótica entre elas. Como eles contam a partir de diversos trabalhos e relatos, existem na verdade atividades religiosas independentes, não se misturando em um mesmo momento, às vezes nem no mesmo espaço, caboclos e Orixás. Como contado por algumas entrevistadas, alguns terreiros Ketu restringiam, já em meados do século XX em Salvador, a presença de caboclos em suas festas fazendo com que algumas pessoas tivessem que frequentar diferentes lugares, um para o culto ao Orixá e outro para o culto aos caboclos. Em alguns desses relatos o culto ao caboclo seria anterior e feito a partir de “sessões espíritas" onde posteriormente a pessoa seria aconselhada, caso mostrasse uma conexão prévia, a se iniciar em algum culto a Orixá. Uma diferença marcante entre os cultos se dá no contexto da incorporação, na grande maioria das vezes ocorrendo de maneiras bastante diferentes, embora ocorram relatos de entidades que seriam “metá-metá”, meio caboclo e meio Orixá (Aragão; Rabelo, 2018). No caso dos Orixás existe uma fisionomia mais séria e sem nenhuma fala, eles apenas dançam e quem canta são os não-incorporados presentes, enquanto que os caboclos falam, cantam, bebem, fumam e aconselham os participantes sobre questões particulares, fazendo com que o ambiente da festa para os caboclos seja colocado como mais espontâneo (Conceição, 2015). O comportamento dos caboclos, segundo Jim Wafer (apud Aragão; Rabelo, 2018), parece mais próximo ao de exus, pomba-giras e erês (as duas primeiras entidades ligadas a um entrecruzamento do mundo espiritual com o terreno e os últimos a espíritos de crianças), de caráter alegre e com diversos tipos de recomendações para os presentes. Ao mesmo tempo, o vínculo com o Orixá parece apenas emergir do processo iniciático, ou seja, é anterior a relação mediúnica, mas se formula, ou desperta, a partir da feitura num terreiro. O vínculo com o caboclo, por outro lado, viria a partir de um encontro, de uma conexão exterior em um evento significativo, podendo ser herança de uma pessoa próxima ou fruto de um episódio mais ou menos indeterminado (Aragão; Rabelo, 2018). Ainda segundo os mesmos autores, os caboclos geralmente se colocam enquanto uma figura intermediária entre o mundo material e os Orixás, se referindo aos Orixás como seus “pais” e “mães”, considerando-os como seus protetores e dizendo seguir suas ordens. Mães e pais-de-santo desses cultos, adicionalmente, muitas vezes consideram que os caboclos são os “donos daterra”, ou seja, estavam naquela localidade antes deles mesmos, enquanto comunidade negra descendente de africanos, significando em uma obrigatoriedade moral de se saudar eles antes de qualquer tipo de ritual (Aragão; Rabelo, 2018). 35 Durante o século XX, na ilha de Itaparica e em todo o Recôncavo Baiano, o êxodo aprofundou-se até a crescente ocupação de lavadeiras, cozinheiras, faxineiras, construtores e comerciantes beneficiados com o aprimoramento tecnológico do transporte em contato com as classes médias soteropolitanas e com o turismo. Principalmente a partir da construção do “ferry boat” (balsa) e da duplicação da BR-324 (Salvador-Feira de Santana) na década de 70, o que acabaria liquidando com a rede hidroviária que ainda resistia desde a fase dos canaviais na foz do rio Paraguassú5, praticamente isolando algumas comunidades ribeirinhas da região (não por acaso algumas das comunidades mais atuantes dentro da rede do Samba de Roda atualmente). O crescimento da Região Metropolitana de Salvador e a valorização turística das praias da região produz uma grande alta na especulação imobiliária que progressivamente expulsa vários ocupantes tradicionais das beiras do mar e dos rios, cada vez mais poluídos, enfraquecendo a pesca, a mariscagem e a agricultura de subsistência transformando toda a região em um caso paradigmático de violência e descaso público. O prestígio da brasilidade do samba carioca, com o decorrer da segunda metade do século XX, vai dando lugar a músicas e hábitos mais modernos, acompanhando o aprofundamento da desvalorização do Samba de Roda principalmente pela desvalorização dos modos de vida tradicionais dos praticantes daquela manifestação cultural. As comunidades sambadeiras que orbitavam entre fraternidades religiosas, datas comemorativas e ambientes de trabalho passaram a se limitar a festas de terreiros e ambientes familiares (Lopes, 2013) além dos eventos de capoeiristas. Isto a despeito do surgimento da chamada “MPB” (Caetano Veloso e Maria Bethânia, nascidos em Santo Amaro da Purificação, chegaram a cantar sambas de roda e até a levar Zélia do Prato para os palcos na década de 70) que manteve a tradição de buscar aliar o progresso e a globalização com as tradições locais e populares. Somente na virada do milênio o fortalecimento de pautas identitárias e de políticas de conservação patrimonial possibilitaram uma espécie de “turismo cultural” do “folclore brasileiro”, este caracterizado por representações idealizadas e de caráter anacrônico colocados em uma perspectiva espetacular e mercadológica - ou seja, mediadas por profissionais e equipamentos da indústria da música -, afastando uma "apresentação" de Samba de Roda do conjunto de aspectos presentes nas manifestações populares afro-brasileiras propriamente ditas (Lopes, 2013; Queiroz, 2020). A valorização do objeto em detrimento do processo e seus 5 O centro histórico de Itaparica era voltado para o Recôncavo e possuía um terminal marítimo movimentado até a implementação da balsa e o crescimento de Mar Grande, o ponto mais próximo de Salvador da ilha. 36 agentes seria uma das causas da caracterização enquanto repetição ao invés de sua transformação (Canclini apud Lopes, 2013) além da espetacularização para consumo de um público desvinculado da comunidade de origem (Carvalho apud Queiroz, 2020) seriam alguns dos motivos dessas críticas. Como nos conta Dona Marica do Grupo Voa Voa Maria de Matarandiba, na ilha de Itaparica, através de Fernanda Castro de Queiroz (2020, p.168-169), o Samba de Roda passa a não ser espontâneo, uma distração focada no prazer, para ser uma obrigação, um compromisso com diversas exigências e tarefas. Essas apresentações, ainda assim, são muito valorizadas pelos seus participantes, tanto por um caráter político de resistência cultural quanto pela satisfação pessoal causada pelo reconhecimento e pela celebração em si, ao mesmo tempo a sua profissionalização esbarra na falta de apoio, em dificuldades burocráticas e no financiamento irrisório (Lopes, 2013; Queiroz, 2020). Por outro lado, repertórios musicais do Samba de Roda passam a ser comuns em trios elétricos e serestas principalmente através da revisitação dos “ritmos afro” da “Axé Music” (Lopes, 2013), mas também a partir do “Samba Duro”, subdivisão dentro do gênero do “Pagode Baiano” (NETFLIX, 2016), e da própria evolução da MPB, configurando-se, junto das apresentações, enquanto novos usos daquelas manifestações tradicionais. Compreende-se, de maneira geral, que as ideias preponderantes sobre as relações entre música popular e música folclórica estabelecem a última como uma espécie de sobrevivência anacrônica na qual a primeira se inspira (IPHAN, 2004). Como estipulado pelo “Dossiê do Samba de Roda do Recôncavo Baiano” (IPHAN, 2004), o Samba de Roda ocorreria em todo o estado da Bahia com suas variações regionais mas teria no Recôncavo sua principal referência cultural exatamente pelo fato de que a região, de importância fundamental no desenvolvimento histórico do estado, ter sido responsável pelo ethos atribuído ao povo baiano de maneira generalizada, de certa forma estereotipada em torno de um tipo ideal. Os autores definem que o Samba de Roda não possuía ocasiões exclusivas, sendo basicamente uma forma de reunião, de diversão, de canto e dança, que as pessoas da localidade conheciam e realizavam. Existiam, entretanto, aqueles momentos em que o samba era obrigatório como em festas religiosas, em ternos, ranchos e outros eventos tradicionais dali. A caracterização básica do Samba de Roda colocada pelo dossiê é: Disposição dos participantes em círculo ou formato aproximado. (...) Presença possível de instrumentos musicais membranofones – caracteristicamente, o pandeiro; idiofones – caracteristicamente, o prato-e-faca; e cordofones – caracteristicamente, a viola. Os tocadores ficam juntos fazendo parte do círculo. Os presentes participam do 37 acompanhamento musical com palmas (...) Cantos estróficos e silábicos em língua portuguesa, de caráter responsorial e repetitivo. (...) A coreografia, sempre feita dentro da roda, pode ser muito variada, mas seu gesto mais típico é o chamado miudinho. Feito, sobretudo, da cintura para baixo, consiste num quase imperceptível sapatear para frente e para trás dos pés quase colados ao chão, com a movimentação correspondente dos quadris (...) Outro traço marcante da coreografia é a alternância. (...) Em alguns casos é estritamente proibido que mais de uma pessoa dance de cada vez: uma só pessoa deverá executar sua dança, sempre no interior do espaço delimitado pela roda, e em seguida escolher entre os participantes o que irá substituí-la. (IPHAN, 2004, p.24-26) Outra característica importante seria o caráter inclusivo do Samba de Roda, ocasião em que todos os presentes são convidados a participar, ainda que não conheçam a brincadeira. A característica livre e informal, no que tange a local, contexto e vestimenta (embora notasse uma clara preferência por saias floridas, compridas e rodadas, combinando com um pano de cabeça) surge como um incentivador desse caráter inclusivo. Importante notar, entretanto, a predominância geral de homens tocando os instrumentos e de mulheres dançando no centro da roda, o que, entretanto, não impediu que ocorram desde as primeiras descrições diversos relatos de disposições diferentes. Uma característica colocada como central pelo Dossiê (id. ibidem) mas pertinentemente problematizada por Cíntia Lopes (2013), é a ocorrência da chamada “umbigada” - movimento clássico nas manifestações afro-brasileiras que indica a alternância entre dançarinos (IPHAN, 2004; Silva, 2010) -, a qual não parece ser muito popularizada atualmente na ilha de Itaparica como nota Lopes e como pude observar até aqui; é mais característico uma
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