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Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA 
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA 
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Augusto Infanti Ribeiro da Costa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Senhora da Anunciação: 
Memórias em Performance com 
Aurinda do Prato 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Florianópolis 
2023 
 
 
Augusto Infanti Ribeiro da Costa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Senhora da Anunciação: 
Memórias em Performance com 
Aurinda do Prato 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em 
Ciências Sociais do Centro de Filosofia e Ciências 
Humanas da Universidade Federal de Santa 
Catarina como requisito para a obtenção do título 
de Bacharel em Ciências Sociais. 
 
Orientadora: Profª. Drª. Maria Eugenia Domínguez 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Florianópolis 
2023 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Augusto Infanti Ribeiro da Costa 
 
 
Senhora da Anunciação: Memórias em Performance com Aurinda do Prato 
 
 
Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do título 
de Bacharel e aprovado em sua forma final pelo Curso de Ciências Sociais. 
 
 
Florianópolis, 16 de outubro de 2023. 
 
 
 
 
 
___________________________ 
Coordenação do Curso 
 
 
Banca examinadora 
 
 
 
 
 
____________________________ 
Prof.ª Dr.ª Maria Eugenia Domínguez 
Orientadora 
 
 
 
 
____________________________ 
Prof.ª Dr.ª Vânia Zikán Cardoso 
Universidade Federal de Santa Catarina 
 
 
 
 
____________________________ 
Prof.ª Dr.ª Yérsia Souza de Assis 
Universidade Federal do Recôncavo Baiano 
 
 
Florianópolis, 2023 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedicado a Amaury Infanti e David Daruan, 
 de cujas lembranças me trouxeram até aqui. 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Agradeço primeiro a meus pais, Valéria e Ari, que me ajudaram e apoiaram em todas as 
etapas da minha vida até chegar aqui, especialmente nesta fase de escrita mas também todas as 
vezes em que eu precisei mudar os meus caminhos. Agradeço também a Tânia e a Karina, 
minhas tias que sempre estiveram comigo como se fossem segundas mães, trazendo tanto afeto 
e cuidado independente do caminho que eu escolhesse trilhar. 
Agradeço, ainda, a UFSC e as pessoas que fazem parte dos Departamentos de 
Antropologia e de Sociologia e Ciência Política, professores, servidores e colegas, por me 
proporcionarem a estrutura, os conhecimentos e as experiências dessa minha formação que 
finalmente se encerra. Agradeço à minha orientadora Maria Eugenia Dominguez por me receber 
tão bem após tantos anos longe, me guiando num mar de sentimentos e reflexões que me 
arrebataram nesse processo de escrita. 
Agradeço principalmente a minha mãe-de-santo e minha mestra Aurinda por me 
presentear com lições tão importantes nessa minha vida, por cuidar da minha cabeça com uma 
lucidez mágica e me fortalecer tantos caminhos. Agradeço a Neinha, por me mostrar a sutileza 
do carinho e a profundidade do cuidado. Agradeço também ao Alê de Souza que me apresentou 
a capoeira e o mundo das brincadeiras populares, me indicando toda uma perspectiva de mundo 
naquelas rodas da lagoa. Agradeço ainda o meu mestre Jaime de Mar Grande que sempre me 
recebeu com o melhor dos sorrisos e me ensinar a calma de um verdadeiro observador, me 
conduzindo junto de Nenete, Munda, Rubinho, Madeira e Risadinha, pelos caminhos da imensa 
sabedoria da ilha de Itaparica. Agradeço particularmente a Tchure, Sofia e Renato, por terem 
me recebido de braços abertos e por compartilharem comigo tantas histórias, das desavenças 
aos júbilos, desvendando muitas sutilezas do mundo. 
Peço licença a meu pai Ogum, a quem devo e presto respeito, e que Oxalá nos traga paz. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Comigo só vem quem tem coragem, quem não tiver não 
vem. Que o que eu sei, ninguém sabe, não vou dar a ninguém, só a 
quem merecer que eu posso dar.” 
(Da Anunciação, Aurinda Raimunda apud Museu 
Virtual Origens, 2022) 
 
 
RESUMO 
 
Esta é uma etnobiografia de Aurinda Raimunda da Anunciação, ou Aurinda do Prato, 
Mestra de Samba de Roda e Yalorixá de Candomblé Ketu/Angola da Ilha de Itaparica, Bahia. 
A partir de uma crítica as possibilidades da relação entre pesquisador e pesquisado, utilizo das 
categorias “memória” e “performance” enquanto repertórios simbólicos para co-construir uma 
narrativa sobre os modos de viver e os atos ritualizados performados por Aurinda. Criada pelo 
irmão mais velho, o Mestre de Capoeira e Samba de Roda Gerson Quadrado, ela o acompanhou 
em ranchos e afoxés pelas ruas da ilha, além de levar seu renomado prato-e-faca para inúmeros 
sambas até participar da implementação da Salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo 
Baiano. Desde jovem ela organiza anualmente uma festa para o Caboclo Pedra do Ouro que a 
acompanha, contudo é após ser iniciada no Candomblé Ketu que passa a direcionar sua vida 
para o exercício religioso, se tornando popular para rezas, sacudimentos, banhos e o jogo de 
búzios. Nascida em 1936, Aurinda do Prato foi marisqueira, lavadeira, cozinheira, “baiana de 
acarajé”, costureira e artesã, sendo visitada por amantes das manifestações populares brasileiras 
de todo o mundo além de uma extensa rede de familiares e adjacentes. 
 
Palavras-chave: Etnobiografia; Performance; Samba de Roda; Candomblé. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
This is an etnobiography of Aurinda Raimunda da Anunciação, or Aurinda do Prato, 
Samba de Roda’s Master and Candomblé Ketu/Angola’s Yalorixá of Itaparica Island, Bahia. 
Through a critical analysis of the possibilities within the scientific relations, I use “memory” 
and “performance” categories as a symbolic repertory to co-create a narrative about the ways 
of living and the ritualized acts performed by Aurinda. Raised by her older brother, the Capoeira 
and Samba de Roda’s Master Gerson Quadrado, they paraded together in “ranchos” and 
“afoxés” on the island’s streets, as well as taking her renowned “prato-e-faca” (plate-and-fork 
as a musical instrument) to uncountable “sambas” until participating in the Samba de Roda’s 
cultural heritage implementation. Since she was a teenager she organizes annually a ritual party 
for Caboclo Pedra de Ouro, who accompanies her, although is only after she was initiated in 
the Candomblé Ketu that she started directing her life towards the religious exercise, becoming 
well known for prayers, baths, “sacudimentos” and the “búzios” game. Born in 1936, Aurinda 
do Prato was an artisanal fisherwoman, a washerwoman, a cook, a “baiana de acarajé”, a 
seamstress and a craftswoman, being visited by many Brazilian popular manifestation’s lovers 
from all over the world and a wide network of relatives and friends. 
 
 
Keywords: Etnobiography; Performance; Samba de Roda; Candomblé. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE FIGURAS 
 
Figura 1 - Fechamento do Evento “Gingando por Autonomia” .................................. 13 
Figura 2 - Aurinda em entrevista remota ................................................................... 16 
Figura 3 - Dia de mutirão na reforma ........................................................................ 17 
Figura 4 - Mapa do Recôncavo Baiano ..................................................................... 25 
Figura 5 - Gerson Quadrado observando a roda de Capoeira .................................. 38 
Figura 6 - “15 anos de Salvaguarda do Samba de Roda" em Mar Grande ............... 40 
Figura 7 - Samba no aniversário de Aurinda .............................................................46 
Figura 8 - Capa do disco “Aruê Pã” ........................................................................... 50 
Figura 9 - Capa do disco “Tradição da Ilha” .............................................................. 51 
Figura 10 - Apresentação remota durante a pandemia ............................................. 55 
Figura 11 - Valdelice e Neinha trabalhando na cozinha ............................................ 57 
Figura 12 - Yalorixás antes da Festa do Caboclo ...................................................... 58 
Figura 13 - Festa do Caboclo Pedra do Ouro............................................................ 59 
Figura 14 - Xirê durante Festa do Caboclo ............................................................... 60 
Figura 15 - Aurinda e Gerson Quadrado ................................................................... 73 
Figura 16 - Projeto “Mulheres do Samba de Roda” no Pelourinho ............................ 74 
Figura 17 - Quadrado e o Afoxé “Netos de Gandhy” ................................................. 75 
Figura 18 - Aurinda na roda de Capoeira .................................................................. 76 
Figura 19 - Aurinda vestida de baiana ....................................................................... 79 
Figura 20 - Aurinda e seu prato-e-faca ...................................................................... 80 
Figura 21 - Aurinda e a bandeira nacional ................................................................ 86 
Figura 22 - Aurinda e Tika catando búzios durante a pandemia de COVID-19 ......... 89 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
file:///C:/Users/Augusto/Downloads/Sra.d'Anunciação%20(1).docx%23_Toc146888246
 
 
SUMÁRIO 
 
AGRADECIMENTOS .................................................................................................. 6 
RESUMO..................................................................................................................... 8 
LISTA DE FIGURAS ................................................................................................. 10 
SUMÁRIO ................................................................................................................. 11 
1 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................... 12 
2 INTRODUÇÃO: Memória e Performance ................................................................... 18 
3 “A ILHA DE DOIS MUNICÍPIOS, VERA CRUZ E ITAPARICA”: Histórias de uma 
comunidade entre o candomblé e o samba ............................................................. 25 
4 “DONA DA CASA BOA NOITE”: Algumas descrições etnográficas ................... 43 
4.1 SAMBA DE ANIVERSÁRIO, 7 DE SETEMBRO DE 2019 ....................................... 43 
4.2 GRAVAÇÃO DO DISCO “TRADIÇÃO DA ILHA”, 2020 ........................................... 49 
4.3 FESTA DO CABOCLO PEDRA DO OURO, 27, 28 E 29 DE OUTUBRO DE 2018 . 55 
5 “VER, ENTENDER E DECIFRAR”: Entrevista e outras histórias .......................... 68 
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 90 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 92 
REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS .......................................................................... 95 
APÊNDICE A - Lista de músicas e letras do disco “Tradição da Ilha” ...................... 96 
APÊNDICE B - Íntegra da entrevista com Aurinda ................................................. 100 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
12 
 
 
 
1 JUSTIFICATIVA 
 
Me parece que, simbolicamente, um “Trabalho de Conclusão de Curso” é o 
encerramento de um trajeto que se inicia quando se decide fazer determinada graduação. No 
meu caso foi quando, depois de morar dois anos fora trabalhando como um imigrante qualquer 
e desfrutando os prazeres e as agruras de uma vida longe do próprio círculo social, eu voltei 
para o Brasil decidido a fazer algo que eu considerasse edificante para a minha vida e que 
respondesse a um ímpeto de fazer a diferença para uma comunidade que eu considerasse como 
minha. A graduação em Ciências Sociais parece muito comumente buscar responder a um 
sonho bastante idealizado de “cidadania”, talvez até mesmo um impulso romântico de 
salvacionismo. A necessidade individualista de sucesso, ao mesmo tempo, é a força motriz de 
quem pretende se formar no ensino superior respondendo a uma exigência quase inalienável da 
nossa sociedade capitalista contemporânea. A tensão entre a busca de um sentimento 
comunitário junto a um ímpeto individualista pareceu me rondar nas diversas fases desse meu 
caminho. 
Foi enquanto eu cursava Ciências Sociais na UFSC (Universidade Federal de Santa 
Catarina) que passei a frequentar as rodas de Capoeira da Lagoa da Conceição, em 
Florianópolis, com o Alê de Souza e fui pegando gosto pela filosofia e pela proposta holística 
da Capoeira e das “brincadeiras populares” de forma geral. A articulação entre consciência 
corporal, ritmo, história e filosofia de vida, entre outras características, me envolveram, 
moldando assim minhas expectativas e meus objetivos de vida a partir de então. O Samba de 
Roda mesmo me foi apresentado nessas circunstâncias, frequentemente convocado ao final das 
rodas da lagoa na potente voz do finado David Daruan, a quem presto esta ligeira homenagem. 
Minha trajetória acadêmica, entretanto, foi interrompida principalmente por certo 
desconforto com a forma como se dá a construção do conhecimento na Universidade, ao mesmo 
tempo que pela vontade de me aprofundar dentro desse mundo das “brincadeiras populares” de 
maneira orgânica, buscando vivenciar as tradições que fazem parte dessa categoria ao invés de 
estudá-las de forma “neutra”. Também a falta de perspectiva profissional dentro das Ciências 
Sociais e um certo pessimismo diante das transformações do mundo contemporâneo acabaram 
me fazendo decidir seguir um antigo sonho de quando era adolescente: eu ia vender miçangas 
na praia, ou qualquer outra coisa em qualquer outro lugar, viver de arte e do que o mundo dá, 
ou algo assim. 
13 
 
 
Já depois de um tempo mochilando pelo nordeste brasileiro, durante o ano de 2018, 
quando estava no Kilombo Tenondé - espaço cultural e fazenda agroecológica do Mestre de 
Capoeira Cobra Mansa em Valença (BA) - a também Mestra de Capoeira Gegê, na época 
morando na cidade, organizou um evento chamado “Gingando pela Autonomia” em que 
propunha a valorização da presença feminina na Capoeira. Neste momento eu me desdobrava 
na produção executiva do evento e não pude aproveitar muito; o fechamento do evento, 
entretanto, seria com uma famosa Mestra do Samba de Roda de Itaparica, a própria Mestra 
Aurinda do Prato, junto de alguns familiares e amigos. Foi ali que eu a conheci pela primeira 
vez, ela puxando o samba numa grande roda de mulheres. Após o fim do samba houve um 
almoço em que eu servia as convidadas, ao que Aurinda me pergunta: “Que folha é essa aqui?” 
- era uma rúcula orgânica produzida ali mesmo na horta do local - “Gostei muito dessa folha, 
quero levar um pouco”. Na minha visão tudo começou ali, no meu papel de servir à minha mãe-
de-santo: fui até a horta, busquei um maço de rúcula e levei de volta para ela. Ela gargalhou e 
disse: “te espero em minha casa” 
 
Figura 1 - Fechamento do Evento “Gingando por Autonomia” 
 
Fonte: Acervo pessoal 
 
Não fui logo, contudo. Passaram-se meses, eu “mangueando” pelas ruas de Salvador, 
em dúvida sobre que caminho deveria seguir, até que reencontrei um amigo de estrada: Fabrício, 
que eu havia conhecido no interior de Pernambuco, tinha formado uma trupe de palhaços, estava 
ficando na ilha de Itaparica e tinha vindo a Salvador para uma convenção de circo. Ele me 
chamou para ir lá visitar a ilha, onde estava ficando, e alguns diasdepois, quando chego lá, 
descubro que a trupe era com Sofia e Renato, o casal de paulistas que eu havia conhecido 
tocando junto de Aurinda no evento de Gegê. 
14 
 
 
Finalmente fui visitar a casa de Aurinda. Chegando lá ela disse se lembrar de mim, me 
apresentou sua família e me mostrou todos os cômodos da casa e de seu terreiro. Uma de suas 
filhas olhava para mim e dizia, dando risada: “esse aí já vai virar filho de mainha”, acho que 
em referência a minha cara fascinada. Aurinda me levou para dentro da casa de seu caboclo, 
quando numa pequena mesa no centro do ambiente ela fez um rápido jogo de búzios. Ela jogava, 
ria e jogava de novo, fazendo um ou outro comentário. O jogo era para me testar, ela me disse 
depois, para ela saber com quem ela estava “labutando”. Os comentários dela naquele momento 
foram certeiros e pegaram fundo onde eu estava precisando escutar. 
Estabelecido um contato profundo com a casa de Aurinda, passei a morar na ilha de 
Itaparica e visitar sua casa cotidianamente. Ia lá ouvir suas histórias, ver seus modos de lidar 
com a vida e imaginava assim poder restabelecer algum equilíbrio entre as minhas aspirações e 
as determinações da vida na sociedade contemporânea. Lá, a convite de Tchure, Sofia e Renato, 
fui morar no espaço do Mestre de Capoeira Jaime de Mar Grande, a sede da Associação Cultural 
de Capuêra Angola Paraguassú, que fica na Gamboa, bairro vizinho ao da casa de Aurinda. Foi 
então que comecei meu processo iniciático dentro do Candomblé, além de acompanhar Aurinda 
em seus compromissos do samba. 
Lá éramos conhecidos como os “gringos”, embora apenas Tchure, chileno, fosse 
estrangeiro. Indiferente, na Gamboa éramos os “gringos da capoeira” (Jaime fora professor de 
alguém em praticamente todas as famílias daquela comunidade) e na Ilhota, bairro em que mora 
Aurinda, éramos os “gringos de dona Aurinda” (ela é uma personalidade muito conhecida na 
comunidade candomblecista, sambadora e marisqueira da localidade). Para mim, naquela 
época, foi curioso o fato de que ali o “branco”, igualmente chamado de “claro”, tinha pele 
morena clara e cabelo enrolado. Nós de cabelo liso, as vezes olhos claros ou cabelos aloirados, 
éramos tratados muitas vezes num inglês confuso, constantemente confundidos com turistas 
europeus que frequentemente visitam a costa da Bahia. Dona Nenete, irmã de Jaime a quem 
visitávamos diariamente, dizia sequer diferenciar meu sotaque paulista do forte sotaque chileno 
de Tchure. Compreende-se disso que, embora participe de grupos com relações e acordos 
estabelecidos, este pesquisador não deixa de ser visto enquanto alguém de fora, essencialmente 
diferente daqueles que ali cresceram, o que pressupõe diferentes abordagens para a minha 
participação junto daqueles grupos. 
Veio o ano de 2020 e assim implodiram muitos projetos pessoais mundo afora. Eu me 
considero bastante privilegiado neste momento de pandemia pelo local em que me encontrava. 
Na ilha de Itaparica custou a que as pessoas percebessem que aquilo não era “doença de gringo” 
15 
 
 
ou “doença de gente rica” (num primeiro momento muitas pessoas atravessavam a rua quando 
me viam passar), a calamidade pública excedeu os limites da televisão apenas na segunda onda, 
quando os hospitais em Salvador e Santo Antônio de Jesus lotaram e os doentes da ilha se 
acumularam em camas improvisadas no chão do único hospital que existe ali ou nas duas UPAs. 
Aquele primeiro choque, quando ninguém entendia o que estava acontecendo e que as ruas das 
cidades ficaram completamente vazias por semanas fora, principalmente ali na ilha, como um 
lugar fora do tempo. As pessoas que atravessavam a Baía-de-Todos-os-Santos todos os dias 
para trabalhar não precisavam ir mais, quem tinha ali casas de veraneio se mudou para lá e o 
auxílio emergencial causou um grande rebuliço naquelas comunidades periféricas marcadas por 
séculos de exploração e miséria. Ao mesmo tempo, a pandemia de COVID-19 foi decretada no 
Brasil logo após um grande derramamento de óleo que marcou a vida das comunidades 
litorâneas do Nordeste e muitos ali ficaram com medo de consumir peixe e marisco nessa época. 
Mar Grande, onde eu estava, é um tradicional polo marisqueiro e o óleo permaneceu como a 
maior desgraça sanitária ainda por alguns meses naquela localidade. 
Esse ano, por outro lado, ficou marcado por muitas dificuldades, principalmente para 
Aurinda. Ainda antes de decretada a pandemia no Brasil, a ilha vivia uma epidemia de 
Chikungunya que acabou derrubando nossa mestra na cama por meses. Com sua idade avançada 
ela passou muito tempo com intensas dores no corpo que ainda, anos depois, parecem reverberar 
na artrite que ela desenvolveu. A Chikungunya, infelizmente, não veio à toa. Aquele ano ficou 
marcado por longas e fortes chuvas na região que eventualmente terminaram por abrir buracos 
demais no telhado da casa de Aurinda e o quarto dela era o pior cômodo, ficando completamente 
ensopado pelas tantas “pingueiras” que caiam. Esse foi um momento crucial nessa história toda: 
um grupo se organizou para difundir uma campanha de arrecadação de recursos e fazer uma 
reforma naquela casa. A campanha foi um sucesso, largamente compartilhada inclusive por 
algumas pessoas de considerável popularidade, proporcionando assim uma ação ainda maior 
do que a proposta inicial. Aurinda, que não aceitava que fosse dado a ela um dinheiro pelo qual 
ela não tivesse trabalhado para ganhar, buscava compensar participando de diversas aulas ou 
entrevistas virtuais, algumas ainda disponíveis em serviços de streaming. 
 
16 
 
 
Figura 2 - Aurinda em entrevista remota 
 
Fonte: Acervo pessoal1 
 
Esse intenso e complexo processo me fez refletir, entretanto, sobre alguns limites entre 
o que é “apoio” ou “contribuição” e o que é a “imposição de categorias de pensamento”, para 
usar um jargão antropológico. Naquela época muitas decisões, infelizmente inclusive minhas, 
foram tomadas a despeito da vontade da mestra, a qual havia construído sua casa tijolo a tijolo 
no decorrer de sua vida e que não concordava, mesmo que às vezes aparentemente por alguma 
teimosia inerente a idosos de idade muito avançada, com a maneira como as coisas eram não 
só feitas mas principalmente decididas. Quem tem o direito de fazer determinadas escolhas? Há 
escolhas que não podem ser feitas? São perguntas mais complexas do que parecem. Da mesma 
forma como um pesquisador e seu pesquisado, nós, enquanto implementadores de reformas na 
casa, acabamos tomando decisões unilaterais sobre o que deveria ser feito na obra, quais eram 
as premissas consideradas e as disposições feitas. Com o mote de fazer o que era melhor para 
ela, de lhe trazer conforto, passamos por cima de decisões, vontades e costumes de quem 
deveria estar mais ao centro do processo. 
 
 
1Canal de Youtube da “Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassú”, 2020 
17 
 
 
Figura 3 - Dia de mutirão na reforma 
 
Fonte: Acervo pessoal 
 
Eventualmente o chacoalhão que a pandemia causou na minha cabeça acabou por mais 
uma vez me realocar dentro daquele caminho dialógico de busca por sucesso individual e 
profissional junto de uma pretensão comunitária transformadora. Eu retornei para as Ciências 
Sociais buscando abrir portas e criar oportunidades para assim ter mais ferramentas para a 
transformação do meu entorno e principalmente de mim mesmo, entendendo agora que o ensino 
superior é uma condição para seguir determinados caminhos na sociedade contemporânea ao 
mesmo tempo que também é um multiplicador de dispositivos e ferramentas para o 
desenvolvimento pessoal e social. 
Este trabalho, portanto, visa preencher algumas lacunas que se abriram tanto com o hiato 
da minha vida acadêmica, quanto naquela época da reforma. Não em minha relação com minha 
mãe-de-santo, mas sim dentro do meu próprio entendimento sobre os limites entrea minha 
intencionalidade e a intencionalidade do outro, ou mesmo entre a minha vontade e a realidade 
concreta que se apresenta diante de mim. Aqui se apresenta um paradoxo: como pode ser 
possível refletir a relação hierárquica presente nas Ciências Sociais, e de forma análoga também 
entre os aprendizes das manifestações populares brasileiras, a partir de um trabalho em que eu 
falo em nome de outra pessoa, reproduzindo assim novamente essa relação desigual entre 
pesquisador e pesquisado? Este trabalho, portanto, deve considerar sua inevitável limitação, 
afinal é apenas um TCC, assim como não pode pretender algo além de trazer algumas reflexões 
e críticas para dentro do já estabelecido processo científico. 
 
18 
 
 
2 INTRODUÇÃO: Memória e Performance 
 
O conceito principal a nortear este trabalho é o de “memória”: a memória que suscita a 
leitura de um texto, a memória que sobressai numa entrevista, a memória que se perpetua em 
um ritual, a memória que se constrói sobre categorias conhecidas, a memória resguardada num 
patrimônio. É, afinal, a partir da memória que construímos o “eu” em relação ao outro e em 
relação ao que já passou. A memória, de fato, parece ser tudo o que há de tangível ao 
pensamento: não existe comunicação sem memória, não existe relação (ou “ação” em sentido 
antropológico) sem memória. Ela vai muito além de uma história que nos lembramos ou do 
desenvolvimento linear de uma tradição; a memória é o que uma lembrança nos suscita, o que 
nos causa materialmente, assim como é também o que fazemos dessa lembrança, o que é 
provocado na relação com o outro. Dessa forma, percebemos que: 
 
[a memória do conhecimento] constantemente se recria e se transmite pelos ambientes 
de memória, ou seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas 
e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de 
preservação dos saberes. (Nora, Pierre apud Martins, 2002, p.71) 
 
É, ao mesmo tempo, efêmera e contínua, volátil e constante, já que a todo momento se 
transforma ao mesmo tempo que se perpetua. Ações são formadas pelas memórias de antes, 
porém tão logo se formam elas se transformam em memória, gerando novas atitudes e repetindo 
infinitamente este mesmo ciclo. É essencialmente a constante reestruturação de todas as 
possibilidades que existem, não de maneira indistinta, mas a partir de ligações reais em cadeia, 
da conexão e ativação dessas memórias em contato com o mundo em volta. “Assim, a ideia de 
sucessividade temporal é obliterada pela reativação e atualização da ação, similar e diversa, já 
realizada tanto no antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento.” (Martins, 2002, 
p.85) 
A partir da reflexão proposta por Leda Martins (2002, p.88) temos que “o corpo é, por 
excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como 
tal, esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o 
ato reencenado.” Sobre o corpo em performance nas “Congadas”, ela diz que: 
 
o corpo (...) é o lugar do que curvilianemente ainda e já é, do que pôde e pode vir a ser, 
por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença. O evento encenado no e pelo 
corpo inscreve o sujeito e a cultura numa espacialidade descontínua que engendra uma 
temporalidade cumulativa e acumulativa, compacta e fluida. (2002, p.87) 
19 
 
 
 
Como traz Yvonne Daniel (apud Giesbrecht, 2015, p.13), a dança nos rituais de 
candomblé funciona como momento de reconstrução de cosmologias, conhecimentos e estados 
emocionais possibilitando a resistência às estruturas de dominação a partir da articulação de 
sistemas cosmológicos, filosóficos, econômicos, históricos e comunitários e desempenhando 
um papel de “medicina social” pelo empoderamento de indivíduos e de grupos sociais. Já 
segundo Muniz Sodré (2002), no Candomblé o uso do corpo é como um canal do sagrado 
através do transe e da incorporação, assim como também passa a ser o terreiro através de uma 
reorganização comunitária, condensando suportes simbólicos geograficamente localizados de 
uma cosmologia exilada. O culto aos Orixás, ou afro-brasileiros em geral, é “uma ‘pulsão 
coletiva’, uma multiplicidade de forças que permite à existência advir, isto é, chegar e instalar-
se”. “Axé” é o próprio princípio de constituição da cultura já que cada um ali torna-se receptor 
e impulsor desse “axé” simbolicamente conservado e reestruturado através do ritual. Aqui o 
corpo, na verdade o corpo em performance, é a intersecção entre o visível (Ayê) e o invisível 
(Orun), entre a comunidade e o cosmos, entre o indivíduo e a tradição. 
A performance ritualizada, como colocada, é um ponto de intersecção entre a tradição 
e a improvisação, entre a ancestralidade e a individualidade. É um lugar de “encruzilhada”, ou 
seja, é a intersecção de influências múltiplas, de fusões, rupturas e desvios, de centramento e 
descentramento, de unidade e pluralidade (Martins, 2002). A “encruzilhada”, ou o 
ritual/performance, é um lugar terceiro, um operador de linguagens e representações gerador de 
signos e sentidos plurais, é uma concentração emergente. É aonde o ciclo volta a se repetir, ou 
seja, quando o passado se revisita de maneira heterogênea formando um presente único e um 
futuro potente de novas possibilidades. É, portanto, um lugar de memória por excelência, um 
lugar de reestruturação da memória, de criação de memória. 
Cada ritual é ao mesmo tempo original e repetido, e esse processo de tradição e 
transmissão institui um movimento não-linear que sincronicamente reativa e integra, no ato 
performático, o passado, o presente e o futuro. 
 
Como um logos em movimento do ancestral ao performer e deste ao ancestre e ao 
infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no 
qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a ação de um pretérito contínuo, 
sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e 
neles também se esparge, abolindo não o tempo mas a sua concepção linear e 
consecutiva. (Martins, 2002, p.85) 
 
20 
 
 
O rito performático considerado como “lugar radial de centramento e descentramento, 
intersecções e desvios, textos e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, 
fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e 
disseminação” (Martins, 2002, p.73) evidencia-se enquanto operador de linguagens e discursos 
de natureza cinética e diversificada produzindo um lugar terceiro de enunciados e 
representações híbridas não estáticas. 
 
A noção de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a 
possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos 
processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre 
amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios 
filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. (Martins, 2002, p.73) 
 
Por mais que esses autores estejam falando sobre o “corpo” em grupos não 
caracterizados pela escrita, podemos ainda assim dizer que em qualquer sociedade se constrói 
o “eu” a partir do entendimento de alteridade produzido em relação ao próprio corpo e sua 
revisitação ritual. O “corpo” inevitavelmente repete as marcas de antepassados e de 
acontecimentos da própria vida sem deixar de ser continuamente ressignificado enquanto 
expressão do meu eu manifestado, do meu eu criativamente exposto em relação com o mundo 
concreto, não de maneira indeterminada mas segundo costumes, usos e intencionalidades de 
indivíduos de grupos sociais em tempos históricos. A antropologia contemporânea e os estudos 
da performance em geral vêm trazendo esse paradigma, muito usado para explicar culturas não 
colonizadas, para a totalidade das sociedades humanas. “Performance”, assim visto, passa a ser 
uma:categoria universal, no sentido de que corresponde a eventos que acontecem em todas 
as culturas. (...) Todas as sociedades humanas têm vários gêneros de performance, 
especificamente marcados pela função poética, e que exibem as características descritas 
acima. As formas dos atos performáticos são variadas e diversas, construídas em 
contextos culturais específicos. (Langdon, 2007, p.11) 
 
Considerando esta construção de “memória” e “performance”, o presente trabalho 
possui três objetivos principais: (a) Construir com Aurinda uma narrativa sobre a sua vida que 
terá uma circulação acadêmica - por tanto diferenciada de outras narrativas que ela constrói no 
seu cotidiano e, assim, (b) refletir sobre a dualidade clássica das ciências sociais entre 
pesquisador e pesquisado, desenvolvendo um trabalho de perspectiva antropológica baseado na 
21 
 
 
relação que estabeleci com Aurinda, e desta forma, (c) contribuir com os conhecimentos 
existentes sobre as artes, brincadeiras e religiosidades da ilha de Itaparica. 
Para essa tarefa pretendo intercalar alguns conceitos e abordagens que me parecem ser 
complementares e que muitas vezes até se unem na busca do mesmo objetivo. Trago para tanto 
o conceito de “etnobiografia” como trabalhado em Gonçalves; Marques; Cardoso (2012) assim 
como desenvolvido por Prelorán (apud Domínguez, 2021) e de “performance” como abordado 
por Baumann; Briggs (2006), Domínguez (2021), Langdon (2007) e Martins (2002) além de 
recorrer aos conceitos de “entextualização” de Baumann; Briggs (2006) assim como o já citado 
“lugar de encruzilhada” de Leda Martins (2002). 
A etnobiografia, como tratada por Gonçalves; Marques; Cardoso (2012), aparece como 
uma ferramenta apropriada para a busca desses objetivos por ser “um discurso autoral proferido 
por um sujeito num processo de reinvenção identitária mediada por uma relação” (Carvalho 
apud Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.24). Ao mesmo tempo, como tratada por 
Domínguez (2021, p.18) a partir de Prelorán, “é explicitamente um diálogo, tem um destinatário 
e uma intenção, que é a de dar a conhecer determinados aspectos de uma realidade”. Nesse 
processo “a etnógrafa deixa de ser a narradora onisciente a descrever um mundo que acredita 
conhecer, ela também não segura as rédeas que definem o rumo da etnografia” (Domínguez, 
2021, p.18) permitindo que o protagonismo na narrativa seja de quem conta sua vida. 
Para essa construção etnobiográfica consideramos a ideia de que o sujeito é uma 
construção social e política com características morais, éticas e estéticas, ou seja, é uma pessoa 
culturalmente constituída a partir de representações e vivências histórico-culturais. Ao falar, 
portanto, sobre sua vida, como via e se relacionava com os outros, esse indivíduo nos dá acesso 
ao seu modo de estar no mundo, a sua experiência sociocultural e política. É, de fato, a 
“subjetivação da experiência cultural ou objetivação da intimidade” (Gonçalves; Marques; 
Cardoso, 2012, p.36) produzindo o típico conhecimento etnográfico. 
A etnobiografia nos oferece ainda outra reflexão de viés subjetivo e ambivalente por se 
tratar de uma construção criativa do eu em relação com um ouvinte interessado, ou seja, é o 
produto de uma narração operada através da alteridade entre o pesquisador e o pesquisado. É 
“uma narrativa que produz o sujeito e que é produzida pelo mundo na produção do próprio 
sujeito” (Carvalho; Ricouer apud Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.27). Não é, portanto, 
a categoria “indivíduo” que buscamos analisar “mas sim a pessoa-personagem tomada enquanto 
manifestação criativa, pois é justamente através dessa interpretação pessoal que as ideias 
culturais se precipitam e tem-se acesso à cultura” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.30). 
22 
 
 
Este encontro entre quem conta a história e quem a pesquisa é exatamente o que torna a narrativa 
não definitiva já que operada através de um contexto de interação e suas implicações, na 
“condição de uma relação em que pessoas se transformam através do contato, alterando seus 
discursos e narrativas” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.24). 
O principal valor da etnobiografia parece estar na “possibilidade de compreender a vida 
e a filosofia de pessoas (...) com [as] quais podemos nos identificar, abandonando noções – 
como ‘comunidades’ ou ‘sociedades’ – que poderiam resultar em generalizações” (Prélorán 
apud Domínguez, 2021, p.4), buscando-se assim dissolver a dualidade entre uma 
homogeneidade etnográfica através de generalizações sociológicas e contradições 
pessoalizadas na construção de personagens individualizados. Tanto pesquisador quanto 
pesquisado são personagem e pessoa ao mesmo tempo pois não há maneira de garantir que as 
narrativas não são de personagens construídos e que não possuem interesses individuais 
envolvidos, ou seja, que existam verdades essenciais imbricadas ali. Assim posto, demonstra-
se que a diferença entre personagem e pessoa real é muito tênue já que inevitavelmente uma 
narrativa é construída a partir de representações situadas em complexas relações pessoais e 
sociais que se tencionam e se formam criativamente no momento da comunicação. Não se trata, 
no entanto, de buscar integrar a dualidade entre “indivíduo” e “sociedade” ou entre “fato social” 
e “ação individual” mas “simplesmente aceitar uma terceira dimensão desta relação entre 
indivíduo e sociedade, ou identidade pessoal e papel social, que é a consciência de algo 
construído” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, p.38). A categoria de pessoa-personagem é 
mediada não por essências individualizantes mas sim por relações de alteridade, pela 
emergência da consciência de si a partir da relação complexa com o outro. “Assim, a pessoa-
personagem é justamente aquela que faz a indissociável junção entre vivido e pensado, dado e 
construído, individual e social, ação e representação” (Gonçalves; Marques; Cardoso, 2012, 
p.39). 
A partir da virada conceitual que parte da antropologia conduziu, trazendo uma maior 
reflexividade e a compreensão de que o conhecimento é produto das relações entre pesquisador 
e pesquisado (Domínguez, 2021), como explica Langdon (2007), o novo paradigma dos estudos 
da performance vem deslocando a ênfase de padrões e conteúdos simbólicos para a significação 
da interação social, o exame crítico de eventos performáticos heterogêneos assim como para a 
reflexão da interação comunicativa entre os colaboradores e a representação de suas falas. 
Transferindo para cá a proposta de Tim Ingold (apud Domínguez, 2021, p.17) a performance, 
no caso tratada enquanto “som musical”, “é significativo não pelo que representa, mas 
23 
 
 
simplesmente por sua presença afetiva no ambiente do ouvinte” explicitando assim a complexa 
gama de significações de um ato performático. 
Como nos traz Baumann; Briggs (2006, p.189) a “performance oferece um enquadre 
que convida à reflexão crítica sobre os processos comunicativos” através da análise de eventos 
que precedem, sucedem e englobam a ação performática, requerendo estudos sensíveis de como 
forma e significado são índices de uma gama ampla de discursos. Para esses autores os estudos 
da performance reformularam a distinção entre texto e contexto, ou seja, retiraram a ênfase do 
produto para os processos e negociações entre os participantes das interações sociais. 
Dentro desta perspectiva os estudos da performatividade fazem o movimento de 
“entextualização”, quero dizer, retiram a ação performática de seu contexto interacional para 
analisar ela em seus diferentes aspectos e usos (descentramento), para então recontextualizá-la 
em novos momentos históricos (como o presente trabalho). Abre-se, assim, caminho para a 
análise de estruturas sistêmicas mais amplas onde a performance desempenha um papel 
constitutivo nas interações sociais, de maneira que a fala em si, assim como a própria sociedade, 
são questionadas e transformadas.Busca-se, portanto, não apenas a emergência da significação 
relativa entre aqueles participantes como também a reflexão sobre a forma que é usada a palavra 
na enunciação do trabalho científico, trazendo uma abordagem heterogênea e mutável da ação 
social. 
 
A “contextualização” envolve um processo ativo de negociação no qual participantes 
examinam reflexivamente o discurso em sua emergência, inserindo avaliações sobre 
sua estrutura e significado na própria fala. Atores (performers) estendem tais avaliações 
de modo a incluir previsões sobre como a competência comunicativa, histórias pessoais 
e identidades sociais de seus interlocutores darão forma à recepção do que é dito. 
(Baumann; Briggs, 2006, p.201) 
 
Tradicionalmente os estudos da performatividade fazem o movimento de considerar 
uma ação performática (e, mais recentemente, comunicativa) enquanto um ritual (entendido no 
sentido clássico de evento comunicativo em relevo com uso de metalinguagem) no sentido de 
que transmite e institui “saberes estéticos, filosóficos e metafísicos, dentre outros, além de 
procedimentos, técnicas, quer em sua moldura simbólica, quer nos modos de enunciação” 
(Martins, 2002, p.72). É, portanto, ato semântico e simbólico de uma ação re-apresentada. A 
partir de Victor Turner, Martins (2002) considera festas e brincadeiras populares enquanto ritos 
de “aflição e religação” que se formam a partir de enredos cosmológicos que se desenvolvem 
através de uma elaborada estrutura simbólica, ou seja, “uma orquestração de ações, objetos 
24 
 
 
simbólicos e códigos sensoriais”. Carregam em si, portanto, valores estéticos, cognitivos e 
filosóficos através de procedimentos e técnicas de expressão e visibilidade que dinamicamente 
modificam e recriam os códigos culturais modificando assim a ordem simbólica e histórico-
social da vida cotidiana. 
Como nos conta Renata de Lima Silva (2010), o jogo ritual presente nas manifestações 
populares afro-brasileiras podem ser analisadas a partir da oposição entre paidia e ludus 
presente no trabalho de Roger Callois sobre jogos. Paidia configura o caráter de improvisação, 
espontaneidade e originalidade do jogo enquanto ludus é o cálculo e as regras do jogo, sua 
estrutura tradicional. Assim, o prazer daquele que participa do jogo está no envolvimento com 
normas e regras que dão espaço para um impulso de exuberância e expansão de forma 
disciplinada. Uma relação harmônica entre a paidia e o ludus, entre a musicalidade, as relações 
do jogo e as matrizes corporais, proporciona uma espécie de “transe”, ou seja, uma entrega 
apaixonada propiciada pela capacidade de espontaneidade que surge apenas através de 
estruturas de jogo pré-concebidas e fielmente acordadas. 
Já segundo Eloisa Leite Domenici: 
 
as brincadeiras populares são exercícios coletivos de significação - exercícios 
privilegiados onde a experiência corporal atua como elemento propiciador dos 
processos de semiose”, ou seja, a brincadeira popular não segue exatamente um 
modelo, uma maneira de fazer ou tocar, mas uma série de informações organizadas em 
relação a um todo em forma de metáforas corporais e linguísticas, em continuidade com 
os movimentos, em cadeias de significação onde a experiência corporal ocupa um papel 
central. (Domenici apud Lopes, 2013, p.95) 
 
 Assim, pretendo demonstrar através da relação etnobiográfica com Aurinda os 
processos de significação que englobam os ritos e brincadeiras como performados por ela e em 
sua comunidade, de forma a evidenciarmos as características cosmológicas e lúdicas dessas 
representações culturais. Através da análise dessa relação de alteridade, pretendo construir um 
conhecimento não estático sobre essas categorias simbólicas, evidenciando-se suas articulações 
de forma complexa e não as apresentando como um modelo idealizado. 
 
 
 
 
 
25 
 
 
3 “A ILHA DE DOIS MUNICÍPIOS, VERA CRUZ E ITAPARICA”2: Histórias de 
uma comunidade entre o candomblé e o samba 
 
Figura 4 - Mapa do Recôncavo Baiano 
 
Fonte: Ilustração do autor3 
 
A história documentada sobre a ilha de Itaparica data das primeiras viagens dos 
europeus ao continente americano e está, até mesmo, presente em um dos mitos fundadores da 
“identidade brasileira”. As primeiras incursões de portugueses tiveram o intuito de reconhecer 
aquele “novo mundo” e transportar de volta bens comerciáveis, principalmente o pau-brasil de 
valorizada pigmentação vermelha que deu nome ao país colonizado. Essa era, de certa forma, 
uma nova fase das cruzadas cristãs que desde o século XI buscaram expandir o cristianismo e 
estabelecer rotas comerciais com o oriente, resultando na criação do próprio Reino de Portugal, 
ainda em 1143, e na chegada de Vasco da Gama a Calcutá, na Índia, em 1497. As também 
chamadas “Grandes Navegações” - nome dado àquela nova fase do expansionismo mercantil-
cristão - foram desenvolvidas inicialmente do acordo estabelecido entre Portugal, Castela 
(posteriormente Espanha) e o Papa, entrecruzando iniciativas de caráter privado de portugueses 
e espanhóis mas também italianos, sendo progressivamente confrontado pelas outras potências 
europeias da época, Holanda, Inglaterra e França. 
É, no entanto, em um navio francês que inesperadamente chega o português Diogo 
Álvares Correia, ou “Caramuru” (como é chamada a “moreia” na região da baía-de-Todos-os-
Santos), o “primeiro brasileiro”. Em uma das versões conta-se que este navio naufragou 
próximo de onde hoje fica o bairro do Rio Vermelho, em Salvador, e que seus tripulantes foram 
encontrados por alguns dos Tupinambás que ocupavam vastas áreas da região. Os tupinambás, 
 
2 Trecho de chula cantada por Quadrado e Manteguinha no disco “Aruê Pã” 
3 A partir do “Atlas Histórico do Brasil” da FGV, 2023 
26 
 
 
no entanto, mataram todos os tripulantes a não ser um, Caramuru, que de alguma forma teria 
convencido o líder, chamado Taparica, de se casar com sua filha Paraguaçu. Diogo Álvares de 
fato passou a viver ali, casado dentro do cristianismo com uma indígena batizada como Catarina 
e serviu de intermediário entre os tupinambás da região e os portugueses e franceses no início 
do século XVI (Lopes, 2013; Paraíso, 2011). 
Um pouco mais tarde, Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão, se torna donatário da 
capitania da Baía-de-Todos-os-Santos. Quando chega ao Brasil, em 1536, funda o Arraial do 
Pereira e acaba entrando em diversos conflitos tanto com os tupinambás quanto com outros 
europeus com interesses naquela região. Depois de ter de se exilar em Porto Seguro, quando já 
em 1547 retornava para o arraial, teoricamente para um acordo de paz com os tupinambás, 
houve mais um naufrágio. Desta vez o navio afundou próximo a Cacha-Pregos, na ponta sul da 
ilha de Itaparica, oportunidade em que os tupinambás até se alimentaram ritualisticamente de 
Pereira Coutinho (Paraíso, 2011). Este episódio precede a vinda de Tomé de Souza e a fundação 
da cidade de São Salvador da Bahia-de-Todos-os-Santos como a Capital-Geral do Brasil, ainda 
que Olinda, em Pernambuco, fosse o grande destaque dessa época. Aquele local foi escolhido 
devido a sua posição geograficamente estratégica e localização central dentro da colônia, mas 
também em represália aos indígenas do local e pela facilidade na compra da capitania dos 
herdeiros de Pereira Coutinho (Paraíso, 2011). 
Como conta Ubaldo Osório (apud Lopes, 2013), a ocupação portuguesa na ilha de 
Itaparica é caracterizada primeiro por vilas de controle jesuíta, as quais, enquanto catequizavam 
os indígenas tamoios e tupinambás, buscavam formar redes de manufatura e comércio; e 
posteriormente pelo desenvolvimento de redes de engenhos de açúcar operadas por colonos 
portugueses com mão-de-obra proveniente principalmente do comércio de pessoas escravizadas 
vindas da África. A economia açucareira encabeçou as exportações das colônias portuguesasna América por mais de um século até que a produção de açúcar da ocupação holandesa no 
Caribe e o crescimento do garimpo de ouro e depois da produção de café no sudeste brasileiro 
levaram a decadência dos engenhos no decorrer do século XVIII. Isso acabou levando à 
transferência da capital para o Rio de Janeiro, resultando, principalmente após a vinda da 
família real portuguesa para o Brasil em 1808, em uma crescente centralização política no país. 
Esse período - até meados do século XIX - foi suprido pela maior atividade comercial dentro 
do Império Português (e Brasileiro): o comércio de africanos escravizados, fechando assim a 
intensa rede marítima entre África, América e Europa que caracterizaria paralelamente grande 
parte das manifestações culturais em volta do Oceano Atlântico desde então. 
27 
 
 
Inicialmente, no século XVII, o comércio de pessoas escravizadas se deu principalmente 
através do porto de Uidá (ou São João Baptista d’Ajudá), hoje Benim, e pela costa noroeste 
africana - a Costa da Mina, que chegou a ser chamada de “Costa dos Escravos”, indo da 
Senegâmbia ao Golfo de Biafra - aonde chegaram, no caso brasileiro, majoritariamente a 
Cidade da Bahia. E posteriormente - principalmente a partir do século XVIII e chegando ao seu 
ápice em meados do século XIX (já perante sua proibição) - substancialmente através dos portos 
de Luanda e também Benguela, hoje Angola, em direção maiormente ao Rio de Janeiro em 
escala global (Emory University, 2021). O comércio de escravizados na Costa da Mina foi 
decorrente de uma fase de ocupação europeia inicial, feita em sua maior parte por portugueses, 
que fundaram fortes e portos para garantir o estabelecimento de seus interesses na região, 
compondo alianças que fomentaram diversas guerras entre aqueles povos, principalmente 
através do Reino de Daomé. Com o tempo, entretanto - especialmente pela crescente 
participação das outras potências que avançavam na corrida das “Grandes Navegações” -, o 
monopólio do comércio de escravizados que era de Daomé deu espaço para a participação de 
outros reinos, o que eventualmente levou a uma nova fase da ocupação europeia. A ligação 
entre o Reino de Daomé e o Governo da Bahia foi tão forte que emissários do primeiro 
chegaram a pedir que o Governador da Bahia intercedesse junto ao Imperador de Portugal para 
o retorno do monopólio daomeano, já no final do século XVIII (Gonçalves, 2021). Uma nova 
fase então se desenvolveu a partir do estabelecimento do domínio completo sobre regiões 
inteiras da África sob a forma de colônias e assim o Império Português, que havia fundado 
Luanda, apropriou-se de Angola sob a concorrência de franceses e ingleses, os quais acabaram 
colonizando a maior parte do continente. Este período acompanhou a proibição do tráfico de 
escravizados segundo o interesse destas últimas potências europeias, limitando drasticamente o 
comércio dos portugueses principalmente na colônia angolana, os quais resistiram a essa 
proibição durante grande parte do século XIX em conluio com as elites brasileiras 
especialmente no Rio de Janeiro (Curto; Gervais, 2002). 
Em quase toda a costa brasileira, mas principalmente no Nordeste, grandes fazendas de 
cultivo de cana com engenhos de açúcar foram gerenciadas por portugueses de estirpe no alto 
de suas “casas-grandes”. Alguns até eram heróis das campanhas nas Índias Orientais, mas 
muitos foram obrigados a se exilar de sua terra natal; a grande maioria, entretanto, não alcançou 
grande sucesso. No Recôncavo Baiano (meia lua situada no entorno da Baía-de-Todos-os-
28 
 
 
Santos4), entre as regiões de melhor desempenho na produção açucareira, ainda se desenvolveu 
nesta época a produção de tabaco e de farinha de mandioca, além da extração de óleo de baleia 
para combustível na Ilha de Itaparica. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica exercia um papel 
ideológico fundamental no desenvolvimento daquela sociedade através de suas igrejas, 
freguesias e festas, conjuntura esta violentamente garantida pela Santa Inquisição aqui herdada 
no final do século XVI, pela intensa repressão do período da escravidão e mais tarde pelas “leis 
de vadiagem” já no século XIX. 
Neste período aparecem os primeiros relatos de “batuques” na Ilha de Itaparica, a partir 
pelo menos de 1718, como conta Osório (apud Lopes, 2013), todos conectados às festas de 
santos católicos que, nos momentos de comemoração pós-liturgia, causavam estranheza nos 
viajantes europeus por serem demasiadamente enérgicas e voluptuosas, unindo “homens, 
mulheres e crianças brancos, pretos e mulatos, com violas e pandeiros e adufes” em um 
“saracoteio delirante” ou uma “dança furiosa”, para citar alguns dos comentários proferidos. O 
europeu dessa época chocava-se com a liberdade corporal dos “brasileiros”: a proximidade 
entre os corpos, a coexistência entre homens e mulheres em momentos festivos e certa 
característica sedutora e debochada das brincadeiras populares foram repetidamente 
averiguadas em escritos antigos (Sodré, 2002; Lopes, 2013; IPHAN, 2004). A palavra “samba” 
(corruptela de “semba” que na raiz banto significa “umbigada”), entretanto, não passaria a ser 
largamente usada na Bahia antes de 1864, quando passa a aparecer em jornais e em registros 
policiais principalmente em Salvador (Bastos, 2005; IPHAN, 2004). Não faltaram 
considerações de celebrações de populações não-brancas enquanto “algazarra”, “baderna”, 
“barulho” e “desordem” em que acompanhavam de maneira indeterminada termos genéricos 
como principalmente “batuque” mas também “samba”, “macumba”, “pernada”, entre outras, 
tornando difícil a determinação das diferentes manifestações culturais. Como nos conta Rafael 
de Menezes Bastos (2005), nessa época termos generalizantes como “batuque”, “samba” e até 
mesmo “tango” foram usados em toda a América Latina e posteriormente ressignificados por e 
para a intelectualidade do início do século XX na busca de raízes pertinentes à elaboração de 
um imaginário nacional universalizante. Para Osório (apud Lopes, 2013), entretanto, na ilha de 
Itaparica ocorriam “sambas-de-roda”, “cheganças”, “afoxés”, “corta-jacas”, “candomblés” e 
 
4 Nessa passagem “Recôncavo Baiano” inclui todo o entorno da Baía-de-Todos-os-Santos e mesmo 
as antigas comunidades rurais de Salvador, no entanto a Ilha de Itaparica é considerada como um 
Território de Identidade diferente, ligado a Região Metropolitana de Salvador. Neste trabalho, 
entretanto, se evidenciará como a comunidade da ilha hora se liga a Salvador e hora se liga a outros 
territórios, em ligação à Santo Amaro ou à Santo Antônio de Jesus. 
29 
 
 
“batuques” após as missas ou concomitantemente a festividades católicas como a “Festa de São 
Gonçalo” e a “Festa de Santo Antônio Velásquez” assim como as mais clássicas “Festa do 
Divino Espírito Santo”, “Festa de Santo Antônio" e “Festa de Santa Bárbara”. 
O “batuque” foi relacionado a diferentes manifestações específicas pelo menos na 
Bahia, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, geralmente relacionados à religiosidade africana. 
Segundo Katharina Döring (2004), Gerson Quadrado contou a ela que chegou a vivenciar o 
Batuque em festas de largo em Salvador quando era mais novo, num formato que misturava a 
dança com pernadas que colocariam aquela manifestação próxima à capoeira. O “samba”, por 
outro lado, era cantado para embalar o ritmo do trabalho, acelerar a passagem do tempo e 
manifestar uma cultura (IPHAN, 2004), como também em “brincadeiras de roda” e jogos 
educativos cantados a crianças (Lopes, 2003). 
Essas manifestações estão profundamente enraizadas nas comunidades de descendentes 
de africanos escravizados em contato com as populações indígenas, principalmente no 
estabelecimento de quilombos, e os europeus, através das bandas militares, fraternidades 
religiosas e outras associações obrigatórias ou não. Os primeiros notadamente atravésdo uso 
do tempo em células binárias não simétricas e de cantos com improviso e refrão e os últimos 
através do uso da língua portuguesa (vale lembrar aqui que o uso do Português se tornou 
mandatório no Brasil a partir de 1757), da delimitação de uma banda e do uso de determinados 
instrumentos, principalmente de corda, entre outros. 
A documentação anterior à proclamação da República e principalmente sobre o controle 
de escravizados foi, em diversas ocasiões, propositalmente destruída, tornando difícil a análise 
sobre os modos de vida naquele tempo, ainda assim existem diversos episódios registrados por 
viajantes e estudiosos europeus, além de leis escritas, que podem elucidar como se garantiu a 
“manutenção da ordem" nessa época. Na ilha de Itaparica, especificamente, temos registros de 
que já em 1579 moradores da ilha foram condenados por “tatuagem” e “feitiçaria”, durante 
festejos em 1718 foram proibidas manifestações culturais por seus modos desordenados e seus 
excessos, em 1726 proibiu-se a ocupação de cargos públicos por “mulatos ou brancos casados 
com mulheres de cor” e em 1860 proibiu-se por seus excessos a “Encomendação das Almas”, 
popular procissão que ocorria no povoado de Ponta das Baleias, hoje o povoado do Baiacu 
(LOPES, 2003). No início do século XIX começam a aparecer registros de rodas de capoeira 
quando, segundo Osório (apud Lopes, 2013), autoridades policiais chegavam a ferir e matar 
participantes e até mesmo o público presente. Já em 1940, forças policiais invadiram um terreiro 
por “constante desassossego” apreendendo diversos objetos no local (Tavares; Caroso, 2015). 
30 
 
 
No século XIX o debate intelectual no Brasil era profundamente ligado às chamadas 
“teorias eugenistas”, buscando um “aprimoramento” da sociedade brasileira a partir do 
deslocamento ideológico do espaço europeu, suas estéticas e costumes, para as colônias sob o 
discurso da “higienização”, algo que se tornou uma espécie de “senso comum” atualmente. 
Segundo Muniz Sodré (2002) nessa fase ocorreram um intenso êxodo rural junto a 
desalojamentos em massa de populações urbanas pobres, uso de materiais e estéticas 
neoclássicas e fomento a imigração europeia acompanhando o fim da escravidão e a instituição 
das chamadas “leis de vadiagem”, as quais tinham o intuito de controlar a ocorrência de 
manifestações populares e sua presença nas ruas. 
O derradeiro abandono da elite açucareira do Recôncavo Baiano - assim como o 
posterior fim da produção do óleo de baleia (com o crescimento do uso do petróleo ocorre a 
proibição da caça de baleias que já estavam em processo de extinção) - fizeram com que a 
economia local minguasse para a subsistência através principalmente da pesca e da mariscagem 
(a exceção seria a indústria de fumo em Cachoeira e São Félix). Isto ocasionou grandes 
migrações tanto entre as localidades da região - o que, inclusive, é considerado um dos motivos 
por certa coesão social da região (IPHAN, 2004) -, quanto em direção às minas de ouro e às 
lavouras de café, assim como às capitais Salvador e principalmente Rio de Janeiro e São Paulo. 
Para Sodré (2002), tamanha deserção por parte das elites do nordeste brasileiro fortaleceria a 
autonomia daqueles descendentes de escravizados que promovem, nesta época, a organização 
de diversos terreiros e espaços de resistência cultural em diversas capitais da região, 
especialmente em Salvador onde do fundamental terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (o 
Ilê Iyá Nassô Axé Oká) viria o terreiro do Gantois (o Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê), entre outros. 
Essa fase marca profundas transformações nos cultos africanos através da adaptação do 
ambiente rural para o urbano e a ampliação da associação com festas populares católicas e 
outras manifestações culturais como práticas de conservação e continuidade (Sodré, 2002). 
Na ilha de Itaparica, de forma paralela, se desenvolveu primeiro a notoriedade de líderes 
espirituais como curandeiros ou médicos populares e depois a organização de importantes 
terreiros de Candomblé (Tavares; Caroso, 2015). É o caso dos terreiros de “Babás”, culto iorubá 
aos eguns (antepassados) e a “Babá Egun”, cuja linhagem parece estar ligada a casa de Pai 
Eduardo fundado já na década de 1930 em Ponta de Areia (Tavares; Caroso, 2015) mas também 
ao Xangô de Tio Serafim ainda em 1820 em Ponta das Baleias (Lopes, 2013). Outro caso é o 
de Pai João Caipó, renomado curandeiro o qual fundou sua casa de culto na década de 40 em 
Porto Santo - chega até a ser considerado por alguns como o primeiro Candomblé de Caboclo 
31 
 
 
da ilha - e ficou famoso pelas grandes festas tanto dentro de seu terreiro quanto durante 
festividades católicas (Tavares; Caroso, 2015). 
Nesta fase se dá o desenvolvimento de uma intelectualidade nacionalista que buscava 
se estruturar no Brasil com a virada para o século XX e a recente proclamação da República. A 
partir do contato de intelectuais com terreiros de Candomblé em Salvador e no Rio de Janeiro, 
os quais tornavam-se ambientes de grande efervescência cultural, e também com estudos sobre 
as manifestações culturais colocadas como brasileiras, o “Lundu” e a “Modinha”, o 
desenvolvimento do samba no Rio de Janeiro, a Capoeira, entre outras expressões culturais, 
delimitando um modelo de identidade nacional e de entretenimento de massas (o quase 
inconteste Carnaval) a partir de uma síntese entre a “cultura baiana” (muitas vezes 
genericamente tratada de forma paralela a cultura “africana” ou “nordestina”) e a "cultura 
urbana” do Rio de Janeiro do século XX (Bastos, 2005). É nessa época, ainda antes do 
surgimento da rádio, que aparece a forte influência da Valsa e da Polca, caracterizadas pela 
forma específica de se dançar em pares (a “dança de salão”) e pela formatação de uma banda, 
entre outras características da nova modernidade. Intelectuais desse período buscaram delimitar 
grandes gêneros dentro da cultura popular induzindo generalizações e invisibilizando discursos 
dissidentes criando produtos comercializáveis pelas novas tecnologias sociais em proporções 
inéditas - o samba tocado na rádio passa a ser a manifestação da essência brasileira e commodity 
no mercado internacional ainda antes do que o futebol. 
Embora houvessem medidas inéditas de amparo a cultura assim como o 
desenvolvimento de políticas populares com crescente participação de intelectuais e artistas na 
esfera governamental, o que se estipulou como “cultura brasileira” - desenvolvida a partir das 
diretrizes traçadas pela “antropofagia” da Semana de Arte Moderna de 22 -, era, afinal, uma 
homogeneização da diversidade brasileira além de ser a fabricação de um modelo cultural que 
atendia as necessidades das elites brasileiras da época no desenvolvimento de uma nova 
configuração política. Como nos conta Bastos (2005), a antropofagia modernista era a busca da 
solução entre a oposição “moderno” e “antigo”, antes colocada em termos de moderno, urbano, 
europeu e bom ao contrário de antigo, rural, primitivo e ruim. A cultura brasileira passaria a ser 
a exaltação do heterogêneo, da criatividade junto da tradição; a miscigenação deixaria de ser a 
causa do subdesenvolvimento para se tornar a solução da falta de identidade brasileira. 
A partir deste momento, e de alguma forma até hoje, o debate intelectual parece se 
pautar por: (i) a valorização de uma mestiçagem romântica; e (ii) a nostalgia de uma história 
racializada e mítica. Dentro do contexto da Guerra Fria, no século XX, segundo Bastos (2005), 
32 
 
 
eleva-se o ideal de “baianidade pura” que passa a ser ligada à tradição dos grandes terreiros 
Ketu de Salvador e ao samba “baiano” do Rio de Janeiro. É aqui que se estabelece o modelo 
que conhecemos de “baiana” de volumosa e colorida saia rodada e pano de cabeça engomado 
e do “malandro” de terno branco e chapéu, ambos ligados a uma memória revisitada dos 
engenhos canavieiros do Recôncavo Baiano. O idealde “Bahia” surge aqui como mito 
originário da nação brasileira, a matriz característica da “verdadeira brasilidade”. Tal ideário 
viria como resposta ao sincretismo religioso, principalmente com o crescimento do espiritismo 
e o desenvolvimento da “Umbanda Carioca” a partir de 1918, e à música comercial e de forte 
influência estrangeira surgida com o advento das rádios a partir de 1922. 
Nota-se a importância das migrações de baianos para o Rio de Janeiro: primeiro por 
serem em comunidades periféricas com grande presença de baianos (embora não só) que 
surgiram muitas das referências culturais da época, mas também porque uma parte da elite 
brasileira era descendente direta das oligarquias açucareiras baianas, principalmente através a 
transferência da capital administrativa. A influência mútua entre o samba carioca e o samba 
baiano parece averiguada através da influência da estrutura rítmica ligada ao “Paradigma da 
Estácio”, em referência ao bairro tido como berço do samba no Rio de Janeiro, presente de 
forma heterogênea tanto no Samba de Roda do Recôncavo Baiano quanto nos sambas do Rio 
de Janeiro (IPHAN, 2004; Bastos, 2005). Esta estrutura rítmica está ligada ao que Gerhard 
Kubik (apud Döring, 2004) determinou como dois ciclos rítmicos principais no Brasil: um com 
12 pulsações e que estaria ligado a África Ocidental (a costa noroeste) e que predominaria na 
Bahia; e outro com 16 pulsações e que estaria ligado a África Central, dos povos Banto, e 
predominaria no Rio de Janeiro. 
Dentro do debate religioso essa virada resultou na desvalorização dos candomblés 
Kongo-Angola (considerando um grande leque de macumbas derivadas deste tronco além 
daquelas chamadas de “Nação Angola”) provenientes da região de predominância do tronco 
linguístico Banto (onde hoje fica, aproximadamente, Congo, Angola, Zâmbia e Moçambique) 
considerados por alguns intelectuais enquanto excessivamente miscigenados e 
descaracterizados. As muitas entidades nativas - caboclos, boiadeiros, marujos, etc. - indicariam 
um afrouxamento das formas de culto originais, ou seja, seriam a introdução de elementos 
exógenos colocados como inapropriados a espaços definidos idealmente enquanto cultos 
originários africanos (Aragão; Rabelo, 2018). 
A partir da década de 60 e principalmente na década de 80 com o “Manifesto das 
Yalorixás”, existiram movimentos tradicionalistas que desenvolveram o que chegou a ser 
33 
 
 
chamado de “reafricanização dos cultos afro-brasileiros”, isso por se caracterizarem pela busca 
em África das origens e representações “puras” das cosmologias africanas no Brasil. Esse 
movimento foi encabeçado principalmente por lideranças de cultos Jeje-Nagô (ou de “Nação 
Ketu”), fortalecendo um entendimento de superioridade dessa tradição, a qual estaria assim 
superando as influências europeias e a mistura entre as diferentes nações de Candomblé. Um 
pouco mais tarde também passariam por esse processo muitas lideranças de cultos Kongo-
Angola, movimento que chega a ser chamado de “New Angola” por ter sido caracterizado pela 
negação das adaptações e sincretismos, também em relação a povos indígenas, do culto aos 
caboclos ao mesmo tempo que aprofundou o processo de embranquecimento desse culto afro-
brasileiro. Segundo Meirelles (2017), tais críticas surgem do fato de que o movimento de 
intelectualização desses cultos, embora também encabeçado por lideranças de tradicionais 
terreiros na Bahia, marca uma nova fase do Candomblé em que tira-se a centralidade dos cultos 
do nordeste para colocá-los numa África histórica, servindo de pano de fundo para a valorização 
de terreiros no eixo Sul-Sudeste mais abastados e de presença majoritariamente branca, além 
do enfraquecimento de terreiros de comunidades periféricas. 
Nesse contexto, as tradições Kongo-Angola seriam enfraquecidas pela influência dos 
cultos de origem Jeje-Nagô na esteira da valorização intelectual daqueles terreiros. Considera-
se, no entanto, a característica de “culto a terra” e aos “antepassados” (representados pelos 
caboclos), a indumentária colorida, porém rústica e a capacidade de metamorfose como 
provenientes da tradição Banto (Meirelles, 2017). Sodré (2002), por outro lado, considera que 
a capacidade de articulação de diferentes representações simbólicas seria característica de 
origem Ketu, valorizando a articulação política dos grandes terreiros de Salvador e Rio de 
Janeiro, onde teria sido unificado um diverso panteão de divindades Ketu e Jeje (sendo a nação 
Ketu ligada aos povos Iorubas, também chamados de Nagôs, e a nação Jeje ligado aos povos 
Mahins, Fons, Minas, Ewes e outros), afirmando o terreiro enquanto uma África qualitativa 
reterritorializada num espaço político-mítico-religioso. Vale ressaltar que nesses terreiros a 
tradição em língua ioruba dos Orixás se sobrepôs à tradição Jeje (que em si já é um termo 
ioruba) dos Voduns, daí o uso do termo “Ketu”. 
Miriam C. M. Rabelo e Ricardo Aragão (2018) vão dizer que, em Salvador, antigamente 
quase toda festa aos Orixás se transformava em um culto aos caboclos, ou seja, virava um 
“Samba de Caboclo”. Estes autores, entretanto, defendem que há uma separação clara entre as 
formas de manifestações de Orixás, Voduns e Inquices (entidades quase paralelas das diferentes 
nações do Candomblé) e os caboclos, simbolizando que não haveria, portanto, enfraquecimento 
34 
 
 
das diferentes tradições e sim uma inter-relação simbiótica entre elas. Como eles contam a partir 
de diversos trabalhos e relatos, existem na verdade atividades religiosas independentes, não se 
misturando em um mesmo momento, às vezes nem no mesmo espaço, caboclos e Orixás. Como 
contado por algumas entrevistadas, alguns terreiros Ketu restringiam, já em meados do século 
XX em Salvador, a presença de caboclos em suas festas fazendo com que algumas pessoas 
tivessem que frequentar diferentes lugares, um para o culto ao Orixá e outro para o culto aos 
caboclos. Em alguns desses relatos o culto ao caboclo seria anterior e feito a partir de “sessões 
espíritas" onde posteriormente a pessoa seria aconselhada, caso mostrasse uma conexão prévia, 
a se iniciar em algum culto a Orixá. 
Uma diferença marcante entre os cultos se dá no contexto da incorporação, na grande 
maioria das vezes ocorrendo de maneiras bastante diferentes, embora ocorram relatos de 
entidades que seriam “metá-metá”, meio caboclo e meio Orixá (Aragão; Rabelo, 2018). No 
caso dos Orixás existe uma fisionomia mais séria e sem nenhuma fala, eles apenas dançam e 
quem canta são os não-incorporados presentes, enquanto que os caboclos falam, cantam, 
bebem, fumam e aconselham os participantes sobre questões particulares, fazendo com que o 
ambiente da festa para os caboclos seja colocado como mais espontâneo (Conceição, 2015). O 
comportamento dos caboclos, segundo Jim Wafer (apud Aragão; Rabelo, 2018), parece mais 
próximo ao de exus, pomba-giras e erês (as duas primeiras entidades ligadas a um 
entrecruzamento do mundo espiritual com o terreno e os últimos a espíritos de crianças), de 
caráter alegre e com diversos tipos de recomendações para os presentes. 
Ao mesmo tempo, o vínculo com o Orixá parece apenas emergir do processo iniciático, 
ou seja, é anterior a relação mediúnica, mas se formula, ou desperta, a partir da feitura num 
terreiro. O vínculo com o caboclo, por outro lado, viria a partir de um encontro, de uma conexão 
exterior em um evento significativo, podendo ser herança de uma pessoa próxima ou fruto de 
um episódio mais ou menos indeterminado (Aragão; Rabelo, 2018). Ainda segundo os mesmos 
autores, os caboclos geralmente se colocam enquanto uma figura intermediária entre o mundo 
material e os Orixás, se referindo aos Orixás como seus “pais” e “mães”, considerando-os como 
seus protetores e dizendo seguir suas ordens. Mães e pais-de-santo desses cultos, 
adicionalmente, muitas vezes consideram que os caboclos são os “donos daterra”, ou seja, 
estavam naquela localidade antes deles mesmos, enquanto comunidade negra descendente de 
africanos, significando em uma obrigatoriedade moral de se saudar eles antes de qualquer tipo 
de ritual (Aragão; Rabelo, 2018). 
35 
 
 
Durante o século XX, na ilha de Itaparica e em todo o Recôncavo Baiano, o êxodo 
aprofundou-se até a crescente ocupação de lavadeiras, cozinheiras, faxineiras, construtores e 
comerciantes beneficiados com o aprimoramento tecnológico do transporte em contato com as 
classes médias soteropolitanas e com o turismo. Principalmente a partir da construção do “ferry 
boat” (balsa) e da duplicação da BR-324 (Salvador-Feira de Santana) na década de 70, o que 
acabaria liquidando com a rede hidroviária que ainda resistia desde a fase dos canaviais na foz 
do rio Paraguassú5, praticamente isolando algumas comunidades ribeirinhas da região (não por 
acaso algumas das comunidades mais atuantes dentro da rede do Samba de Roda atualmente). 
O crescimento da Região Metropolitana de Salvador e a valorização turística das praias da 
região produz uma grande alta na especulação imobiliária que progressivamente expulsa vários 
ocupantes tradicionais das beiras do mar e dos rios, cada vez mais poluídos, enfraquecendo a 
pesca, a mariscagem e a agricultura de subsistência transformando toda a região em um caso 
paradigmático de violência e descaso público. 
O prestígio da brasilidade do samba carioca, com o decorrer da segunda metade do 
século XX, vai dando lugar a músicas e hábitos mais modernos, acompanhando o 
aprofundamento da desvalorização do Samba de Roda principalmente pela desvalorização dos 
modos de vida tradicionais dos praticantes daquela manifestação cultural. As comunidades 
sambadeiras que orbitavam entre fraternidades religiosas, datas comemorativas e ambientes de 
trabalho passaram a se limitar a festas de terreiros e ambientes familiares (Lopes, 2013) além 
dos eventos de capoeiristas. Isto a despeito do surgimento da chamada “MPB” (Caetano Veloso 
e Maria Bethânia, nascidos em Santo Amaro da Purificação, chegaram a cantar sambas de roda 
e até a levar Zélia do Prato para os palcos na década de 70) que manteve a tradição de buscar 
aliar o progresso e a globalização com as tradições locais e populares. 
Somente na virada do milênio o fortalecimento de pautas identitárias e de políticas de 
conservação patrimonial possibilitaram uma espécie de “turismo cultural” do “folclore 
brasileiro”, este caracterizado por representações idealizadas e de caráter anacrônico colocados 
em uma perspectiva espetacular e mercadológica - ou seja, mediadas por profissionais e 
equipamentos da indústria da música -, afastando uma "apresentação" de Samba de Roda do 
conjunto de aspectos presentes nas manifestações populares afro-brasileiras propriamente ditas 
(Lopes, 2013; Queiroz, 2020). A valorização do objeto em detrimento do processo e seus 
 
5 O centro histórico de Itaparica era voltado para o Recôncavo e possuía um terminal marítimo 
movimentado até a implementação da balsa e o crescimento de Mar Grande, o ponto mais próximo 
de Salvador da ilha. 
36 
 
 
agentes seria uma das causas da caracterização enquanto repetição ao invés de sua 
transformação (Canclini apud Lopes, 2013) além da espetacularização para consumo de um 
público desvinculado da comunidade de origem (Carvalho apud Queiroz, 2020) seriam alguns 
dos motivos dessas críticas. Como nos conta Dona Marica do Grupo Voa Voa Maria de 
Matarandiba, na ilha de Itaparica, através de Fernanda Castro de Queiroz (2020, p.168-169), o 
Samba de Roda passa a não ser espontâneo, uma distração focada no prazer, para ser uma 
obrigação, um compromisso com diversas exigências e tarefas. 
Essas apresentações, ainda assim, são muito valorizadas pelos seus participantes, tanto 
por um caráter político de resistência cultural quanto pela satisfação pessoal causada pelo 
reconhecimento e pela celebração em si, ao mesmo tempo a sua profissionalização esbarra na 
falta de apoio, em dificuldades burocráticas e no financiamento irrisório (Lopes, 2013; Queiroz, 
2020). Por outro lado, repertórios musicais do Samba de Roda passam a ser comuns em trios 
elétricos e serestas principalmente através da revisitação dos “ritmos afro” da “Axé Music” 
(Lopes, 2013), mas também a partir do “Samba Duro”, subdivisão dentro do gênero do “Pagode 
Baiano” (NETFLIX, 2016), e da própria evolução da MPB, configurando-se, junto das 
apresentações, enquanto novos usos daquelas manifestações tradicionais. Compreende-se, de 
maneira geral, que as ideias preponderantes sobre as relações entre música popular e música 
folclórica estabelecem a última como uma espécie de sobrevivência anacrônica na qual a 
primeira se inspira (IPHAN, 2004). 
Como estipulado pelo “Dossiê do Samba de Roda do Recôncavo Baiano” (IPHAN, 
2004), o Samba de Roda ocorreria em todo o estado da Bahia com suas variações regionais mas 
teria no Recôncavo sua principal referência cultural exatamente pelo fato de que a região, de 
importância fundamental no desenvolvimento histórico do estado, ter sido responsável pelo 
ethos atribuído ao povo baiano de maneira generalizada, de certa forma estereotipada em torno 
de um tipo ideal. Os autores definem que o Samba de Roda não possuía ocasiões exclusivas, 
sendo basicamente uma forma de reunião, de diversão, de canto e dança, que as pessoas da 
localidade conheciam e realizavam. Existiam, entretanto, aqueles momentos em que o samba 
era obrigatório como em festas religiosas, em ternos, ranchos e outros eventos tradicionais dali. 
A caracterização básica do Samba de Roda colocada pelo dossiê é: 
 
Disposição dos participantes em círculo ou formato aproximado. (...) Presença possível 
de instrumentos musicais membranofones – caracteristicamente, o pandeiro; idiofones 
– caracteristicamente, o prato-e-faca; e cordofones – caracteristicamente, a viola. Os 
tocadores ficam juntos fazendo parte do círculo. Os presentes participam do 
37 
 
 
acompanhamento musical com palmas (...) Cantos estróficos e silábicos em língua 
portuguesa, de caráter responsorial e repetitivo. (...) A coreografia, sempre feita dentro 
da roda, pode ser muito variada, mas seu gesto mais típico é o chamado miudinho. 
Feito, sobretudo, da cintura para baixo, consiste num quase imperceptível sapatear para 
frente e para trás dos pés quase colados ao chão, com a movimentação correspondente 
dos quadris (...) Outro traço marcante da coreografia é a alternância. (...) Em alguns 
casos é estritamente proibido que mais de uma pessoa dance de cada vez: uma só pessoa 
deverá executar sua dança, sempre no interior do espaço delimitado pela roda, e em 
seguida escolher entre os participantes o que irá substituí-la. (IPHAN, 2004, p.24-26) 
 
Outra característica importante seria o caráter inclusivo do Samba de Roda, ocasião em 
que todos os presentes são convidados a participar, ainda que não conheçam a brincadeira. A 
característica livre e informal, no que tange a local, contexto e vestimenta (embora notasse uma 
clara preferência por saias floridas, compridas e rodadas, combinando com um pano de cabeça) 
surge como um incentivador desse caráter inclusivo. Importante notar, entretanto, a 
predominância geral de homens tocando os instrumentos e de mulheres dançando no centro da 
roda, o que, entretanto, não impediu que ocorram desde as primeiras descrições diversos relatos 
de disposições diferentes. Uma característica colocada como central pelo Dossiê (id. ibidem) 
mas pertinentemente problematizada por Cíntia Lopes (2013), é a ocorrência da chamada 
“umbigada” - movimento clássico nas manifestações afro-brasileiras que indica a alternância 
entre dançarinos (IPHAN, 2004; Silva, 2010) -, a qual não parece ser muito popularizada 
atualmente na ilha de Itaparica como nota Lopes e como pude observar até aqui; é mais 
característico uma

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