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186 A psicanálise situa o sujeito em busca de suas redes de ligação entre seus sintomas e seus diversos sentidos. Assim, o sujeito implicado com o uso de drogas passa a ser considerado para além de seu sintoma como forma de abranger os seus reais sentidos. Tanto como sintoma quanto como funcionamento psíquico, o sujeito parece construir suas relações e suas aquisições pela via do alívio das tensões psíquicas e emocionais do dia-a-dia e da vida cotidiana. Cada sujeito vivencia o alívio psíquico de formas diferen- ciadas e com desdobramentos diversos. Há no aparelho psíquico, desde o início da vida, a construção de modelos24 de inúmeras formulações acerca da vivência de experiências emocionais e da capacidade de pensar os pensamentos. A abstração advém desses modelos, que tornam possível sua continui- dade, ou seja, o conteúdo desses modelos proporciona um somatório de experiências de ter suas necessidades atendidas pelo ambiente que caracteriza a abstração. A partir da forma como foram vivenciadas as experiências emocionais ao longo da vida, determina-se a capacidade de pensar e de utilizar os pensamentos como desenvolvi- mento de um aparelho capaz de tolerar frustração. O conceito de consciência de Freud (1911) como órgão sensível à percepção de atributos psíquicos fornece tal aparelho que ordena as percepções primordiais e suas constituições. Bion (1991) aponta que parte do aparelho psíquico primitivo se amolda para prover o aparelho como dispositivo indispensável por substituir a descarga motora e sugere ser o pensar algo que se impõe ao aparelho pelas exigências da realidade, tal como o predomí- nio do princípio do prazer proposto por Freud. A capacidade para pensar advém de um aparelho adaptado e apto a adaptar-se às tarefas próprias à satisfação dos requisitos da realidade. Institui-se por essa via o aprender com a experiência, que se liga à função que Freud atribui à atenção, quando afirma que de modo intermitente sonda o mundo exter- no com familiaridade, caso surja uma necessidade urgente. Bion (1991) complementa indicando serem esses os modelos utilizáveis para a satisfação urgente de necessidades internas ou externas e que trazem a reminiscência das experiências emocionais. 24 O modelo é a abstração da experiência emocional ou a concretização da abstração (Bion, 1991, p. 112). 187Do sujeito a lei, da lei ao sujeito: acolhimento psicossocial de usuários de drogas no contexto da Justiça O aprender com a experiência e a capacidade para pensar o pensamento fornecem meios para restringir a descarga motora, ou seja, não mais alivia o aparelho mental dos acréscimos de estímulos, mas agora altera adequadamente a realidade. Epistemologica- mente, Bion (1991) considera o pensamento anterior ao pensar e desenvolve o pensar como método ou aparelho para lidar com os pensamentos e seus desdobramentos. A re- sultante do pensar o pensamento institui a evacuação e o pensar. A evacuação soluciona o problema se a personalidade é dominada pelo impulso para fugir à frustração e, por pensar os objetos, se dominada pelo impulso de modificar a frustração. Nessa vertente, verificou-se que os colaboradores estão “segurando as pontas” ou estão sendo “segurados pelas pontas”, face à linha tênue que separa o sujeito de suas esco- lhas, os sofrimentos das conseqüências de suas escolhas num tecido costurado pela fragilidade das relações estabelecidas com as drogas. Tais experiências incorporam-se à história de vida dos colaboradores que a situam como aprendizado para ser utilizado posteriormente. Ou seja, quando parece ser possível para os colaboradores se apropriarem de suas vivências, torna-se igualmente possível utilizá- -las quando entenderem necessário ao longo da vida. Pelo que se observou, os colabora- dores inseriram o revelar dessas experiências em suas subjetividades. De todo modo, o Acolhimento Psicossocial se revelou como um ambiente capaz não só de sustentar os colaboradores, mas também de situá-los em suas experiências de envol- vimento com a Justiça em diversos aspectos. E tornou possível também o desvendar o movimento do sujeito entre os altos e baixos da vida. Conclusões O Acolhimento Psicossocial passou a ser revelador dos desdobramentos do envolvi- mento com a Justiça por uso de drogas para cada colaborador, acionando neles diferen- tes formas de relatar e lidar com essa situação, e apropriar-se dela como experiência no curso de suas vidas. A dimensão das experiências subjetivas vivenciadas entre o sujeito com ele mesmo não está estanque e se desenvolve pelo diálogo nessa dimensão, constituindo um processo relacional na busca do sujeito pela Lei, como instauradora e constitutiva do mesmo, 188 psíquica e emocionalmente, bem como na busca da Lei pelo Sujeito, como instauração de sua constituição. Considerou-se o Acolhimento Psicossocial propiciador de condições favoráveis à ex- pressão dos colaboradores sobre suas experiências de envolvimento com a Justiça por uso de drogas, bem como revelador do idioma pessoal dos mesmos. Favorecer a expres- são de suas singularidades reporta-nos à Safra (2005) quando se refere que falar sobre qualquer fenômeno impõe a possibilidade de nomear as diferentes experiências e fazer relações entre elas. Era o que foi proposto, no momento em que foi oportunizado espaço para palavras, isto é, o apropriar-se das mesmas e poder utilizá-las como aprendizado a partir das experiências. Sugere-se, com o presente estudo, que o Acolhimento Psicossocial tenha funcionado como um aparelho para ajudar a pensar os pensamentos e proporcionar o aprender com as experiências. Considerou-se que o envolvimento com a Justiça, representou para os colaboradores, a modulação de um aparelho para pensar os pensamentos, exercendo a reformulação de um aparelho para pensar os pensamentos, como propõe Bion (1991). Verificou-se que o acolhimento, inserido na Intervenção Psicossocial nestes moldes, convoca os colaboradores a refletirem e a pensarem sobre seus atos e a conferirem a eles pensamentos e, conseqüentemente, aprendizados a partir da experiência. Tocou-se, por essa via, na vertente clínica, que convoca os colaboradores como sujeitos constituídos e constituidores de sua própria história. Neste sentido, Rey (2003) aponta a psicanálise como a inauguradora da psicologia na vertente clínica, tendo em vista bus- car enfrentar os problemas derivados da prática clínica. No contexto da Justiça, percebemos que o Acolhimento Psicossocial funcionou ainda como o elo de ligação entre os colaboradores e o cumprimento da medida de pena al- ternativa, pelo fato de esse funcionamento apresentar-se como aparelho para pensar os pensamentos e proporcionar o aprender com as experiências. A vertente clínica fez-se presente, neste entendimento, pois convocou o sujeito como constituído e constituidor de sua própria história. Não se trata de defender a clínica como método para Intervenções Psicossociais, mas destacar a importância de um Acolhimento neste contexto que favoreça a auto-reflexão 189Do sujeito a lei, da lei ao sujeito: acolhimento psicossocial de usuários de drogas no contexto da Justiça e o sentimento de receber crédito da Justiça por meio de um lugar ofertado de existên- cia e de palavra, devolvendo aos ‘processados’ a autoria de suas histórias. Para justificar estes pensamentos, recorreu-se a Lavenu (1985), psicológica de presidiários na França, conforme citada por Sudbrack (1992): Privar o ato do sentido (em nível das inscrições inconscientes) do qual ele tenta fugir, é deixar o criminosa em seu status de Ator e, portanto, encorajar a repetição. O processo, a história inscrita no seu dossiê judiciário tornar-se-á uma autobiografia escrita pelas palavras dos outros. O anti-heroí poderá permanecer ator de sua vida. Mas aquele que assumindo seu crime terá podido colocá-lo em palavras e inscrever sua história em uma aventura terapêutica, teráuma chance de tornar-se AUTOR de seu ato e, talvez, de seu destino”. Constatou-se que o acima mencionado coaduna como nossa perspectiva teórica e meto- dológica, tendo em vista trazer à tona o sujeito para além de seus atos e envolvimentos judiciais. Dessa forma, este estudo foi firmado também no cenário clínico da intervenção psi- cossociológica, pois a prática da psicossociologia, como nos mostra Machado (2001), transforma-se na análise clínica do discurso, dando ênfase à história relatada e real dos sujeitos, dos grupos, das organizações e da coletividade. A análise social de documentos e entrevistas compõe a pesquisa qualitativa, podendo ser utilizada na busca do senti- do e das significações, além de produzir novas realidades em diferentes contextos. A Intervenção Psicossocial é condizente com a prática da psicossociologia, uma vez que remonta à complexa relação entre o sujeito e o social. Lévy (1995), citado por Machado (2001), sinaliza que o discurso desvela a realidade so- cial com seus conflitos. Ou seja, os atos de linguagem que remodelam e interpretam o discurso interferem na realidade individual e social dos sujeitos simultaneamente. Verificou-se que os colaboradores utilizaram a Justiça como a via possível e passível de proporcionar reflexões acerca de suas posturas pessoais e sociais. Infere-se que, quando os colaboradores vivenciaram esse envolvimento como um crédito da Justiça, encontra- ram respaldo para se apropriarem de suas experiências no curso de suas vidas. Neste sentido, conferiu-se a isso um patamar de possibilidades para pensar e aprender com a experiência pela via do crédito da Justiça. 190 Por outro lado, quando não há esse crédito, tanto na Justiça como nas relações pessoais e afetivas dos colaboradores, constatamos rupturas no percurso de vida psíquica e emo- cional, retratados pelas expressões sobre descrédito, preconceito, banalização, fragilida- des nas relações sociais, afetivas, uso de drogas. O Acolhimento Psicossocial se revelou, nesta pesquisa, acolhedor dessas rupturas, opor- tunizando um espaço para pensar os pensamentos, transformando-os em aprendizado frente às adversidades da vida. Notamos suas possibilidades pelas palavras e expressões dos colaboradores, que tornaram possível o revelar do idioma pessoal singular de cada um. Podemos pensar que para muitos colaboradores, o Sujeito busca a Lei pelo envolvimen- to com a Justiça como uma possibilidade encontrada inconscientemente para ressigni- ficar a lei interna e reguladora de suas relações com o mundo. Da mesma forma, a Lei representa o limite organizador para o Sujeito e o remete a si mesmo, impondo sua pre- sença simbólica e ordenadora. Constatou-se, um movimento contínuo e ininterrupto do Sujeito à Lei e da Lei ao Sujeito, caracterizado no compasso da vida interna e externa, inquieta e dinâmica. O uso de drogas perfaz a via utilizada pelos colaboradores para lidar com a vida interna e externa e, por incrível que pareça, consiste justamente no instaurador do compareci- mento à Justiça. Inferiu-se, dessa forma, a droga como a via rumo à Lei e à Justiça como uma busca de continência para sentimentos adversos vivenciados pelos sujeitos, pesso- al e socialmente. Talvez por esse motivo, o Acolhimento tenha marcado sua diferença sustentadora na Intervenção Psicossocial como uma condição ofertada e aproximada das necessidades dos colaboradores. Referências� Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago. Bion, W. R. (2004). Transformações: do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro: Imago.
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