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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Departamento de Psicologia RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA Alessandra de Andrade Sampaio Natal 2006 2 SAMPAIO, Alessandra de Andrade RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA Relatório elaborado sob a orientação da Prof. Doriana Setúbal correspondente ao Estágio Curricular Obrigatório em Psicologia Clínica e apresentado à Coordenação do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Psicólogo. Natal 2006 3 RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA RESUMO O presente relatório trata da prática do estágio curricular em Psicologia Clínica tomando-se por base a Abordagem Fenomenológico-Existencial e o uso de recursos da Gestalt-terapia e da Ludoterapia Não-Diretiva. Relata a caracterização e as vivências comuns ao grupo de estágio do qual fui integrante, além das opiniões oriundas de vários momentos de troca e discussões a respeito das experiências vividas − em consonância com os princípios teóricos que fundamentam o trabalho. Contém ainda o registro dos aspectos mais singulares da minha vivência. Na primeira parte do relatório, portanto, são encontradas informações gerais: (a) caracterização do campo de estágio; (b) objetivos (geral e específicos); (c) justificativa; (d) plano de estágio; (e) atividades desenvolvidas no estágio e, por fim, (f) um passeio na orientação teórica que embasa o trabalho. Em seguida, são encontrados os relatos dos atendimentos que realizei ao longo do estágio, além do estudo de um dos casos atendidos. Ao final do relatório estão presentes algumas considerações a respeito da experiência de estágio e as referências bibliográficas. Palavras-chave: Estágio; Psicologia Clínica; Abordagem Fenomenológico-Existencial; 4 Agradecimentos Ao meu grupo de companheiros de estágio − e eternos amigos − que compartilharam comigo as alegrias e dificuldades do trabalho clínico e me ajudaram na redação deste relatório: Ana Paula Araújo, Cibelle Bandeira, Felipe Serquiz, Mariana Mendonça, Melina Séfora, Sheila Rêgo e Thiago Félix. A todos vocês, minha eterna gratidão. 5 Sumário Resumo...................................................................................................................... 1. Introdução.............................................................................................................. 03 06 2. Caracterização do Campo de Estágio.................................................................... 08 3. Objetivos do Estágio em Psicologia Clínica......................................................... 10 3.1. Objetivo Geral................................................................................................. 10 3.2. Objetivos Específicos...................................................................................... 10 4. Justificativa............................................................................................................ 11 5. Plano de Estágio.................................................................................................... 12 5.1. Identificação.................................................................................................... 12 5.2. Área(s) de Conhecimento Envolvida(s) no Estágio........................................ 12 5.3. Atividades a Serem Desenvolvidas pelo Estagiário........................................ 13 5.3.1. Individual.............................................................................................. 13 5.3.2. Em Grupo.............................................................................................. 13 5.4. Programação.................................................................................................... 14 5.5. Modificações no Plano de Estágio.................................................................. 14 6. Atividades Realizadas........................................................................................... 16 6.1. Atendimento de Triagem................................................................................. 16 6.2. Registro das Sessões........................................................................................ 18 6.3. Leitura de Textos............................................................................................. 19 6.4. Atendimento em Psicoterapia.......................................................................... 19 6.4.1. Atendimento com Criança – Ludoterapia.............................................. 20 6.4.2. Atendimento com Adolescente.............................................................. 21 6.4.3. Atendimento com Adulto....................................................................... 21 6.5. Supervisão do Estágio..................................................................................... 23 6.6. Produção de Um Livro com Depoimentos...................................................... 25 7. Fundamentação Teórica........................................................................................ 26 7.1. Fenomenologia................................................................................................ 26 7.2. Existencialismo............................................................................................... 32 7.3. Humanismo..................................................................................................... 34 7.4. Psicoterapia na Abordagem Fenomenológico-Existencial.............................. 35 7.5. Gestalt-Terapia................................................................................................ 39 7.5.1. Psicologia da Gestalt.............................................................................. 40 7.5.2. A Gestalt-Terapia e suas Influências...................................................... 49 7.6. Ludoterapia...................................................................................................... 60 8. Relato dos Atendimentos e Casuística.................................................................. 66 9. Desenrolar das Atividades e Desafios Enfrentados .............................................. 82 10. Considerações .................................................................................................... 87 11. Considerações Finais ......................................................................................... 89 12. Sugestões............................................................................................................. 92 13. Referências Bibliográficas.................................................................................. 93 6 1. INTRODUÇÃO O quinto e último ano da graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) é marcado pela realização do estágio curricular obrigatório para a obtenção do grau de psicólogo. Nesse momento, os alunos se dividem em subgrupos de supervisão de acordo com a definição da área e da abordagem teórica do estágio. Atualmente a instituição oferece estágio nas seguintes áreas: Psicologia Clínica, Psicologia Hospitalar, Psicologia Escolar, Psicologia Organizacional, Psicologia Social e Psicologia Comunitária. Na área da Psicologia Clínica, dispõe de supervisores que atuam embasados em quatro abordagens teóricas: Psicanálise, Fenomenológico-existencial, Cognitivo-comportamental e Transpessoal. Desse modo, passei a integrar um grupo de oito estagiários que escolheram atuar na área da Psicologia Clínica, fundamentados na Abordagem Fenomenológico- Existencial com ênfase na Gestal-terapia.O presente relatório tem o objetivo de retratar a minha trajetória durante o estágio. Relato a caracterização e as vivências comuns ao grupo de estágio, além das opiniões oriundas de vários momentos de troca e discussões a respeito das experiências vividas. E, individualmente, registro os aspectos mais singulares da minha vivência. Na primeira parte do relatório, portanto, são encontradas informações gerais: caracterização do campo de estágio; objetivos (geral e específicos); justificativa; plano de estágio; atividades desenvolvidas no estágio e, por fim, um passeio na orientação teórica que fundamenta o trabalho. Em seguida, apresento os relatos dos atendimentos que realizei ao longo do estágio, além do estudo de um dos casos atendidos. 7 Ao final do relatório estão presentes algumas considerações a respeito da experiência de estágio e as referências bibliográficas. 8 2. CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO DE ESTÁGIO O Serviço de Psicologia Aplicada (SEPA) foi criado em 1965, dez anos antes da implantação do curso de Psicologia da UFRN. No início esteve vinculado administrativamente à Reitoria da Universidade, sendo posteriormente, transferido para o Centro de Ciência Humanas, Letras e Artes (CCHLA), órgão que assumiu a responsabilidade burocrática e administrativa do SEPA. No início de suas atividades, o SEPA possuía o referencial clínico-psicométrico como base predominante de seus atendimentos. Atualmente a instituição possui o caráter de clínica-escola, atuando como campo de aulas práticas e estágios supervisionados. O SEPA possui como objetivos e diretrizes de trabalho: • Prestar serviços psicológicos à comunidade, sob forma de atendimentos em Psicologia Clínica e Psicopedagogia; • Servir de estabelecimento para a prática de estágio supervisionado e/ou atividades práticas para os alunos do curso de Psicologia da UFRN, e; • Desenvolver atividades voltadas para a extensão universitária (cursos e projetos). No que se refere à estrutura administrativa, a instituição é composta por técnicos (psicólogos e psicopedagogos), contando também com servidores na secretaria, recepção e serviços gerais. Contém 02 salas de ludoterapia, 02 salas de psicopedagogia, 05 salas de atendimento individual para psicoterapias com adolescentes e/ou adultos, 02 salas de supervisão, 01 sala de reunião, 01 sala de dinâmica de grupo, 02 salas de psicodiagnóstico, 02 salas de aula, 01 sala de triagem, 01 sala de estagiários, 01 sala de técnicos, 01 almoxarifado, 01 sala de direção, 01 sala de secretaria, 01 sala de arquivo, 9 02 banheiros para funcionários, 01 copa, 02 banheiros para a clientela, 01 sala de consultoria, 01 sala de espera e 01 sala de recepção. Atualmente o Serviço de Psicologia Aplicada (SEPA) oferece os serviços de psicoterapia individual (para crianças, adolescentes e adultos), psicodiagnóstico, psicopedagogia, triagem, consultoria organizacional, orientação profissional e psicoterapia de grupo. Ressalto, contudo, que minha experiência de estágio abarcou apenas as atividades de triagem e psicoterapia individual (nas três modalidades). 10 3. OBJETIVOS DO ESTÁGIO EM PSICOLOGIA CLÍNICA 3.1. Objetivo Geral: Propiciar a vivência da prática da Psicologia Clínica fundamentada pela orientação teórica Fenomenológico-Existencial, fazendo uso de recursos da Gestalt- terapia, de modo a aplicar e ampliar os conhecimentos adquiridos durante nossa formação teórica. Sua prática está direcionada ao atendimento psicológico no SEPA à população que não dispõe de condições financeiras de investir em um tratamento psicológico em clínicas particulares. 3.2. Objetivos Específicos: • Possibilitar o exercício de uma escuta e intervenção clínicas a partir da compreensão da relação entre terapeuta e cliente como um encontro existencial; • Aprofundar a compreensão dos pressupostos teórico-filosóficos do Humanismo, Existencialismo e Fenomenologia por meio da experiência clínica supervisionada; • Aprofundar os conhecimentos teórico-práticos da Gestalt-terapia; • Amparar as primeiras experiências profissionais por meio da supervisão que facilite a compreensão dos fenômenos emergentes nessa experiência; • Utilizar os momentos de supervisão em grupo para compartilhar experiências individuais do estágio ajudando a compreendê-las. 11 4. JUSTIFICATIVA A realização do estágio no último ano do curso de Psicologia (nono e décimo períodos) justifica-se pelo atendimento às exigências curriculares da formação do psicólogo. Dessa forma, faz-se necessária a experiência do estágio supervisionado como condição para o reconhecimento do profissional psicólogo. O estágio tem sua importância justificada também por se caracterizar como um momento fundamental na interface da formação e da atuação profissional do psicólogo, uma vez que oferece suporte a vivência e compreensão destas primeiras experiências profissionais por meio das supervisões. A escolha por esse estágio dentre as outras modalidades de estágio oferecidas se deve ao grande interesse que a área clínica − e mais especificamente a Abordagem Fenomenológico-Existencial − desperta em mim. Ao longo dos quatro anos de curso que antecederam o estágio, pude conhecer um pouco cada uma das principais abordagens psicológicas (Psicanálise, Cognitivo-Comportamental, Transpessoal e Fenomenológico-Existencial) e perceber que me identificava, enquanto estudante de Psicologia e enquanto pessoa, mais com esta última do que com as demais. 12 5. PLANO DE ESTÁGIO O plano de estágio é um documento elaborado pelo aluno no início do ano que tem como finalidade descrever, de maneira sucinta, como este pretende desenvolver seu processo de estágio supervisionado. Constam nesse documento dados de identificação do estagiário, as áreas de conhecimento que o aluno pretende ter contato, as atividades a serem desenvolvidas (individual e em grupo), assim como um cronograma inicial que organiza e orienta o desenvolvimento das atividades. 5.1 Identificação: Nome: Alessandra de Andrade Sampaio Disciplina: Estágio Supervisionado I e II; PSI 800 e PSI 801 Supervisora: Doriana Silva de Souza Feitosa Setúbal Formação Profissional: Psicologia Clínica Número de Créditos: 12 Período: Nono e Décimo Local: SEPA (Serviço de Psicologia Aplicada)/UFRN 5.2 Área(s) de Conhecimento Envolvida(s) no Estágio: • Psicologia Clínica; • Abordagem Fenomenológico-Existencial; • Gestal-terapia; • Ludoterapia; • Psicologia do Desenvolvimento; 13 • Psicopatologia; • Teorias de Grupo; • Ética Profissional; • Psicossomática; • Sexualidade; • Drogadição. 5.3 Atividades a serem desenvolvidas pelo (a) Estagiário (a): 5.3.1 Individual: • Realização de uma triagem por semana; • Preenchimento de fichas com os principais dados clínicos da triagem; • Realização de três atendimentos (criança, adolescente, adulto) semanais; • Orientação aos pais e/ou responsáveis; • Relato escrito das sessões. 5.3.2 Grupal: • Leitura de textos de acordo com a demanda dos casos; • Vivências em grupo; • Reunião em grupo para avaliação e auto-avaliação; • Supervisão para encaminhamento dos casos de triagem; • Supervisão para acompanhamento dos casos em atendimento; • Elaboração do relatório final de estágio; 14 5.4 Programação: O estágio será realizado entre março e dezembro de 2006. Ao final desse período, é esperado que cada estagiário tenha cumprido as 540 horas previstas na grade curricular do curso. Semanalmente, o aluno disponibilizará 20 horas que serão distribuídas entre supervisão (6h semanais), triagem e atendimentos individuais e/ou grupais. Cada estagiário ficará responsável de acompanhar, no mínimo, 3 clientes em atendimento de psicoterapia individual e/ou ludoterapia. Existirá ainda a possibilidade de realizar psicoterapiaem grupo. As sessões ocorrerão de acordo com a disponibilidade de horário dos clientes e dos estagiários, respeitando as peculiaridades de cada caso. 5.5 Modificações no Plano de Estágio O plano de estágio, como já citado, é elaborado no início do ano, ou seja, antes do aluno iniciar de fato a prática. Dessa forma, está sujeito a alterações no transcorrer desse período. Essas alterações dependem da disponibilidade do aluno para cumprir exatamente o que propôs, assim como da configuração das demandas que a eles se apresentam. Diante disso, foi observado que na prática o número de clientes sugeridos no plano de estágio funcionou como uma referência inicial, uma vez que esse número variou de acordo com a disponibilidade e interesse de cada estagiário. Da mesma forma, a faixa etária dos clientes (criança, adolescente e adulto) também sofreu alterações, onde alguns estagiários atenderam somente crianças, por exemplo. A opção pelo atendimento individual e/ou em grupo também ficou a critério de cada um. 15 A minha experiência de estágio contemplou atendimento individual nas três modalidades (infantil, adolescente e adulto), no entanto não embarcou atendimento em grupo. 16 6. ATIVIDADES REALIZADAS 6.1. Atendimento de Triagem O serviço de triagem tem como objetivo promover a seleção da clientela e análise da demanda apresentada por essa em conformidade com os serviços oferecidos e os critérios da instituição1, por meio de uma escuta inicial. A permanência do cliente no SEPA, após a triagem, dependerá de sua adequação ao critério da renda mínima (1 a 5 salários mínimos), da disponibilidade de vagas, da existência do atendimento indicado e das implicações clínicas do caso. O setor de triagem é responsável pelo levantamento estatístico, bem como pelo controle de fluxograma de atendimentos e encaminhamentos. Os horários de triagem obedecem a uma escala da qual fazem parte os técnicos, os estagiários e os estudantes do oitavo período. Os responsáveis pela triagem possuem horários fixos semanais nos quais devem permanecer na instituição. Durante a triagem, além da escuta da queixa, são coletados do cliente seus dados de identificação, renda familiar e disponibilidade de tempo por meio do preenchimento de uma ficha. Após isso, o psicólogo, mediante a abordagem utilizada, poderá esclarecer a demanda do cliente e qual tipo de tratamento mais adequado, fazer a orientação terapêutica e encaminhá-lo quando necessário. No que diz respeito ao processo de triagem com criança, inicialmente é realizada uma entrevista com os pais e/ou responsáveis com a finalidade de compreender o que motivou a busca pelo serviço. Em seguida (outro dia), realiza-se a “hora do jogo” com a criança onde ela pode se expressar mais genuinamente no brincar, uma vez que esse 1 Informações retiradas do Manual do Estagiário do SEPA. 17 momento acontece na sala de ludoterapia. Por fim, acontece um novo encontro com os pais e/ou responsáveis, procedendo-se ao devido encaminhamento. Quanto ao adolescente, de início a escuta é realizada preferencialmente com este, e em seguida, com os pais e/ou responsáveis. A entrevista de devolução ocorre com ambas as partes, em momentos diferentes e individualizados. O atendimento de triagem descrito faz parte do Manual do Estagiário do SEPA, portanto, refere-se a uma atividade padrão básica que os estagiários devem seguir com vistas a cumprir os objetivos práticos da instituição. No entanto, o atendimento de triagem pode ir além desses objetivos, de acordo com as especificidades de cada abordagem. Baseado na Abordagem Fenomenológico-Existencial, o trabalho de triagem adotado pelo meu grupo de estágio partiu do pressuposto que o momento da triagem deve ser marcado por uma escuta verdadeira, por um encontro existencial, para que o outro que nos chega se sinta verdadeiramente ouvido e acolhido. Acreditamos que desse encontro genuíno pode surgir uma nova forma de olhar, uma nova maneira de enxergar as situações. Giovanetti (1989) reserva o termo encontro "para uma situação onde o outro (aquele com o qual entro em relação) afeta, de alguma maneira, o curso de minha existência, principalmente na dimensão em que ele (o outro) me faz crescer”. É desse encontro, portanto, que estamos tratando. Trata-se de um movimento inicial que funciona como uma “preparação” do indivíduo para que o mesmo dê início a uma longa jornada (psicoterapia) que pode ou não vir a se efetivar, dependendo − dentre outras coisas − da natureza desse encontro primeiro. Daí a importância de que o terapeuta propicie um clima de muita autenticidade, respeito e cuidado nesse instante. 18 Se recorrermos aos objetivos formais2 de uma triagem, veremos que as finalidades desta entrevista podem ser alcançadas sem que se passe necessariamente por esse encontro existencial. Mas se levarmos em conta que o movimento de “pedir ajuda” que se dá por parte do cliente já se iniciou, e que nesse movimento cada passo tem seu valor, não podemos desconsiderar o peso desse encontro e, portanto, a relevância de que haja uma abertura − pelo menos por parte do psicólogo que está realizando a triagem − para essa verdadeira escuta. A triagem, portanto, deve − assim como todo encontro que se pretenda pessoal − ser uma busca permanente de uma relação interpessoal que inclui a afirmação do outro como pessoa, o reconhecimento que profissional e cliente são o mesmo tipo de ser. E esse encontro, apesar de não se caracterizar como psicoterapia, é por si só terapêutico. 6.2. Registro das Sessões O registro das sessões foi realizado por meio de relatos escritos fidedignos (o máximo possível) aos encontros com os clientes, tentando reproduzir diálogos, silêncios, impressões e sentimentos. O relato preciso tinha objetivo de facilitar a compreensão do desenvolvimento da sessão, observando aspectos que tendem a escapar do olhar primeiro do terapeuta. Redigir as sessões permite lançar um novo olhar sobre o atendimento, o fenômeno do ser do cliente e a relação dialética estabelecida. Disponibilizar o relato à leitura da supervisora e dos demais estagiários, permite que eles tenham uma compreensão mais fidedigna do que aconteceu na sessão 2 Retirados do Manual do Estagiário do SEPA e já citados mais acima. 19 (inclusive fatos que podem ter escapado ao olhar do terapeuta), reunindo condições de realizar uma orientação adequada que viabilize o acompanhamento do caso. 6.3. Leitura de Textos Inicialmente, foi oferecida uma bibliografia básica pela orientadora de estágio. Ao longo do estágio, foram indicados textos específicos para as demandas de cada aluno relacionadas às suas práticas. 6.4. Atendimento em Psicoterapia O atendimento psicoterápico na abordagem da Gestalt-terapia está fundamentado num único arcabouço teórico-prático; porém, como o próprio Perls assentiu, a Gestalt- Terapia não tem pretensões de se firmar como uma teoria acabada com definições inquestionáveis, podendo estar se adequando responsavelmente às aplicações diversas quando se fizer necessário. É pensando nesses termos que se tornou extremamente relevante, notificar as diferentes experiências de atendimento relacionadas, principalmente, a diversidade de idade dos sujeitos que procuravam a instituição durante o período de estágio. Compreende-se assim que a contextualização do cliente no setting pode aferir demandas específicas no manuseio da abordagem, imprimindo no processo terapêutico necessidades especiais que devem ser contempladas minimamente pelo psicoterapeuta em atuação para efetivar o processo de uma forma compatível com as possibilidades do cliente. 20 6.4.1. Atendimento com Criança – Ludoterapia O atendimento infantil caracteriza-se, geralmente,por uma iniciativa dos pais pela procura do psicólogo ou pelo encaminhamento da escola ou instituição. Num primeiro momento, é realizada uma entrevista inicial com os pais, a fim de ouvir a queixa que eles trazem a respeito da criança. Em seguida é realizada a entrevista de anamnese, uma forma de coletar dados sobre o desenvolvimento da criança desde o período pré-natal, observando aspectos como sociabilidade, ambiente familiar, escolaridade, história médica da criança, sexualidade, entre outros. Esses dados possibilitarão ao psicoterapeuta compreender melhor a criança e estabelecer relações com a queixa e o que é observado na criança durante as sessões na sala de ludoterapia. No primeiro encontro com a criança, pode ser realizada uma entrevista verbal, que tem como finalidade estabelecer o rapport, ter um primeiro contato com a criança e possibilitar a expressão de seus sentimentos verbalmente através de uma conversa sobre alguns temas da sua vida. Os próximos encontros com a criança vão acontecer na sala de ludoterapia, em geral com sessões semanais de 50 minutos. Os encontros com os pais terão como finalidade obter mais dados sobre a criança e dar uma orientação que lhes permita entender o que se passa com seu filho e promover mudanças no ambiente familiar. Estes encontros podem se dar uma vez por mês, variando de acordo com a necessidade do terapeuta, dos pais ou da criança. 21 6.4.2. Atendimento com Adolescente O atendimento com adolescentes pode demandar do psicoterapeuta maior atenção às características psicológicas gerais dessa “fase”. É mais freqüente, por exemplo, uma certa instabilidade nas questões que o trazem até a psicoterapia; sendo relativamente comum: a inconstância do foco, do discurso e das atitudes perante o processo em questão. É devido a fatores como esses que é importante prolongar os contatos iniciais, de forma a estabelecer na relação psicoterapeuta-cliente, além da confiança e abertura necessária - rapport, um momento a mais para a satisfação da insegurança característica dessa fase e dúvidas que estão implicadas notadamente nestes discursos. O adolescente pode encontrar dificuldades para se fazer entender caso o psicoterapeuta não esteja atento para seus padrões de comunicação. Sendo fundamental que o profissional esteja minimamente integrado às conjecturas de sua linguagem (sejam elas, gírias, culturas urbanas, músicas, estilos, etc.), entendendo-as em sua forma genuína de expressão. É nesse sentido que muitas das vezes os adolescentes encontram as melhores possibilidades para expressar seus sentimentos e se encontrar com o próprio processo. 6.4.3. Atendimento com Adulto O atendimento com adultos pode ser destacado como um padrão já construído na complexidade da teoria. Inicialmente, nos primeiros encontros, é importante que, na relação, possam ser esclarecidas as demandas trazidas pelo cliente; clarificando a queixa inicial, o contrato psicológico, aprofundando as nuances da relação e sanando as dúvidas que acompanham o início do processo. 22 O contrato terapêutico (ou psicológico) verbal em que são acordados os horários das sessões, as faltas, os honorários, o sigilo das informações e a responsabilização conseqüente ao não seguimento do contrato norteiam o processo desde seu primeiro dia e podem, assim, dar segurança ao cliente quanto às possibilidades ali implicadas, uma vez que já são conhecidas. Durante as sessões, a relação cliente-terapeuta está sempre em foco. É incentivada a ênfase no aqui-agora da sessão – o que emerge no (do) contato como proeminência subjetiva –, seus sentimentos, sua forma de atuação no mundo. Também é possível se fazer experimentos ou propor tarefas-de-casa como forma de vivenciar mais diretamente esses aspectos. É dessa forma que se busca ampliar as percepções – alienadas ou não – dos clientes sobre si mesmos ou sobre o mundo que está em relação com ele, frustrando-o habilidosamente, trazendo-o para sua própria emoção, presentificando-se os sentimentos, almejando sempre a sinceridade do contato. Procura-se conhecer (e compreender) como o cliente atua no mundo com toda sua potencialidade e susceptibilidade, ao invés de tentar compreender as origens de tais atuações – porquê(s). Assim, abre-se uma nova perspectiva para a importância da responsabilização do cliente sobre o processo, mas também indo além: seu próprio presente, sua própria construção histórica. A última etapa do processo psicoterapêutico consiste na alta do cliente. Esse momento deve vislumbrar a queixa trazida com seus respectivos avanços na conformação da mesma. Há uma reestruturação na sua forma de estar no mundo, seu modo de vida e uma revisão de seus ideais, permitindo o cliente superar as suas dificuldades, de forma que esteja apto a construir maneiras saudáveis de conviver e expressar o seu ser. 23 6.5. Supervisão do Estágio A supervisão desse estágio foi realizada em grupo e conduzida pela professora e orientadora deste relatório. Seus objetivos consistiram em propiciar o espaço para: a) o relato e discussão dos casos atendidos; b) a conseqüente reflexão grupal acerca dos questionamentos e dificuldades encontrados no decorrer desses atendimentos; c) o fornecimento do suporte teórico condizente com essas questões e com as intervenções a serem realizadas em cada contexto; d) a reflexão acerca de nossa formação em psicologia clínica. Realizamos encontros de cerca de 4 horas de duração duas vezes por semana nas salas de aula e de dinâmica de grupo do SEPA. Os encontros, em geral, não tinham formato pré-estabelecido. Inicialmente, fizemos um levantamento das expectativas e dos sentimentos de cada um no início do estágio, além de discutirmos informações técnicas a respeito da psicologia clínica e do SEPA. As primeiras orientações estiveram voltadas para os atendimentos de triagem. O relato do atendimento era seguido da discussão da escuta clínica que o estagiário relator e o restante do grupo realizaram do caso e do encaminhamento que poderia ou deveria ser realizado. Dessa forma, buscamos e discutimos juntos informações sobre diversos modelos e instituições de atuação da psicologia e de áreas relacionadas como enfermarias de saúde mental, hospitais psiquiátricos, serviços de psicopedagogia, centros de atenção a alcoólicos, clínicas privadas de psicologia, etc. À medida que os atendimentos em psicoterapia foram sendo iniciados, as discussões mudaram de direção, os questionamentos emergiam agora do contato mais profundo com os clientes em psicoterapia. Eram solicitados o olhar do grupo sobre a relação estabelecida entre cliente e terapeuta e a escuta da queixa e, posteriormente, da 24 demanda de cada cliente, assim como da expressão do ser de cada uma dessas pessoas que procuraram atendimento psicológico. Constantemente estivemos sendo convidados a apurar a escuta dos relatos e fornecer aos colegas feedbacks oriundos do que escutamos e do que sentimos na intenção de ajudá-los na compreensão mais aprofundada do caso. Os questionamentos emergentes conduziam a supervisora a incitar discussões teóricas. Dessa forma, diante de dúvida a respeito de um aspecto do atendimento, eram introduzidos ou resgatados o aporte teórico condizente com a questão e recursos técnicos que permitissem um maior contato com a situação conflitante e com as possibilidades de resolução, tais como vivências, dinâmicas de grupo e demais experimentos ancorados especialmente na teoria da Gestalt-terapia. Nesse sentido, a condução de discussões constituiu, ao fim do percurso, um arcabouço teórico e técnico abrangente e diversificado, uma vez que contemplou os principais temas do campo da Psicologia Clínica, da Abordagem Fenomenológico-Existencial e da Gestalt-terapia, que, não por acaso, partiram das questões que nos inquietaram enquanto estagiários. Asdiscussões foram acompanhadas de leituras igualmente direcionadas a necessidades específicas de conhecimento ou reflexão. Em determinados momentos, o foco da supervisão passava a ser a forma como um de nós ou todos se sentiam diante de determinada situação do estágio. Nesse espaço eram evidenciados, discutidos e amparados sentimentos de empolgação, medo, angústia, raiva, etc. A preocupação com os conflitos que acompanham o desenvolvimento do ser psicoterapeuta de cada estagiário foi confessada por nossa supervisora repetidas vezes desde o início do estágio e a levou a se manter atenta aos momentos em que um de nós demonstrava estar em conflito com algum aspecto de seu relato, o que possibilitou a 25 expressão e o trabalho com tais questões a partir de recursos didáticos e até psicoterápicos. Finalmente, é importante citar as atividades de auto-avaliação no exercício profissional no SEPA, na formação, no contato com os clientes e na participação no grupo de estagiários, fundamentais para a auto-percepção e a orientação de mudanças no decorrer do percurso. 6.6. Produção de um livro com depoimentos Em meio às discussões acerca do estágio e da riqueza de questões que emergiam em sua realização – questões que parecem se repetir no exercício profissional – compartilhamos (eu, meus colegas de estágio e nossa supervisora) a intenção de dividir as reflexões e processos individuais que vivenciamos com outros alunos do curso de psicologia, com profissionais da área e até com leigos que se aventurem a tentar compreender a experiência de se formar psicoterapeuta. Decidimos, então, escrever o depoimento de nossa experiência no estágio. Em conjunto, identificamos os aspectos que se destacaram na vivência de cada estagiário visando construir uma listagem de diversos temas e repetindo, em diferentes versões, a questão central dessa formação: o modo de cada um se tornar psicoterapeuta. Os capítulos do livro foram escritos individualmente e, em seguida, discutidos e revisados. No momento, ainda se encontra em fase de elaboração. Temos o objetivo de publicá-lo posteriormente e divulgar nosso trajeto de reflexões e (des)construções ao fim da formação em psicólogos. 26 7. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA “Não há normas. Todos os homens são exceções a uma regra que não existe”. Fernando Pessoa Esse estágio foi embasado na Abordagem Fenomenológico-Existencial e, mais especificamente na Gestalt-terapia. Meu embasamento teórico compreende, portanto, (a) as idéias-base − visão de homem e de mundo, postura diante do fenômeno humano − contidas nos fundamentos filosóficos da Fenomenologia, do Existencialismo, e do Humanismo; (b) a teorização mais sistemática dessa idéias na prática clínica: Psicoterapia na Abordagem Fenomenológico-Existencial; (c) os recursos teóricos e técnicos utilizados mais especificamente: Gestalt-terapia; (d) noções específicas de atendimento infantil: Ludoterapia. 7.1. Fenomenologia A fenomenologia surge, como corrente filosófica, se opondo ao cientificismo e a metafísica, perspectiva predominante no pensamento ocidental em meados do século XIX. O discurso metafísico crê na unicidade da verdade e na busca de uma perspectiva que seja absoluta, enquanto que a fenomenologia aponta para uma relatividade da perspectiva do conhecer e da verdade, ou seja, nenhuma verdade, seja qual for a perspectiva do saber que se adote, pode ser se não relativa (Critelli, 1996). Segundo Critelli (1996), a forma de pensar o conhecimento e a verdade, instaurada pela fenomenologia, se constitui como desalojadora, uma vez que nega qualquer 27 pretensa segurança, que não foge da angústia advinda da consciência da fluidez do mundo. Contrariamente à metafísica, segundo a fenomenologia é exatamente através da aceitação dessa fluidez que se instaura as possibilidades de conhecimento. Para a fenomenologia, a questão do pensar não deve ignorar a fluidez e mutabilidade inerente ao homem pela sua condição de existente. “Assim, a tarefa de se pensar a possibilidade de uma metodologia fenomenológica de conhecimento é, em última instância, uma reflexão sobre o modo humano de ser-no-mundo, inclusive tal como desdobrado na tradição da civilização ocidental.” (Critelli, 1996, p.16). Desta forma, a Fenomenologia se apresenta não só como corrente filosófica, mas também como método. A Fenomenologia tem seu início a partir das idéias de Franz Brentano (1838- 1917) representante da “Psicologia do Ato”, defendendo a proposta de um método empírico nos estudos dos fenômenos psíquicos, porém não experimental, ou seja, descritivo. Considerou que existem diferenças entre os eventos físicos e os fenômenos psíquicos, afirmando que estes são dotados de intencionalidade e um modo de percepção original, imediato. Defende o retorno às experiências vividas e sua descrição autêntica, livre de todo pressuposto genético ou metafísico (Forghieri, 1993/2004). Contudo, o principal representante da corrente fenomenológica é Edmund Husserl (1859-1938), que a partir das obras de Brentano desenvolveu seu pensamento. Alguns dos temas fundamentais da fenomenologia foram desenvolvidos por Husserl, tal como a proposta do retorno às coisas mesmas. Husserl defende o retorno a um ponto de partida que seja de fato o primeiro, no caso, as coisas mesmas que seriam o ponto de partida do conhecimento. A coisa mesma nada mais é do que o fenômeno, a única coisa à qual podemos ter acesso. Desta forma, ir às coisas mesmas significa “apreender o mundo tal qual este se apresenta para nós enquanto fenômeno” (Holanda, 1998, p.37). 28 Husserl, dando continuidade à noção de intencionalidade de Brentano, reafirma que a consciência é sempre intencional, uma vez que é sempre direcionada a um objeto, e este é sempre objeto para uma consciência, ou seja, não se pode desvincular a consciência do objeto e nem o objeto da consciência. A intencionalidade refere-se, assim, à atribuição de sentidos, ou seja, o mundo só existe enquanto tal uma vez que nós o significamos. Como diz Holanda (1998, p.39) “a consciência é consciência ativa; cabe a ela dar sentindo às coisas, ou seja, é a consciência que atribui significados no mundo. Perceba-se aqui que não estamos discutindo o caráter de existência das coisas (...), mas tão somente o sentido que estas coisas assumem para o eu subjetivo pensante.” Um outro pressuposto, de grande importância, que se encontra presente na fenomenologia refere-se à Redução Fenomenológica, e baseia-se na idéia de que para compreender o fenômeno como ele se mostra é necessário “colocar entre parênteses” os valores e os juízos pessoais, aquilo que é particular do sujeito que percebe o fenômeno. Desse modo, deve-se estar atento ao que é pessoal, privado, e assim “renunciar” a essas idéias no instante em que se propõe a compreender o outro que se apresenta, a realidade do fenômeno. De acordo com Holanda (1998), a redução fenomenológica evidencia a colocação do ser-no-mundo, o posicionamento do ser em situação, em função da qual este sujeito não é puro sujeito, nem o mundo puro objeto. Ambos se correlacionam, permanecendo um em função do outro. (...) é uma busca do significado, uma procura pelo subjacente, em detrimento do simples aparente. (p.38) Quando nos referimos à redução, tal qual proposta pela fenomenologia, não estamos fazendo referência uma atitude de desconsideração da realidade, mas, pelo contrário,a uma postura de ir além do aparente, ou seja, de adentrar a realidade para, dessa forma, alcançar a natureza subjacente do fenômeno, intuir a essência do mesmo. 29 Outro nome expoente na fenomenologia foi Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) que percorreu o caminho trilhado por Husserl, revendo suas idéias e propondo uma re- leitura dessas. Retoma o conceito de redução fenomenológica apresentado por Husserl acrescentando, entretanto,a idéia de que a redução nunca será inteiramente alcançada em virtude da impossibilidade de uma dissociação total entre homem e mundo. Opunha-se aos dualismos e sua principal idéia é de que o conhecimento que temos do mundo se dá a partir da própria experiência do sujeito. A consciência para Merleau- Ponty é definida como percepção, “de modo que não há separação e oposição entre os dados sensível e racional no ato de apreensão das coisas” (Moreira, 1997, p. 403). E é através do corpo – conceito fundamental deste filósofo – que nos instalamos no mundo, ganhando e doando significação. No entanto, a noção de corpo a qual Merleau-Ponty se refere não é a idéia cartesiana de corpo, mas um corpo dotado de intenção em que residem nossas ações originais (Moreira, 1997), ele o chama de corpo reflexivo e observável. Outro proeminente discípulo de Husserl e que contribuiu de forma decisiva para a fenomenologia foi Martin Heidegger (1889-1976). Apesar de ter partido das idéias de Husserl, Heidegger rompe com o pensamento do seu mestre passando a postular novos princípios. A obra heideggeriana propõe uma retomada da questão do ser, buscando o sentido da existência que havia se perdido na modernidade paltada pelo primado da razão. Dessa forma “a fenomenologia produziu uma nova ontologia”. (Critelli, 1996, p. 8). Ainda nessa perspectiva, Feijoo (2002) afirma que Heidegger: Assume uma ontologia que pretende explicitar o ser do ente, em seu sentido mais originário do que propôs a metafísica e até mesmo a ciência. A compreensão em Heidegger consiste na captação de uma interpretação de mundo que cada um é. Implica remeter-se ao em si mesmo da coisa, da pessoa ou de si mesmo. É um ato de captação de uma interpretação de mundo ”. (p.138). 30 Heidegger denomina o homem pela expressão alemã Dasein, que significa “Ser- aí”, expressão também traduzida como pre-sença; um ser que é lançado num mundo que ele não escolheu, que já está dado e do qual ele nada sabe a respeito. O Dasein recebe esta denominação justamente por existir um “aí”, um mundo historicamente construído (Beaini, 1981, citado por Bruns e Trindade, 2001). Deste modo, dadas as condições nas quais o homem depara-se com a vida, com o existir −sem garantias nem segurança, levado a uma sensação de desamparo − o mundo apresenta-se a nós como inóspito, e “ser-no-mundo como homens é habitar esta e nesta inospitalidade” (Critelli, 1996, p.17). Essa é a facticidade particular de cada ser da qual Heidegger fala. Como também nos fala Critelli (1996), o mundo se mostra como uma rede de significações que nos envolve e dá consistência ao nosso ser; no entanto, é uma rede fluida que desaparece e faz falta tão logo se dilua o sentido que ser faz pára nós −existência. Esse sentido que ser faz para nós se desfaz à medida que as nossas representações não dão mais conta de expressar o ser das coisas, e estas passam a ser simplesmente meras coisas, insignificantes. Desse modo, não só as coisas perdem o sentido, mas também o existir. E, mais uma vez, estamos sós, soltos, postos diante do nada, do desconhecido, sem podermos contar com algo ou alguém para nos envolver como antes na rede, na “existência”. É através da evasão do sentido que ser faz para nós que o mundo se manifesta em sua inospitalidade. Heidegger vai chamar de angústia a vivência dessa inospitalidade do mundo, do nada que surge em lugar de um sentido que ser fazia para nós, e da total liberdade em que somos lançados independentemente de nossa vontade ou escolha. 31 Heidegger (1927/1989) fala também da condição ontológica do ser-aí, que é ser- com : “A pre-sença é em si mesma, essencialmente, ser-com” (p.172, v.I). Mas isso não se dá simplesmente pelo fato do homem viver em sociedade, mas devido à coexistência faz parte de sua condição ontológica, originária. O ser-com é próprio da pre-sença mesmo se o outro não é dado ou percebido. Mesmo o estar-só da pre-sença é também ser-com no mundo (Heidegger,1927/1989). O eu nunca poderá cuidar da vida de modo que esta se torne um acontecimento exclusivamente seu, pois a vida do ser é um acontecimento que implica os outros. “Os outros também acontecem junto e através do eu” (Critelli, 1996, p.65). A perspectiva fenomenológica heideggeriana fala a respeito dos modos de existir do homem, do modo como ele se relaciona com as coisas e entes, que são as formas inautêntica ( imprópria ou impessoal) e autêntica ( própria ou pessoal). Num modo de ser inautêntico, o homem encontra-se extremamente mergulhado no mundo, preso às coisas e aos outros, não realiza plenamente suas possibilidades e não permite uma reflexão acerca de si mesmo, de como vive, ou seja, ausenta-se da própria existência e com isso passa a ver no mundo sua principal preocupação. Tal como é colocado por Heidegger (1927/1990): “no momento em que a pre-sença se perde no impessoal, já se decidiu sobre o poder-ser mais imediato e factual da pre- sença, ou seja, sobre as tarefas, regras, parâmetros, a premência e a envergadura do ser- no-mundo da ocupação e preocupação” (p. 53, v. II). Assim, quando o homem se dá conta de sua impropriedade, ele passa a viver uma angústia, que para Heidegger, representa o único estado de ânimo que leva o ser-aí a uma compreensão de si-mesmo. E à medida que vai conquistando a autenticidade, vai também voltando sua atenção para si, escolhe a si, não mais os outros, como possibilidade de ser-no-mundo. Este é o ser-si-mesmo (Bruns e Trindade, 2001). 32 7.2. Existencialismo Apesar de Fenomenologia e Existencialismo serem correntes filosóficas distintas, dificilmente se fala deste sem associá-lo de imediato com o movimento fenomenológico. Isto se deve em parte à influência de Husserl no pensamento de Sartre e também em razão do método fenomenológico ter sido utilizado pelos existencialistas em sua busca da compreensão do homem. O Existencialismo difundiu-se como o pensamento mais radical a respeito do homem na época contemporânea. Surgiu em meados do século XIX com o pensador dinamarquês Kierkegaard e alcançou seu apogeu após a Segunda Grande Guerra, nos anos cinqüenta e sessenta, com Jean-Paul Sartre. Soren Kierkegaard (1813-1855) pode ser considerado o precursor do existencialismo, uma vez que é a partir de sua doutrina que os filósofos existenciais derivam seus conceitos. Propôs uma filosofia que privilegiasse a questão da existência, opondo-se, dessa forma, ao sistema racionalista de Hegel e Descartes. Referindo-se ao cogito e direcionando uma crítica ao pensamento cartesiano, afirma que seria mais correto dizer “Sinto, portanto existo”. Em sua filosofia a escolha possui um papel fundamental, pois é considerada como núcleo da existência humana. Dessa forma, “Existir é escolher-se”. A existência exige e impõe ao homem, a cada momento, uma série inesgotável de escolhas e, dessa forma, oferece-lhe a oportunidade de se construir, de modalizar a cada instante a concretização do seu ser. Tal condição não aparece como uma opção, e sim como uma propriedade humana da qual não se pode fugir. Diante da impossibilidade de se esquivar, o homem é colocado, independentemente de sua vontade, na posição de ter que tomar decisões 33 responsabilizando-se por suas escolhas. A consciência dessa obrigação de escolher, bem como dos riscos dessa escolha, leva o homem ao desespero. O filósofo existencialista que alcançou maior visibilidade e notoriedade foi Jean- Paul Sartre (1905-1980). Estabeleceu a máxima − que mais tarde passou a caracterizar as correntes existencialistas − de que “a existência precede a essência”. Penha (1982), ao discorrer sobre as idéias de Sartre, afirma que o homem primeiramente existe, descobre-se, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível é porque primeiramente não é nada. Só depois será algumacoisa e tal como a si próprio se fizer. (p.62) Tal princípio, segundo Sartre, não se aplica a todos os seres, mas somente ao homem, uma vez que somente o ser humano possui liberdade para realizar sua essência, ou seja, apenas ele é livre para construir a cada momento o seu vir a ser. A liberdade sartreana não se apresenta ao homem como uma escolha, e sim como uma condição existencial da qual ele não pode escapar ou abrir mão. Nesse sentido Critelli (1996) afirma que a liberdade, ao mesmo tempo em que confere ao homem o poder de modalizar a realização de seu ser, gera angústia à medida que nos coloca na posição de grandes responsáveis pelos rumos da nossa existência. A angústia da liberdade surge com essa consciência de que cada pessoa é responsável por si mesma, pelos seus próprios atos, que não há como transferir para ninguém a culpa pelos seus erros e enganos. Surge quando o indivíduo percebe que a tentativa de depositar nos outros (seja este outro representado pelo Estado, opinião pública, grupo social, etc) o encargo por suas próprias escolhas é um projeto fadado ao fracasso. Agindo dessa forma o homem não estará fugindo da questão da escolha, pois 34 até mesmo não escolher já é uma escolha. Estará apenas transferindo seu poder de decisão para outra pessoa, o que, todavia, não o desresponsabiliza. (Angerami, 2001). 7.3. Humanismo O Humanismo surge na Europa já nos primórdios do século XIV como um movimento cultural intimamente ligado à Renascença. Seu aparecimento está vinculado a uma espécie de oposição ao primado do teocentrismo na Idade Média, ou seja, surge como uma crítica à valorização do espiritual, do sobrenatural, que marcara toda produção cultural e científica naquele período. O Humanismo, portanto, nasce com a bandeira da revalorização do homem, da restituição do lugar do homem enquanto senhor de si, do reencontro com as potencialidades humanas. Amatuzzi (2001) ressalta que de qualquer forma essa revalorização do homem, das coisas dos homem, da história humana, daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualidade do humano, não se relaciona necessariamente com uma posição religiosa ou anti-religiosa. O que polariza esse movimento é justamente uma volta à atualidade do humano, e um acreditar que esse é o caminho. (p. 16) Pode-se também falar do Humanismo de uma forma mais ampla, como colocado por Erich Fromm, que resgata da tradição humanista uma atitude diante do humano, mais do que postulados teóricos e conceitos. Há uma espécie de ética subjacente às diversas teorias ditas humanistas, unindo esses sistemas conceituais e gerando uma postura concreta em favor do homem. A abordagem Fenomenológico-Existencial toma para si essa postura de encarar e compreender o fenômeno “homem”. Sendo assim, a visão humanista encontra-se 35 implícita em todo o corpo dessa abordagem, como uma espécie de “pano de fundo”, proporcionando à prática psicoterapêutica um sentido que prima pelo resgate do humano, do positivo, da beleza, da força, da espontaneidade perdida, da criatividade que geram infinitas possibilidades de caminhos diferentes. Significa que, no caminho da reconstrução da identidade perdida ou confusa, procuramos no ser humano o que ele tem de bom, de positivo, de inteiro, de potencialmente transformador; aquilo que o cliente sente ter de melhor a sua disposição. (Ribeiro, 1999, p.25) Quando se diz que o Humanismo retoma uma preocupação com o humano, se está afirmando que o interesse se volta para a compreensão de cada pessoa enquanto ser, enquanto universo de sentidos próprios e únicos. Dessa forma, não se busca enquadrar o homem dentro de uma teoria ou de um conjunto de idéias estabelecidas a priori, mas sim garantir uma atitude de abertura para com o outro, para assim se aproximar do mundo de significados de cada pessoa. 7.4. Psicoterapia na Abordagem Fenomenológico-Existencial A abordagem Fenomenológico-Existencial aponta, como já foi dito, para uma busca pelo resgate do que há de mais genuíno na existência humana, do que há de mais essencial no ser dos homens. E essa essência diz respeito à forma de cada um ser-no- mundo-, à sua singularidade, à liberdade que cada indivíduo tem de ser si próprio. Uma psicologia que leva em consideração essa dimensão existencial se preocupa não em interpretar ou explicar os fenômenos humanos, e sim em compreendê-los. A importância de se privilegiar a perspectiva fenomenológica na prática psicoterápica se dá uma vez que a atitude de parar e escutar o outro parece se caracterizar, sobretudo, pela possibilidade de propiciar a emergência de encontros- 36 desencontros de sentidos. Ouvir é, portanto, se permitir entrar verdadeiramente no universo de significados do outro para, dessa forma, auxiliá-lo na construção e/ou reconstrução dos sentidos que realmente dizem respeito à sua existência. É um mergulho no universo interior da pessoa que fala, sem a interferência de julgamentos e valores, a partir do qual se abrem possibilidades dela mesma se ouvir. (Amatuzzi, 2001). Partindo-se dessa perspectiva, o processo de psicoterapia se propõe a oferecer um momento no qual o sujeito que sofre se sinta verdadeiramente ouvido na sua dor. Ouvir nesse caso implica em ir além da queixa, além das palavras, apreender o não-dito. Amatuzzi (2001) ilustra esse processo quando afirma que ouvir realmente é ir até alma da pessoa que nos fala, ou até seu coração; é ouvir a pessoa e não somente as palavras. Para que isso seja possível, o terapeuta precisa se abrir para a existência do outro sem preconceitos e sem julgamentos. Precisa colocar em suspenso seu próprio centro de referências para se aproximar verdadeiramente do mundo do outro, uma vez que seus conhecimentos, suas teorias, suas opiniões e juízos próprios acabam por construir uma barreira que o impede de entrar verdadeiramente em contato. Isso, entretanto, não invalida ou coloca em desuso os conhecimentos teóricos e técnicos, nem a subjetividade do terapeuta. Como afirma Sapienza (2004), “fenomenologia não é uma teoria. É um modo de se aproximar de um fenômeno, que se caracteriza, principalmente, por deixar que ele se mostre tal como se apresenta, o mais possível sem a interferência das teorias existentes sobre ele” (p. 54). A idéia é propiciar um momento de escuta sem a intervenção desses constructos o que, todavia, não impede que eles sejam utilizados a posteriori, para a compreensão do fenômeno em questão. Trata-se de uma fundamentação de natureza diferenciada, a qual não coloca os conhecimentos do terapeuta e da Psicologia acima do que há de mais 37 importante, a existência do cliente tal qual ela se revela sobretudo para ele mesmo. Dessa feita, trabalhar a partir desse referencial exige muita responsabilidade e cautela. Nesse sentido Sapienza (2004) coloca que se estivéssemos ancorados em uma teoria, talvez isso facilitasse nosso trabalho. Como não estamos, somos solicitados a ter para cada um deles um olhar especial, único, atento ao sentido daquela vida; mas esse olhar será tão mais profundo e apropriado quanto mais tivermos nos aprofundado na compreensão do que caracteriza a existência humana (p.53). A psicoterapia, vista sob esta ótica, propicia um encontro no qual o ouvir é igual a “entrar em contato”, é igual a um “caminhar junto”. E dessa caminhada pode surgir uma nova forma de olhar, uma nova maneira de enxergar as situações. Daí a importância da pessoa se sentir verdadeiramente ouvida e acolhida nesse encontro. A relação psicoterapêutica na perspectiva fenomenológica parte da concepção de que a partir de um diálogo autêntico, ou seja, de uma conversa marcada pela reciprocidade e pela troca, na qual os participantes toquem e se deixem tocar pela fala do outro, é possível ir ao encontro dos sentidos e conteúdos implícitos no discurso do cliente. Trata-sede compreender a intenção significativa e a disposição afetiva que se escondem por trás da fala, em outras palavras o não-dito, e isso só será possível se houver um ambiente que possibilite que os sentidos se libertem, se mostrem, ou seja, se houver uma relação de troca intersubjetiva (diálogo genuíno) que atinja os centros das pessoas envolvidas e permita, portanto, que elas se deixem revelar (Amatuzzi, 1989). A fala autêntica permite que o cliente expresse suas emoções, pense sobre si e, dessa forma, elabore seus conteúdos internos, compreendendo como seu mundo está organizado. 38 A relevância da psicoterapia remete em grande medida ao fato do cotidiano não favorecer esse pensar sobre a existência. No seu dia-a-dia, em geral, as pessoas não têm oportunidade de refletir sobre seus sentimentos, seus modos-de-ser, enfim, sobre si mesmas. A vida, portanto, tende a seguir na impropriedade, como um barco a deriva, a mercê dos acontecimentos e do mundo em volta. Ao procurar uma ajuda psicoterapêutica, o indivíduo está na realidade abrindo um espaço no seu cotidiano para cuidar do seu ser, está voltando seu olhar para dentro e buscando um conhecimento que o auxilie no curso de sua existência. A psicoterapia fenomenológica, pois, atua no sentido de revelar à pessoa a sua condição de responsável direto por sua vida e seu destino, de personagem atuante e definidor da sua história, de comandante do seu barco. Diante dessa oportunidade de falar, ser ouvido e se ouvir, a pessoa pode elaborar melhor conflitos internos e, consequentemente, se abrir para uma mudança profunda que aponte para uma abertura às possibilidades que dizem respeito à sua existência, em última análise, para um crescimento. A psicoterapia, logo, propõe ao cliente uma mudança de olhar, propõe uma postura diante da vida na qual este se responsabilize pelas suas escolhas, auxiliando-o na compreensão de que a mudança não passa necessariamente por uma transformação do mundo, mas de si mesmo. Sapienza (2004) acrescenta ainda que a terapia representa uma chance de alguém perceber que não lhe compete mudar os outros; que não compete aos outros tomar a iniciativa para resolver os problemas que são dele, e que a obrigação de cuidar da sua vida é primeiramente dele; é a chance de perceber que ele deve isso a si mesmo (p.24). Todo esse processo, todavia, por implicar num movimento interno, prescindir de um desprendimento interior e inaugurar novos modos-de-ser, não é simples ou fácil de 39 ser alcançado. Envolve uma série de riscos e nenhuma segurança de sucesso, o que para muitas pessoas pode parecer assustador. Ao se deparar com o inédito, com a surpresa ─ decorrente do processo de mudança do cliente ─ o terapeuta também corre riscos, uma vez que está sendo afetado por tudo que acontece na relação, e nada lhe oferece garantias acerca da natureza dessa afetação, nem dos rumos que a psicoterapia pode seguir. 7.5. Gestalt-Terapia Foi em meados dos anos 40 que a Gestalt começou a ser praticada efetivamente como tal. Foi elaborada, sobretudo, a partir de um psicanalista judeu de origem alemã: Frederick Salomon Perls (1893-1970). Ele, com a ajuda de alguns colaboradores como Laura Perls e Paul Goodman, observando a insatisfatória fragmentação para a qual transcorria o estudo da psicologia humana, começaram a elaborar uma síntese coerente de várias correntes filosóficas, metodológicas e terapêuticas européias, americanas e orientais com a intenção de abordar o ser humano de uma forma mais congruente com a amplitude da sua existência (Ginger, 1995). Segundo a mesma autora, a Gestalt pode estar mais bem situada na intersecção entre a psicanálise, as terapias psicocorporais de inspiração reichiana, o psicodrama, as abordagens fenomenológica e existencial, as filosofias orientais, entre outras. Assim, a teoria desenvolve uma perspectiva diferente das até então conhecidas: apresenta uma ótica unificadora do ser humano, ao mesmo tempo, integrando as dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais. Inicialmente, a Gestalt se difundiu rapidamente nos países europeus, principalmente, nos países germânicos e anglo-saxões. Contudo, foi da experiência na 40 África do Sul que a teoria-prática desempenhada por Perls começou a se estruturar de fato; o mesmo obtinha, naquele espaço, a oportunidade de desempenhar a clínica como atividade diária, esculpindo suas idéias até estruturar o que haveria de se denominar Gestalt-Terapia. Muitos estudiosos ainda afirmam que a teoria foi oficialmente batizada nos Estados Unidos (Nova York) por volta do ano de 1951. Nesse contexto, ganhava amplo espaço nas divulgações especializadas, além de apoios e incentivos gerais às pesquisas relacionadas ao tema. Por volta do ano de 1968, com o movimento da contracultura avançando na Califórnia, evidenciando os valores humanistas e o potencial criativo do ser humano, a Gestalt também ganha destaque como possibilidade efetiva de resgate do ser humano. Então, o que se entende pela palavra “Gestalt”? O substantivo alemão "Gestalt", desde a época de Goethe, apresenta dois significados diferentes: (1) a forma; (2) uma entidade concreta que possui entre seus vários atributos a forma. É o segundo significado que os gestaltistas do grupo de Berlim utilizam, e, assim, por serem considerados os pioneiros no estudo dessa problemática, assim permanece denominada a abordagem. A tradução da palavra "Gestalt" não se acha nas outras línguas e a melhor maneira encontrada pelos próprios gestaltistas ao escrever em idiomas diferentes é simplesmente mantê-la. (Engelmann, 2002). 7.5.1 Psicologia da Gestalt Os primeiros estudos da escola da Gestalt foram realizados na organização da parte perceptiva consciente. Na Alemanha, inicialmente, os estudos sobre a percepção avançaram de forma espantosa. Wertheimer (1880-1943), com as contribuições de 41 Koffka (1886-1941) e Köhler (1887-1967), observarm a apresentação do movimento fi – quando o intervalo entre as apresentações de dois estímulos luminosos for curto, de 30 milissegundos, então os observadores vêem dois perceptos ao mesmo tempo (simultaneidade). Entretanto, quando o intervalo entre as duas apresentações for ao redor de 60 milissegundos, os observadores vêem um percepto movimentando-se da primeira localização para a segunda (“movimento ótimo”). O importante nesse movimento é que entre o primeiro estímulo, na primeira localização, e o segundo estímulo, na segunda localização, há um tempo no qual não existe qualquer estímulo. Mas, apesar disso, o sujeito ignora a correspondência entre a estimulação física e o percepto, tornando muito interessante o fato de que indivíduos são impotentes para distinguir se o fenômeno existente na apresentação é movimento real ou aparente. Isso, por si só, representa um marco da teoria: a percepção como elemento fundamental da relação homem-mundo. Em 1914, Wertheimer achou que, diante dos principais fatores perceptivos observados, havia uma lei que os subordinavam e que acabou por denominá-los de pregnância. Tal termo pode ser entendido como uma organização psicológica, cujas condições envolvidas na apresentação dos objetos, permitem que o aqui-agora tenha a tendência de acontecer de uma forma específica. Abarca propriedades como regularidade, simetria, simplicidade e outros. O fator de proximidade, o fator de semelhança e o fator de fechamento são três dos fatores que Wertheimer cita. Assim, os estudos sobre as percepções sensoriais permitiram o alargamento de suas proposições para o universo da psicologia humana de forma geral. Aos poucos, os freqüentes avanços nessa área aludiam para um novo caminho. Num artigo publicado na Alemanha, Koffka alarga o que se pode entender por Gestalt. Pensa em Gestalten não apenas como experiências, mas também como ações dos indivíduos:Cantar, escrever, 42 desenhar, andar são Gestalten tanto quanto a consciência de ouvir ou de olhar. “O ato motor é um processo-de-todo organizado; os muitos movimentos individuais podem ser compreendidos somente como partes do processo que os abraça (...)”. (Koffka, 1915/1938, citado por Engelmann, 2002.) Assim ocorreu, por exemplo, com os experimentos de Köhler envolvendo chimpanzés. Esses, pois, quando encontrados numa situação em que o alimento era posto fora do seu alcance, procuravam por diversas soluções, até que repentinamente o desfecho chegava; é o "Einsicht" ou em sua tradução inglesa insight – referido à posteriori na teoria como introvisão. O critério de insight é o aparecimento de uma solução completa com relação à estrutura do campo, como disse o próprio Köhler. O chimpanzé, após o insight, realiza genuinamente o caminho que leva à solução do problema, inclusive utilizando utensílios para a nova função ou até inventando-os. A Psicologia da Gestalt – assim chamado os estudos sobre a percepção, a aprendizagem e solução de problemas –, iniciada por Max Wertheimer, juntamente com Wolfgang Kohler e Kurt Koffka, ainda apresentaram um desenvolvimento posterior relacionado com Kurt Lewin e sua Teoria do Campo, e Kurt Goldstein com sua Teoria Holística. Esses elementos perfizeram o quadro científico do qual Frederick Perls se utilizou para estruturar o campo que viria a ser chamado de Gestalt-Terapia. Segundo Ribeiro (1985): Falar de percepção e, sobretudo, de aprendizagem e solução de problemas é dar um passo na compreensão de qualquer forma de psicoterapia como um processo que envolva ambas as situações. De Fato, Perls foi buscar na Psicologia da Gestalt sua proposta de aprendizagem e solução de problemas no que elas podem ajudar o cliente a aprender a solucionar seus problemas em um nível amplo, como seja o existencial. (p. 66) 43 É nesse sentido que, neste momento, se buscará expor os princípios norteadores da Psicologia da Gestalt. Pois, estes encontram íntima relação com a Gestalt-terapia; e, embora seja reconhecido que, do ponto de vista da percepção (sensorial), quando estes princípios registram uma realidade imediata, diretamente apresentada, e que, do ponto de vista psicoterapêutico, como afirma Ribeiro (1985), imbuídos de maior complexidade, os princípios registram apenas tendências ou atitudes psicodinamicamente presentes, sem uma seqüência factual tipo causa-efeito, torna-se extremamente relevante relacioná-los, já que ambas as perspectivas decorrem de uma única vertente perceptiva do ser – a percepção e a forma como ela é interiorizada. a) Parte-Todo O próprio conceito da Gestalt pode introduzir uma idéia básica sobre a relação parte-todo. Da mesma forma, fundam estruturas globais, cuja totalidade só pode ser efetivamente apresentada quando também considerada a complexidade das relações envolvidas entre as “partes”. Uma gestalt envolve, assim, um todo estruturado sob as dinâmicas relações entre as partes que o integram. O princípio, portanto, de que o todo é maior que a soma das partes garante ao todo uma característica essencial que falta às partes isoladas. A gestalt interessa-se em todos como fatos fenomenológicos que, apenas em sua globalidade, podem ser compreendidos como fenômenos. Esse fundamento assume lugar central na teoria da Gestal-terapia quando o cliente deve ser encarado como um todo indivisível, composto por corpo e mente. Da mesma forma, os fatos que emergem no setting terapêutico devem ser encarados como manifestações do fenômeno global de uma terapia, embora se expressem, em geral, como partes – como a queixa inicial, 44 movimentos corporais, verbalizações etc. – que, contextualizadas na relação com outras partes, permitem uma maior efetividade na compreensão do ser. Se referindo ao mesmo aspecto, Ribeiro (1985) afirma que: O todo, na realidade, perde muito de seu significado, da sua importância intrínseca, no momento em que, para ser analisado, é dissecado em suas partes. O todo é, na realidade, um fato fenomenológico global e é através desta globalidade que os fenômenos podem ser compreendidos, criando ou dando consciência de sua natureza intrínseca. (p. 70). A experiência humana apresenta-se de forma estruturada, ainda que feita de partes. E essa estrutura, sempre que acrescida de um novo elemento, torna-se uma nova estrutura. A experiência só é percebida como completa quando a experimentamos como um todo, mesmo que seja apenas um pequeno esboço da realidade. E, para se compreender o todo, é importante que se conheça a relação entre suas partes, de forma definida, para que o todo venha à luz. Assim, pois, é essencial que o gestalt-terapeuta observe de que forma as relações entre as partes que emergem no processo, podem adquirir, numa visão ampliada, um sentido - todo. Para isso, o profissional deve trabalhar simultaneamente em duas direções, na parte e no todo; à espera de que a relação revele a totalidade, onde o discurso psicoterapêutico se completa e se plenifica. b) Figura-fundo A relação entre figura e fundo revela mais uma natureza da percepção humana. A figura emerge como parte destacada de uma determinada configuração, enquanto que o fundo encarna um outro contexto dessa mesma configuração, embora mais recuado e amorfo. Ambos coexistem numa relação única, dinâmica e, portanto, passível de 45 alterações quando implicados numa determinada estrutura de percepção, possibilitando assim que aspectos não focados inicialmente (o fundo) tornem-se figura. O conceito tornou-se importante para se compreender as leis de organização da percepção; a Gestalt-terapia se apropria da mesma forma pois, como afirma Ribeiro (1985): É interessante observar que a relação figura-fundo no cliente é extremamente fluida, isto é, sua organização está em constante mudança, o que gera no psicoterapeuta a necessidade de também ele estar em fluidez com o cliente. Embora na linguagem do cliente surja um tema, uma figura, mais firme e clara, esta figura adquire, a todo instante, matizes novos, na razão em que o cliente, consciente ou inconscientemente, volta ao seu “fundo” e de lá trás coisas diferentes (p. 75). No processo psicoterapêutico, o terapeuta deve perceber o que aparece como figura para o cliente (o que emerge, o que salta aos olhos) e o que é fundo (o que está encoberto, o que não se vê de imediato) e trabalhar no sentido de conscientizar o cliente do que ele pode estar evitando na tentativa de integração da sua personalidade total. Assim, é imprescindível que exista um fluente movimento entre figura-fundo a fim de permitir que o campo perceptivo da relação cliente-terapeuta esteja aberto às diferentes possibilidades que constituem a configuração em contexto. A fixação numa determinada forma de percepção compromete o funcionamento psíquico do indivíduo, tornando-o rígido como numa forma neurótica de existência. c) Aqui-Agora Na psicologia da gestalt o conceito está intimamente relacionado à solução isomórfica elaborada inicialmente por Köhler no capítulo sobre isomorfismo psiconeural, onde ele acreditava que as Gestalten fenomenológicas da consciência 46 teriam a mesma forma ou seguiriam a mesma matemática topológica que as estruturas físicas. Contudo, a discussão que se seguiu posteriormente se referiu muito mais a seguinte questão: qual é o grau de influencia da experiência passada na vivência de uma nova experiência presente? Segundo Ribeiro (1985): Em termos de psicologia da gestalt, estar no aqui-agora significa que este aqui e agora contém e explica minha relação com a realidade como um todo, ou seja, o que eu vejo, o que eu percebo agora pode ser explicado pelo agora, sem necessidade de recorrer a experiências passadas de percepção (p.79). Para a gestalt, o aqui-agora se constitui como o local-momentoda experiência humana. É nesse ínterim que a realidade está aberta à existência; e é somente nele que o homem pode vivenciar a realidade e explicar a sua própria relação com a mesma. Determina uma condição da sua própria natureza que, condicionada pelo presente, sobrepõe tanto o passado como o futuro, e recaem senão como lembranças ou perspectivas virtuais de um outro momento que também se manifesta ainda no presente. Na Gestalt-terapia, o aqui-agora é o espaço-tempo necessário para se compreender e experienciar a realidade. O trabalho psicoterápico deve focar o tempo-espaço presente, pois, ao se comprometer com essa perspectiva, se está falando do princípio da contemporaneidade, isto é, a experiência presente é explicável a partir de sua relação com o campo fisiológico e cria uma situação a-histórica, em que o passado passa a ter um valor relativo (Ribeiro, 1985). Dessa forma, o cliente é levado a crer no potencial do aqui-agora e, conseqüentemente, a experienciar o setting (a relação cliente-terapeuta) como uma possibilidade oportuna de atuar diretamente na sua própria existência. 47 d) Teoria do Campo O conceito de campo tem sido muito debatido entre as diversas áreas de conhecimento. Ele contém as principais questões que envolvem as relações entre os corpos do universo. O conceito tem ocupado um grande número de pesquisas que envolvem a Física, e dela tem retirado pressupostos interessantes – não só em termos de movimento dos corpos mas também nos aspectos relacionados a sua própria natureza. No universo da gestalt, o campo envolve a relação entre as pessoas e seu meio geográfico. Desta forma, podemos explicitar que o ambiente no qual está circunscrita a pessoa se refere ao meio geográfico, o lugar onde a pessoa se localiza, a disposição da atmosfera que o envolve; enquanto que a relação psicológica da pessoa com o lugar, levando em consideração o conteúdo psíquico daí proveniente, se refere ao meio comportamental. Assim, cada pessoa distingue um meio comportamental específico; e a interação de um meio comportamental com outros meios (geográficos e/ou comportamentais – de outras pessoas) podem alterar aquele estado inicial através de tensões (forças). Ou seja, há nessa situação um campo maior que também é constituído por outros. Segundo Ribeiro (1985), assim ocorre na psicoterapia: Podemos, portanto, dizer que em psicoterapia existem dois campos: o cliente e o psicoterapeuta. Quando o cliente fala, o psicoterapeuta está em íntima relação com ele, sobretudo se o tema não contém um campo de força discriminado. Existe uma homogeneidade entre o ego do psicoterapeuta e o de seu cliente. De repente, o cliente diz algo novo, diferente, com uma força ou energia específica, alguma figura torna-se distinta neste campo (fundo opaco), imediatamente tudo muda. O psicoterapeuta, embora continuando ligado ao campo geográfico (o cliente) de uma maneira confusa, distingue algo claro neste campo. Toda a realidade do momento terapêutico passa a concentrar-se naquela zona de tensão e força (o novo tema) (p. 90). 48 Perls leva à sua teoria o olhar da Teoria do Campo de Kurt Lewin (1890-1947), segundo o qual o comportamento deve ser compreendido dentro do campo ou contexto total que engloba as relações entre os sujeitos e com o ambiente que os cercam. Dessa forma, numa relação terapêutica, o campo construído em função dos sentimentos envolvidos e, de alguma forma, expressos no momento em que o comportamento acontece, constitui a gestalt que dá sentido à psicoterapia, às intervenções do psicoterapeuta, à expressão do cliente, assim como o sustentáculo da relação dinâmica que se desenvolve entre ambos. Além disso, a definição de espaço vital de Lewin como o conjunto de fatos significativos que influenciam o comportamento da pessoa serve de subsídio a um dos principais direcionamentos da psicoterapia: trabalhar a delimitação e integração do espaço individual do cliente abrangendo o grau de realismo e equilíbrio necessários à sua saúde psicológica. e) Teoria Organísmica Estruturada de acordo com os estudos de Goldstein (1878-1965), a teoria aborda conceitos que vão além do que foi estudado pela Psicologia da Gestalt; transpõe os estudos sobre os fenômenos restritos a tomada de consciência. Ela integra o ser humano numa só perspectiva geral – unidade. Como dizia o próprio Golstein (1939, citado por Ribeiro 1985): “O organismo é uma só unidade; o que ocorre em uma parte, afeta todo o corpo”. A teoria acredita que se pode apreender mais em um estudo compreensivo da pessoa do que em uma investigação exclusiva de uma função psicológica isolada e abstrata de muitos indivíduos. 49 Essas influências se correlacionam à busca de Perls por uma visão holística do funcionamento humano. Essa teoria tenta reduzir a cisão corpo/mente, define o indivíduo como um todo integrado, unificado e não dividido em sentimentos, emoções, sensações, imagens, etc. Goldstein ainda fornece subsídios para a compreensão da relação todo-partes. Ele defende que o organismo é um sistema organizado com o todo diferenciado em partes e que o que ocorre em uma parte afeta o todo. O homem, portanto, possui as potencialidades que regulam seu próprio crescimento e recebe, de forma seletiva, influências positivas e negativas do meio exterior; esse todo ainda é organizado por um impulso dominante de auto-regulação pelo qual é permanentemente motivado. 7.5.2 A Gestalt-Terapia e suas Influências Embora as bases da Gestalt-terapia sejam advindas da Psicologia da gestalt (especialmente dos trabalhos de Wertheimer, Koffka, Kohler), da Teoria do Campo de Kurt Lewin e da Teoria Organísmica de Kurt Goldstein; além da proeminente influência do existencialismo, humanismo e fenomenologia, encontram reflexo relevante, na teoria psicanalítica (Freud e Reich), Psicodrama (Moreno) e filosofia oriental. De fato, os fundamentos teóricos e as influências utilizadas na elaboração da Gestalt-terapia foram as mais variadas. Isso garantiu à teoria, características essenciais como o dinamismo e criatividade. Perls não tinha pretensões de que a Gestalt-terapia se firmasse como uma teoria acabada e, portanto, com definições inquestionáveis. É seguindo essa atitude que, atualmente, os gestalt-terapeutas – chamados da “terceira geração”, ainda estão implicados na construção da teoria; e, mesmo que embasados num espaço comum, continuam diariamente formulando suas próprias formas de atuação. 50 Esse “espaço comum”, como já dito anteriormente, abarca inúmeras outras teorias (pois assim é o processo – ad infinitum). A psicanálise influenciou sobremaneira as idéias de Perls. Sua contraposição a teoria de Freud o remeteu a inúmeras outras possibilidades. Afinal, ele fez seis anos de análise e de formação didática (de 1926 a 1932), além de vinte e três anos de prática como psicanalista. Assim, importante é distinguir as críticas que Perls fez à Psicanálise daquilo que, de certo modo, possa haver em comum entre essa teoria e a gestalt-terapia para, somente a partir daí, mobilizar uma compreensão desse todo teórico. A discussão pertinente está relacionada, principalmente, aos métodos psicoterápicos; onde o foco da terapia é o material óbvio ao invés do recalcado; o presente e o processo corporificados no “como” ao invés do passado e a causalidade corporificada no “porquê”; a relação existencial entre cliente e terapeuta ao invés da relação transferencial. Perls, assim, transpôs a teoria de Freud em busca de uma visão holística do funcionamento do organismo; almejou a visão de um homem constituído por vários instintos (ao invés de um só) e que, ao mesmo tempo, tem na expressão sua tendência para se reequilibrar. Nesse sentido, além do lado expresso do Eu, a Gestalt-terapia considera o seu lado invisível – o Self. O Self sente e o Eu age, às vezes,
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