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ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo tteexxttoo 66 OO PPAAPPEELL DDAA FFIILLOOSSOOFFIIAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO eelluucciiddaaççããoo ee ccrrííttiiccaa É impossível fixar, na história da humanidade, o que teria sido o primeiro gesto educativo: não só porque, em sua acepção mais genérica, a educação é coetânea à instituição da própria sociedade (e qualquer tentativa de distinção só levaria ao inútil círculo vicioso em que se busca uma coletividade minimamente instituída, sem indivíduo minimamente socializado para instituí-la, ou o contrário); mas sobretudo porque, ainda que pudéssemos identificar uma espécie de «marco zero» da auto-formação humana, sua assimilação à atividade explícita e sistemática pela qual designamos a «educação» ainda correria por nossa própria conta e risco. No entanto, é quase consensual situar as origens da educação, já entendida como essa atividade sistemática e deliberada, na antigüidade grega. Segundo Werner Jaeger, foram os antigos gregos que «…viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo de construção consciente»1. Partindo-se dessa premissa, não será difícil admitir que tenha sido esse, também, o solo histórico de aparecimento da filosofia da educação – como conjunto, exatamente, dos questionamentos e reflexões pelas quais a sociedade antiga ganhou essa consciência mas, também, como parte então ineliminável desse conjunto de questionamentos e reflexões mais amplos sobre a realidade em que se constituía a própria filosofia grega. Segundo, ainda, W. Jaeger, a emergência da consciência educacional estaria ligada ao lento processo cultural que, das origens arcaicas até a decadência helenística, fez convergir todo o mundo grego antigo para a elaboração da «Idéia» de Homem, «de validade universal e normativa». Assim, a educação nasceria marcada pela referência a uma essência definidora do «ser autêntico»2. Contudo, essa leitura idealista do nascimento da educação está, é claro, longe de ser a única possível e, sobretudo, ela não faz justiça à realidade social histórica que pretender retratar. Mas ela sem dúvida alinha-se numa longa tradição que, desde a «primeira grande conspiração do silêncio da história da filosofia»3, organizada por Platão, encobriu meticulosamente a pujança e a radicalidade dos questionamentos filosóficos e da construção democrática da época. Contrariando essa tradição por muitos séculos dominante na filosofia ocidental e na reflexão educacional que dela decorre, acreditamos dever situar o nascimento da educação e da reflexão filosófica sobre a educação no terreno democrático em que a interrogação sobre o que 1 W. Jaeger, Paidéia – A Formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 13. 2 Id., ibid., p. 14. 3 Cornelius Castoriadis, Encruzilhadas do labirinto V – Feito e a ser feito. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, p. 30. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo era determinado pela phusis e, assim, não dependia da deliberação humana, e sobre o que cabia ao nomos – e, portanto, devia ser objeto de exame por parte da coletividade, abre caminho para uma atividade de auto-instituição explícita da sociedade. É claro que a iniciativa desse deslocamento – que nos faz buscar num percurso pouco freqüentado pela filosofia, até recentemente, a identidade e o papel da reflexão filosófica sobre a educação – não se apóia apenas na convicção de seu fundamento histórico, mas numa decisão de sentido que deve permanecer infundada, pois não há nada que possa ser oferecido para legitimá-la, a não ser a escolha da autonomia como critério e como fim. A auto-nomia é, assim, condenada a permanecer infundada e talvez por isso a tradição filosófica, que se deu por vocação a busca dos fundamentos últimos para tudo, tenha encontrado tantos limites em tematizá-la. Da perspectiva que a autonomia nos oferece, o cenário de nascimento da educação é fértil de pistas para a reflexão sobre que o julgamos que deva ser, na atualidade, o papel da filosofia da educação; e, para começar, para a atualização, ou para a reinvenção dessa questão que não pode ser dada como superada – ao menos enquanto houver reflexão educacional autônoma: o que, de fato, está em nosso poder deliberar? Encontramos pistas, porque cada sociedade reinstitui, com maior ou menor amplitude (tanto quanto, no interior de sociedades não heterônomas, onde vigora uma certa margem de liberdade, reinstituímos a cada vez individualmente, com maior ou menor custo) o espaço concedido à livre deliberação, à criação humana, individual e coletiva. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo É por isso, então – porque esta demarcação não está rigidamente estabelecida, mas é refeita a cada vez – que há ainda possibilidade de deliberação. E, portanto, exigência de reflexão filosófica. Podemos, assim, retomar a questão ali onde foi bruscamente encerrada, e se ela nos parece, à primeira vista, tão banal, é porque estamos imersos em um modo de resposta socialmente instituído. À primeira vista, portanto, não existe interrogação: é para além do instituído que a filosofia, como prática efetiva, começa. Onde a questão foi bruscamente interrompida? Por exemplo, em Aristóteles: …Deliberamos sobre as coisas que dependem de nós e que podemos realizar… Assim, a natureza, a necessidade, o acaso, parecem ser causas de muitas coisas; mas é preciso contar, ainda, o intelecto e tudo o que é produzido pelo homem. Os homens deliberam (…) quanto àquilo que lhes concerne, sobre as coisas que eles acreditam estar em seu poder realizar. Nas ciências plenamente constituídas, precisas e independentes do arbitrário, não há lugar para deliberação… mas nós deliberamos sobre as coisas que dependem de nós, e que não são sempre invariavelmente de uma só e mesma forma… A deliberação se aplica, assim, especialmente às coisas que, ainda que estando submetidas a regras ordinárias, são, no entanto, obscuras quanto a seu destino particular, para as quais nada se pode precisar antecipadamente.4 Mas quais seriam, hoje, as coisas que, em nossa experiência, «…ainda que estando submetidas a regras ordinárias, são, no entanto, obscuras quanto a seu destino particular, para as quais nada se pode precisar antecipadamente»? O papel da reflexão filosófica é, de maneira 4 Aristóteles, Étique à Nicomaque, III, 1112 a 18 - b 10. A citação foi traduzida a partir da versões de J. Tricot (Paris: Vrin, 1997, p. 132-133 e de Barthélemy Saint-Hilaire (Paris: Librairie Générale Française, 1992, 118-119.) ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo geral, questionar a resposta imediata que somos levados a produzir para essa simples questão. Mas não é o papel da filosofia fornecer, para as deliberações que cabem ao homem, respostas ou fundamentos. Ao fazê-lo, a filosofia simplesmente aniquila a interrogação, a oblitera, a desqualifica. E, assim, desqualifica seu próprio papel, ou melhor, sua posteridade: se não há mais razão para a deliberação política, não há mais exigência de filosofia. E é por isso que cada sistema filosófico erguido para fundar definitivamente a resposta a essa questão se deu por derradeiro e decretou, pelo mesmo gesto, o fim da filosofia. Quais seriam, hoje, as coisas que, em nossa experiência, «…ainda que estando submetidas a regras ordinárias, são, no entanto, obscuras quanto a seu destino particular, para as quais nada se pode precisar antecipadamente»? Sem dúvida, atualmente, todo aquele que faz da educação suaprática quotidiana, bom grado ou mal grado, sabe reconhecer aí, espontaneamente, sua tarefa de formação. Mas porque, então, é tão resistente a busca por uma teoria, por um método, por uma técnica que determine absolutamente o que é indeterminado? A resposta pode estar contida na própria formulação aristotélica. Quando Aristóteles afirmava que certas atividades, estando submetidas, é claro, a determinações regionais, são incertas quanto a seu destino particular, ele não estava em nada afirmando, como se poderia supor atualmente, que seu fim não pudesse ser determinado. A crença em uma natureza humana, numa essência da qual se poderiam implicar as determinações últimas ou imperativos necessários prevaleceu, apesar das enormes brechas que a reflexão coerentemente ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo desenvolveu como um limite para a filosofia instituída. E muito embora Kant declarasse a educação, assim como a política, uma «arte», e não uma ciência e, como já vimos no texto 2, considerasse que, por tratar com a liberdade humana, eram as atividades mais difíceis que se possa conceber, assim mesmo está claro que, sobre o «fim último», sobre a essência, sobre a «natureza autêntica» do humano, tanto Kant como Aristóteles buscaram amparar-se na certeza de sua determinação final. Assim, no melhor dos casos, a filosofia veio trabalhando contraditoriamente com a questão da autonomia, deslocando algumas certezas socialmente instituídas, refazendo e legitimando outras, mas, sem dúvida, limitada pelas sombras projetadas pelo que Castoriadis denominou a «hipercategoria da determinidade». E, muito embora, como afirma F. Cambi, a educação tenha, no decorrer da «era moderna»5, finalmente se emancipado do modelo metafísico que, a partir de Platão e até seu apogeu, no século XVII, dominou a educação, encarregando-se de provê-la de definições acabadas sobre sua natureza e seus fins, é quase impossível desconhecer que essa liberação resultou em sua submissão a um novo tipo de autoridade de saber, igualmente ansiosa em prover de bases sólidas, de fundamentos legítimos, aquilo que deveria permanecer como livre deliberação humana e social: 5 H. Arendt fixava a «era moderna» como tendo se constituído, cientificamente, a partir do século XVII, e encerrando-se no limiar do século XX. Reservava, porém, o termo «mundo moderno», para a designação da realidade atual que, segundo a autora, teria começado a se forjar, politicamente, «com as primeiras explosões atômicas». Cf. H. Arendt, La Condition de l´homme moderne. Paris, Calmann-Lévy, 1983, 38-39. (trad. bras. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 14.). Cf. Fragmento 2. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo …o declínio do modelo metafísico da pedagogia (…) tinha começado entre os séculos XVII e XVIII, com Locke, aumentando depois com Rousseau e Kant, com o romantismo e o positivismo, para expandir-se em nosso século, onde essa posição permaneceu como apanágio de posições que não eram de vanguarda, embora combativas e rigorosas (como o idealismo, como muito pensamento católico, neoescolástico ou espiritualístico). A centralidade da especulação filosófica como guia da pedagogia foi substituída no pensamento contemporâneo pela centralidade da ciência, e de uma ciência autônoma, cada vez mais autônoma em relação à filosofia.6 Do ponto de vista da deliberação humana, justamente, a autonomização das fontes de saber aparece sempre como uma limitação. Todos sabemos que a modernidade se instala no questionamento radical dos dogmas que enclausuravam a existência humana e social num espectro de fatalidade inquebrantável. A descoberta do poder da ação humana – derivada do velho questionamento sobre a distinção daquilo que, na existência humana, era phusei (natural) ou nomô (instituído) – num primeiro momento, deu novo ímpeto à especulação racional, e também à construção social. No entanto, quase que imediatamente em seguida, propiciou o aparecimento de duas entidades tão temíveis quanto a metafísica – por um lado, a autoridade científica e, por outro, o Estado moderno – que, autonomizadas, buscaram monopolizar as deliberações que cabiam ao coletivo humano. No que respeita especificamente à reflexão educacional, o fantasma do controle absoluto – da planificação, da predição, da certeza do êxito – sobre essas atividades que, justamente, «…ainda que estando submetidas a regras ordinárias, são, no entanto, obscuras 6 Franco Cambi, História da Pedagogia. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 402. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo quanto a seu destino particular, para as quais nada se pode precisar antecipadamente» foi alimentado pela constituição desses dois poderes: o Estado, tornado máquina burocrática de definição da tarefa escolar e de cobrança dos resultados; e a ciência, feita esse monstro de ininteligibilidade que sufoca o simples professor com certezas empíricas jamais demonstráveis, de absconsas leis que realizam o sucesso de experiências paradigmáticas, mas dificilmente replicáveis no cenário comum da prática ordinária. O professor anônimo – esse mesmo que, em sua experiência prática, sabe absolutamente que é impossível determinar plenamente o resultado de seu trabalho – deve se enfrentar, portanto, com as múltiplas exigências que as «ciências da educação» não cessam de multiplicar para a condução do seu trabalho. Mas, o que é pior, na ausência de uma reflexão, por parte da sociedade, sobre seu espaço de autonomia e construção, como asseverar que o fracasso escolar não derive, finalmente, de sua própria incapacidade de controlar e prever a efetividade de sua ação? Em seu anonimato cotidiano, o professor precisa, urgentemente, descobrir que suas questões não são extemporâneas, nem isoladas; que seu fracasso talvez não seja o seu, mas de um modelo que ignorou a força da liberdade humana. Ao anônimo professor, jamais foi dada a possibilidade dessa simples interrogação, tão antiga quanto a filosofia: sobre o que posso intervir, qual é o espaço para a deliberação social e individual? A anônima educação necessita, urgentemente, de filosofia. E todos nós, também, da velha questão que ela recobre: o que podemos e o que não podemos fazer? No âmbito do que ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo nos é concedido deliberar, o que devemos, e o que não devemos fazer? Como, e sob que circunstâncias podemos fazê-lo, e o que inviabiliza esse trabalho? Mais do que qualquer resposta definitiva, a interrogação sobre essas questões é, ainda hoje, o papel da filosofia da educação. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo WWEERRNNEERR JJAAEEGGEERR Todo povo que atinge um cerco grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual. Com a mudança das coisas, mudam os indivíduos; o tipo permanece o mesmo. Homens e animais, na sua qualidade de seres físicos, consolidam a sua espécie pela procriação natural. Só o Homem, porém, consegue conservar e propagar a sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão. O seu desenvolvimento ganha por elas um certo jogo livre de que carece o resto dos seres vivos, se pusermos de parte a hipótese de transformações pré-históricas das espécies e nos ativermos ao mundo da experiência dada. Uma educação consciente pode até mudar a natureza física do Homeme suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existência humana. A natureza do Homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o Homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação e propagação do seu tipo. É nela, porém, que essa força atinge o mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 3-4. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo HHAANNNNAAHH AARREENNDDTT …a era moderna não coincide com o mundo moderno. Cientificamente, a era moderna começou no séc. XVII e terminou no limiar do séc. XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atômicas (…). A finalidade da análise histórica é pesquisar as origens da alienação no mundo moderno, o seu duplo vôo da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem, a fim de que possamos chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, tal como esta evoluíra e se apresenta no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e desconhecida. ARENDT, H. A condição humana. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 13-14. CCOORRNNEELLIIUUSS CCAASSTTOORRIIAADDIISS A única «norma» consubstancial à phusis do homem é que ele não pode não instituir normas. A sociedade é humana, e não pseudo-«sociedade animal», na medida em que ela institui normas na e pela instituição, na medida em que estas normas encarnam significações e que seu modo de ser e de conservação não possui qualquer substrato biológico específico, nem responde a «funções», a «adaptações», a «aprendizagens», ou a «problemas a resolver». CASTORIADIS, C. Feito e a ser feito; as encruzilhadas do labirinto V. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. p. 33.
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