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531Registro Clínico: funções e benefícios Giami, A. & Plaza, M. (org.). (2004). Os procedimentos clínicos nas ciências humanas: documentos, métodos, problemas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Giami, A. & Samalin-Amboise, C. (2004). O profissional pesquisador e o pesquisador interveniente. Em A. Giami e M. Plaza (org.). Os procedimentos clínicos nas ciências humanas: documentos, métodos, problemas. São Paulo: Casa do Psicólogo. 163-188. Mezan R. (1998). Escrever a clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo. Naves, M. & Tavares, M. (2007). Uso de um modelo padronizado de registro clínico na psicoterapia psicodinâmica. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Universidade de Brasília. Brasília: UnB. Nogueira, L. C. (2004). Aula: a pesquisa em psicanálise. Psicologia USP. 15(1/2); 83- 106. Plaza, M. (2004). O documento: o registro, a interpretação e a verdade – a estratégia do documento e suas inclinações. Em A. Giami e M. Plaza (org.). Os procedimentos clínicos nas ciências humanas: documentos, métodos, problemas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Revault D’Allones, C. (2004). O estudo de caso: da ilustração à convicção. Em A. Giami e M. Plaza (org.). Os procedimentos clínicos nas ciências humanas: documentos, métodos, problemas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 69-90. Tanner, B. A. (2003). Psycho 2: a Windows program for structuring clinical documentation in psychology. Computers in Human Behavior, 19; 383-89. Tavares, M. (2000). Registros, elaboração e laudo na Avaliação psicológica. Laboratório de Saúde Mental e Cultura. Instituto de Psicologia. Universidade de Brasília. Brasília: UnB. 532 Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia � Roque�Gui Vera�Lucia�Decnop�Coelho O Tempo do Sonho é um termo usado para descrever o período anterior à memória viva quando os Espíritos emergiram do interior da terra e a partir do céu para criar as formas e todas as coisas vivas. As histórias do Tempo do Sonho inspiram as leis para a ordem moral e social e estabelecem os padrões e costumes culturais.55 55 http://www.aboriginalartstores.com.au http://www.aboriginalartstores.com.au 533Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia Todo mundo sonha. Estamos diante de um fenômeno humano universal. Desde tempos imemoriais, os sonhos têm sido objeto de interesse dos seres humanos, preocupados em classificá-los, narrá-los e interpretá-los. No entanto, apesar de familiares, os sonhos sempre parecem estar um tanto além da nossa capacidade de compreendê-los. O misté- rio deste processo psíquico – o sonhar – e a estranheza de seu produto – o sonho – nos desconcerta. “Sonho” e “sonhar” são duas palavras que usamos rotineiramente e para as quais atribuímos diferentes significados, além daquela mais imediata que se refere ao fenômeno que habita nosso sono noturno.56 Temos uma atitude ambivalente em relação ao sonhar e aos sonhos, talvez porque essa atividade neurológica insólita que ocorre ao cérebro adormecido reveste-se de aspectos estranhos, muitas vezes bizarros, incompreensíveis. “Sonhar”, quando não se refere especificamente à atividade notívaga, adquire em nosso linguajar cotidiano o sentido de fantasia, imaginação evasiva à realidade, desejos utópicos e não realizáveis. Frequente- mente é desqualificado como algo ilusório, sem consequências práticas para o dia a dia, reduzindo-se à própria estranheza. Em muitas culturas, porém, os sonhos são considerados importantes fontes de in- formações sobre o futuro, sobre o mundo espiritual ou sobre a pessoa. Estudos antro- pológicos têm demonstrado que os sonhos conectam-se com o sistema cosmológico, teológico, médico, estético e filosófico das culturas nos quais eles ocorrem, além de referirem-se às concepções sobre individualidade e linguagem, às práticas individuais, terapêuticas e ritualísticas (Shamdasani, 2005). Certas culturas atribuem tal importân- cia aos sonhos a ponto de serem chamadas de “culturas oníricas”, designação dada por Alfred Kroeber [1876-1960], antropólogo cultural estadunidense, da Universidade de Berkeley (Kracke, s/d). 56 Este texto é baseado em Gui, R. T. (2010). Matriz do sonhar social: um dispositivo de intervenção em psicologia clínica. Tese de Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura, Universidade de Brasília. Orientadora: Vera Lúcia Decnop Coelho. 534 O sonho ocorre em um espaço subjetivo, diferente do espaço da vida vígil. O relacio- namento entre esses espaços têm sido problemática: as relações entre o imaginário e o real. Em certas culturas ambos os espaços são considerados reais, embora possam ou não se sobrepor. A partir da obra pioneira de Sigmund Freud (1859-1939), “A Interpre- tação dos Sonhos”, o sonho tem sido abordado, na cultura das sociedades industria- lizadas, segundo a perspectiva científica do conhecimento psicológico. A ênfase nos aspectos da dinâmica intra-subjetiva tem colocado em segundo plano aspectos da vida social refletidos nos sonhos e que agem sobre a subjetividade individual, aspectos que estudos recentes buscam resgatar para o âmbito das intervenções psicossociais (Gui, 2010; Lawrence, 1998, 2003, 2005, 2007; Neri, 2003). O presente texto discute as re- lações, muitas vezes difíceis, entre a psicologia, antropologia e sociologia, apontando a necessidade de um trabalho interdisciplinar sobre o sonho e o sonhar. Um�Olhar�Estrangeiro�sobre�o�Sonho�e�o�Sonhar Nos anos 1960, Roger Bastide (1898–1974), sociólogo e antropólogo francês, pergunta- va-se se a psicanálise poderia vir a “institucionalizar” o sonho, o que para ele significava atribuir um lugar e papel social ao sonhar. Com a secularização da cultura e a crescente importância atribuída à produção, à práxis, ao trabalho e à organização estratificada de classes, centros sociais de comunicação dos sonhos deixaram de existir. As socieda- des ocidentais contemporâneas, que valorizam a ação, a produtividade e os resultados, identificam-se com o fazer e desqualificam o sonhar, deixando-o entregue à pura subje- tividade ou à natureza. O sonho perdeu, então, uma existência objetiva, institucionali- zada e, deixando de ser mítico, passou a ocupar um espaço imaginário. Não sendo mais considerado sagrado pela maioria das pessoas, o sonho se tornou estranho a ponto de nos inspirar temor (Bastide, 2001). O autor conclui, então, que tanto entre nós como nas sociedades tradicionais o sonho se inscreve nos quadros sociais, com a diferença de que, no caso dos chamados “primiti- vos”, o etnólogo pode ler diretamente os sonhos graças às suas observações do mundo de vigília, posto que, dormindo ou acordado, o homem é sempre o mesmo e nunca se afasta de um mesmo mundo, assentado no mito. Nas sociedades contemporâneas, é exigido que o sociólogo pratique uma leitura invertida porque a estrutura sociológica, inscrita nas imagens oníricas, o faz de certa maneira na forma de figura em espelho, exigindo um 535Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia esforço para decifrar as estruturas sociais. Por outro lado, essa mesma sociedade, per- meável à lógica científica, nos traz, por meio dos estudos da psicologia profunda, noções científicas sobre o sonhar. “Interpretar sonhos” passa a ser uma tarefa especializada reservada a profissionais bem treinados, os psicanalistas e seus afins (Edgar, 1994). A abordagem científica dos sonhos, ela também, explicita sua sintonia com os valores produtivistas da sociedade capitalista industrial. Bastide (2001) considera que a concep- ção freudiana dos sonhos não escapa a essa perspectiva, ou seja, o sonho é visto como um dispositivo de segurança para o eu, que protege o sono, possibilitando a descarga das emoções reprimidas e zelando, por fim, pela continuidade funcional do eu. Omes- mo se aplicaria à visão de Adler, ainda segundo Bastide, pois nela o sonho é visto como um instrumento de reconstrução da personalidade, servindo ao processo adaptativo do indivíduo ao ambiente social. Para o sociólogo, os primitivos também concebem o so- nho como produtor. Porém, produtor de novas características culturais e não de um ser humano melhor adaptado. E o criador dos sonhos não é o homem que sonha, mas os Antepassados ou os Demiurgos. Saímos, assim, da civilização da produtividade para a civilização da criação contínua. Talvez as considerações de Carl Gustav Jung (1875-1961) estivessem mais ao gosto do sociólogo francês, embora não o saibamos, porque não há referências a respeito. Jung observou que certos povos ancestrais distinguem “grandes sonhos” e “pequenos sonhos”. Em linguagem contemporânea falar-se-ia de sonhos “significativos” e sonhos “banais” (Jung, 1928/1981, p. 298). Os “pequenos sonhos” são aqueles que se referem ao âmbito subjetivo pessoal e seu significado situa-se na esfera da vida pessoal do so- nhador. Promovem ajustes no equilíbrio psíquico, quase sempre passam desapercebi- dos e são esquecidos com facilidade. Ao longo de anos de análise de milhares de sonhos, Jung constatou o aparecimento de sonhos que continham motivos mitológicos, ou seja, uma combinação peculiar de ideias e imagens encontradas igualmente em mitologias de diferentes povos. Cogitava que esses sonhos detinham um caráter coletivo, indicando um sentido comum (incons- cientemente compartilhado, portanto) a toda a humanidade (Jung, 1934/1993, p. 148). Em seu contato com povos da África Oriental, Jung constatou que os chamados “gran- des sonhos” só podiam ser sonhados por pessoas notáveis, como por exemplo, feiticei- Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia Roque Gui Vera Lucia Decnop Coelho
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