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Estudos Bíblicos: Sinóticos e Escritos Joaninos Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Valter Luiz Lara Revisão Textual: Profa. Ms. Sandra Regina F. Moreira Evangelho Segundo Marcos • Introdução • Autoria, Data e Lugar de Origem • Contexto Histórico-Social • Jesus no Evangelho segundo Marcos • Conteúdo e Estrutura Redacional • Reino, Discipulado, Ética e Política · Capacitar o aluno a desenvolver leitura crítica e contextualizada do Evangelho segundo Marcos, oferecendo informações básicas sobre as motivações, objetivos e a organização temática que deram origem ao escrito desse Evangelho como resposta aos problemas e conflitos vividos pela comunidade de fé que ele representa. OBJETIVO DE APRENDIZADO Evangelho Segundo Marcos Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como o seu “momento do estudo”. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo. No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados. Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Evangelho Segundo Marcos Contextualização Ler o Evangelho segundo Marcos pode ser uma aventura ao mesmo tempo desafiadora, mas também constrangedora. O pacifismo de Jesus tão fortemente assinalado pelo evangelista é o grande desafio da comunidade para a qual foi escrito o Evangelho. Assumir atitude de resistência ética e crítica frente à realidade de violência generalizada que existia no tempo da guerra de judeus contra Roma continua a desafiar os leitores atuais. O constrangimento é o outro lado da moeda, pois, apesar de não propor a violência como solução para os problemas, a mensagem do Evangelho não aceita a resignação como resposta ao sofrimento de tantas vítimas. Afinal, Jesus é o Messias solidário com o povo sofredor. A experiência da violência entre nós parece crescer cada vez mais. Não bastasse a desigualdade que divide a humanidade entre uma minoria abastada (1%) que ganha mais da metade do que possui a outra imensa maioria (99%) da população do planeta, somos desafiados a cada dia com o problema das guerras localizadas, da violência estrutural, urbana e cotidiana. Conflitos locais e regionais impelem milhões de pessoas a buscarem refúgio em outros países. Minorias discriminadas continuam sendo vítimas de perseguição e preconceito. Quanto mais parece crescer a consciência da diversidade cultural, étnica e de gênero, maior o número das estatísticas da intolerância. Num mundo assim tão cheio de violência, ainda há espaço para propor e viver o cristianismo pacifista de Jesus de Nazaré e achar que isso resolve? É possível reinterpretar o messianismo de Jesus à luz da narrativa de Marcos sem descuidar dos desafios de nosso contexto presente de injustiça, preconceito, violação dos direitos humanos e violência? 8 9 Introdução O Evangelho segundo Marcos1, entre os quatro documentos aceitos como “Evangelho” no Cânon2 do Novo Testamento, foi o primeiro a ser escrito. Recen- temente, os estudiosos demonstraram o caráter singular do contexto e dos prová- veis interlocutores originais do EM. O problema em torno de sua autoria, data e local de origem também foram tratados com novas perspectivas, ajudando o leitor atual a ampliar sua visão dos fatores que condicionaram o conjunto da narrativa. O tema central do EM é a pessoa de Jesus. Seu objetivo é apresentá-lo como Messias, Filho de Deus (Mc 1,1), segundo um jeito que seus leitores não o confundissem com as crenças messiânicas mais comuns daquele tempo. Afinal, os tempos eram de enorme confusão em torno do modelo de Messias esperado pelo povo (Mc 13,22). Importante! Na época de Jesus, antes e depois de sua morte, havia um clima muito forte de esperança na vinda de um Messias que deveria instaurar o Reino de Deus na Terra. Muitos líderes populares buscavam reunir e recrutar gente do povo para lutar e libertar Israel do domínio romano. Com frequência, esses líderes se autodeclaravam Messias, ou assim eram chamados por seus seguidores. O horizonte das profecias messiânicas como a de Isaías proclamando a vinda de um novo Rei, príncipe da paz, o qual, sobre o trono de Davi, consolidaria um Reino de direito e justiça para sempre (9,1 -6), aguçava cada vez mais a expectativa de libertação. Tudo isso favorecia o aparecimento de Messias libertadores, segundo um modelo de engajamento guerrilheiro e de confronto com o Estado romano. Você Sabia? O contexto das esperanças messiânicas é, pois, o pretexto, isto é, o principal motivo para a escritura da trajetória da vida, morte e ressurreição de Jesus no EM. Esclarecer o que de fato significava proclamar Jesus como Messias é o ponto alto de toda narrativa marcana: 27 Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesareia de Filipe e, no caminho, perguntou a seus discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?” 28 Eles responderam: “João Batista”; outros, Elias; outros ainda, um dos profetas”. – 29 “E vós, perguntou ele, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu é o Cristo” (Mc 8,27-29). 1 A título de simplificação, no texto abreviamos o Evangelho segundo Marcos como EM, mas quando são citados trechos de seus capítulos e versículos, adotamos a abreviação convencional, isto é, Mc. 2 A palavra “Cânon”, de origem grega, significa “lista” ou “ordem” de livros (e outros escritos) que foram considerados corretos, aceitos e inspirados para fazerem parte das Escrituras Sagradas. Autoridades da Igreja, ao longo de um processo de discussão, determinaram, segundo alguns critérios, quais dos muitos documentos deveriam constar ou não dessa lista/cânon. Para melhor detalhamento desses critérios e o processo que acabou por definir o Cânon do Novo Testamento, veja o texto de BROWN e COLLINS (2011, p. 907-946). 9 UNIDADE Evangelho Segundo Marcos Além de identificar Jesus como Messias, há um interesse em distinguir o Messias Jesus de outros messias de seu tempo, sobretudo daqueles que apareceram por ocasião da Guerra Judaica ocorrida entre os anos de 66-70 d.C.: 21 Então, se alguém vos disser ‘Eis o Messias aqui!’ ou ‘Ei-lo ali!’, não creiais. 22 Hão de surgir falsos Messias e falsos profetas, os quais apresentarão sinais e prodígios para enganar, se possível, os eleitos. 23 Quanto a vós, porém, ficai atentos. Eu vos preveni a respeito de tudo (Mc 13,21-23). Muita gente foi recrutada, do povo judeu e das montanhas da Galileia, para compor o exército de libertaçãocontra as legiões romanas. Grupos políticos e religiosos se uniram e participaram da Guerra. O grupo da comunidade que está por trás do EM, em parte seguidores de Jesus provenientes do judaísmo, precisava definir sua posição diante do domínio romano, dos próprios judeus seus contemporâneos e do apelo que havia para que participassem da guerra. O que fazer? Quais as implicações do discipulado e do seguimento de Jesus proclamado como Messias? Voluntariar-se para compor as fileiras dos soldados que lutam contra os romanos? O foco nessa questão pode mudar o modo como frequentemente se lê o EM. Mas antes, é preciso verificar quem, quando, onde e o quê nele está escrito. Autoria, Data e Lugar de Origem Autor. O que se sabe sobre o autor é dado pelos testemunhos da tradição. Pápias, bispo de Hierápolis, por volta de 140 d. C., menciona “Marcos como intérprete de Pedro”; e Irineu, bispo de Lyon, por sua vez, afirma o Evangelho como tendo sido escrito em Roma, depois da morte de Pedro. O fato é que tudo o que se pode concluir de seu autor encontra-se com muito mais probabilidade de verdade dentro do próprio texto por ele escrito. Entretanto, inúmeras razões apontadas pela crítica literária e histórica foram levantadas para discordar de que Marcos, autor do Evangelho, seja aquele que ficou conhecido como João Marcos, o companheiro de Barnabé e Paulo nas primeiras missões apostólicas (At 12,12.25; 13,3.13;15,37-39), o mesmo que habitualmente é identificado nas cartas paulinas (Fm 24; 2Tm 4,11 e 1Pd 5,13). Isso porque a autoria de muitos livros bíblicos é, de fato, atribuída pela tradição muito depois que eles foram escritos. Os evangelhos não fogem a essa regra. Atualmente, é mais seguro e exato afirmar que o Evangelho é fruto de uma redação construída ao longo de alguns anos, segundo o trabalho não de um único autor, mas talvez de uma escola ou comunidade de autores e redatores que participaram da elaboração do texto, direta ou indiretamente, seja recuperando fontes orais e escritas, seja testemunhando sua verdade através da vida que eles procuravam seguir à luz dos ensinamentos de Jesus. Só mais tarde, depois de muita vivência, 10 11 vieram à tona os Evangelhos finalmente redigidos tal como os temos e os lemos hoje. Por isso, é possível falar do Evangelho segundo a comunidade de Marcos, pois reflete a vida de uma comunidade ou de uma rede de grupos comunitários que desde cedo fizeram desse documento, a principal fonte de referência escrita ao modo como os membros dessas comunidades procuravam viver a fé em Jesus. Data. A data mais próxima para a origem da redação final do EM é admitida como sendo entre os anos 66 e 70, talvez algum tempo imediatamente depois dessa data. Ele é escrito num período cuja influência da guerra judaica não pode ser ignorada. Provavelmente, a maior parte do texto é escrito antes da tomada do templo de Jerusalém pelas tropas de Tito, no ano de 70. Alguns o situam logo após a destruição do templo, no ano de 71 d.C. Observe a profecia da destruição do templo por Jesus. Sem negar a historicidade da profecia, não se pode deixar de pensar na hipótese de que o narrador já teria vivido a confi rmação histórica da profecia realizada: do templo, de fato, como previu Jesus, não fi cou pedra sobre pedra que não tivesse sido demolida. Ex pl or 1 Ao sair do templo, disse-lhe um de seus discípulos: “Mestre, vê que pedras e que construções!” 2 Disse-lhe Jesus: “Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida” (Mc 13,1-2). Local. Atualmente, a análise do material que serviu de base para a composição do EM levou a maioria dos exegetas a opinarem pela região ao norte da Palestina e a Síria, em cidades como Antioquia e povoados da Galileia como seu local de origem. A hipótese de Roma baseou-se principalmente na alegação de João Marcos como autor do Evangelho, em quem a tradição desde Papias reconheceu o testemunho de Pedro. Aliás, a ordem do “anjo sentado à direita, vestido com uma túnica branca” (Mc 16,5) no túmulo vazio de Jesus deixa claro a localização geográfica mais provável da comunidade original para a qual foi escrito o Evangelho: “[...] Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis como vos tinha dito” (Mc 16, 7). Contexto Histórico-Social O momento vivido pelos cristãos que estão por detrás do EM é extremamente conflituoso e exigente. Há, sobretudo para os que vivem na Palestina, mas também para aqueles que estão fora, a necessidade de um discernimento prático, ao mesmo tempo político, ideológico e religioso. Trata-se de definir a participação na guerra judaica contra os romanos. Os seguidores de Jesus devem unir-se ao movimento de contestação e sublevação ao Império? Os cristãos devem se juntar aos judeus dos mais diferentes matizes, incluindo zelotas, essênios, fariseus e até mesmo aos saduceus para confrontar o Império, mesmo sabendo que esses últimos faziam 11 UNIDADE Evangelho Segundo Marcos parte daqueles que haviam sido responsáveis pela morte de Jesus? Uma questão difícil e provavelmente polêmica, até mesmo entre os seguidores de Jesus das comunidades do EM. A comunidade marcana contava com a presença de grupos judeus cristãos helenizados e pagãos do mundo grego que não conheciam muito bem a tradição judaica. O segundo grupo provavelmente constituía a maioria e, por isso mesmo, talvez tenha forçado, mais que os outros, o discernimento de sua não participação na guerra: 7 Quando ouvirdes falar de guerras e de rumores de guerra, não vos alarmeis: é preciso que aconteçam, mas ainda não é o fim. [...] 14 Quando virdes a abominação da desolação onde não devia estar – que o leitor entenda – então os que estiverem na Judéia fujam para as montanhas (Mc 13, 7.14). O EM tornou-se, neste sentido, a fundamentação religiosa, política e ideológica dessa escolha. A superação da lei (Mc 2,27-28; 7,1-23) e do nacionalismo (Mc 7,24-30) foram memórias transformadas em princípios que nasceram da reflexão frente às circunstâncias que exigiram um discernimento histórico e concreto: O que significa confessar Jesus como messias? Quais as condições para ser discípulo de Jesus quando os judeus questionam as implicações do messianismo que os cristãos dizem confessar? As questões pontuais da guerra (Mc 13, 5-23), do templo (Mc 11,15-19; 13,1-2), da tradição judaica (Mc 7,1-13) e dos diferentes messianismos professados por seus contemporâneos (13, 21-23), diante das quais era preciso se definir, estão presentes no EM. A conduta a ser adotada frente a cada uma delas precisava ser definida e justificada por parte de quem se confessava seguidor de Jesus de Nazaré. O EM é, portanto, fruto do discernimento que nasceu da reflexão e da prática de seus interlocutores imediatos, os cristãos da comunidade marcana. Jesus no Evangelho segundo Marcos Na ótica dos cristãos marcanos, o Jesus que seguiam proclamava a vinda do reino de Deus e a sua adesão mediante o arrependimento e o compromisso com a fé no Evangelho (Mc 1,15), e não o engajamento numa guerra sangrenta. O Messias Jesus não é do tipo guerreiro e militar, mas segue e representa o modelo do servo sofredor que assume o caminho da cruz (Mc 8,31-35; 9,31; 10,33-34), tal como foi previsto pelas profecias em Isaías: [...] 3 Era desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. 4 E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele 12 13 carregava. Mas nós o tínhamos como vítima do castigo ferido por Deus e humilhado. 5 Mas ele foi trespassado por causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que havia de trazer- -nos a paz, caiu sobre ele, sim, por suas feridas fomos curados (Is 53, 3-5). O Jesus que a comunidade marcana confessa como messias está abertopara além dos limites estreitos da nação judia: a mulher pagã, sírio-fenícia (Mc 7,24-30), atendida em sua súplica e a própria confissão do centurião romano aos pés da cruz: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus” (Mc 15,39) revelam uma comunidade que assumiu uma prática de fé que não exclui ninguém da possibili- dade de adesão ao reino, desde que se assumam as consequências dessa adesão: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34-38). No caso do homem rico, por exemplo, as condições e exigências do seguimento são radicais, apresentadas numa perspectiva de solidariedade religiosa e socioeco- nômica. Jesus assim diz ao rico que admite cumprir a lei religiosa: “Uma só coisa te falta: vai, vende o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (Mc 10,17-22). Veja que o seguimento só lhe é concedido depois da solidariedade efetiva com os pobres. O Jesus confessado no EM superou o problema da lei e suas tradições. A lei do sábado, como síntese e símbolo das interdições religiosas, está submetida ao benefício da vida humana: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). O critério de separação entre puro e impuro, por sua vez, não deve mais ser motivo de exclusão de pessoas à boa nova do reino, uma vez que “não há nada no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro, mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro” (Mc 7,15). Por isso, Jesus em Marcos não é o Messias davídico dos modelos do poder que se impõem pela força das armas, mas pelo apelo do amor e do serviço: 42b Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. 43 Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, 44 e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. 45 Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10,42b-45). Dois textos no EM deixam claro que Jesus não deve ser confundido com o modelo messiânico inspirado no davidismo. O primeiro relata o episódio da cura do cego Bartimeu (Mc 10, 46-52): a cura se dá quando ele é capaz de reconhecer Jesus como Mestre, isto é, o seu mestre. O cego confessa Jesus como Rabbuni – palavra que significa em aramaico “meu mestre” (Mc 10, 51). O segundo texto é aquele que afirma ser o Messias maior que Davi, pois é o seu Senhor e não o seu filho (Mc 12,35-37). 13 UNIDADE Evangelho Segundo Marcos Por isso, o EM é expressão de uma profunda reflexão sobre a identidade de Jesus. O centro de sua teologia é, pois, a cristologia. Os títulos atribuídos a Jesus, bem como a narrativa em torno das palavras, práticas e controvérsias com seus adversários, suas curas e exorcismos, convergem para compor um retrato que vai marcar toda a cristologia posterior. Veja abaixo alguns desses títulos: • Filho de Deus (Mc 1,1; 3,11; 15,39); • Filho amado de Deus (Mc 1,11; 9,7); • Filho do Homem (Mc 2,10. 27; 8,31. 38; 9,12. 31; 10,33. 45; 13,26; 14,21. 41.62); • Filho do Deus Altíssimo (Mc 5,7); • Santo de Deus (Mc 1,24); • Nazareno (Mc 1,24; 14,67); • Jesus de Nazaré, o crucificado (Mc 16,6); • Mestre/Rabi/Rabbuni (Mc 4,38; 5,35; 9,5. 17.38; 10,20. 51; 11,21; 12,14.19.32; 13,1; 14,14.45); • Carpinteiro de Nazaré, Filho de Maria (Mc 6,3); • Profeta (Mc 6,15; 8,28); • Senhor (Mc 11,3; 12,37; 16,19.20); • Rei dos judeus (Mc 15,2.12.18.26); • O messias, rei de Israel (Mc 15,32). O acento na identidade de Jesus como mestre é notório. São 12 vezes, sem contar na insistência em mostrar Jesus associado ao ensino (Mc 1,22.27; 4,1; 11,18; 12,38). O verbo ensinar aplicado a Jesus aparece 17 vezes (Mc 1,21.22; 2,13; 4,1.2; 6,2.6.30.34; 7,7; 8,31; 9,31; 10,1; 11,17; 12,14.35; 14,49). Trata-se de um aspecto que nem sempre é levado em conta quando se reconhece que o objetivo do EM é afirmar a messianidade de Jesus. Entretanto, é possível deduzir, do levantamento dos títulos mais frequentes aplicados a Jesus no EM, a manifestação de uma espécie de dialética cristológica. Há uma expressão do que os contemporâneos de Jesus afirmaram sobre ele em tensão com o que, de fato, a comunidade de seus seguidores - representada pelo EM – interpretou sobre o seu significado. A experiência pós-pascal da ressurreição é o ponto de partida da reinterpretação do significado mais profundo do Jesus histórico, o homem de Nazaré (Mc 16,6). Portanto, no EM Jesus é o homem de Nazaré em quem a comunidade reconhe- ce o Mestre Messias e Senhor, o Filho do Homem, o Crucificado, o Amado Filho de Deus. 14 15 Conteúdo e Estrutura Redacional Estudiosos do EM tem procurado apresentar hipóteses para melhor compreender a divisão temática proposta pelo autor, mas quando se altera o pressuposto temático de fundo, altera-se também a estrutura redacional que lhe dá sustentação. Nesse sentido, transcrevemos abaixo três modelos de estrutura redacional para o EM segundo a proposta de J. Auneau (1985, p. 66). I. A primeira estrutura pressupõe a organização do texto segundo a intenção de mostrar o quadro geográfi co por onde caminhou Jesus; II. A segunda revela-se quando a intenção é dar destaque ao drama da identidade misteriosa de Jesus; III. A terceira aponta o interesse da narrativa em priorizar as relações entre os personagens, principalmente aquelas nas quais aparecem os confl itos entre Jesus, seus adversários e os próprios discípulos. Figura 1 15 UNIDADE Evangelho Segundo Marcos Reino, Discipulado, Ética e Política Em torno do eixo cristológico fundamental da obra marcana há uma teologia voltada para alguns temas igualmente importantes e derivados da confissão de fé em Jesus como Messias. Desses temas, destacamos quatro dos mais significativos: 1. o Reino de Deus (Mc 1,15); 2. o discipulado de missionários itinerantes (Mc 6,6b-13); 3. a ética comunitária do amor preferencial aos pobres (Mc 10,17-22); 4. a política como serviço (Mc 10,35-45). O Reino de Deus A linguagem do EM para o anúncio do Reino de Deus dá-se pelo gênero das parábolas. As parábolas são breves histórias retiradas de situações do cotidiano vivido pelo povo, que servem como quadro de comparação para se ensinar o que é o Reino (Mc 4,30-33). Elas ensinam como cultivar as práticas e as condições para participar do Reino de Deus (Mc 9,47; 10,15. 21.25). Jesus é apresentado como o aquele que anuncia a chegada do Reino (Mc 1,14); suas práticas de cura (Mc 2,32-34; 3,10-11; 6,53-56), de exorcismo (Mc 1,21-28; 5,1-20; 9,14-29) e de perdão dos pecados (Mc 2,9-12; 5,19) são sinais da presença do Reino no meio do povo (Mc 9,1). O Discipulado de Profetas e Curadores Itinerantes3 O discipulado do mestre Jesus é um tema frequente. Há uma variedade de subtemas ligados ao discipulado no EM. Os professores do Novo Testamento, Cássio Murilo Dias da Silva e Rita de Cácia Ló (S/D, p.7), ilustraram numa apostila, através do gráfico abaixo citado, quais são os seguidores que compõem o grande grupo dos discípulos de Jesus no EM: Jesus osdiscípulosPedro a multidão os três: Pedro, Tiago e João os Doze Figura 2 3 Gerd Theissen (1989) escreveu um livro (Sociologia do movimento de Jesus) demonstrando que o movimento original organizado por Jesus de Nazaré era de trabalhadores da Galileia recrutados para serem profetas itinerantes do Reino de Deus. 16 17 Antes de inferir uma hierarquia rígida na organização do discipulado, é preciso compreender a visão que tem a comunidade marcana sobre o legado das tes- temunhas oculares apostólicas que tornaram possível a memória da vida, morte e ressurreição de Jesus. São os heróis apostólicos (Mc 6,7), principalmente os doze (Mc 3,13-19), os mais próximos (Pedro, Tiago e João – Mc 9,2), os de fora (Mc 4,11), os discípulos e a multidão (Mc 3,8-9; 4,1; 8,1. 34; 9,14), mais ou me- nos como está ilustrado no gráfico de Cácia Ló e Dias daSilva (p.7). Evidentemente, há mulheres no grupo dos seguidores de Jesus e são exemplos da fidelidade daqueles que permanecem com Jesus, aos pés da cruz, e cumprem as exigências das condições duras do seguimento apontadas por Jesus logo depois do primeiro anúncio da paixão (Mc 8, 31-33): 34 Chamando a multidão, juntamente com seus discípulos, disse-lhes: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. 35 “Pois aquele que quiser salvar a sua vida a perderá; mas, o que perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8,34-35). Os relatos em torno do discipulado estão sempre apontando para a fragilidade e os limites de seus seguidores, principalmente dos mais próximos e com maior responsabilidade. Pedro, por exemplo, confessa Jesus como Cristo, mas não entende quais são a implicações práticas dessa confissão de fé (Mc 8, 27-33). Por isso, a negação petrina faz parte dessa lógica da incompreensão no plano do engajamento prático diante do desafio da perseguição (Mc 14,66-72). Os filhos de Zebedeu, Tiago e João, possuem dificuldades semelhantes, pois confundem o poder que lhes é confiado por Jesus como garantia de privilégios para si mesmos (Mc 10, 35-45). Contudo, a característica mais importante da identidade dos discípulos de Jesus é a missão, isto é, o anúncio do Reino. Os discípulos são enviados como profetas itinerantes que devem ir ao povo para curar, expulsar os demônios (Mc 6,13) e testemunhar a partilha do pão (Mc 6,37-44). Tudo deve ser feito de modo a manifestar o despojamento de quem vive na pobreza, a simplicidade e a gratuidade do Reino: 8 Recomendou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado apenas; nem pão, nem alforje, nem dinheiro no cinto. 9 Mas que andassem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas (Mc 6, 8-9). Ética Comunitária do Amor Preferencial aos Pobres As exigências do EM para um discipulado comunitário começam pela formação do grupo dos doze (Mc 3,13-19) e o envio de duplas de discípulos para a missão (Mc 6,6b-7). Não há missão solitária. O trabalho missionário e a vida do discípulo são 17 UNIDADE Evangelho Segundo Marcos testemunhos comunitários. O anúncio do Reino impõe a partilha do pão. As duas “multiplicações de pães” elucidam essa realidade de uma ética que é compromisso sociocomunitário com as necessidades elementares do povo (Mc 6,30-44; 8,1-10): 35 Sendo a hora já muito avançada, os discípulos aproximaram-se dele e disseram: “O lugar é deserto e a hora já muito avançada. 36 Despede-os para que vão aos campos e povoados vizinhos e comprem para si o que comer”. 37 Jesus lhes respondeu: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Eles então lhe Disseram: “Iremos e compraremos duzentos denários de pão para dar-lhes de comer?” 38 Ele perguntou: “Quantos pães tendes? Ides ver”. Tendo-se informado, responderam: “Cinco e dois peixes”. 39 Orde- nou-lhes então que fizessem todos se acomodarem no chão, repartindo-se em grupos de cem e cinquenta. [...] 41b E repartiu também os dois peixes entre todos. 42 Todos comeram e ficaram saciados (Mc 6,35-42). A partilha do pão como decorrência da sensibilidade para com as necessidades materiais do povo (“Dai-lhes vós mesmos de comer” – Mc 6,37) está ligada diretamente a uma ética que interpreta a lei como servidora da pessoa humana, das necessidades da vida: “O sábado [entenda, a lei] foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). O amor preferencial aos pobres4 faz parte igualmente da ética comunitária proposta no EM como exigência da radicalidade implicada tanto no seguimento de Jesus (Mc 10,21. 23-25) quanto no anúncio do Reino de Deus (Mc 6,8-9). Aliás, um está implicado no outro: seguir a Jesus é testemunhar a proximidade do Reino (Mc 1,15). As inúmeras curas de doentes, espíritos impuros (Mc 1,32-34; 6,53-56) e exorcismos de pessoas endemoninhadas (Mc 1,21-28; 5,1-20; 9, 14s) representam a misericórdia do Reino em favor dos pobres e o cumprimento da palavra do próprio Jesus de que “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os doentes” (Mc 2,17). A Política como Serviço O contexto político do EM é marcado pelo apelo político militar como já foi demonstrado anteriormente. O problema das disputas para controlar o Estado, o templo e outras instituições sobre o domínio romano estava muito próximo da realidade dos interlocutores da comunidade marcana. As disputas internas para conduzir à luta de libertação também não eram desconhecidas. O EM precisou, à luz da fé em Jesus, posicionar-se de maneira muito clara a esse respeito. Sua proposta não é a negação, nem a indiferença e alienação quanto às questões de ordem política. Ao contrário, a orientação aos discípulos é viver a política como serviço, dom de si em favor do povo e crítica severa à tirania e à dominação: 4 A expressão aqui recebe a influência da proposta fundamental nascida da Teologia da Libertação que ficou conhecida como “opção preferencial pelos pobres”. Pela Igreja católica, foi assumida oficialmente em sua história mais recente desde o pronunciamento de João XXIII por uma “Igreja dos pobres” no contexto do Concílio Vaticano II. Mais tarde, a opção pelos pobres apareceria nos documentos das Conferências do Episcopado Latino-americano, primeiramente em Medellín (1968), depois reafirmada em Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). 18 19 42 Chamando-os, Jesus lhes disse: “Sabeis que aqueles que vemos gover- nar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam, 43 Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, 44 e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. 45 Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10,35-45). E assim concluímos essa introdução ao EM. Muita coisa ainda há para estudar, comentar e refletir sobre essa obra tão importante e que tanto influenciou os outros evangelhos, servindo de modelo, sobretudo aos de Mateus e Lucas. Não obstante, o que foi apresentado é suficiente para compreender as linhas fundamentais da mensagem marcana. 19 UNIDADE Evangelho Segundo Marcos Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos A Queda de Jerusalém e a Derrubada do 2°Templo – 70 Veja o Audiobook A QUEDA DE JERUSALÉM E A DERRUBADA DO 2°TEMPLO – 70 sobre a Guerra Judaica segundo um comentário da Obra “Guerra dos Judeus” de Flávio Josefo, Livros V e VI. Publicado em 21 de dez de 2016 por Socran. Trata-se de uma videoaula sobre a Guerra Judaica, evento histórico fundamental no contexto do Evangelho Segundo Marcos que é narrado segundo a ótica da Guerra dos Judeus, escrito por Flávio Josefo que foi contemporâneo e testemunha ocular dos fatos. https://youtu.be/D0wp5jJjN8I Filmes O Quarto Sábio Veja o filme O Quarto Sábio. Trata-se de um drama de ficção que retrata o contexto histórico do grande personagem dos Evangelhos, Jesus de Nazaré, vivido por um sábio de sua época em busca do Messias. É um trabalho cinematográfico bastante interessante para mostrar não só aspectos da época de Jesus, mas, sobretudo, algumas considerações sobre o significado do Messias para os homens daquele tempo. Lançamento 1985 (1h12min) Dirigido por Michael Ray Rhodes, com Martin Sheen, Alan Arkin, Eileen Brennan. Gênero: Drama, EUA, 1985. https://youtu.be/tJ0Exgb4l14 Leitura O Evangelho Segundo Marcos. A verdadeira Boa Nova num Mundo Enganado pelos Impérios Consulte a Revista RIBLA nº 64 em PDF. O arquivo traz os resumos de todos os artigos que versam sobre “O Evangelho Segundo Marcos. A verdadeira Boa Nova num mundo enganado pelos impérios”. IN: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. No. 64 – 2009/3. São Bernardo do Campo/SP: Nhanduti Editora, 2014. https://goo.gl/9okpEM O Movimento (Simbolismo) “Rasgar” no Evangelho de Marcos (1,10; 15,38) Leia o artigo científicode Lídia Maria Carneiro de Resende orientado por Geraldo Dondici Vieira do Depto de Teologia da PUC-RJ sob o título de: “O movimento (simbolismo) “rasgar” no Evangelho de Marcos (1,10; 15,38)”. Trata-se de uma análise interpretativa segundo regras da exegese aplicadas ao texto do Evangelho de Marcos. Vale a pena conferir pelo rigor da análise dos textos de Mc 1,10 e Mc 15,38 no contexto de todo o conjunto da obra. https://goo.gl/TaWkGp 20 21 Referências A BÍBLIA de Jerusalém. Nova Edição Revista. São Paulo: Paulus, 2000. AUNEAU, J. [et al.]. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. Tradução M. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 1985. BROWN, Raymond e COLLINS, Raymond. “Canonicidade” IN: JERÔNIMO, São. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. Tradução Celso Eronides Fernandes e equipe - São Paulo: Paulus, 2011. Editores: Raymond BROWN; Joseph A. FITZMYER e Roland E. MURPHY, p. 907-946. DELORME. J. Leitura do Evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1985. DIAS DA SILVA, Cássio Murilo e LÓ, Rita. Introdução aos Evangelhos Sinóticos: Marcos, Mateus e Lucas. (Apostila em PDF). S/D. GALLARDO, Carolos Bravo. Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997. MONASTERIO, R. A.; CARMONA, A. R. Introdução ao Estudo da Bíblia: Evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos. vol.6. São Paulo: Ave Maria, 2000. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992. SCHIAVO, Luis e SILVA, Valmor. S. Jesus, milagreiro e exorcista. São Paulo: Paulinas, 2011. THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1989. 21
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