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O SUSP E ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL - Notas de Aula

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O SUSP E ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL
O SUSP E ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL
APRESENTAÇÃO DO CURSO
Ministro da Justiça e Segurança Pública
https://youtu.be/yD9uqHmlDVA
Coordenadora do Pronasci
https://youtu.be/vEjAlZ4437E
Caras alunas e caros alunos,
Neste curso, trataremos de uma questão que é essencial para as ações dos órgãos de Segurança Pública do Brasil: o racismo.
Nossa ideia é entender um pouco melhor o que é o racismo, as implicações que ele tem na história e na sociedade brasileiras e, principalmente, como ele ainda pauta uma série de ações na área da segurança pública, para que possamos pavimentar uma transformação efetiva em prol de um país mais justo e igualitário.
Esperamos que todos e todas tenham um bom curso!
Tenha um excelente curso!!!
OBJETIVOS DO CURSO
OBJETIVO GERAL
Este curso tem, como objetivo, desenvolver, no profissional de segurança pública, a mentalidade de trabalho alicerçada nos princípios do Estado de Direito, no respeito aos direitos humanos, nas relações raciais, na consciência crítica e ética quanto à diversidade de nossa sociedade e numa atuação técnico-operacional, em estreito relacionamento com a comunidade, a fim de promover mudanças na cultura e na estrutura organizacionais.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Reconhecer os aspectos históricos do racismo no Brasil;
Distinguir o racismo estrutural do racismo institucional;
Diferenciar os conceitos de estigma, de estereótipo e de violência racial;
Entender os métodos de atuação policial para enfrentar o fenômeno da criminalidade e da violência em contextos de vulnerabilidade social, com destaque para os grupos étnico-raciais;
Conhecer as implicações jurídicas de comportamentos racistas e do descumprimento da doutrina e da técnica na atuação do profissional do Susp; e
Discutir o racismo científico no Brasil e suas implicações na atuação do profissional do Susp.
ESTRUTURA DO CURSO
O curso tem carga horária de 40 horas e é totalmente ofertado a distância, por meio de um Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (Moodle), espaço em que são disponibilizados os conteúdos do curso.
PÚBLICO-ALVO
O curso foi pensado para capacitar profissionais que compõem o Sistema Único de Segurança Pública/Susp.
ESTRUTURA DO CURSO
Este Curso é formado por 3 Módulos:
	Módulo 1 – História das desigualdades e do racismo e sua relação com o desenvolvimento do Estado brasileiro
	Módulo 2 – Letramento racial
	Módulo 3 – Susp e o enfrentamento ao racismo
Bom curso!
Agora que você já conhece o seu ambiente de ensino e aprendizagem, clique no botão abaixo e responda o forum de apresentação para inicar o curso.
MÓDULO 1 - HISTÓRIA DO RACISMO E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO BRASILEIRO
APRESENTAÇÃO DO MÓDULO
O enfrentamento da desigualdade racial é um ponto fundamental na construção de uma sociedade democrática. Todavia, para que esse enfrentamento aconteça, o ponto de partida deve estar no reconhecimento do caráter estrutural do racismo no Brasil e suas implicações e desdobramentos na Segurança Pública e nas ações policiais. Neste módulo, vamos aprofundar as definições sobre racismo estrutural e realizar um sobrevoo crítico na história brasileira, a fim de entender como esse racismo foi um dos pilares de sustentação do Estado nacional e, consequentemente, na fundação e nas ações da polícia e demais forças de segurança do país. Acreditamos que o (re)conhecimento e a responsabilização são passos fundamentais no processo de transformação do qual este curso faz parte.
OBJETIVOS DO MÓDULO
	Apresentar o conceito de racismo estrutural;
	Analisar o passado escravista e as consequências do racismo durante a vigência da escravidão e no primeiro século do pós-abolição e a ausência de políticas públicas para a inclusão da população negra brasileira na sociedade; e
	Contextualizar, historicamente, a criação e o uso instrumental do Racismo como ferramenta de dominação, inclusive pelo Estado Nacional brasileiro e sua força policial..
ESTRUTURA DO MÓDULO
Este módulo compreende as seguintes aulas:
Aula 1 – O conceito de racismo estrutural.
Aula 2 – O passado escravista e o histórico do racismo no Brasil.
Aula 3 – O nascimento da polícia militar em meio a uma sociedade escravista.
Aula 4 – O racismo científico e sua capilaridade no Brasil: o nascimento do mito da democracia racial.
Aula 5 – O nascimento da República excludente e a criminalização do negro.
AULA 1 – O CONCEITO DE RACISMO ESTRUTURAL
Um curso que pretende reconhecer e combater a desigualdade racial no Brasil precisa começar pela constatação do óbvio: o Brasil é um país racista.
https://youtu.be/oVpb2APGaTs
Existe uma diferença fundamental entre dizer que o Brasil é um país de racistas e em afirmar que o Brasil é um país racista. Enquanto, no primeiro caso, o racismo pode aparecer como um problema de outro - que, muitas vezes, podemos entender como algo distante de nós -, no segundo caso há uma implicação coletiva, que pressupõe que o racismo é algo experimentado pela totalidade da população brasileira - mesmo que de formas diferentes. Essa última perspectiva é conhecida como racismo estrutural.
Esse conceito é uma perspectiva analítica que defende que o racismo estrutura as relações políticas, econômicas, sociais e culturais da modernidade das quais o Brasil faz parte. Dito de outra forma, o racismo organiza a sociedade brasileira.
Nesta aula, iremos analisar, com mais cuidado, o que é o racismo estrutural, reforçando, assim, uma afirmação que deve atravessar todo o curso: o Brasil foi, e continua sendo, um país racista. E, para que isso mude, ações de diferentes naturezas devem ser tomadas. A reeducação é uma delas.
Mas, afinal de contas, o que é, de fato, o racismo estrutural?
No Brasil, durante muito tempo, o racismo foi entendido como um conjunto de práticas discriminatórias e/ou excludentes que tinham como base o preconceito racial, ou o preconceito de cor. Sendo assim, o racismo era entendido a partir de ações individuais contra indivíduos pertencentes a grupos raciais específicos. Tais ações poderiam variar desde as “piadas de mau gosto”, passando para ações mais violentas, como xingamentos com teor racista (basta lembrarmos os episódios que diferentes jogadores negros de futebol experimentaram nos últimos anos), e chegando à interdição efetiva de pessoas negras, quilombolas, mestiças e indígenas em espaços de representação e de poder, assim como de acesso aos bens sociais, como saúde, educação, moradia e trabalho digno; e às ações de violência física mais extrema, que ocasionam mortes biológicas, culturais, psicológicas, que podem afetar as pessoas vítimas de racismo.
Pois bem, essa é apenas a ponta do iceberg, a parte facilmente visível do racismo. E, como veremos ao longo deste módulo do curso, acreditar que, no Brasil, o racismo se restringe apenas a essas ações individuais foi uma ideia muito bem construída, com o intuito de mascarar a força e a dimensão estrutural que ele teve, e continua tendo, em nossa sociedade.
Um dos maiores argumentos daqueles que defendiam a ideia de que o Brasil era um país no qual o racismo não era um problema de grandes dimensões estava na comparação entre a sociedade brasileira e a sociedade estadunidense. Como nos Estados Unidos existiram leis segregacionistas - conhecidas como as leis Jim Crow, algo que não ocorreu no Brasil, se difundiu uma ideia equivocada de que, no Brasil, o racismo seria mais brando e pontual. No entanto, é fundamental sublinhar que a ausência de leis abertamente segregacionistas não significa ausência de racismo. O que vamos ver aqui é que o Estado Nacional brasileiro e boa parte da elite do país criaram diferentes tipos de dispositivos (inclusive legais) para garantir a segregação racial como um elemento ordenador da nação, sem que isso ficasse explicitado. É neste ponto que reside a grande diferença entre a experiência estadunidense e a brasileira. Lá, o racismo é algo reconhecido; aqui, no Brasil, ainda existe uma espécie de grande véu que encobre as profundezas do nosso racismo.Nosso objetivo aqui é tirar esse véu.
Antes de adentrarmos nas explicações mais conceituais do que é o racismo estrutural, gostaria que pensássemos em duas situações recentes na sociedade brasileira. Na primeira delas, peço que vocês observem, com atenção, as duas fotografias abaixo. Ambas foram tiradas no ano de 2015, no Rio de Janeiro, uma cidade na qual a população autodeclarada negra girava em torno de 50% na época.
Figura 1: Contraste racial e social em duas imagens
Fonte: Mídia Ninja, 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/MidiaNINJA/photos/a.164308700393950/1022446454580166/
A primeira fotografia é dos formandos de medicina da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Já a segunda foto registra os garis da mesma cidade, que participavam de um movimento grevista por melhores salários. O que essas imagens informam sobre o racismo no Brasil?
No caso dos formandos de medicina - um dos cursos superiores mais elitistas do país, vemos um grupo de, aproximadamente, 40 pessoas, no qual é possível contar a presença de duas pessoas negras. Já a imagem dos garis - uma atividade essencial para o funcionamento da cidade, porém pouco valorizada e mal remunerada -, o que observamos é uma imensidão de homens negros. Lidas em conjunto, essas imagens ilustram o que é o racismo estrutural e a segregação social e racial que ele gera no Brasil. Enquanto uma das atividades mais prestigiosas do país é ocupada quase que exclusivamente por pessoas brancas, há uma predominância significativa de pessoas negras numa atividade enquadrada como inferior ou menos qualificada. Além disso, eis o que também é estarrecedor: essas imagens não causam nenhum espanto no Brasil, porque nós fomos treinados a entender como normal que pessoas brancas estejam em lugares de prestígio, enquanto pessoas negras se restringem à subalternidade.
Muitos podem afirmar que não se trata de um problema racial, mas social, uma vez que as fotos retratam pessoas de classes sociais distintas. Sim, isso é verdade, mas, no Brasil, a questão racial ordena as classes sociais. Então, para que isso fique evidenciado, convido todos e todas a examinarem, com calma, o gráfico abaixo:
Gráfico 1: Evolução salarial por grau de instrução (2014)
Fonte: RAIS, 2014. Disponível em: https://exame.com/wp-content/uploads/2016/09/size_810_16_9_grafico_negros1.jpg?quality=70&strip=all?quality=70&strip=all&strip=all
Esse gráfico demonstra que, mesmo dentro da mesma classe social, ainda existe uma disparidade salarial entre a população negra e branca - uma realidade que aparece em meio à população mais pobre, e que vai se tornando cada vez mais acentuada à medida que o recorte socioeconômico se torna mais alto. Quanto mais rica é a classe social, maior a diferença salarial entre negros e brancos (mesmo quando ambos têm instrução superior). Que outra razão poderia explicar essa disparidade senão o racismo?
A segunda situação que gostaria de tratar aqui diz respeito, diretamente, ao tema do nosso curso: a segurança pública no Brasil.
Gráfico 2: População negra e negros mortos pela polícia em 2020 (%)
Fonte: Rede de Observatórios de Segurança (2020). Disponível em:https://cesecseguranca.com.br/reportagens/estudo-diz-que-86-dos-mortos-em-acoes-policiais-no-rj-sao-negros-apesar-de-grupo-representar-517-da-populacao/#:~:text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20negra%20no%20RJ,de%20mortes%2C%20com%20415%20registros
Em 2020, a Rede de Observatórios de Segurança mapeou, por meio de pesquisa, a violência policial em seis estados brasileiros. Em todos eles, observou-se que a porcentagem de pessoas negras mortas em ações policiais é significativamente maior que o percentual da população negra em cada um dos estados. Como explicar o porquê de negros e negras serem os maiores alvos de letalidade da polícia brasileira?
Antes que a resposta se restrinja a uma explicação socioeconômica, pontuando que a população negra é mais pobre e, consequentemente, mora em mais áreas de risco, é importante frisar que o gráfico 2 demonstra uma discrepância significativa entre o percentual de mortos e o percentual da população negra nos estados. Se o racismo não fosse um fator influenciador das ações policiais, o máximo que observaríamos seria uma equivalência entre o percentual da população negra e o percentual de pessoas mortas nas ações policiais. E ainda há o outro lado da moeda: as mesmas ações policiais que acarretam maior letalidade da população negra também matam mais policiais negros do que brancos, mesmo quando a porcentagem de efetivos negros é menor. Ou seja, independente de que lado estejamos tratando, o resultado é o mesmo: pessoas negras morrem numa proporção muito maior em circunstâncias mais críticas, que envolvem a garantia da segurança (e o bem-estar) dos cidadãos brasileiros.
Essas duas situações foram trazidas para ajudar a sedimentar o conceito de racismo estrutural, mas poderíamos ter analisado outros aspectos da sociedade brasileira, como a superlotação dos presídios, a pouca representatividade negra nas novelas e demais veículos do audiovisual brasileiro, ou até mesmo o menor grau de escolaridade da população negra, quando comparada com a população branca.
Mas é preciso sublinhar que os dados trazidos aqui, a título de exemplo, demonstram que:
a) brancos ocupam espaços de privilégio;
b) negros são a maioria em serviços considerados subalternos;
c) dentre a mesma classe social, brancos ganham mais do que negros;
d) as ações da polícia brasileira acarretam uma letalidade significativamente maior da população negra (tanto entre os civis, como entre os policiais mortos). Talvez, um dos aspectos mais perversos em tudo o que foi elencado acima é este: nós não vemos nenhum problema em nenhuma das observações levantadas, porque todas fazem parte da nossa “normalidade”. Vale destacar que, entre “as mortes normais ou por balas perdidas”, além de serem majoritariamente negras, muitas delas são crianças e adolescentes, que, por vezes, são alvejadas no interior de suas casas e escolas.
Na prática:
Uma maneira simples de explicar o que é racismo estrutural seria exatamente essa: a normalidade com a qual encaramos e experimentamos as diferenças raciais no Brasil, como se fosse “natural” que negros que concluíram o Ensino Superior ganhem menos do que seus colegas brancos de profissão; ou então que seja quase banal o fato de que a população negra segue sendo desproporcionalmente atingida por ações violentas das forças de segurança.
A questão é que essa aparente normalidade não existe na natureza, não faz parte do “ar que respiramos”. Ela é fruto da construção de um sistema de poder que tem uma história longa, de raízes profundas. Esse sistema de poder é o que chamamos de racismo.
Sendo assim, uma das formas mais eficientes de entender a dimensão estrutural do racismo é justamente entendê-lo como um sistema de poder. Essa é uma percepção fundamental, porque permite que tenhamos uma compreensão mais densa do que ele é e de como ele funciona. No Brasil, é comum que o preconceito racial, quando reconhecido, seja tratado como um “problema do negro”. Existem estudos de diferentes áreas do conhecimento que tentam compreender como o racismo impacta a vida da população negra. Embora essa seja uma dimensão importante, pois negros e negras são as vítimas do racismo, é crucial perguntarmos: qual a implicância que a população branca tem numa sociedade racista? Ou melhor dito: quais as responsabilidades e os privilégios que as pessoas brancas têm numa sociedade racista? Se olharmos para o Congresso Nacional brasileiro, as Supremas Cortes, os tomadores de decisões em relação aos destinos de nosso país, as camadas mais favorecidas e o mundo empresarial, não demoramos para encontrar a resposta.
É possível que poucas pessoas (sobretudo brancas) já tenham feito a si mesmas esse tipo de pergunta. Além disso, a ausência de um questionamento que implique a população branca na lógica racista é, nada mais, nada menos, do que o racismo em pleno funcionamento. No entanto, se formos seguir um pensamentológico, vamos nos deparar com a seguinte encruzilhada: se pessoas negras, mestiças e indígenas e quilombolas são vítimas das mais variadas formas de violência, alguém é racialmente violento com elas. Então, voltando à afirmação que abriu essa aula, nós somos uma sociedade racista, porque somos uma sociedade de pessoas racistas.
Reconhecer e entender que a população branca faz parte da dinâmica de funcionamento do racismo é o ponto de partida para compreender que o racismo estrutural é um sistema de poder.
Esse sistema tem como premissa o fato (irreal) de que a humanidade está dividida em raças. Por muito tempo, acreditou-se que essas eram biologicamente diferentes, e essas crenças foram cruciais na organização de uma sociedade, que tomava as características fenotípicas como atributos para hierarquizar as experiências humanas. Foram construídos estereótipos negativos sobre a população negra baseadas em traços físicos, capacidade intelectual, moralidade e cultura, tornando-os bases para inferioridade, definindo, assim, que existiam alguns tipos de vidas humanas que eram superiores a outros tipos. Ou seja, existiam umas que importavam mais do que outras. Embora, desde o começo do século XX, a ciência já tenha comprovado que raças humanas não existem, o conceito de raça continuou fazendo sentido para entender e explicar a organização social, política, econômica e cultural do mundo.
Se estamos tratando o racismo como um sistema de poder, isso significa dizer que, nesse sistema, existem pessoas que detêm poder, enquanto outras, não. A questão central é que esse preconceito determina que as pessoas que detêm o poder sejam as pessoas brancas, enquanto todos os demais grupos não-brancos ficam à margem dos espaços de poder e prestígio. Desse modo, existe uma ideia de supremacia branca que embasa todo esse sistema: brancos detêm o poder porque são considerados - e se consideram - superiores aos demais. E, neste caso, não estamos falando apenas do poder político e econômico, mas também do poder simbólico que a pele branca tem, como se o fato de ter nascido branco garantisse uma série de vantagens (que também são chamadas de privilégios), que nem o homem negro mais rico poderá alcançar.
Para ajudar na compreensão da complexa trama do racismo, é interessante dialogar com pensadores que estão analisando essa questão há muito tempo. Um importante nome nos estudos sobre racismo é o do sociólogo jamaicano Charles W. Mills. Ele desenvolveu uma teoria na qual defende que, desde o século XV, a humanidade vive sob um pacto racial. Esse tem como base o princípio da supremacia branca (também conhecido como branquitude). No entanto - e aí temos a “jogada de mestre” deste pacto -, o princípio dessa supremacia não é revelado, ele se camufla na ideia de universalismo. Dito de outra forma, tudo o que é considerado universal está diretamente ligado à experiência branca e eurocentrada1 	A ideia de que a Europa é o centro da cultura mundial. Eurocentrismo corresponde a uma expressão que emite a ideia no mundo como um todo de que a Europa e seus elementos culturais são referência no contexto de composição de toda sociedade moderna. , enquanto todo o restante da humanidade é racializado2 	Que se racializou ou adquiriu carácter racial (ex.: sociedade racializada). 2. No qual se destaca ou tem importância o carácter racial (ex.: grupo racializado). e entendido como minoria social.
Um exemplo fácil que comprova esse aspecto do contrato racial está no fato de não nos referirmos às pessoas brancas como pessoas brancas; na lógica do racismo, essas são apenas pessoas. Mas, quando estou me referindo a um sujeito não-branco, a sua condição racial é rapidamente acionada. Isso acontece em situações do nosso dia a dia, quando descrevemos ou nos referimos a alguém, ou quando, na escola, aprendemos a história da Europa como se ela fosse a história universal (e, consequentemente, a mais importante).
Esse sistema nos faz crer que tudo que advém da Europa, por ser universal, abarca toda a existência humana. Um exemplo clássico disso é o pouco (ou quase nada) que estudamos nas nossas trajetórias escolares sobre os demais continentes. O africano, por exemplo, da forma como é apresentado nos livros didáticos, nos leva a construir uma ideia de país, e não de um continente com diversos países, cultura, idiomas, economias, biomas, organizações sociais e políticas diferentes. Para falar do continente africano, o foco sempre se volta para as guerras, a fome e a miséria.
Essa percepção ordena todas as dimensões do nosso cotidiano, fazendo com que, desde muito cedo, nós sejamos ensinados a naturalizar os privilégios que o racismo cria para todas as pessoas brancas, mesmo aquelas que não necessariamente concordem com a existência desses privilégios. Além de uma gama enorme de vantagens materiais que o racismo cria para a população branca, há, também, o enorme benefício dessa população não se pensar de forma racializada. Não por acaso, frases, como “eu não vejo cor, só vejo pessoas”, são comumente ditas por pessoas brancas quando confrontadas em alguma situação na qual a discriminação racial fica explícita. Pois bem, em meio ao contrato racial que nos organiza, apenas as pessoas brancas têm o luxo de não enxergarem a cor de sua pele como um atributo que define grande parte de suas vidas. Isso significa que essas não sofram, não passem dificuldades e não sejam marginalizadas? De forma alguma, mas é importante pontuar que, mesmo as dores e dificuldades que pessoas brancas passam, não são, em grande medida, definidas pela cor de sua pele.
É importante reconhecer os privilégios que o racismo cria para a população branca para que possamos compreender outros dois conceitos problemáticos, que costumam ser muito evocados quando o assunto é racismo: meritocracia e racismo-reverso.
A meritocracia é um conceito falho, pois ele parte do pressuposto simplista que basta o esforço pessoal de um indivíduo para que ele consiga sucesso na vida. Se esse princípio estivesse correto, nossa segunda conclusão seria que, salvo exceções, no Brasil apenas pessoas brancas seriam esforçadas, pois a experiência de sucesso costuma ser branca. Na realidade, a própria ideia de merecimento está diretamente vinculada à vida de pessoas brancas. Ainda que o esforço pessoal seja uma característica importante na trajetória de um indivíduo, o alcance dele está diretamente ligado à sua pertença racial. Como vivemos em uma sociedade profundamente desigual, uma pessoa pobre e preta terá que se esforçar mais do que uma pessoa branca de classe média - e mesmo esse esforço hercúleo não garante que o sucesso desejado seja alcançado. Claro que existem exceções, mas, como diz o ditado popular, “são as exceções que confirmam a regra”.
Racismo-reverso também é um conceito falho, porque ele pressupõe a possibilidade de uma pessoa negra ser racista e uma pessoa branca sofrer racismo. Acontece que ser racista significa estar num espaço de poder e de privilégio que as pessoas negras têm mais dificuldade de alcançar, justamente por serem o que são: pessoas negras. Embora algumas possam compactuar com práticas racistas, elas não podem o ser, porque isso significa exercer um poder que lhes foi negado a priori, não importando o quanto ricas/famosas essas pessoas negras possam vir a ser.
É crucial apontar que esse caráter estrutural do racismo também fundamenta a organização e o funcionamento do Estado. Como dito por Charles Mills, “o contrato racial3The Racial Contract
 estabelece um regime político racial, um Estado racial e um sistema jurídico racial nos quais o status de brancos e não-brancos está claramente demarcado, seja por lei, seja por costume.” (MILLS, 2023, p. 46).
Ou seja, o contrato racial que funda o sistema de poder, que é o racismo, também define que as instituições sejam racistas - não um aberto e declarado que costuma aparecer em situações de governos mais autoritários e extremistas, mas por meio de leis e costumes que entendem as desigualdades existentes entre brancos, negros e indígenascomo atributos naturais da experiência humana. Um exemplo bem elucidativo é o fato de, no Brasil, termos pouquíssimos presidentes de empresas negros, e isso não ser um problema ou fator de indignação.
Como explicar que, num país no qual 56% da população se autodeclara negra, nem 10% dos maiores empresários sejam negros? Será que eles não se esforçam o suficiente, ou será que apesar dos esforços, há um sistema que impede ou limita as possibilidades de ascensão social de um homem e de uma mulher negra? Outro exemplo pode ser atestado pela baixa representatividade negra no Congresso Nacional. É complexo encontrar outra resposta que nos mostre o porquê de, num país que tem mais da metade da população autodeclarada negra, apenas 20% dos parlamentares sejam negros, que não o racismo.
É curioso que a mesma naturalidade com a qual vemos espaços de poder e privilégio como atributos quase exclusivos da população branca também é acionada quando nos deparamos, por exemplo, com os dados da Justiça, ou então os índices da Segurança Pública brasileira. Não há nenhuma perplexidade quando observamos sentenças expedidas pelo poder Judiciário, que definem penas distintas para pessoas negras e brancas que cometeram o mesmo crime, ou, então, que membros desse mesmo Judiciário façam uso de teorias abertamente racistas (como a antropologia criminal4 	Ciência que tem por objeto o estudo do criminoso conforme suas características anatômicas e psíquicas e as repercussões do ambiente social na atividade do delinquente. ) para determinar a culpa de um réu negro. Também, parece não haver incomodo algum quando nos deparamos com os dados de letalidade nas ações policiais citados acima: negros sempre foram mais mortos pela polícia, não é mesmo5 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/negros-sao-maioria-dos-mortos-em-acoes-policiais ?
Um outro exemplo elucidativo pode ser visto na pesquisa realizada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas do Brasil e pela ONG Terra de Direitos em 2018. Ela não só revela o alto índice de assassinatos de pessoas quilombolas, mas também demonstra que o sistema de justiça não fez quase nenhum movimento que gerasse algum tipo de punição. Esses dados estão disponível em: http://conaq.org.br/noticias/a-publicacao-racismo-e-violencia-contra-quilombos-no-brasil-esta-disponivel-para-download/
Na prática:
Como foi dito no começo desta aula, a violência endêmica das forças policiais contra as pessoas negras e indígenas do país é a ponta de um iceberg, que nada mais é do que nosso racismo estrutural. Mas essa ponta também é parte do problema, e deve ser bem estudada.
Este curso é uma das medidas necessárias para que comecemos a (re)conhecer o caráter estrutural do racismo no Brasil e, a partir de então, elaborarmos ações e políticas públicas que coloquem em xeque a ordem racista que nos estrutura. O preconceito racial é uma das principais engrenagens da sociedade brasileira. Assim, como bem disse a advogada e professora Thula Pires6 	Professora de Direito Constitucional PUC-Rio E-mail confirmado em puc-rio.br , é fundamental que coloquemos pedras para interromper o funcionamento dessas engrenagens. Há séculos, negros e indígenas vêm sendo as pedras massacradas pelas máquinas do racismo, mesmo porque não tenha havido, e ainda haja, muita escolha para essas populações. Desse modo, quem se compromete com a luta pelo fim da desigualdade racial está se propondo a ser pedra também. Essa é uma escolha que causará incômodos, dores, angústias, mas é a única forma de mudarmos a estrutura racial que temos.
Nas próximas aulas deste módulo, faremos um passeio sobre a história do Brasil, em meio a uma perspectiva crítica, para que possamos entender como e por que a Segurança Pública brasileira foi, e continua sendo, ordenada pelo racismo. Imaginamos que esse possa ser um bom começo para as mudanças necessárias.
AULA 2 – O PASSADO ESCRAVISTA E O HISTÓRICO DO RACISMO NO BRASIL
https://youtu.be/sGCD5QEqfAw
Pensar na trajetória histórica do racismo estrutural no Brasil significa um recuo imenso. É possível, inclusive, afirmar que não há história do Brasil sem racismo, sobretudo se estivermos pensando na Constituição e nas amarras do pacto racial do qual nos fala Charles Mills (conforme visto na Aula 1). Além disso, há uma instituição da história brasileira (uma das mais longevas) que nos ajuda a compreender a estruturação que o racismo desempenhou no Brasil, essa instituição é a escravidão.
Entender o racismo estrutural de hoje significa compreender a Constituição e a vigência da supremacia branca, que, por sua vez, deita suas raízes no passado escravista. Acontece que essa relação causal é pouco evidenciada. Assim como o racismo, a escravidão costuma ser pensada e trabalhada como um problema do negro, como um fato histórico que se encerrou com a falha “abolição”, tendo em vista que somente as pessoas negras (e também as indígenas) eram passíveis de serem escravizadas. No entanto, uma sociedade de escravizados também é uma sociedade de senhores de escravos, e pouco, ou nada, se fala sobre essa dimensão da nossa história e do impacto que ela tem nos dias atuais. Esse é mais um dos silêncios que constitui a história brasileira.
Mas, como bem colocado por Cida Bento:
“É urgente fazer falar o silêncio, refletir e debater essa herança marcada por expropriação, violência e brutalidade para não condenarmos a sociedade a repetir indefinidamente atos anti-humanitários similares. Trata-se de uma herança inscrita na subjetividade do coletivo, mas que não é reconhecida publicamente. O herdeiro branco se identifica com outros herdeiros brancos e se beneficia dessa herança, seja concreta, seja simbolicamente.” (BENTO, 2022, p.24).
Nesta aula, nós entenderemos um pouco melhor como a escravidão se constituiu em uma herança perversa que ajudou a determinar privilégios e poderes do Brasil racista.
Em primeiro lugar é fundamental pontuar que a escravidão é uma instituição que existiu em diferentes momentos e diferentes partes da história da humanidade. Em segundo lugar, precisamos sublinhar que existem sociedades que têm escravizados e as sociedades escravistas. As primeiras são aquelas que não dependem da mão de obra escravizada para funcionar – podemos tomar como exemplo o Brasil atual, no qual nos deparamos com inúmeras situações de trabalhadores em condições análogas à escravidão, mas o trabalho livre e assalariado é a norma. Já as sociedades escravistas são aquelas que dependem do trabalho escravo. Conhecemos o exemplo do Império Romano e da escravidão moderna que foi empregada na colonização das Américas.
Uma diferença fundamental entre a escravidão romana e a moderna é o fato de a segunda ter sido racializada. Ou seja, apenas pessoas de determinados grupos raciais poderiam ser escravizados. Essa condição tem reflexo até hoje, marcando as relações modernas de trabalho, as quais definem quem são os trabalhadores e as trabalhadoras urbanos(as) e rurais que podem usufruir de direitos constitucionais ou não. Em meio à construção do racismo estrutural, a escravidão racializada foi um dos primeiros privilégios usufruídos pela população branca: eles não poderiam ser escravizados.
Isso significa que todos os negros e indígenas eram escravizados? Não. Mas, além de todos eles estarem sujeitos a essa condição, a escravidão também se tornou uma espécie de mancha, de mácula que acompanhou a vida de todos os homens e todas as mulheres negros, negras, indígenas e quilombolas. Uma dor que nem a Abolição da escravidão foi capaz de dissolver, inclusive pelo seu caráter ilusório.
Pois bem, assim como em outras localidades do continente americano, a escravidão foi uma instituição que organizou e dinamizou a colonização portuguesa na América.
Como bem se sabe, quando os portugueses chegaram ao território que hoje chamamos de Brasil, em 1500, essa era uma terra densamente habitada por milhares de povos indígenas. Os primeiros anos da colonização foram marcados por uma ocupação incipiente do território, fazendocom que a presença portuguesa não passasse de iniciativas individuais e privadas. A transformação na situação ocorreu de maneira abrupta a partir da metade da década de 1530. Isso se deveu a uma combinação de fatores, incluindo os reveses enfrentados pelos portugueses em suas empreitadas nas rotas do Índico e as investidas de outras potências europeias que buscavam conquistar o novo território.
Em 1534, após a expedição liderada por Martim Afonso de Souza, o rei português Dom João III, apelidado de "O Colonizador", empreendeu sua primeira tentativa de organizar a posse americana, introduzindo o sistema de capitanias hereditárias. No entanto, diante dos resultados insatisfatórios desse modelo, o rei instituiu, em 1548, o Governo Geral, uma estrutura administrativa portuguesa voltada para a centralização do poder e a implementação de mecanismos para fortalecer e estimular a administração colonial.
Do ponto de vista econômico, a colonização das Américas se tornou uma empreitada extremamente atraente e rentável para a Coroa portuguesa, graças ao advento do açúcar e ao complexo sistema econômico que girava em torno dele. O cultivo do açúcar nos engenhos das capitanias do Nordeste resultou em uma dinâmica econômica que, posteriormente, serviria como modelo em outras colônias americanas, caracterizada pela produção em larga escala de um único produto tropical, sendo a mão de obra formada predominantemente por africanos escravizados e seus descendentes.
Por muito tempo, a história inicial do Brasil foi marcada por uma abordagem superficial e preconceituosa, especialmente em relação à mudança na força de trabalho explorada pelos portugueses. Gerações de brasileiros aprenderam, nas escolas, que a substituição da mão de obra indígena era justificada pela alegada aversão dos nativos ao trabalho árduo em contraposição à suposta superioridade física dos africanos. Essas visões, de teor marcadamente racista, perpetuaram a ideia errônea de que os indígenas eram preguiçosos, enquanto os africanos eram considerados "animais de carga", destinados a realizar trabalhos pesados.
Embora os africanos tenham desempenhado um papel essencial na produção de açúcar, foram os indígenas escravizados que compuseram a mão de obra inicial dos primeiros engenhos, entre os anos de 1550 e 1580. Nas décadas seguintes, era comum observar indígenas e africanos trabalhando lado a lado nesses ambientes. Apesar de o tráfico transatlântico já ter sido iniciado pelos portugueses, a sua organização e sistematização nas Américas portuguesas demoraram algumas décadas para se consolidarem. Nesse meio-tempo, os africanos escravizados eram significativamente mais caros que os indígenas escravizados, o que explicava a manutenção sistemática da escravidão de sociedades indígenas até os primeiros anos do século XVII.
É importante pontuar que a substituição sistêmica de indígenas escravizados por africanos nas mesmas condições contou com o forte apoio e a legitimação da Igreja Católica. Antes mesmo dos portugueses chegarem ao que hoje chamamos de Brasil, essa já havia dado permissão para que os reis lusitanos escravizassem africanos. Em 1455, o papa Nicolau V publicou uma bula papal dirigida ao rei português D. Afonso V, definindo que:
“Guinéus7 	Significado de guinéu. Antiga moeda inglesa, equivalente a 21 xelins. Foi cunhada pela primeira vez em 1663, em ouro proveniente da costa de Guiné, na África ocidental, derivando seu nome dessa região. Foi a principal moeda de ouro inglesa até 1813, quando o soberano, equivalente a 20 xelins, tomou seu lugar. e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus aos mesmos D. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou colectividade, infringir essas determinações, seja excomungado.”
As justificativas para a escravização dos africanos e de seus descendentes foi encontrada a partir da leitura de determinadas passagens do Antigo Testamento, sobretudo as histórias vinculadas a Caim e a Cam8 	Observa-se que a descendência de Cam originou os povos africanos, ameríndios e parte dos asiáticos e da Oceania. Nesse momento, é fundamental recuperarmos a maldição que Noé proferiu contra Canaã: “Maldito seja Canaã; seja servo dos servos de seus irmãos". , 9 https://www.gotquestions.org/Portugues/negros-amaldicoados.html . Em ambos os casos, os africanos eram punidos pelos pecados cometidos por seus antepassados, e a punição residia justamente no fato de eles serem negros.
Ainda que fossem entendidos como sociedades inferiores, os indígenas ocuparam outro lugar dentro da lógica católica. Vistos como pagãos, aos indígenas foi concedida a “dádiva” da catequese, um processo de aprendizagem que impunha os valores cristãos e europeus para sociedades nativas. Aqueles que se recusassem à catequese poderiam (e deveriam) ser escravizados.
Como o Brasil era uma colônia de dimensões continentais, o que se observou foi que, a partir de meados do século XVII, africanos escravizados passaram a trabalhar em atividades vinculadas ao mercado externo, e a presença de indígenas escravizados era mais frequente em espaços destinado à economia interna da colônia, mas, muitas vezes, esse padrão foi alterado. De todo modo, o que tivemos, ao longo da experiência colonial, foi a confirmação reiterada de um dos primeiros pressupostos do racismo científico: o fato de que apenas os grupos racializados eram passíveis de serem escravizados.
O modelo de produção de açúcar em plantations, que se tornou característico, só foi plenamente estabelecido a partir das primeiras décadas do século XVII. No entanto, a escravização dos indígenas não foi totalmente abolida, e o tráfico de africanos escravizados continuou a crescer, principalmente nas plantations, resultando em lucros dobrados para a metrópole portuguesa. E, agora, é fundamental abrir um subcapítulo para tratar do tráfico transatlântico de africanos escravizados. O infame comércio (como era chamado) pode ser entendido como o ciclo econômico de ampla envergadura e longa duração, impactando, significativamente, o desenvolvimento da América portuguesa e, depois de 1822, do Brasil.
No entanto, havia outro fator a ser levado em consideração: o tráfico transatlântico de africanos escravizados era uma atividade altamente lucrativa. A rentabilidade do tráfico é um ponto fundamental na compreensão do porquê a escravidão africana ter sido amplamente difundida no Brasil. Esse mercado foi um dos maiores e mais nefastos crimes contra a humanidade. Sua lógica estava organizada a partir de um processo de desumanização sistemático das sociedades africanas que, conforme visto acima, eram entendidas como inferiores aos europeus. A compra e venda de africanos escravizados tornou-se uma das empresas mais lucrativas de todo o mundo, viabilizando
a) criação de fortunas,
b) acumulação primitiva de capital,
c) financeirização da economia mundial e surgimentos de bancos. Durante 200 anos, nada dava mais dinheiro no mundo do que comprar e vender gente negra.
A dinâmica do tráfico começava com o sequestro de homens, mulheres e crianças em diferentes partes do continente. Essas pessoas eram levadas para cidades litorâneas nas quais existiam portos de embarque, e ficavam presas em barracões por semanas, ou até mesmo meses, vivendo em condições insalubres e mal alimentadas – o que levava muitas dessas pessoas à morte. O embarque nos navios negreiros era o momento mais traumático do processo. Em primeiro lugar, porque muitos africanos e muitas africanas não sabiam o que existia do outro lado do Oceano (em algumas sociedades africanas, imaginava-se que o Atlântico fosse um extenso rio que dividia omundo dos vivos para o mundo dos mortos). Em segundo lugar, porque a entrada no navio negreiro era uma espécie de morte em vida: as pessoas se despediam de um território que conheciam para serem escravizadas num lugar completamente desconhecido e por pessoas desconhecidas.
Por fim, a travessia Atlântica – que poderia durar de 8 a 14 semanas – era absolutamente terrível. Para ampliar os lucros, os traficantes chegavam a colocar 300 africanos nos porões de navios que comportariam de 100 a 150 pessoas. Isso significava que não havia espaço, nem comida, nem água potável para todos. A falta de condições mínimas de higiene era responsável pela difusão de inúmeras mortes: 20 a 30% dos africanos embarcados morriam na travessia e tinham seus corpos jogados ao mar. Não por acaso, outro nome dado a esses navios era tumbeiro. Aqueles que sobreviviam à travessia recebiam a escravidão como recompensa.
Figura 2: Planta baixa de um navio negreiro
Fonte: Gravura publicada em 1830 no livro Notices of Brazil in 1828 and 1829, de R. Washl. Domínio público, Arquivo Nacional – Ministério da Justiça Disponível em:https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/america-portuguesa/8739-o-tr%C3%A1fico-negreiro .
Temos poucos registros em primeira pessoa de africanos que vivenciaram esse processo. Um dos mais importantes é o relato de Baquaqua, um homem nascido no atual país do Benin (África Ocidental), que foi capturado como escravizado em 1845.
Os seus horrores, ah! Quem poderá descrever? Ninguém poderá representar tão verdadeiramente os seus horrores como o pobre infeliz, miserável desgraçado que foi confinado dentro dos seus portais. Ó amigos da humanidade, tenham piedade do pobre africano, que foi ludibriado e vendido do convívio dos seus amigos e do seu lar, e enviado para o porão de um navio negreiro, para esperar por mais horrores e misérias em uma terra distante, no meio dos religiosos e benevolentes. Sim, exatamente no meio deles; mas rumo ao navio! Fomos lançados no porão do navio em estado de nudez, os homens espremidos de um lado e as mulheres do outro; o porão era tão baixo que não conseguíamos ficar de pé, mas éramos obrigados a nos agachar sobre o piso ou a nos sentarmos; dia e noite eram a mesma coisa para nós, o sono nos era negado pela posição de confinamento dos nossos corpos, ficamos desesperados com o sofrimento e a fadiga. [...] A única comida que tínhamos durante a viagem era milho cozido mergulhado em água. Não consigo dizer quanto tempo ficamos confinados daquela maneira, mas pareceu um período muito longo. Nós sofremos muitíssimo com a falta d'água, mas nos era negado tudo o que precisávamos. Meio litro por dia era tudo o que era permitido, e nada mais; e um grande número de escravos morreu na travessia.” (Baquaqua, 1854)
É preciso repetir, uma vez mais, que a desumanização de africanos negros foi o ponto de partida, e o ponto de chegada da empresa mais lucrativa que existiu entre os séculos XVII e XIX. Foi esse processo que permitiu que o tráfico transatlântico de africanos escravizados se expandisse ao longo dos séculos, atingindo o seu apogeu no século XIX. O comércio impulsionou consideravelmente a entrada de africanos na América portuguesa, consolidando a escravidão como um sistema profundamente enraizado. A presença e o papel dos traficantes brasileiros foram fundamentais para o influxo maciço de africanos, estabelecendo um ciclo de comércio bilateral que fortaleceu os laços entre o Brasil e algumas sociedades africanas. Não por acaso, o Brasil foi a localidade das Américas que mais recebeu africanos escravizados: 4,8 dos 12 milhões de africanos sequestrados de suas terras de origem desembarcaram e trabalharam no Brasil - o último país a abolir a “escravidão” nas Amáricas.
Esse enorme volume do tráfico é o principal fator que explica por que o escravizado se tornou o tipo de propriedade privada mais acessível em toda a colônia e também nas primeiras décadas do Império do Brasil. A alta lucratividade na compra e venda de pessoas africanas fez com que muitos brasileiros se tornassem traficantes, o que, por sua vez, facilitou o acesso da população aos escravizados. Ainda que o africano escravizado fosse uma propriedade significativamente cara, até mesmo pessoas de condições mais módicas poderiam comprá-lo, pois os traficantes brasileiros criaram cartas de crédito que facilitavam a aquisição de um cativo.
Justamente por isso, os senhores de escravizados eram uma classe diversificada, abarcando indivíduos com diferentes níveis de riqueza e influência. Ainda que a maior parte deles tivessem de 1 a 3 escravizados como propriedade, existiam aqueles que possuíam dezenas e até mesmo centenas de pessoas em condição de escravidão.
A disseminação do escravizado como a principal propriedade privada no Brasil tinha como razão principal o fato de que ele era uma propriedade e, ao mesmo tempo, um investimento. Tanto no período colonial, como no Império, os escravizados negros (africanos e nascidos no Brasil) realizaram as mais variadas atividades: trabalharam na produção de açúcar, café, algodão, tabaco; criaram gado; extraíram ouro e pedras preciosas; cuidaram de todas as atividades domésticas (inclusive a amamentação das crianças brancas); trabalharam numa variada gama de atividades nos principais centros urbanos - vendiam produtos, carregavam mercadoria nas alfândegas, calçaram ruas, eram músicos, boticários, quituteiras.
É necessário pontuar que boa parte dessas atividades eram executadas a partir de saberes e tecnologias que africanos e africanas trouxeram de suas sociedades de origem, tais como a pecuária extensiva e a metalurgia (ambas desconhecidas pelos portugueses), e uma série de processos de cura executados pelos mestres sangradores, pelas parteiras e pelos boticários. A presença dos escravizados era tamanha que, durante a vigência da escravidão, eles podem ser entendidos como sinônimo de trabalho - uma condição que era herdada pelos seus descendentes, mesmo aqueles que conseguiam comprar sua liberdade por meio da carta de alforria. No Brasil, até 1888, os negros e as negras eram, antes de mais nada, trabalhadores e trabalhadoras.
Era a exploração sistemática do trabalho escravo que tornou os escravizados algo tão atraente para os proprietários, mesmo aqueles mais pobres. Em tese, a administração dos escravizados era uma responsabilidade dos proprietários, que determinavam todos os aspectos de suas vidas, incluindo alimentação, trabalho e até casamentos. Grosso modo, os assuntos relacionados aos escravizados estavam circunscritos à esfera privada das relações, porque o escravizado era uma propriedade privada. Tanto era assim que os proprietários podiam dispor dos seus da forma como bem quisessem. Não se tratava apenas da exploração de seu trabalho, mas também da violência de seus corpos, o que poderia acontecer tanto pelo estupro, como pela aplicação de castigos (que, muitas vezes, levavam à morte proposital da pessoa escravizada).
Justamente por isso, quando a luta daqueles em situação de escravidão pela liberdade colocava a ordem escravista em xeque, o que se observava era a aliança entre poderes metropolitanos, eclesiásticos e colonos sendo profundamente eficaz - uma aliança que era orquestrada por homens brancos, que pareciam ter uma percepção racial apurada. Nesse sentido, as primeiras ideias de policiamento que foram implementadas no período colonial tinham a função de fazer valer os interesses dessa parcela específica da população, mantendo a ordem escravista por meio de atuações violentas contra corpos de pessoas escravizadas (sobretudo negras). Todavia, é importante dizer que uma característica que atravessou a história do Brasil desde o período colonial é o fato de as elites políticas, que detinham o poder (e, muitas vezes, eram os representantes máximos do Estado), terem plena consciência da importância de não fomentar uma identidade racial e meio a uma sociedade racial e desigualmente estruturada.
Não por acaso, boa parte dos órgãos derepressão que foram criados contaram com a participação efetiva da população pobre e, muitas vezes, negra e mestiça. Muitos capitães-do-mato eram homens de cor livres, que ganhavam a vida capturando escravizados negros foragidos. O Terço dos Henriques (uma milícia armada do período colonial formada apenas por homens negros e mestiços) era um corpo militar frequentemente solicitado quando o assunto era o desmantelamento de mocambos e quilombos. Ainda que negros e mestiços fossem vistos como seres inferiores, era fundamental que existisse uma diferenciação dentre eles para que o fomento de uma identidade racial não acontecesse. Dito de outra forma, uma maneira eficaz de manter a ordem escravista no Brasil colônia e no Brasil Império era organizar forças de repressão compostas por homens negros (livres e libertos). Essa foi uma lição que o Estado brasileiro aprendeu muito bem, e que foi adaptada para a experiência republicana, até porque, quando organizadas de acordo com os interesses que visavam à manutenção dos privilégios, a presença negra e mestiça nesses órgãos de repressão garantiam que o lado mais frágil das duas pontas às ações policiais fossem pessoas negras.
Voltando para o período colonial, é possível afirmar que uma das maiores heranças legadas para o Império do Brasil foi a escravidão negra. Isso significa dizer reconhecer não só a dependência que o Brasil tinha em relação ao trabalho realizado pelos escravizados, como também pontuar que essa dependência criou uma sociedade na qual o oposto de ser escravo era ser senhor de escravos. Isso mesmo: no Brasil, uma das condições mais almejadas durante séculos era ser proprietário de alguém, e esse alguém sempre era uma pessoa negra.
Essa era uma condição tão entranhada na sociedade brasileira que, em meio a uma das transformações políticas mais significativas da nossa história – o Processo de Independência em 1822 -, as elites brancas do país refizeram o pacto em nome da escravidão e da segurança de seu lugar como proprietário de escravizados. Essa talvez tenha sido a maior aposta daquele período; o Brasil, independente e soberano, apostava na escravidão para o futuro.
Contudo, é preciso ressaltar que, quando o Brasil se tornou um país independente, a escravidão era uma instituição combatida não só pelos escravizados, mas também por um movimento abolicionista crescente. No início do século XIX, a Inglaterra (que havia sido a maior traficante de africanos escravizados do mundo) se tornou uma espécie de bastião da causa abolicionista, pressionando seus parceiros comerciais a abolirem a escravidão. Um dos países pressionados foi Portugal. O rei português D. João VI criou diferentes estratégias diplomáticas para adiar ao máximo a abolição do tráfico transatlântico para o Brasil. A principal razão para isso era que o rei luso precisava atender aos interesses de seus súditos, e os mais ricos súditos brasileiros daquele momento eram os traficantes.
Na verdade, o que se observa no período joanino (1808-1821) era um incremento do tráfico transatlântico para o Brasil. Dito de outra forma: nunca tantos africanos escravizados entraram nos portos brasileiros. D. Pedro I herdou de seu pai o compromisso em abolir o tráfico transatlântico, e assim como ele tentou adiar essa tarefa ao máximo, porque para governar seu novo Império, precisava atender às demandas e exigências de seus súditos mais importantes e ricos: os traficantes e os senhores de escravos.
Desse modo, como bem colocado pelo historiador Luis Felipe de Alencastro: o Brasil foi uma nação que apostou na escravidão, lançando-a para seu futuro. Foi a partir do lugar de senhor de escravo que as elites brasileiras se reconheceram e construíram o Império do Brasil. Essa foi uma aposta tão pactuada que fez com que essas mesmas elites e o Estado Nacional brasileiro se colocassem contra uma lei que havia sido elaborada e promulgada pelo Congresso do país. Explico: depois de anos de pressão, em 1831 o governo regencial finalmente assinou a lei que abolia o tráfico transatlântico no Brasil. Os principais portos de desembarque foram desativados e políticos mais progressistas comemoraram o feito. No entanto, a crescente demanda do mercado internacional pelo café brasileiro fez com que os cafeicultores (muitos deles políticos brasileiros) exercessem forte pressão pela reabertura do tráfico. Em 1835, num grande acordo entre cafeicultores e esses políticos, o tráfico transatlântico de escravizados foi reaberto, só que essa reabertura se deu na ilegalidade com a anuência do Estado Nacional. Entre 1835 e 1850, mais de 800 mil africanos escravizados entraram no Brasil, a despeito das leis do próprio país.
Esse acordo é uma das maiores provas do peso que a escravidão exerceu no Brasil Independente (por meio de uma escolha deliberada das elites do país), e da responsabilidade que o Estado Nacional brasileiro (independente e soberano) teve na manutenção do tráfico e na propagação da escravização ilegal de africanos em território nacional. A constatação dessa ilegalidade do Estado foi um dos principais argumentos para que, em 2012, o Supremo Tribunal Federal fosse convencido da necessidade em aprovar as cotas raciais nas universidades brasileiras. Essa aprovação era o reconhecimento da implicância do próprio Estado frente às piores condições econômicas, sociais e políticas que a população negra tinha - uma população que era descendente de homens e mulheres negros que foram ilegalmente escravizados.
A aprovação da Lei de Cotas10 	A Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012) reserva no mínimo 50% das vagas em universidades e institutos federais para estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. foi um importante ato de responsabilização do Estado na luta contra a desigualdade racial. Entender a formação das forças policiais no Brasil e como elas foram operadas a mando de uma classe senhorial escravista, que comungava com os pressupostos do racismo científico, é outra importante forma de tal Estado se responsabilizar pela sua implicância e manutenção de práticas racistas. Esse será o tema de nossas próximas aulas.
AULA 3 – O NASCIMENTO DA POLÍCIA MILITAR EM MEIO A UMA SOCIEDADE ESCRAVISTA E RACISTA.
A história da polícia no Brasil começa antes mesmo de o Brasil existir enquanto uma nação independente e soberana. Durante a longa experiência colonial, a ideia de policiamento se fez sentir de diferentes formas, a depender das características dos lugares em questão - uma variação que dizia muito sobre a diversidade e complexidade que compunham as diversas regiões da colônia. De maneira geral, a função policial ficou a cargo de ações conjuntas do vice-rei e ouvidores gerais, e também sob a responsabilidade dos governadores de capitanias. É preciso lembrar que uma dimensão importante da ideia de policiamento se fez sentir na materialidade e organização urbanística das vilas e cidades, que tinham as cadeias como um dos edifícios que representavam a presença do poder colonial.
No entanto, foi apenas no contexto da transferência da Corte portuguesa que temos a criação das duas primeiras instituições policiais do Brasil: a Intendência Geral da Polícia da Corte, criada em 1808, e a Guarda Real de Polícia, fundada em 1809, ambas no Rio de Janeiro, que se tornava a nova sede do Império lusitano. Como pontuado pelo historiador Marcos Bretas, esses foram os “primeiros organismos públicos a carregarem o nome e a acepção de polícia” (BRETAS, 1997, p.167).
A Intendência Geral da Polícia da Corte do Brasil foi instituída pelo Príncipe Regente D. João, por meio do Alvará de 10 de maio de 1808. A instituição tinha as mesmas atribuições da Intendência existente em Lisboa, que, por sua vez, havia sido inspirada no modelo francês de policiamento. O objetivo de D. João era criar uma instituição que não só garantisse a ordem e a boa administração da nova Corte, mas que também tivesse condições de manter a segurança do Império português frente a possíveis espiões franceses de Napoleão – que, naquele momento, era inimigo declaradode Portugal.
Não por acaso, o Intendente Geral de Polícia da Corte tinha status de ministro, ficando responsável por:
“todos os órgãos policiais do Brasil [...], inclusive, sobre ouvidores gerais, alcaides mores e pequenos, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Era também sua tarefa a organização da Guarda Real de Polícia da Corte. Em resumo, as atribuições da Intendência Geral cobriam as funções de justiça, de governo e de administração interna.” (MINAYO, SOUZA, CONSTANTINO, 2008, p.44)
Sem sombra de dúvidas, a Intendência se tornou um dos órgãos administrativos de maior importância na nova Corte portuguesa, pois também ficavam a cargo da instituição os assuntos ligados às obras públicas, à segurança coletiva e pessoal, a vigilância da população, a investigação de crimes e a punição de criminosos. Durante o período Joanino (1808-1821), o rei tinha reuniões quase diárias com Paulo Fernandes Vianna, o primeiro homem a ocupar o cargo de Intendente da Polícia da Corte do Brasil.
As informações sobre a Guarda Real são mais escassas. Criada em 13 de maio de 1809 para auxiliar a Intendência Geral de Polícia da Corte, essa instituição era uma força policial uniformizada de tempo integral, que tinha autoridade judicial sobre delitos menores, tendo como funções principais perseguir os criminosos e manter a ordem. Tanto a Intendência Geral de Polícia da Corte como a Guarda Real foram mantidas após o processo de Independência do Brasil. Os historiadores Marcos Bretas e Thomaz Holloway apontam que essa seria a Instituição que fundou a Polícia Militar no Brasil, dando as bases para a implementação de políticas públicas acerca da segurança nacional, como bem demonstra a promulgação do Código Criminal em 1830.
Em 1831, a Guarda Real foi extinguida pelo Regente Antônio Feijó. Vale lembrar que esse foi um ano especialmente atribulado na história política do país, marcado pela abdicação de D. Pedro I e o início do Período Regencial (1831-1840). Um dos momentos de tensão se deu justamente no Rio de Janeiro, quando tropas rebeldes de Guarda Real participaram de motins que, dentre outras coisas, reivindicava o fim dos castigos físicos contra os negros pertencentes às corporações.
Em resposta a esse movimento, e imbuído de princípios liberais que preconizavam uma percepção mais racial e humanizada de segurança pública, o Regente Feijó extinguiu a Guarda Real, substituiu-a pelo Corpo de Guardas Municipais Permanentes por meio da lei de 10 de outubro de 1831. A lei determinava que:
Art. 1º O Governo fica autorizado para criar nesta Cidade um Corpo de guardas municipais voluntários a pé e a cavalo, para manter a tranquilidade publica, e auxiliar a Justiça, com vencimentos estipulados, não excedendo o número de seiscentas e quarenta pessoas, e a despesa anual a cento e oitenta contos de réis.
Art. 2º Ficam igualmente autorizados os Presidentes em Conselho para criarem iguais corpos, quando assim julguem necessário, marcando o número de praças proporcionado.
Art. 3º A organização do corpo, pagamento de cada indivíduo, a nomeação e despedida dos Comandantes, as instruções necessárias para a boa disciplina, serão feitas provisoriamente pelo Governo, que dará conta na futura sessão para a aprovação da Assembleia Geral.
Art. 4º Ficam revogadas todas as Leis em contrário. Manda, portanto, á todas as Autoridades, a quem o conhecimento, e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente como nela se contém. O Secretario de Estado dos Negócios da Justiça a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos dez de Outubro de mil oitocentos trinta e um, décimo da Independência e do Império.
Como é possível observar, o Corpo de Guardas Municipais era uma organização paramilitar e civil, remunerada, uniformizada e cujo alistamento era voluntário. – e que por isso é considerada a instituição que deu origem à Polícia Militar no Brasil. À semelhança de outras instituições policiais existentes na Europa, Feijó desejava que as Guardas Municipais tivessem uma atuação menos bruta, agindo de modo a prevenir e reprimir delitos vinculados ao cotidiano da vida na Corte, apostando numa maior e melhor proximidade com a sociedade civil - a ideia era mesmo vigiar e punir (quando necessário). Ainda que essa fosse uma instituição policial permanente e uniformizada, o Regente Feijó fez questão de desvinculá-la do Exército, colocando-a como atribuição do Ministério da Justiça, definindo melhores soldados e garantindo a proibição de castigos físicos.
As principais funções do Corpo de Guardas Municipais Permanentes eram:
autorizar e se responsabilizar por eventos públicos, controlando e prendendo pessoas que estivessem em agitações;
Como a lei de 1831 deixava entrever, outras províncias do Império também poderiam criar suas próprias Guardas Municipais Permanentes. A preocupação com as ações policiais do Império também se fez sentir com a criação da Guarda Policial em 1833, um corpo armado constituído a partir de voluntários locais cujas ações estavam atreladas aos juízes de paz de cada distrito, apresentando uma dimensão descentralizada das ações policiais. Tal dimensão foi ratificada com o Ato Adicional de 1834, que definia a maior autonomia provincial na administração de sua polícia.
O que se observa a partir de então é que o Corpo de Guardas Municipais Permanentes e a Guarda Policial passam a existir nas províncias do Brasil, embora as duas instituições se estruturassem de formas distintas. Assim, cito Bruna Teixeira:
“A Guarda Policial Permanente deveria atuar como a força de polícia da capital e sublinhar apenas as localidades provinciais que estivessem sua ordem perturbada [...]a administração da Guarda Municipal Permanente era feita diretamente entre presidente de província e comandante do corpo. Já a Guarda de Polícia era a força das demais localidades provinciais, ou sejam a instituição se configurou como inúmeros corpos de polícia espalhados pelo interior e litoral provincial. Nesse sentido, sua administração era feita de maneira a envolver além do presidente da província e comandante do corpo, uma série de agentes locais, como juiz de paz, prefeito, delegado, subdelegado, chefe de polícia e ainda as Câmaras Municipais.” (TEIXEIRA, 2019 p. 36)
A partir de 1835, as diferentes províncias do Império do Brasil fizeram uso da autonomia garantida pelo Ato Adicional e criaram suas Guardas Municipais Permanentes e suas Guardas Policiais, cujas atuações foram marcadas pelas especificidades de cada província.
No entanto, a perspectiva liberal de atuação da Polícia que o Regente Feijó defendeu na implementação da Guarda Municipal e da Guarda Policial ficou distante daquilo que se via nas ruas das vilas e cidades do Império. Em primeiro lugar, é importante pontuar quem eram os homens que compunham essas guardas: em ambos os casos, o que observamos são instituições formadas por homens pobres e de baixa instrução. Além disso, ao entrarem nessas corporações, esses homens não experimentaram nenhum tipo de ascensão social ou mudança real de status social. Outra questão que diferenciava a teoria da prática era o fato de a maior parte dos alistados não serem voluntários, mas homens jovens que foram recrutados, por meio da força, a fazerem parte de uma instituição que continua lhes pagando mal, o que, em grande parte, explica por que a maioria deles deixava a instituição depois dos 3 anos “obrigatórios” de serviços. Também, é preciso sublinhar que não havia uma formação sistemática dentro dessas corporações, cujos membros atuavam a partir de uma espécie de “senso comum” compartilhado.
Desse modo, a ideia de uma polícia que fosse racional e cuja atuação se desse por meio da vigilância não aconteceu. O que se observa, ao longo do século XIX, é a atuação de uma polícia mal remunerada (por vezes vítima de castigo físico), com pouquíssima instrução e que fazia uso da força e da brutalidade na sua forma de agir. Um dos exemplos notórios disso ocorreu quandoa Guarda Permanente esteve sob o comando do major Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias. Além de sufocar duas rebeliões – fazendo uso deliberado da violência, o então major também redefiniu as atribuições das duas corporações recém-criadas.
A força e a brutalidade das ações policiais ficavam especialmente evidentes no trato das forças policiais com a população escravizada e negra do Império. Conforme visto na Aula 2, até meados do século XIX, o Brasil foi uma sociedade que se organizou por meio da escravidão. Tanto foi assim, que a pessoa escravizada era o tipo de propriedade privada mais adquirido, até mesmo dentre a população mais pobre (que conseguia comprar um escravizado a prazo). Assim, boa parte das ações policiais tinham, como objetivo, controlar a população escravizada, sobretudo nas grandes cidades do país.
Thomas Holloway, um dos primeiros historiadores a se debruçar sobre a história da Polícia no Brasil, aponta que, ao longo do século XIX, no Rio de Janeiro (capital do país), grande parte do trabalho da polícia se concentrava na vigilância, no controle e na punição da população escravizada. Essa não era uma tarefa simples, pois os escravizados chegaram a compor de 30 a 40% da população desses centros urbanos, e eram a mão-de-obra primordial para o funcionamento das cidades, trabalhando principalmente nas ruas e em espaços públicos. Dessa maneira, a polícia precisava atuar com cautela para que mantivesse a ordem, sem ferir o direito que todo cidadão brasileiro tinha naquela época em ter um escravizado e tratá-lo como bem quisesse.
Essa era uma equação difícil de ser executada, porque a alta concentração de escravizados nas maiores cidades do Brasil fazia com que esses fossem espaços potencialmente perigosos. Fuga de escravizados, maltas de capoeiras, constituições de mocambos e quilombos, pequenos motins, e até mesmo rebeliões foram protagonizados nesses espaços, o que fazia com que a preocupação com a população escravizada fosse constante. A imagem abaixo é uma litogravura que foi feita pelo artista britânico Augustus Earle, que esteve no Brasil na década de 1820. A obra retrata um jogo de capoeira jogado, provavelmente, por escravizados da cidade do Rio de Janeiro que estava prestes a ser interrompido pela ação de um soldado da Guarda Real.
Figura 3: Capoeira (Rio de Janeiro c. 1820)
Fonte: Augustus Earle, Negroes fighting, c. 1820, Biblioteca Nacional da Austrália.Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Augustus_Earle#/media/Ficheiro:CapoeiraEarle.JPG .
Uma das medidas tomadas foi a proibição de ajuntamentos de mais de três escravizados, e também o controle daqueles que trabalhavam nas ruas. Contudo, essa medida cautelar não era suficiente e. para manter a ordem na Corte, a partir da década de 1820, a polícia passou a ter o direito legal de punir os escravizados que praticassem capoeiragem, bem como açoitá-los, de acordo com as leis municipais, e aprisioná-los no Calabouço (uma prisão específica para a população escravizada, localizada no Morro do Castelo).
Se isso não bastasse, é fundamental lembrar que, mesmo numa sociedade marcada pela escravidão racializada, como o Brasil, população escravizada e população negra não eram sinônimos. Isso porque existia um percentual significativo de negros e negras que eram homens e mulheres livres e libertos, muitos deles cidadãos e trabalhadores brasileiros, que se somavam aos escravizados na execução das mais variadas atividades cotidianas. Nos grandes centros urbanos, era muito difícil distinguir, dentre a população negra, quem era escravizado e quem era livre.
Sendo assim, umas das estratégias de policiamento desenvolvidas ainda na década de 1820, foi tratar a população negra como sinônimo de escravizada, por meio do princípio da suspeição generalizada. Todo(a) negro(a) poderia ser um escravizado(a) e, por isso mesmo, deveria ser tratado(a) como suspeito(a). Dito de outra forma, primeiro se prendia a população negra para, depois, averiguar se a pessoa em questão era ou não escravizada. No Rio de Janeiro, o coronel Miguel Nunes Vidigal e seus granadeiros ficaram conhecidos por conta do policiamento ostensivo e da repressão truculenta contra a população negra, uma prática que se estendeu a outras corporações policiais do Brasil. Embora essas ações não contassem com aporte legal e, em tese, fossem criticadas pelo alto escalão dos órgãos policiais, pouco - ou nada - foi feito para impedir o uso desmedido de violência contra a população negra.
Ações de natureza semelhantes aconteceram durante as décadas de 1870 e 1880, quando o movimento abolicionista brasileiro cresceu e ganhou maior adesão da população brasileira. Enquanto o Exército brasileiro se posicionou favorável à pauta abolicionista, ainda na década de 1870, as forças policiais foram amplamente utilizadas pelo Estado Nacional para tentar frear essa onda que inundava o Brasil. O uso desenfreado da força física e da brutalidade se tornaram frequentes nas tentativas de contenção e repressão dos Comícios Abolicionistas feitos em espaços públicos. E, não por acaso, as maiores vítimas dessas ações continuavam sendo homens e mulheres de pele preta, pouco importante se eram ou não escravizados. A imagem abaixo foi tirada da Revista Illustrada, um importante veículo do Movimento Abolicionista. A ilustração representa as forças policiais da província de São Paulo tentando controlar uma fuga de escravizados, orquestrada em conjunto com abolicionistas de Campinas.
Figura 4: Policiais da Província de São Paulo tentando impedir a fuga de escravizados em Campinas
Fonte: Revista Illustrada. Rio de Janeiro: [s.n], ano 12, n. 468, 1887. Disponível em: http://www.memoriaescravidao.rb.gov.br/revista_ilustrada.php?pg=4 .
Na realidade, como veremos na próxima aula, ao longo do século XIX, o racismo científico foi uma pseudociência que não só legitimou a brutalidade e truculência contra negros e negras, como ofereceu uma falsa sustentação moral e científica para que tais ações acontecessem. Além disso, os pressupostos dessa ciência irreal ordenaram as ações policiais, não só no século XIX, como em boa parte do século XX.
AULA 4 – RACISMO CIENTÍFICO E SUA CAPILARIDADE NO BRASIL: O NASCIMENTO DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Raça é um conceito que teve diferentes definições ao longo da história. Conforme visto na nossa Aula 2, por muito tempo esse conceito esteve atrelado às explicações do mundo elaboradas pela Igreja Católica, uma das instituições mais poderosas da humanidade, e que, por séculos, teve papel central no desenvolvimento e na disseminação do conhecimento em todo o Ocidente. Contudo, a partir do final do século XVIII, o movimento Iluminista catapultou a ciência como novo sistema de explicação do mundo. Foi neste contexto que surgiu o racismo científico.
O legado do Iluminismo desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do racismo científico, uma pseudociência que defendia que a humanidade estava dividida em raças biologicamente definidas, ressaltando, ainda, que essas raças não eram iguais entre si. Haveria uma escala evolutiva entre a raça humana mais primitiva e inferior (a negra) até a raça humana mais evoluída e superior (a branca), e a organização do mundo deveria se dar a partir dessa percepção. Os pressupostos do racismo científico legitimaram uma série de ações violentas e criminosas da nossa história, de forma que cito aqui três exemplos: o processo de invasão e colonização da África, da Ásia e Oceania; experimentos científicos e a criação de campos de concentração em algumas localidades do continente africano; e também o holocausto judeu e cigano na Segunda Guerra Mundial.
Não podemos esquecer que foi no contexto do racismo científico que a eugenia foi desenvolvida. Essa foi uma pseudociência desenvolvida por Francis Galton, em 1883, que almejava realizar mudanças genéticas entre os seres humanos, a fim de selecionar apenas os melhores exemplares. As premissas da escola determinista, especialmente aquelas que promoviam a superioridade de uma raça em particular, estabelecerama ideia de que o progresso só seria alcançado em sociedades puras, sem mistura racial, e que apenas uma raça, a ariana, estava destinada à perfeição.
Vale lembrar que o racismo científico foi desenvolvido em países europeus e nos Estados Unidos por homens brancos. Esse é um ponto fundamental que não pode ser “naturalizado”, caso queiramos compreender a organização de um sistema de explicação da humanidade que era falho, não só por partir de uma premissa equivocada, mas também por não seguir os métodos científicos de análise, já que havia manipulação dos dados empíricos coletados para que eles apontassem para conclusões previamente concebidas. Dito de outra forma: boa parte dos cientistas da época faziam experimentos e manipulavam os resultados para que eles comprovassem as teses que eles defendiam. E, como bem sabemos, não é assim que se produz ciência.
“Era um sistema quase perfeito: homens brancos (europeus em sua maioria) desenvolveram uma nova mentalidade, na qual a liberdade e a igualdade eram entendidas como conceitos que definiam a experiência humana. Para dar conta da ‘grandiosidade’ do mundo que criavam, eles consideravam suas experiências como universais, tomando a si próprios como exemplares dessa humanidade que ansiava progresso” SANTOS, 2022, p.
Ao longo do século XIX, inúmeras ações violentas reafirmaram a desumanização de determinados grupos humanos, reforçando a ideia de superioridade branca. Zoológicos humanos e caçadas humanas são exemplos de que o racismo científico se transformou em prática, e que essa prática foi sinônimo de violência, morte e extermínio.
Figura 5: Militar britânico Gordon Robley e sua coleção de cabeças humanas tatuadas e secas (1895)
Fonte: Henry Stevens (1843-1925) (original photo). Requested image credit: Wellcome Images. - Wellcome Library, London. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Horatio_Gordon_Robley#/media/Ficheiro:Robley_with_mokomokai_collection_2.jpg
Embora o racismo científico tenha sido abertamente combatido a partir das décadas de 1930, não podemos negar que, por muito tempo, essa pseudociência foi entendida como verdade absoluta, servindo de sustentação moral do racismo como um sistema de poder. Por isso, é necessário compreendermos, com mais calma, alguns pressupostos básicos do racismo científico para entendermos o papel que ele desempenhou no Brasil e as heranças que ele deixou.
Conforme dito, ao longo do século XIX, esse tipo de racismo teve status de ciência e, por isso, suas proposições tiveram grande impacto na produção do saber e, sobretudo, na legitimação do racismo.
A fim de suplantar os dogmas da Igreja Católica, uma das perguntas centrais que o racismo científico tentou responder foi a possível origem da humanidade. Duas correntes de pensamento foram desenvolvidas a fim de responder essa questão: monogenistas e poligenistas.
Na batalha das ideias, monogenistas e poligenistas se enfrentavam. Enquanto os primeiros acreditavam que todos os seres humanos tinham a mesma origem e que as diferenças entre eles eram apenas resultado da proximidade com o Éden (teoria apoiada pela Igreja), os poligenistas, embasados em estudos científicos recentes (e falhos), defendiam a existência de diferentes centros de surgimentos e desenvolvimento para os distintos grupos humanos.
O debate ganhou novo fôlego com a chegada do livro "A origem das espécies", de Charles Darwin, em 1859. A partir daí, o conceito de raça passou por duas mudanças significativas. Por um lado, o termo raça saiu do campo da Biologia e se estendeu para discussões culturais e políticas. Por outro lado, começou a ser associado à ideia de evolução, sendo distorcido ou "adaptado" pelas correntes científicas e filosóficas que debatiam a origem do homem (monogenismo e poligenismo) de acordo com suas próprias conveniências.
Os poligenistas passaram a considerar a espécie humana como diferentes espécies dentro do gênero humano, e a diversidade cultural passou a ser vista como diferença entre essas espécies. A humanidade foi dividida e hierarquizada, e quanto mais distante uma "espécie" estivesse da outra, melhor para todos. No entanto, os poligenistas se viram confrontados com a questão da miscigenação, que não se encaixava em sua lógica de análise. Surgiram perguntas, como "o que fazer com os grupos mestiços?" e "como conciliar a miscigenação com a evolução das raças humanas?"
A maioria dos estudiosos e cientistas europeus e americanos, como Broca, Gobineau e Le Bon, consideravam a miscigenação um erro, uma quebra das leis naturais e uma subversão do sistema, que poderia criar sub-raças inferiores. Como Lilia M. Schwarcz destaca, “os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de espécies diversas”. (SCHWARCZ, 1993, p.56)
Para os eugenistas, a miscigenação era vista como algo irracional e em oposição às "leis naturais". A eugenia atendia aos interesses políticos, tanto da Europa, quanto dos Estados Unidos. Os europeus acreditavam que eram um grupo humano puro, livre de miscigenação, mais próximo da perfeição e, por essa razão, responsáveis pela civilização dos demais grupos. Esse argumento justificou e legitimou a colonização americana e o "imperialismo europeu", além do conceito do "fardo do homem branco". Por outro lado, os americanos, mesmo tendo sido colonizados pela Grã-Bretanha, acreditavam que haviam comprovado seu desenvolvimento através da eugenia, principalmente por terem evitado a miscigenação entre os brancos dominantes e os negros escravizados. Por isso, também estavam destinados ao progresso e à civilização. Como veremos adiante, essa foi uma pedra de toque para as elites intelectuais do Brasil da época, que diferentemente do que acontecia na Europa, precisavam examinar e lidar com uma sociedade reconhecidamente miscigenada.
Junto com a condenação da miscigenação humana, a visão poligenista abriu caminho para o fortalecimento de disciplinas baseadas no discurso científico. Podemos elencar aqui:
Antropologia Criminal 11 	Ciência que tem por objeto o estudo do criminoso conforme suas características anatômicas e psíquicas e as repercussões do ambiente social na atividade do delinquente. - pseudociência que tem, por objeto, o estudo do criminoso conforme suas características anatômicas e psíquicas e as repercussões do ambiente social na atividade do delinquente;
Antropometria 12 	Antropometria é um ramo da antropologia que estuda as medidas e dimensões das diversas partes do corpo humano. A antropometria está relacionada com os estudos da antropologia física ou biológica, que se ocupa em analisar os aspectos genéticos e biológicos do ser humano e compará-los entre si. – um ramo da Antropologia que media os corpos humanos correlacionando essas medidas com comportamentos sociais e raciais;
Craniologia 13 	 Craniologia Uma das muitas pseudociências sucessoras da frenologia foi a craniologia, que advogava o uso de medidas quantitativas precisas das características cranianas, a fim de classificar pessoas de acordo com a raça, temperamento criminal, inteligência etc. Ela se tornou influente durante a era vitoriana, e foi usada, pela primeira vez, pelos britânicos para justificar o racismo, a colonização e o domínio sobre o que se denominava na época como “raças inferiores”, tais como os irlandeses e tribos negras da África. Tipos raciais foram classificados de acordo com o grau de prognatismo ou ortognatismo. Raças “inferiores” eram ditas prognáticas, tais como os chimpanzés e macacos, de modo que eram consideradas como mais próximos a esses animais do que os demais europeus. A generalização final – uma das mais nocivas e absurdas de todas – não tardou muito a ocorrer: a avaliação “científica” das características de personalidade baseada na aparência, graças ao médico, antropólogo e criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Sua teoria sobre antropologia criminal associava determinadas características corporais ao tipo de criminoso.

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