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Estudos Bíblicos: Sinóticos e Escritos Joaninos Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Valter Luiz Revisão Textual: Prof. Dr. Claudio Brites Evangelho Segundo Mateus • Introdução • Autoria • Data e Local de Origem • Contexto Histórico-Social • Fontes • Estrutura Temática da Redação • Jesus no Evangelho Segundo Mateus • Chaves de Interpretação • Conclusão · Capacitar o aluno a desenvolver leitura crítica e contextualizada do Evangelho segundo Mateus, oferecendo informações básicas sobre autoria, data e contexto histórico dos interlocutores e destinatários nas origens de sua redação. Apresentar os objetivos e a organização temática desse Evangelho como resposta aos problemas e conflitos vividos pela comunidade de fé que ele representa. OBJETIVO DE APRENDIZADO Evangelho Segundo Mateus Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Evangelho Segundo Mateus Contextualização Hoje em dia é muito frequente, quando se discute religião, afirmar ou negar a coerência ética de seus padres, pastores, pais, mães de santo, ou qualquer outro nome que se dê aos líderes de instituições religiosas. Vê-se crescer cada vez mais o número de pessoas que se definem como sem religião. No último censo (2010), eram 8% da população. Estima-se que já são 12% e, entre os jovens, quase 20%. Tudo indica que é a credibilidade da instituição religiosa que está em questão e não a doutrina religiosa em si mesma, afinal, a maior parte dos sem religião professa algum tipo crença. A credibilidade da doutrina e das propostas éticas de uma dada confissão religiosa passa cada vez mais pelo testemunho de seus seguidores e, sobretudo, de seus líderes. A coerência entre o discurso e a conduta, isto é, entre teoria e prática é o ponto chave para cobrar autoridades não só religiosas, mas principalmente políticas. Pois é esse o enfoque mais importante do EMt quando o assunto é a fé religiosa e o cumprimento de seus preceitos, Jesus é apresentado nesse evangelho não apenas como anunciador de uma nova doutrina, mas sim como modelo de quem realmente pratica a vontade do Pai. Eis um bom motivo para ler, estudar e atualizar as críticas que Jesus faz a certas lideranças religiosas de seu tempo, às quais ele chama contundentemente de hipócritas (Mt 23, 13s). É forte, mas parece ser atual? Você não acha? Confira! 8 9 Introdução O Evangelho segundo Mateus (EMt) é também chamado de primeiro evangelho. Por ser o documento que abre o Novo Testamento, antecede os demais textos na sequência da ordem literária consumada desde as origens da formação do cânone. Por esse motivo, o EMt foi por muito tempo considerado o mais antigo, pressupostamente o primeiro a ser escrito e fonte dos outros evangelhos canônicos1. Porém, mais recentemente, com base nos estudos históricos de crítica literária e redacional, constatou-se que o Evangelho segundo Marcos2 (EM), de fato, foi o primeiro a ser escrito e serviu como fonte dos demais evangelhos, inclusive do EMt. A presente Unidade de estudos sobre o EMt quer oferecer um panorama com os principais pontos que caracterizam e contextualizam a produção de sua mensagem, tais como: autoria, data de composição, fontes, estrutura temática, interlocutores e destinatários imediatos em seu contexto histórico e ambiente comunitário que são próprios; além de algumas chaves fundamentais para a sua interpretação. O protagonista e, ao mesmo tempo, tema central do EMt é a figura de Jesus, apresentado como Cristo, isto é, como Messias. O que distingue o EMt do EM, apesar de toda semelhança temática – uma vez que esse é a principal fonte do primeiro, aliás, o EM é retomado e está quase integralmente no interior do EMt3 – já está anunciado desde o primeiro momento como título da obra: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). Enquanto o EM identifica sua obra como “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, declarando que o messianismo confessado em Jesus está focado na filiação divina e só secundariamente lhes são atribuídos outros títulos, o EMt está centrado na apresentação do Messias Jesus conforme as tradições e esperanças judaicas mais genuínas davídicas e abraâmicas. Autoria A tradição cristã desde cedo identificou o autor do EMt como sendo o apóstolo Levi, o publicano coletor de impostos (Mc 2,13-14; lc 5,27-28), filho de Alfeu da lista dos doze apóstolos (Mt 10,3; Lc 6,15; Mc 3,18). Pápias, bispo de Hierápolis na Ásia Menor, por volta de 110 e 120, e depois, Eusébio de Cesareia, admitiram ser Mateus o autor daquele que por muito tempo foi considerado o primeiro evangelho. O fato é que houve muitas mãos a colaborar com a narrativa do EMt. No entanto, o redator final permanece desconhecido. O que sabemos sobre ele está no texto que nos foi legado. Trata-se de um escriba judeu helenizado, convertido à fé cristã, profundamente consciente de que devia transmitir o Evangelho de Jesus em sua 1 Essa foi a tese defendida por Santo Agostinho (MONASTÉRIO, 2000, p. 16), que prevaleceu até recentemente. 2 Na sequência da Unidade os Evangelhos de Marcos, Lucas e João aparecerão respectivamente com as seguintes abreviações: EM, ELc e EJo. 3 No EMt estão 2/3 do conteúdo do EM. 9 UNIDADE Evangelho Segundo Mateus novidade radical sem perder o que há de melhor da tradição judaica (13,52). É um típico cristão judeu, próximo, mas crítico da sinagoga e da postura que tem os escribas mais ortodoxos do judaísmo. Data e Local de Origem Ainda não há consenso sobre o local exato da origem do EMt, mas o debate está em torno das regiões da Galiléia, Fenícia e Síria, mais especificamente a cidade de Antioquia. A data exata também não se sabe, mas há consenso entre os especialistas propondo o período da história judaica marcado pelo nascimento do que ficou conhecido como Judaísmo formativo4, entre os anos 85 e 90 de nossa Era. Contexto Histórico-Social A década de 80 do primeiro século foi marcada por um grande esforço de reorganização da comunidade judaica que buscava voltar às bases de suas tradições escritas e de respeito às práticas religiosas. Não havia mais o templo de Jerusalém, pois fora destruído não faziamuito tempo pelos romanos na Guerra Judaica. A maioria dos partidos políticos e religiosos anteriores à destruição foram desfeitos, restando apenas os fariseus e seus escribas. São eles que vão articular o judaísmo formativo5, um movimento de formação e reconstituição da identidade judaica para um povo sem templo, sem Estado e disperso por todo o império. A Torá hebraica, as regras culturais dela provenientes e a Sinagoga como local de reunião, encontro e transmissão da religião e costumes aos adeptos do judaísmo transformaram-se em instituições fundamentais para garantir a sobrevivência de um povo em sua singularidade étnica e religiosa. As diversas tendências do judaísmo marcadas pelo pluralismo religioso que ante- cederam à tragédia da guerra de 70 desapareceram, fazendo surgir o predomínio do judaísmo rabínico, outro nome para o judaísmo formativo, uma vez que os ra- binos judeus, escribas e mestres da lei protagonizaram esse novo desafio histórico para um povo secularmente vitimado por várias dispersões ao longo de sua história. 4 Judaísmo formativo é o movimento religioso de judeus da diáspora, liderado principalmente por rabinos e escribas, que buscava organizar a vida religiosa em torno da sinagoga e da obediência estrita das regras da Torá, uma vez que o Templo de Jerusalém fora destruído e seus seguidores expulsos da cidade pelos romanos. 5 J. Andrew Overman (1997), em sua obra O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, mostra as implicações do Judaísmo formativo no EMt. Seu objetivo é entender os conflitos entre as lideranças judaicas e o grupo dos discípulos de Jesus representados pelo EMt. Os primeiros procuram reorganizar e normatizar a religião judaica em torno da Lei e da Sinagoga. Na ótica dessas lideranças, trata-se de viabilizar alternativa de afirmação de sua identidade como povo que mais uma vez foi expulso de Jerusalém, perdeu sua terra, não tem mais Estado e viu seu Templo ser destruído pelos romanos na Guerra Judaica. Evidentemente, o EMt significa a formulação de outra alternativa diante dessa situação. 10 11 A postura dogmática e impositiva do judaísmo rabínico entrou em conflito com os grupos e as comunidades judaicas convertidas ao cristianismo. O Evangelho segundo Mateus é a expressão desse conflito na ótica das comunidades cristãs que vieram do judaísmo e se abriram à cultura greco-romana, aceitando conviver no mesmo ambiente com gente proveniente do paganismo. Considerar esse contexto histórico sociorreligioso é pressuposto fundamental para compreender o propósito, a linguagem e a estratégia do EMt que visa, por sua vez, afirmar a identidade da comunidade dos seguidores de Jesus frente aos irmãos da sinagoga. O EMt representa então o esforço de afirmação de uma entidade nova em torno de Jesus e a resistência das autoridades, escribas e rabinos da sinagoga em não aceitar a postura mais aberta dos cristãos em relação às prescrições estritas da Torá. Observe como isso transparece no texto: de um lado está a comunidade ou rede de comunidades representadas pelo EMt propondo a nova interpretação da lei segundo a ótica da radicalidade da justiça cumprida por Jesus (5,17-20), do outro lado, estão os representantes dos fariseus e seus escribas (5,20s), procurando preservar a interpretação ortodoxa, opressiva e restritiva da Lei, contrária aos ensinamentos adotados pelos seguidores do Nazareno: 17 Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, 18 porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. [...] 20 Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e a dos fariseus, não entrarei no Reino dos Céus (Mt 5,17- 18.20. O grifo é nosso). Você reparou como Jesus no EMt é duro na crítica que faz aos fariseus e escribas? “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas [...]” (Mt 23, 13-32). Neste capítulo (Mt 23) são sete vezes, sete advertências ao mesmo grupo. O adjetivo “hipócrita” é forte e caracteriza os principais adversários da comunidade de Mateus. Viu como isso tem a ver com o contexto histórico e sociorreligioso marcado pelo predomínio do judaísmo formativo de rabinos que tentam revigorar a identidade da religião judaica? Afi nal, eles lideram um povo que vê novamente ser destruído seu grande símbolo religioso, o templo de Jerusalém. Além disso, trata-se de um povo que mais uma vez é obrigado a experimentar o exílio, longe de sua terra e, principalmente, de sua cidade sagrada. Ex pl or 11 UNIDADE Evangelho Segundo Mateus Fontes Como os outros evangelhos, o EMt é redigido a partir das tradições da memória oral, isto é, de relatos que contavam e os principais acontecimentos envolvendo palavras, atos, curas e narrativas sobre a vida de Jesus. Havia também fontes já escritas, usadas em determinadas circunstâncias para celebrar a memória de Jesus como Messias crucificado e ressuscitado e exortar a comunidade ao seu seguimento. As duas principais fontes do EMt é o próprio EM e a coleção de palavras de Jesus conhecida como fonte Q. Dos 661 versículos do EM, mais de 600 estão no EMt e quase sempre na mesma sequência. Veja a tabela dessa presença do EMc no EMt: Mateus 3,1-4,22 (4,23-25;5,1-2) 7,2-29 1,1-20 (1,21) 1,22 1,29-34 1,40-45 2,1-22 8,2-4 8,14-17 8,18-34 9,18-26 9,1-17 9,35 10,1-16 12,1-16 12, 24-32 12,46-50 13,1-35 13,53-58 6,7-11 6,6b 6,1-6a 5,21-43 4,35-5,20 4,1-34 3,31-35 3,22-30 3,16-19 2,23-3,12 Marcos Figura 1 Fonte: Neirynck, 2011 12 13 A fonte Q é admitida como texto escrito que antecedeu em sua origem a escritura dos outros evangelhos. Quando se compara os três evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), logo se constata que há um conjunto de trechos comuns entre Mt e Lc que não se encontram em Mc. Esse conjunto comum a Mt e Lc não marcanos foi provavelmente produzido na “comunidade cristã de Jerusalém antes da guerra judaica (66-73 dC)” (KONINGS, 2000, p. 155). O nome Q indica por convenção a sigla Q cuja origem é abreviação da palavra alemã Quelle, que significa exatamente fonte. Parece redundante em português, mas é isso mesmo, fonte Q é uma fonte “Fonte”. Como são textos que se referem a palavras, parábolas e breves discursos de Jesus, também são chamados de logias, do grego, que significa palavras ou sentenças. Q é então uma coleção de ditos de Jesus exclusivos dos EMt e ELc, mas não do EMc. Veja como isso pode ser graficamente ilustrado: Mc → Mt ↓ ↑ Lc ← Q As bem-aventuranças (Mt 5,1-12), a oração do Pai Nosso (Mt 6,9-13) e o envio dos apóstolos para a missão (Mt 10, 1-16) são alguns dos textos no EMt atribuídos à fonte Q. A semelhança entre Mt e Lc quando se trata de um texto da fonte Q chega a ser impressionante quando se compara os textos em suas versões gregas mais próximas das composições originais. Compare, por exemplo, Mt 6,24 e Lc 16,13: às vezes, evidentemente, se a comparação for feita com base nas traduções em português a partir de Bíblias segundo diferentes tradutores, talvez não se perceba tanto como o texto é praticamente o mesmo. Das 28 palavras presentes na versão grega, 27 são as mesmas tanto num texto como no outro. A Bíblia de Jerusalém (2012) aqui utilizada como referência, deixa essa coincidência ser notada: Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6,24). Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Lc 16,13). Contudo, a singularidade do EMt está no modo como ele reescreve suas fontes e estrutura o seu texto segundo tradições e fontes que lhes são próprias. 13 UNIDADE Evangelho Segundo Mateus Estrutura Temática da Redação O EMt é fruto de uma estrutura muito bem organizadapara transmitir não apenas pelo conteúdo, mas também pela forma, aquilo que está no título de toda obra e repete de variadas formas ao longo da narrativa, a saber, que o Evangelho é livro sobre as origens de Jesus, a mais completa e perfeita tradução das esperanças e promessas depositadas em Abraão e Davi: “Livro da origem de Jesus, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). É uma composição literária feita na estrutura básica de cinco livros, pois pretende ser a nova Torá, isto é, o novo Pentateuco (os cinco livros que abrem a Bíblia: Gn, Ex, Lv, Nm e Dt). O EMt é uma obra que intercala textos narrativos com textos discursivos. Mt 1-2: Introdução → origem e nascimento de Jesus 3-4: Narrativa → início do ministério 5-7: 1º Discurso → Sermão da Montanha 8-9: Narrativa → Curas e Milagres 10: 2º Discurso → Envio missionário dos discípulos 11-12: Narrativa → Controvérsias com os adversários 13: 3º Discurso → Parábolas do Reino 14-17: Narrativa → O reconhecimento de Jesus por seus discípulos 18: 4º Discurso → Igreja/Comunidade de irmãos 19-22: Narrativa → Narrativa sobre a proximidade do Reino 23-25: 5º Discurso → Crítica à hipocrisia religiosa e o Juízo Final Mt 26-28: Conclusão → Paizão, morte e ressurreição de Jesus Jesus no Evangelho Segundo Mateus Jesus em Mateus é tudo o que já havia sido professado no EM, mas é também o mestre que transmite o verdadeiro ensino e pleno significado do espírito da lei (Mt 5,20-48) e das práticas religiosas (Mt 6-7). Ele não é apenas o mestre que ensina com palavras, mas aquele que pratica o que ensina (Mt 7,21), cura (Mt 4,23- 25; Mt 8-9), abençoa, profetiza (Mt 7,15-20) e realiza, à sua volta, solidariedade, fraternidade e comunhão, resgatando doentes, pobres e famintos da situação de exclusão (Mt 11,3-6). 14 15 Jesus é sim o Messias (Mt 16,16), o Filho do Homem (Mt 16,27-28; 17, 9.12.22; 20,18), o Filho amado do Pai (Mt 17,5b) professado no EM. Porém, distinto do EM, para o EMt Jesus é sim o Filho de Davi (Mt 1,1), mas não subordinado à figura do Rei Davi, isto é, Jesus é maior do que Davi (Mt 22,41-46). Por isso, a filiação davídica em Mateus rejeita o caminho da violência e assume a tipologia do Messias sofredor (Mt 12,15-21; 16, 21-24), como em Marcos (Mc 8, 31). Jesus no EMt é aquele que critica a hipocrisia dos escribas e fariseus (Mt 23,13- 32), pois eles exigiam dos outros que cumprissem inúmeras regras e preceitos religiosos de seu tempo, mas “omitiam as coisas mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23). Jesus é o mestre profeta que ensina e pratica a nova justiça e uma nova fidelidade à lei de Moisés (Mt 5,20s). Por isso ele é o novo Moisés e seu evangelho na expressão das bem-aventuranças do sermão da montanha é a nova Torá (Mt 5,1-12). No EMt, Jesus é o Messias, pregador do Reino dos Céus (Mt 13) e está conven- cido de sua chegada iminente (Mt 16,27-28). Ele é também o Filho do Homem, juiz escatológico6 do Reino, aquele que julgará a humanidade de acordo com os critérios da justiça e solidariedade aos pobres, famintos, forasteiros, doentes e prisioneiros (Mt 25,31s). Chaves de Interpretação O recado das origens messiânicas de Jesus O EMt tem evidentemente a proclamação de Jesus como Messias. Seu obje- tivo é mostrar que em Jesus, o Cristo, se realizam plenamente as promessas de Deus a Abraão e a Davi. Sua genealogia (Mt 1,1-17) destaca a presença de cinco mulheres que se destacaram na história da Bíblia pela ousadia, irreverência e situação de marginalização que souberam superar a partir da abertura à graça de Deus em suas vidas. 1ª) Tamar (Mt 1,3), viúva que fez valer seu direito previsto na lei de maneira a garantir a justiça que lhe era devida (Gn 38). Abandonada pelos irmãos de seu marido e por seu sogro que, pela lei do levirato (Dt 25,5-10),7 devia assumi-la como se fosse sua esposa, ela e o irmão/filho falecido. Judá, seu sogro. Depois de uma atitude extremamente arrojada, disfarça-se de prostituta e, numa relação com o sogro, acaba ficando grávida. Quando a família de seu marido descobre sua 6 Escatológico é o que diz respeito ao “Escaton”, palavra grega que significa “fim”. No contexto da teologia e esperanças messiânicas do Novo Testamento indica o final dos tempos quando chegará o Reino dos Céus e o Filho do Homem julgará cada um segundo o seu comportamento (Mt 16,27; Mt 25,31s). 7 A lei do levirato prescrevia que a mulher sem filhos, cujo marido havia morrido, devia ser assumida pelo irmão ou o sogro do falecido e com ela gerar um filho em nome do seu ex-marido, para assim garantir o acesso à propriedade e todos os demais direitos da herança que lhe cabiam numa sociedade patriarcal. Sem esse resgate, o que lhe restava era voltar à casa do pai ou prostituir-se para poder sobreviver. 15 UNIDADE Evangelho Segundo Mateus gravidez, resolve condená-la ao apedrejamento. Nesse momento, ela apresenta o cajado do homem que é o pai de seu filho: Judá. Ele então é obrigado a reconhecer: “Essa mulher é mais justa do que eu” (Gn 38,26). E foi assim que Tamar ficou na memória do povo como a mulher que fez valer, por caminhos estranhos e pouco convencionais, a justiça que lhe era devida; 2ª) Raab (Mt 1,5a), a prostituta estrangeira que foi salva junto com sua família por acolher em sua casa os enviados de Josué para inspecionar a cidade de Jericó que iria ser vencida (Js 6,22-25). Ela tornou-se símbolo de solidariedade e coragem, pois desde sua condição de marginalidade, identificou-se com o grupo de Josué, juntando-se ao povo de Deus, independentemente de sua origem não ser judaica; 3ª) Rute (Mt 1,5b), mulher estrangeira, viúva que, numa situação de extrema dificuldade, não foi capaz de abandonar sua sogra, Noemi. Ela também, como Tamar, fez valer o direito da lei do levirato que igualmente lhe era negado por caminho nada comum. A memória popular a partir do relato bíblico no livro de Rute a colocou como a mulher que gerou os ancestrais do Rei Davi e, assim, deu a ela a honra de ser protagonista do cumprimento das promessas messiânicas (Rt 4,9-22); 4ª) A mulher de Urias (Mt 1,6). Trata-se da mulher cobiçada por Davi de nome Bersabéia, por quem se apaixonou e cometeu o grave pecado do adultério usando de seu poder de Rei. Ao saber que ela estava grávida, Davi colocou o seu marido à frente do batalhão de guerra e o fez morrer (2Sm 11-12). O profeta Natã é portador da crítica e condenação de Davi por esse grave delito. Bersabéia não é condenada pelo texto bíblico, pois esse a considerou vítima de uma sociedade patriarcal injusta, cujo rei abusa de mulheres de modo a desrespeitar as leis de Deus. O fato inusitado é que Deus transformou o mal em bem. De Bersabéia nasceu Salomão, o filho de Davi que deu continuidade à posteridade da realeza davídica, instituição que manteve viva as promessas de um reinado justo e de paz (2Sm 7; Is 9,5-6); 5ª) Maria, a mãe de Jesus (Mt 1,16). Como as mulheres anteriores mencionadas na genealogia, Maria encontrou-se grávida, mas o pai humano para os seus contemporâneos era desconhecido. O EMt, num belíssimo relato, mostra a intervenção do anjo do Senhor pedindo a José, seu esposo, que acolhesse Maria, pois o que nela foi gerado é obra do Espírito Santo (Mt 1,18-25). Assim, o EMt apresenta de uma forma simbólica, através do relato genealógico, que Jesus era sim o Messias. Embora sua ascendência davídica fosse contestada por muitos de seus contemporâneos, afinal ele era identificado como sendo Galileu da Vila de Nazaré (13,53-58), ele era o mais genuíno representante das promessas e do legado do povo de Deus. Uma comunidade aberta aos pagãos como a de Mateus, que integra e acolhe judeus e não judeus, mulheres e homens, via através do relato introdutório (Mt 1-2) o exemplo de que a cidadania no Reino já estava contemplada na história da salvação e era, de fato, atestada pelas Escrituras Sagradas. 16 17 Seguimento de Jesus e modelo de Igreja O seguimento de Jesus O EMtdá-se sobretudo na vivência das bem-aventuranças (5,1-12). Ser discípulo é pertencer ao Reino dos Céus e ser “pobre no espírito” (Mt 5,3). E quem são os pobres no espírito? São os sujeitos que se depreendem das demais bem- aventuranças: os desvalidos, pobres, sofredores e vítimas da injustiça desse mundo; os mansos, os aflitos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os promotores da paz e aqueles que são perseguidos por causa da justiça (Mt 5, 4-12) . As exigências para ser discípulo de Jesus são muito claras no EMt: fazer a vontade do Pai (Mt 12,49-50). No EMt, Jesus é apresentado usando muitas palavras e parábolas que indicam ações e práticas coerentes (Mt 7,21-24) com o que se prega (Mt 21,28-32). Fariseus e escribas são chamados de hipócritas exatamente porque eles mesmos não cumprem as exigências que impõem aos outros (Mt 23). Jesus usava muito as palavras “fazer”, “praticar”, “agir”. Nós as registramos ce3rca de 80 vezes em seus ensinamentos. De fato, a pessoas é aquilo que faz: “Toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má produz maus frutos. É pelos frutos que vocês os conhecerão” (7,16; cf também 5,16; 12,33-17; 13,23; 21,43). Seguindo as orientações de Jesus, por meio de seus frutos é que reconheceremos os verdadeiros e os falsos profetas (7,15.20) (MOSCONI, 1998, p. 90). Modelo de Igreja O modelo de Igreja em Mateus também é baseado na pregação do Reino dos Céus e das bem-aventuranças. Em primeiro lugar, ser Igreja, no EMt, é seguir o modelo da fraternidade, colocando como prioridade de sua prática pobres e pequenos (Mt 11,25-27), crianças (18,1-5), doentes (Mt 9,35-38) e pecadores (Mt 9, 10-13). A correção fraterna comunitária (Mt 18,15-18), o perdão (Mt 18,21-22) e a confissão, pela fé, de Jesus como Messias, o filho do Deus vivo, tal como Pedro o fez (Mt 16,16-20), são as características que identificam a Igreja de Mateus. Ética comunitária centrada na Justiça A ética do EMt é de radical compromisso com o cumprimento da lei em função da justiça (Mt 5,17-20). Entretanto, trata-se não do cumprimento legalista da lei, seguida de maneira cega e inescrupulosa que impõe regras sem o devido discernimento do princípio da justiça: Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticas estas coisas, mas sem omitir aquelas (Mt 23,23). 17 UNIDADE Evangelho Segundo Mateus O princípio ético fundamental do EMt exige que o cumprimento da justiça seja colocado acima dos escrúpulos da lei e da tradição (Mt 15,1-9). A justiça precisa ser praticada no testemunho do perdão (Mt 18, 21-22), da correção fraterna (Mt 18,15-18), e não do juízo condenatório dos irmãos (Mt 7,1-5). Esperança Escatológica8 na Vinda do Reino dos Céus A proclamação do Reino dos Céus é central no EMt e ocupa grande parte do texto. O ministério de Jesus pela Galileia é marcado por práticas e discursos que revelam a proximidade do Reino dos Céus (Mt 3,1-9,38). As bem-aventuranças mostram os protagonistas do Reino (5,1-12); o Juízo final, por sua vez, aponta os critérios da prática de solidariedade com os pobres que leva as pessoas a entrarem no Reino (Mt 25,31s). As parábolas de Jesus ensinam como discernir e identificar a presença do Reino. Sobretudo no capítulo 13, elas começam com a seguinte expressão: “O Reino dos Céus é semelhante [...]” (Mt 13,24.31.33.44.45.47). A proclamação do Reino dos Céus é central no EMt e ocupa grande parte do texto. O ministério de Jesus pela Galileia é marcado por práticas e discursos que revelam a proximidade do Reino dos Céus (Mt 3,1-9,38). As bem-aventuranças mostram os protagonistas do Reino (5,1-12); o Juízo final, por sua vez, aponta os critérios da prática de solidariedade com os pobres que leva as pessoas a entrarem no Reino (Mt 25,31s). As parábolas de Jesus ensinam como discernir e identificar a presença do Reino. Sobretudo no capítulo 13, elas começam com a seguinte expressão: “O Reino dos Céus é semelhante [...]” (Mt 13,24.31.33.44.45.47). O Reino dos Céus é semelhante ao tesouro escondido num campo; um homem o acha e torna a esconder e, na sua alegria, vai, vende tudo o que possui e compra aquele campo (Mt 13,44-46). Conclusão A finalidade da narrativa de Mateus, como foi demonstrado, é encorajar a sua co- munidade a praticar a verdadeira justiça que tem, no testemunho de Jesus como Mes- sias, o seu modelo mais perfeito. A legitimidade da prática religiosa e o anúncio do Evangelho pregado pelos seguidores de Jesus não vêm da obediência cega à lei, mas do testemunho da misericórdia de Deus através da solidariedade vivida junto aos mais pobres, carentes, doentes e necessitados do mundo (Mt 9,10-13;10,8-9, 25,31s). 8 Cf. a explicação na nota de rodapé nº 8 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Como ler o Evangelho de Mateus Leia o livro: STORNIOLO, I. Como ler o Evangelho de Mateus. O caminho da Justiça. São Paulo: Paulus, 1997. 216p. É um livro bem didático para completar a informações sobre o conteúdo do EMt. Vídeos 01- Mateus capítulo 1, versículo 1 ao 25 - Deus Conosco - Arel o Leão de Deus - Desenhos Bíblicos Assista à animação que introduz o Evangelho de Mateus. Numa linguagem simples, através de desenho animado, Arel, o Leão de Deus, o narrador, conta o primeiro capítulo do EMt. https://youtu.be/90IfeOm2CFM Filmes Evangelho Segundo Mateus Trata-se de um filme que buscou mostrar Jesus como o maior revolucionário de todos os tempos segundo o relato de Mateus, o evangelista narrador, que, desde o início, como personagem, segue o roteiro de seu próprio Evangelho. Direção: Pier Paolo Pasolini Elenco: Enrique Irazoqui, Susanna Pasolini, Marcello Morante mais Gêneros Drama, Histórico, Biografia Data: 1964 (2h 17min). Nacionalidades França, Itália. Leitura O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Leia o artigo de Dorothy A. Lee, O Evangelho de Mateus e o Judaísmo. Postado em 01/07/2005 no Portal de Diálogo Cristão-Judaico: Jewish-Christian Relations. Trata-se de uma abordagem bastante objetiva das relações entre o EMt e o Judaísmo. De fato, é um excelente complemento ao estudo desta Unidade. https://goo.gl/kXNcV6 19 UNIDADE Evangelho Segundo Mateus Referências A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2012. AUNEAU, J. et al.. Evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1985. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004. KONINGS, J. A Bíblia nas suas origens e hoje. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 17. ed. São Paulo: Paulus, 1982. MONASTÉRIO, R. A. O enigma dos sinóticos. In: O’CALLAGHAN, J. (Org.). A Formação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 11-25. MOSCONI, L. O evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2007. NEIRYNCK, Frans. O problema sinótico. IN: JERÔNIMO, São. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. São Paulo: Paulus, 2011. OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo. São Paulo: Loyola,1997. 20
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