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História e Literatura do Novo Testamento História e Literatura do Novo Testamento Clóvis Jair Prunzel Gerson Luis Linden Vilson Scholz Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Clóvis Jair Prunzel possui graduação em Teologia pelo Seminário Concórdia (1991), graduação em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense (1991) e mestrado em Teologia pelo Seminário Concórdia (1997). Doutorando em Teologia no Concordia Seminary de Fort Wayne, Indiana, EUA. Atualmente, é professor da Universidade Luterana do Brasil, colaborador da Igreja Evangélica Luterana do Brasil e professor de tempo integral do Seminário Concórdia. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática e Bíblica, atuando principalmente nos seguintes temas: teologia luterana, Lutero, retórica cristã, confissões luteranas, teologia sistemática e teologia neotestamentária. Gerson Luis Linden possui graduação em Teologia – Seminário Concórdia de São Leopoldo (1984) e mestrado em Teologia Exegética – Concordia Seminary de St. Louis, EUA (1993). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Luterana do Brasil e professor titular – Seminário Concórdia. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Exegese do Novo Testamento e Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: escatologia, igreja, ministério, luteranismo e apocalipse. Vilson Scholz possui graduação em Teologia pelo Seminário Concórdia (1978), Mestrado (1981) e Doutorado (1993) em Teologia pelo Concordia Seminary de St. Louis, EUA. Atualmente, é membro do corpo editorial da The Bible Translator. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Bíblica, atuando principalmente nos seguintes temas: 2 Coríntios 3,4-18, exegese de 2 Coríntios 3. Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P972h Prunzel, Clóvis Jair. História e literatura do Novo Testamento. / Clóvis Jair Prunzel, Gerson Luis Linden, Vilson Scholz. – Canoas: Ed. da ULBRA, 2011. 168 p. 1. Novo Testamento. 2. Aspectos históricos. 3. Aspectos literários. I. Linden, Gerson Luis. II. Scholz, Vilson. III. Título. CDU: 225 Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado Astomiro Romais Andréa Eick André Loureiro Chaves Cátia Duizith Dados técnicos do livro Fontes: Minion Pro, Offi cina Sans Papel: off set 90g (miolo) e supremo 240g (capa) Medidas: 15x22cm Projeto Gráfi co: Humberto G. Schwert Editoração: Roseli Menzen Capa: Juliano Dall’Agnol Coordenação de Prod. Gráfi ca: Edison Wolf Impressão: Gráfi ca da ULBRA Março/2011 ISBN 978-85-7528-368-4 Sumário Introdução ................................................................. 7 1 | Fundo histórico e cultural do Novo Testamento .............. 11 2 | Fundo religioso e teológico do Novo Testamento ............ 23 3 | Os Evangelhos sinóticos ............................................. 33 4 | O Evangelho segundo João.......................................... 55 5 | Atos dos Apóstolos .................................................... 69 6 | Cartas de Paulo: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas ......... 77 7 | Efésios, Filipenses, Colossenses e 1 e 2 Tessalonicenses ... 93 8 | Cartas a indivíduos: 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito e Filemom .........................................................113 9 | Cartas gerais: Hebreus, Tiago, Pedro, João e Judas ........129 10 | Apocalipse ..............................................................149 Referências comentadas ............................................163 Referências .............................................................167 Introdução No Prefácio ao Novo Testamento publicado no ano de 1522, Lutero assim escreveu: Assim como o Antigo Testamento é um livro no qual estão escritos a lei e o mandamento de Deus, além da história daqueles que observavam os mesmos e dos que não os observavam, o Novo Testamento é um livro que contém o Evangelho e a promessa de Deus, além da história dos que nestes creem e dos que não creem. Acontece que evangelho é um termo grego que em nossa língua significa boa mensagem, boa nova, boa notícia, bom boato, decantado, comentado e motivo de alegria. Quando Davi subjugou o gigante Golias, surgiu um falatório alvissareiro, uma notícia confortadora no seio do povo judeu, de que seu inimigo terrível fora abatido, sendo eles livrados, com perspectiva de alegria e paz, razão por que cantavam e pulavam e estavam felizes. Da mesma forma, este Evangelho de Deus, o Novo Testamento, é uma boa notícia, um rumor alvissareiro, que ecoou no mundo inteiro por meio dos apóstolos, a respeito de um autêntico Davi que lutou com o pecado, a morte e o diabo, subjugando-os, com o que redimiu, justificou, vivificou e salvou a todos os que estiveram presos em pecados, atormentados pela morte, subjugados pelo diabo, assim colocando-os na perspectiva da paz e levando-os de volta para Deus, 8 Introdução sem o mérito dos mesmos. Por isso cantam, louvam, enaltecem a Deus e estão contentes eternamente, contanto que nisto creiam firmemente e perseverem na fé. Esse rumor, essa notícia confortadora ou novidade evangélica e divina também é chamada de Novo Testamento, comparável ao testamento do moribundo que determina a partilha dos seus bens após a sua morte aos herdeiros designados; da mesma forma também Cristo, antes de morrer, ordenou e determinou a proclamação desse Evangelho por todo o mundo após a sua morte. Com isso ele aquinhoou a todos os que creem de todos os seus bens, isto é, de sua vida, com a qual ele tragou a morte, sua justiça, com a qual eliminou o pecado, e sua salvação, com que suplantou a condenação eterna. Acontece que a pessoa miserável, enredada em pecado, morte e destinada ao inferno, não pode ouvir coisa mais confortadora do que essa cara e bem-vinda mensagem a respeito de Cristo, de modo que, nela crendo, ficará sorridente e felicíssima. Para fortalecer essa fé, Deus prometeu esse seu Evangelho e testamento, muitas vezes, no Antigo Testamento por meio dos profetas, conforme diz São Paulo em Rm 1[.1]: “Fui chamado para pregar o Evangelho de Deus, que ele já tinha prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, e que diz respeito a seu filho, nascido da estirpe de Davi”, etc. [...] Assim sendo, o Evangelho não é senão uma pregação a respeito de Cristo, filho de Deus e de Davi, verdadeiro Deus e ser humano, que com sua morte e ressurreição para nós superou o pecado, a morte e o inferno de todos os seres humanos que nele creem. O Evangelho pode, pois, ser discurso breve ou longo, que um pode descrever de modo sucinto, outro, de forma extensa. Quem descreve muitas obras e palavras de Cristo, fá-lo com muito fôlego, como o fazem os quatro evangelistas. Fá-lo de forma breve quem não menciona as obras de Cristo, mas relata sucintamente como ele superou o pecado, a morte e o inferno por meio de sua morte e ressurreição, para aqueles que nele creem, como S. Pedro e Paulo.1 1 Martinho Lutero. “Prefácio ao Novo Testamento”. | Obras Selecionadas 8, p.124-127. São Leopoldo, Sinodal, e Porto Alegre, Concórdia, 2003. 9Introdução Com base nestas palavras, introduzimos a disciplina de História e Literatura do Novo Testamento. Este material foi escrito por professores especialistas na área. Escrito a seis mãos, o livro apresenta aspectos históricos e literários que facilitam a leitura do Novo Testamento. Aqui se poderá perceberum colorido especialmente proporcionado pela construção do material. De forma breve, já que são 27 livros, apresentam-se detalhes como autores, contexto histórico e uma estrutura argumentativa dos livros do Novo Testamento. Com isso, quer-se levar o aluno para dentro do texto, como um guia para sua leitura e análise. Clóvis Jair Prunzel 1 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento Clóvis Jair Prunzel 1.1 Aspectos históricos Os romanos, que dominaram a Palestina nos tempos de Jesus, não foram os primeiros a impor seu jugo sobre os moradores do que fora antigamente Israel. A partir da queda de Israel, em 722 a.C., e da queda de Jerusalém, em 586 a.C., a Palestina passou pelas mãos dos persas até o ano de 331 a.C., depois pelos gregos sob Alexandre Magno, até 323 a.C., pelos governantes do Egito, até 204 a.C., pelos sírios, até 166 a.C., pelos macabeus, até 37 a.C., e, a partir daí, pelos romanos. Desses conquistadores, os gregos influenciaram muito o período do Novo Testamento. Com as campanhas bélicas de Alexandre, o Grande, a cultura grega se espalhou até o Oriente. Desde a língua grega, utilizada para escrever os livros do Novo Testamento, a influência grega também se dá no comércio e na diplomacia. Após a morte de Alexandre, seu vasto império foi dividido em quatro partes e, dessas, duas são importantes para a história do período bíblico: a parte que tinha Alexandria no Egito como capital, administrada pelos ptolomeus, e a outra, dominada pelos selêucidas, que controlaram a Síria, sendo Antioquia a sua capital. 12 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento Em meio a esses dois grupos estavam os judeus. No período de 320 a 198 a.C., quando os ptolomeus dominavam a região judaica, houve relativa paz. Um fato que marca este período é a tradução do Antigo Testamento para o Grego, a Septuaginta. Realizada no Egito, a tradução para o grego beneficiou judeus que conheciam melhor o grego do que o hebraico. Já no período dominado pelos selêucidas, houve a tentativa de helenizar Jerusalém. Um dos exemplos dessa tentativa foi a construção de um ginásio nos moldes gregos. Também se sugeriu a ida a teatros, a remoção da circuncisão com cirurgias e a mudança de nomes hebreus para gregos. E essa helenização criou dois grupos extremamente opostos em Jerusalém. Um dos grupos, extremo e contrário à helenização, foi o dos macabeus. Eles conseguiram retomar a liberdade de culto para os judeus, reinando em Jerusalém por um período. Desse grupo religioso se originam os fariseus e essênios. Já no grupo do outro extremo, mais político, temos os saduceus. Mas foram os romanos que exerceram o domínio sobre a Palestina na época do Novo Testamento. Roma, fundada em 753 a.C., começou a estender seu domínio territorial a partir do século III, alcançando o norte da África e conquistando a Espanha. No ano 63 a.C., o general romano Pompeu conquistou a Síria, anexando assim a Judeia a Roma. Após várias brigas internas, o império romano conseguiu se estabilizar com Augusto. Cesar Augusto governou Roma de 27 a.C. a 14 d.C. Durante esse período, os relatos dos Evangelhos nos apresentam o nascimento de Jesus, o recenseamento requerido pelo imperador que leva a família de Jesus a Belém e o início do assim chamado culto ao imperador. A partir de seu reinado, instalou-se a Paz Romana, criando uma estabilidade e hegemonia de Roma, o que facilitou muito a propagação do Cristianismo, na segunda metade do século I da era cristã. Augusto tornou-se o imperador, centralizando o poder em suas mãos. Com isso, amenizaram-se as brigas internas em Roma. Já nas províncias, criaram- se as províncias senatoriais e imperiais. As províncias senatoriais tinham um procônsul nomeado pelo senado e as imperiais tinham um procurador nomeado pelo imperador. A província da Judeia era da responsabilidade de um procurador, que respondia diretamente ao imperador. 13Fundo histórico e cultural do Novo Testamento Além da estabilidade política, Augusto também foi responsável por uma estabilidade do exército romano quando criou um exército profissional. Com formação, estes soldados acabaram se tornando parte fundamental da estabilidade moral porque exerciam o controle e também eram leais a Roma. As fronteiras do império estavam consolidadas. O povo se beneficiou com as reformas, restaurando-se a base da sociedade, a família e o casamento. O culto ao imperador foi reflexo da estabilização de uma religião em Roma. O censo que Augusto implantou serviu de base para recrutamento de soldados e também para a cobrança de impostos. A cidade de Roma também se beneficiou das reformas. A polícia, serviços de incêndio e a organização na distribuição de alimentos foram importantes para os romanos. Com todas essas reformas, Augusto se vangloria de que havia recebido uma Roma de tijolo e, depois de quarenta e um anos, deixou-a como de mármore. Paz e prosperidade, obras públicas, confiança no governo e fortalecimento do tesouro deram uma estabilidade para os próximos governantes. O sucessor de Augusto foi seu filho adotivo Tibério, que reinou de 14 a 37 d.C. Neste período, na Palestina, Jesus exerceu seu ministério público, foi morto e ressuscitou. No seu reinado, houve declínio do avanço trazido por Augusto. Quando morreu, o Senado retomou seu poderio. O próximo imperador, Calígula, foi escolhido pelo Senado. Reinou de 37 a 41 d.C. e criou sérios problemas para os judeus. Um deles foi a ordem de colocar sua estátua no templo em Jerusalém. Para os romanos, tornou-se um tirano e foi assassinado por um tribuno da guarda imperial. Com a experiência com Calígula, o Senado romano tomou a iniciativa de retomar a república e para isso escolheram Cláudio como imperador. Durante o seu reinado, de 41 a 54 d.C., os judeus foram expulsos de Roma por distúrbios civis, e entre eles estavam Áquila e Priscila. Durante este período, o escritor romano Suetônio menciona os distúrbios liderados por um tal de Chrestus, e para alguns historiadores há uma conexão com a pregação de Jesus como o Cristo. Não se pode chegar a conclusão alguma sobre o assunto. O sucessor de Cláudio foi Nero, reinando de 54 a 68 d.C. No ano 64, depois de um grande incêndio em Roma, com suspeita de o próprio Nero tê-lo 14 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento provocado, os cristãos foram perseguidos e, segundo a tradição, Pedro e Paulo foram martirizados. Sob Vespasiano, de 69 a 79 d.C., Jerusalém caiu. Tito, seu filho e que foi imperador de 79 a 81 d.C., foi o general que invadiu a cidade e destruiu o templo. Foi o auge da perseguição aos judeus. Domiciano, de 81 a 96 d.C., perseguiu os cristãos. Os livros de João foram escritos neste período e a opressão está presente no texto de Apocalipse. Exigiu a adoração ao imperador. A relação dos governantes de Jerusalém com Roma é interessante. Num primeiro momento, os romanos deixaram que governantes nativos dirigissem as colônias e em Jerusalém Herodes, o Grande se destacou. Seu governo durou do ano 37 a 4 a.C. mas não era benquisto pelos judeus, já que sua origem não era judaica. Descendente idumeu, da linhagem de Esaú, Herodes assassinou duas de suas próprias esposas e pelo menos três de seus próprios filhos e foi ele quem ordenou a matança dos infantes de Belém na época do nascimento de Jesus. Político hábil e governante eficaz, legou aos judeus o embelezamento do templo de Jerusalém, mesmo não acreditando no judaísmo. Os filhos de Herodes o Grande governaram partes da Palestina. Arquelau governou a Judeia, Samaria e Idumeia; Herodes Filipe, a Itureia, Traconites, Gaulanites, Auranites e Bataneia; e Herodes Antipas a Galileia e a Pereia. João Batista repreendeu a Antipas pelo seu divórcio [Marcos 6 e Mateus 13] e Jesus o chamou de “essa raposa” [Lucas 13.32] e esteve diante dele no seu julgamento [Lucas 23.7-12]. Agripa I, neto de Herodes o Grande, executou Tiago e encarcerou Pedro [Atos 12], e Agripa II, bisneto de Herodes o Grande,ouviu Paulo em Atos 25 e 26. Arquelau teve problemas na administração da Judeia, Samaria e Idumeia, o que levou à remoção do seu cargo. Em seu lugar foram colocados governantes romanos, destacando-se Pôncio Pilatos, que julgou Jesus, Félix e Festo, que ouviram Paulo em Atos 23–26. Floro foi o governador que pilhou o tesouro do templo quando este foi destruído no ano 70. Mesmo com esses governantes romanos, quem controlava a vida do povo no seu dia a dia era o sacerdócio judaico e o sinédrio. 15Fundo histórico e cultural do Novo Testamento 1.2 Aspectos sociais do mundo do Novo Testamento O que caracteriza as estruturas sociais do período do Novo Testamento é a distinção econômica. Mesmo no judaísmo, que apresentava uma estratificação religiosa, os grupos dominantes eram eminentemente ricos. É o caso das famílias sacerdotais e rabínicas, que na época de Jesus estavam diretamente ligadas aos hasmoneus, da família de Herodes. Os líderes judeus descritos nos Evangelhos dominam a estrutura social de tal forma que todo o comércio relacionado com o templo de Jerusalém estava nas mãos deles. Deveriam ganhar parte dos lucros provenientes da venda dos animais para os sacrifícios e do câmbio de dinheiro envolvido nos tributos do templo. Dentro dessa estrutura abastada, temos Nicodemos e José de Arimateia, que angariavam fundos alugando ou arrendando suas terras, ganhando com a produção. Os demais judeus eram homens livres, sendo lavradores ou comerciantes. Os pescadores, como é o caso de alguns discípulos, possuíam empresas independentes e viviam em boas condições. Por causa de suas obrigações religiosas, os judeus se equiparavam muito, o que restringia as classes sociais. Por razões teológicas, todos os judeus eram moralmente responsáveis perante Deus, mas se alguém ascendia socialmente era considerado abençoado por Deus, o que não isentava alguém de se tornar rico pela prática de boas ações. Fora do contexto judaico, a estratificação social era maior. As camadas sociais eram nitidamente diferenciadas. Roma, originalmente composta por uma classe dominante ligada ao Senado, por causa de suas guerras civis viu sua estrutura social migrar para uma nova estrutura dominante que trabalhava em função do governo, especialmente comprando terras a preços ínfimos, consequências das guerras. Também a exploração das províncias produziu uma classe de comerciantes ricos, que compartilhavam seus lucros com o governo. Com isso, criou-se uma classe predominantemente rica em Roma. A classe média romana praticamente desaparece porque os escravos, provenientes das províncias como cativos militares, assumiram o trabalho, levando a classe média a cada vez mais depender do governo, inclusive para o pão diário. As dívidas também minguaram esta classe social. 16 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento Segundo alguns historiadores, os escravos e criminosos eram a metade da população. A guerra, as dívidas e os nascimentos mantinham as fileiras da população escrava em rápido crescimento. Muitos escravos eram médicos, contadores, professores, artistas e filósofos. O trabalho que realizavam era essencialmente agrícola, outros eram criados e alguns auxiliavam no comércio. A vida dos escravos era degradante. À mercê de seus proprietários, vícios e degradação social marcavam a relação entre os proprietários e seus escravos. Por outro lado, havia patrões que tratavam bem os seus escravos. Escravos, com suas economias, chegavam a comprar sua liberdade. No Novo Testamento, os escravos são descritos e jamais se tem uma postura de defender a escravatura. Paulo descreve a relação entre patrões e escravos de forma igual. A melhor forma de tratar o assunto é a carta a Filemon. Os escravos são exortados a obedecerem a seus senhores e os senhores são instados a serem responsáveis pelos escravos. Outro grupo que formava a sociedade romana era o dos criminosos. Ao descrever a realidade da sociedade em Roma, conforme a carta aos Romanos capítulo 1, é fácil perceber como a sociedade estava degradada, levando-a ao crime. A moralidade também é decadente. Seguidamente o apóstolo Paulo questiona a atitude de muitos cristãos que estavam voltando a viver como viviam antes. A prostituição, institucionalizada com “virgens” disponíveis para o culto ou com a prática comum entre homens e mulheres. A família também estava decadente. A relação entre pais e filhos não era das melhores. O divórcio era comum e fácil de se conseguir. A toda essa realidade, a mensagem neotestamentária precisou influenciar e provocar uma mudança até certo porto radical. 1.3 Aspectos culturais do contexto do Novo Testamento Língua O processo de comunicação se dava em quatro línguas no império romano. O latim era utilizado em Roma, tanto nos tribunais como na literatura. Fora 17Fundo histórico e cultural do Novo Testamento de Roma, era utilizado na África do Norte, na Península Ibérica, na Gália, na Bretanha e na Península Itálica. Os povos conquistados facilmente adquiriam a língua latina, mas a adequavam à sua pronúncia e ao seu vocabulário, criando dialetos latinos. O grego era a língua culta por excelência. As pessoas cultas utilizavam o grego e ao leste de Roma era a língua predominante. Era utilizada na Palestina e, provavelmente, Jesus e seus discípulos utilizaram a língua para se comunicar com os gentios. O aramaico era centralizado no Oriente Próximo. Vários personagens do Novo Testamento utilizaram o aramaico para se comunicar entre si e com autoridades. O hebraico, em desuso popular desde o tempo de Esdras, estava restrito ao culto judeu para transmitir o conteúdo teológico. O povo não utilizava a língua. A inscrição na cruz de Jesus nos dá uma dimensão do uso linguístico no século I: aramaico, grego e latim como línguas comuns. A divulgação da mensagem cristã se beneficiou deste contexto linguístico. Especialmente o aramaico e o grego foram utilizados para divulgar a mensagem cristã. Os primeiros textos do Novo Testamento foram escritos em aramaico. Segundo a tradição, as palavras de Jesus foram escritas em aramaico, mas a sua preservação se deu no grego. As cartas de Paulo foram escritas em grego, considerando os seus destinatários. A educação Formalmente, não havia uma educação organizada entre os romanos. Uma família de classe média romana tinha um paidagogo, um escravo com responsabilidade de ensinar o básico às crianças, levando-as a uma escola particular em cidades onde ela existia. Este processo durava até a juventude. Nas escolas os professores não tinham muito interesse numa relação mais pessoal com seus alunos. Basicamente, o sistema de ensino era composto de leitura, escrita e matemática. Alguns chegavam a ler os poetas gregos e latinos, decorando longas passagens para declamá-las em lugares públicos. Alguns jovens abastados conseguiam cursar alguma universidade que existia em Atenas, Rodes, Tarso ou Alexandria, tendo contato com filósofos itinerantes. Um jovem judeu aprendia a ler o Antigo Testamento. Os judeus espalhados pelo mundo romano utilizavam-se das Sinagogas para isso. Aprendiam das 18 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento tradições de seus antepassados. O apóstolo Paulo fez parte de um grupo interessado em continuar seus estudos e, sentado aos pés de Gamaliel, foi educado de acordo com os conhecimentos de seus antepassados [Atos 22.3]. Literatura Nos tempos de Augusto, no século I antes de Cristo, a literatura floresceu em Roma. Virgílio foi o poeta que engrandeceu os feitos romanos. Outros poetas se destacaram: Horácio, Ovídio. Cícero, filósofo e jurista, também se destaca com sua produção literária em latim. Plínio escreveu sobre a história da natureza, Quintiliano organizou a gramática e a retórica. Tácito e Suetônio narraram a história dos césares em língua popular. Um destaque especial é a tradução da Bíblia Hebraica para a língua do povo no século II a.C., a Septuaginta. Será fundamental para o apóstolo Pauloescrever suas cartas utilizando-se de termos e conceitos utilizados nesta tradução. Ciência Para os romanos do período bíblico, a ciência era eminentemente prática. Estavam interessados na medição da terra e no cálculo do dinheiro. A maioria das invenções os romanos copiaram dos gregos, como os navios e as máquinas de guerra. Nos tempos de Jesus, a geometria estava bem avançada. Os babilônicos e egípcios já a utilizavam e os gregos apenas a aprimoraram. A mecânica e a física vieram dos gregos. Arquimedes, por exemplo, desenvolveu a teoria da alavanca e a base do cálculo. Todo esse conhecimento matemático foi amplamente utilizado em guerras. A astronomia recebeu impulso no século I da era cristã com Ptolomeu de Alexandria. Os seus princípios estabelecidos duraram até a época de Copérnico. A medicina também era avançada, inclusive havia faculdades de medicina espalhadas pelo império romano. Se o mundo gentílico estava interessado na praticidade científica, os judeus não tinham esse interesse, pelo menos durante o período neotestamentário. Consequentemente, é fácil de entender por que não se tem registro dos primeiros 19Fundo histórico e cultural do Novo Testamento cristãos estarem envolvidos com o mundo científico e não podemos ler o Novo Testamento sob a ótica científica. Arte e arquitetura Pela praticidade da engenharia, construções eram feitas especialmente em Roma. Pontes, aquedutos, teatros, piscinas são visíveis ainda hoje como testemunhos da capacidade romana. Decorações, estátuas, bustos e outras formas de artes também são testemunha da alta capacidade criativa dos romanos na arte. Até os recursos da pilhagem e destruição de Jerusalém e seu templo foram utilizados para embelezar Roma. O Arco de Tito foi construído com estes recursos e ainda está presente em Roma. O anfiteatro influenciou muito a população romana. Lutas sangrentas entre homens e animais ferozes eram promovidas pelo imperador. Gladiadores, normalmente escravos, eram preparados para lutar na arena. O derramamento de sangue no anfiteatro era uma forma de entretenimento romano. A música e o drama também foram aprimorados nos tempos do Novo Testamento. Poetas gregos, como Ésquilo e Eurípedes, destacaram-se por sua produção artística. A música se desenvolveu de tal forma que são encontrados diversos instrumentos musicais da época. A lira e a harpa acompanhavam procissões e divertiam hóspedes de casas mais abastadas. 1.4 Aspectos econômicos do mundo do Novo Testamento Agricultura A bacia do Mediterrâneo, tanto na costa africana como na Europa, era extremamente fértil. Na África, a produção de grãos era intensa. Era um verdadeiro celeiro para os romanos. Nas províncias ocidentais, como a Bretanha, a Gália e a Germânia, havia sistemas de irrigação para ajudar na produção agrícola. 20 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento A Palestina também possuía partes de terra muito férteis e diversos produtos eram produzidos. Os judeus eram exímios preparadores do terreno para o plantio. Sistemas de adubação artificial, irrigação e diversidade de produção marcavam a agricultura na Palestina. O retrato dos Evangelhos do mundo agrícola demonstra um reconhecimento profundo da profissão. Indústria A produção industrial era escravagista. A mão de obra utilizada era escrava e produzia alimentos, vasos de cobre, linho e papel, louças de barro. Operários eram encontrados em todas as cidades. O próprio Jesus foi carpinteiro [Marcos 6.3] e Paulo fazia tendas [Atos 18.3]. Produtos de luxo vinham de diversas partes do império para Roma. Madeira, ouro e marfim vinham da África e do Oriente. Joias eram feitas na Índia. A Ásia e a Rússia produziam roupas de peles. Viajantes carregavam os produtos ao longo de todo o império, utilizando-se do sistema viário bem organizado pelos romanos. As diversas vias conduziam os viajantes para os diversos pontos do império, facilitando o deslocamento menos oneroso dos mercadores e produtos. Navios também transportavam produtos, utilizando-se do sistema marítimo disponível, pois era mais rápido, especialmente nos meses de verão. Sistema financeiro O denário é a moeda várias vezes citada no Novo Testamento, especialmente nos Evangelhos. Segundo Mateus 20.2, era o salário diário de um trabalhador. Muitas cidades tinham sua própria moeda e, quando os romanos conquistavam uma nova província, a moeda local não era retirada de circulação. Cambistas eram comuns, especialmente no templo em Jerusalém. Como o templo utilizava uma moeda própria, os judeus vindos de diversas regiões precisavam trocar suas moedas pelas do templo. Bancos existiam não semelhantes aos nossos, mas o sistema de empréstimo era intermediado por eles. Parábolas contadas por Jesus nos mostram que o sistema de empréstimo era comum no período do Novo Testamento. Temos a parábola dos talentos [Mateus 25.15] e a das minas [Lucas 19.13] como exemplos de empréstimo de dinheiro e de como aumentar a fortuna. 21Fundo histórico e cultural do Novo Testamento Autoavaliação 1. Relacione as colunas. (1) Ano da fundação de Roma ( ) 27 a.C. (2) Entrada dos gregos na Palestina ( ) 81 a.C. (3) Reinado de Vespasiano ( ) 753 a.C. (4) Começo do reinado de Augusto ( ) 69 d.C. (5) Reinado de Domiciano ( ) 331 a.C. 2. Considerando a estrutura social do período do Novo Testamento, assinale a opção correta: a) A classe média, durante o império romano, predominava, ao lado de uma classe social escravizada. b) Em Roma temos basicamente duas classes sociais: a dominante e a escravizada. c) A história de Filemon é uma histórica típica que encontramos na sociedade judaica. d) A diferença social entre judeus e gentios estava na quantidade de escravos que cada sociedade possuía. e) Independente da condição social entre os povos do Novo Testamento, os problemas sociais estavam sob controle em meio aos diversos povos que existiam na época. 3. Quando analisamos a perspectiva científica no mundo do Novo Testamento, percebemos: a) que o Templo de Jerusalém é mostra da avançada ciência presente no mundo judaico. b) que os judeus tinham tanto interesse no desenvolvimento científi co quanto os gentios, especialmente os gregos e os romanos. c) que Jesus pôde deslumbrar o mundo científi co da época presente em meio às cidades de origem grega e romana. d) que em Jerusalém tinha um anfi teatro onde aconteciam os jogos na arena. e) que há várias passagens no Novo Testamento que descrevem aspectos científi cos presentes na época. 22 Fundo histórico e cultural do Novo Testamento 4. Leia Efésios 4 a 6 e descreva aspectos sociais presentes nesta carta. Se possível, faça conexões com o ensino bíblico como um todo [AT + NT]. 5. Leia as sete cartas presentes no Apocalipse [capítulos 2 e 3] e descreva como as cidades estavam organizadas socialmente e economicamente. Respostas: 1) 4 – 5 – 1 – 3 – 2 2) b 3) c 2 Fundo religioso e teológico do Novo Testamento Clóvis Jair Prunzel Os ensinos de Jesus não se dão em meio a um mundo sem religiosidade. Pelo contrário, um contraponto forte aos ensinos de Jesus relatado nos Evangelhos se dá da parte dos judeus, com sua religião e teológica totalmente diferentes da mensagem cristã. Os apóstolos também enfrentaram os judaizantes e Paulo retrata as dificuldades de anunciar a mensagem cristã aos judeus. Além dos judeus, a religião e a teologia do mundo greco-romano também serão um problema para a mensagem cristã. 2.1 A religião e a teologia em meio ao mundo gentílico Os cristãos do Novo Testamento têm contato direto com uma religião e uma teologia fruto da Grécia e da Itália. Os gregos desenvolveram sua teologia a partir do panteão. A partir de Zeus, que governava o céu, Poseidon que governava o mar e Hades o mundo inferior, a teologia grega era eminentemente mitológica. Com seu centro no Monte Olimpo, na Grécia, os deuses tinham contato com os seres humanos, sendo superiores a estes no poder, na inteligência e na imortalidade,mas na moralidade iguais aos 24 Fundo religioso e teológico do Novo Testamento homens. Um filho de Zeus, Apolo, que tinha seu templo em Delfos, em cima de um vulcão, comunicava-se com os homens através de fumaça que saía do vulcão, sendo interpretada por uma sacerdotisa, que comunicava as intenções de Apolo para o ser humano. Em Éfeso havia um templo para a irmã gêmea de Apolo, Ártemis, deusa da lua e da caça. Este templo foi considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo e o apóstolo Paulo o conheceu conforme o texto de Atos 19, causando alvoroço quando pregou a mensagem cristã na cidade. A imoralidade dos deuses, atacada duramente por Platão três séculos antes de Cristo, causou o declínio do panteão grego na época de Jesus. Os romanos, que haviam dado nomes latinos aos deuses gregos, como Zeus que se tornou Júpiter, Poseidon em Netuno, Ártemis em Diana, modificam sua religiosidade chegando ao ponto de adorar o imperador. Essa mudança do panteão grego à centralidade de culto ao imperador não aconteceu de uma hora para outra. Ela surgiu no período em que os gregos reinaram no Egito e na Palestina. Títulos como Senhor, Salvador e Divindade Manifesta foram sendo direcionados às pessoas que governavam e, quando os romanos surgiram no contexto histórico, a mudança aconteceu naturalmente. Desde o tempo de Augusto, no século I antes de Cristo, os imperadores se tornaram divindades por indicação do Senado. Esta adoração lentamente foi progredindo até chegar no final do século I da era cristã, quando Domiciano ordenou que todos, inclusive os cristãos, adorassem-no, o que levou à perseguição dos mesmos na época em que o apóstolo João escreveu seus textos. Contrário ao culto ao imperador, João escreveu: “Jesus é Senhor dos senhores, Rei dos reis” [Apocalipse 17.14; 19.16]. A ideia principal com a adoração ao imperador era centralizar o poder e ao mesmo proporcionar um patriotismo da parte dos súditos, transformando o sustento do estado um dever religioso. Além de uma religiosidade institucionalizada, havia outras manifestações religiosas. Na busca por uma relação mais direta com a divindade, havia as religiões de mistério. A adoração a Cibele surgiu na Ásia, a Ísis e Osíris se desenvolveu no Egito, e da Pérsia originou-se o Mitraísmo. Mesmo tendo origens em diversos lugares, esses religiões supriram bem a falta de uma experiência mais direta com a divindade. Centralizada na ideia de um deus que tinha morrido e ressuscitado, cada uma dessas religiões requeria rituais e fórmulas de purificação através de representações dramáticas, que muitas vezes eram secretas, levando o participante a um êxtase espiritual. A iniciação nessas religiões se dava através 25Fundo religioso e teológico do Novo Testamento de uma fraternidade em que escravos e senhores, ricos e pobres eram todos iguais. Com essa dupla ideia de imortalidade e igualdade social, as religiões de mistério se espalharam pelo império romano. Provavelmente, Paulo as menciona em Colossenses 2,18,19, quando menciona um “culto aos anjos”. Outra manifestação religiosa é a adoração do oculto. Em alguns aspectos, semelhante à religião de mistério, o ocultismo nos tempos bíblicos era essencialmente supersticioso. Ensinavam que o mundo era povoado por espíritos e demônios que podiam ser invocados ou que estariam sujeitos à vontade humana. Judeus eram supersticiosos e durante o Cativeiro Babilônico o ocultismo se mesclou ao judaísmo em alguns aspectos. Os gregos também apelavam aos oráculos do ocultismo, aprendizado que tiveram com os persas. Era comum para os romanos sacrificar um animal e “ler as entranhas” para conhecer o futuro. No Novo Testamento os fariseus são acusados de feiticeiros como vemos em Atos 8.9-24 e 13.6-11. Os cristãos, em Éfeso, queimaram os livros de feitiçaria conforme Atos 19.19. Simão, o Mago em Atos 9.18-19 quis comprar o poder de Deus, considerando-o como algo mágico. A astrologia também estava presente desde a Babilônia. Observando as estrelas e os planetas, os babilônicos os relacionavam a acontecimentos humanos e este relacionamento acabou se tornando uma forma de religião. Teoricamente, acreditavam que os poderes do universo governavam os planetas e a vida humana, concluindo que o curso da vida dos homens poderia ser traçado relacionando-a à disposição dos planetas. Para descobrirem o que os planetas tinham a dizer, criaram os doze signos, o zodíaco, marcado por uma constelação especial. A partir da data de nascimento de uma pessoa, calculavam as influências dos planetas sobre a pessoa, predizendo acontecimentos. Esta era uma forma inicial do atual horóscopo, praticado ainda hoje. 2.2 As correntes filosóficas Quando a religião não supre mais as necessidades do ser humano, a filosofia toma forma como tentativa de correlacionar todo o conhecimento que se tem do universo de forma sistemática. Algumas filosofias abrem espaço para um ser superior; por outro lado, outras suprimem completamente a ideia de um 26 Fundo religioso e teológico do Novo Testamento deus. Orientado pela lógica humana, a filosofia buscar explicar os mistérios, e a religião pode ser um mistério para o ser humano. Observando as diversas correntes filosóficas, percebemos que elas têm alguns vínculos com o Cristianismo, algumas coisas parecidas. Obviamente, não podemos colocá-las no âmbito da fé cristã, visto que a revelação bíblica vem de fora da história da humanidade, mas que interage na história do ser humano. Uma corrente filosófica que estava bem difundida nos tempos do Novo Testamento foi o platonismo. Platão, ao tentar explicar a origem das coisas, explicou a realidade a partir de um mundo ideal. Enquanto o mundo material é apenas uma sobra, o mundo das ideias é o mundo real. Com esse dualismo, essas ideias filosóficas criaram uma visão negativa da realidade concreta. Enquanto o conhecimento é salvação, a ignorância é pecado. O bem supremo é apenas uma ideia. O platonismo em si não é atacado nos livros do Novo Testamento. Uma ramificação deste sim: o gnosticismo. A partir do dualismo platônico, o gnosticismo destacou que a divindade, o bem supremo, é demasiado grande e santo e não poderia ser responsável pelo mundo, visto que este é mau. A matéria é má e o espírito é bom. Com essas teorias, facilmente se chegou a negar a natureza humana de Jesus. Paulo ataca o gnosticismo na sua carta aos Colossenses e o apóstolo João escreve suas cartas para defender a realidade história da fé cristã e da obra de Jesus Cristo. Posteriormente, especialmente a partir do século III, o platonismo retorna, influenciando negativamente a teologia cristã. Quando o apóstolo Paulo anunciou a ressurreição de Cristo em Atenas [Atos 17.18-32], os epicureus riram-se do que Paulo falava. Os epicureus ensinavam que os deuses não estavam preocupados com a situação dos homens, pois desfrutavam de felicidade no seu próprio mundo. Era uma visão deísta, pois, se os deuses não estavam preocupados com os problemas humanos, no fundo poderiam até não existir. Logo, a grande razão da existência humana é o prazer, já que pecado e juízo sobre o ser humano não poderiam existir. Os estoicos também riram das palavras de Paulo em Atenas. Para eles, o mundo está em um constante progresso. O mal que existia logo deixaria de existir porque haveria um bem maior. Este progresso era totalmente humano 27Fundo religioso e teológico do Novo Testamento e um divindade não poderia se interessar pelos problemas humanos. O plano de Deus revelado através de Jesus Cristo não poderia ser algo lógico na visão estoica. 2.3 A religiosidade judaica e sua relação com a história e a literatura do Novo Testamento Para muitos historiadores, o Cristianismo é filho do judaísmo. Assim como o judaísmo faz uso do Antigo Testamento, para muitos o Novo Testamento é reflexo teológico do Antigo Testamento e a conclusão até certo ponto lógica é de que o Cristianismo é uma evolução histórica e teológica do judaísmo.Mas uma leitura atenta do Novo Testamento nos ajuda a perceber que a mensagem cristã foi rejeitada pelos judeus como afirma Paulo na carta aos Romanos. Jesus foi judeu, praticou muitos aspectos da teologia judaica, mas a sua mensagem não é judaica. O judaísmo teológico praticado nos tempos do Novo Testamento tem sua origem no exílio do povo judeu na Babilônia no século VI antes de Cristo. Ao lermos os livros de Daniel e Esdras especialmente, podemos perceber uma diferença no culto praticado em Jerusalém dos séculos anteriores. Mesmo com a restauração do templo de Jerusalém nos tempos de Jesus, o culto judaico se centralizava na sinagoga. Havia mais judeus vivendo fora de Jerusalém e grande parte dos judeus não podia participar dos ritos religiosos praticados no templo. O uso da sinagoga se desenvolveu no período chamado intertestamentário, isto é, entre o último livro do Antigo Testamento e os escritos do Novo Testamento. Esse desenvolvimento acompanha o desenvolvimento do próprio judaísmo aos desafios sociais e culturais que o povo judaico sofre. Saindo de um mundo pastoril e agrícola, muitos judeus se concentram nas grandes cidades do império romano, assumindo uma atividade comercial de destaque. A teologia judaica é baseada no ensino de que Javé era o único Deus [Deuteronômio 6.4]. Nos tempos do Novo Testamento, a teologia judaica caracterizava Deus como ser eterno, imutável, santo, livre e perfeito. Um ser superior a todos os demais, tornando-o um ser impessoal. 28 Fundo religioso e teológico do Novo Testamento Ao homem estavam destinados o cumprimento dos mandamentos de Deus e as prescrições cúlticas como a circuncisão, a guarda do sábado, as festas anuais e o culto na sinagoga. Pecado era a quebra da Lei, o que separava o verdadeiro judeu do falso. Quando Jesus e seus discípulos quebraram a lei do sábado no Novo Testamento, eles deixaram de serem judeus, na compreensão dos líderes judaicos. Outro aspecto forte na teologia judaica era o messianismo, à espera por um libertador político, especialmente do jugo romano. Não era um Messias que iria sofrer e morrer para libertar o indivíduo, mas era um líder que iria conduzir o povo através de um levante bélico. O discurso escatológico de Jesus em Mateus 24 e 25 é totalmente contrário ao pensamento judaico. 2.4 O templo e a sinagoga – lugares centrais da adoração Jerusalém teve três templos. Salomão construiu o primeiro, que foi destruído por Nabucodonosor. O segundo templo foi terminado em 516 antes de Cristo, conforme Esdras 6. Quando os ptolomeus invadiram Jerusalém em 168 antes de Cristo, este templo foi profanado, e na invasão romana ele foi destruído. A partir do oitavo ano do reinado de Herodes, o templo começou a ser restaurado a partir das poucas partes que haviam sobrado de pé. Em um ano e meio, o santuário estava terminado. Mas as partes exteriores foram concluídas no ano 64 depois de Cristo. O templo foi destruído no ano 70 depois de Cristo pelos romanos. O templo foi construído com mármore branco, parte coberta com outro, proporcionando um reflexo do sol. Era um retângulo de 190 por 200 metros. Internamente havia um pátio chamado de pátio dos gentios. Qualquer um podia entrar nele. Também havia um espaço para as mulheres. O lugar dos israelitas era o pátio interior e em meio a ele o pátio dos sacerdotes. Dentro deste estava o santo dos santos, semelhante ao tabernáculo do tempo de Salomão. Também se tinha o altar dos sacrifícios, local para ofertas queimadas. 29Fundo religioso e teológico do Novo Testamento Com uma autorização especial, os judeus tinham uma guarda que cuidava do templo. Provavelmente parte desta guarda prendeu Jesus. Jerusalém toda vivia em função das atividades do Templo, com suas festas e seus sacrifícios. Uma última menção que se faz do templo como sendo usado por cristãos do Novo Testamento temos em Atos 21.23-26. O papel da sinagoga é fundamental para os judeus na época do Novo Testamento. O apóstolo Paulo frequentemente utilizou-se da sinagoga para ensinar a teologia cristã. Como a maioria dos judeus estava fora de Jerusalém, um lugar apropriado para ensinar a teologia judaica fez-se necessário. Substituindo o templo, a sinagoga assumiu o local de encontro da comunidade judaica. Nela não se fazia sacrifício, mas se estudava a Lei. O sacerdote não era importante mas o rabino sim. Os rabinos se organizaram hierarquicamente para desempenhar o seu papel junto à comunidade. Uma casa sólida, com rolos da Lei, com ambientes que facilitassem a leitura e o estudo, a liturgia incluía o shema, palavras de louvor, leituras bíblicas e a aplicação do conteúdo à vida individual. Jesus participou com frequência das atividades da sinagoga, e os cristãos, como já mencionamos anteriormente, também fizeram uso dela para ensinar a fé cristã. O ritmo de vida judaico seguia um calendário religioso. O início de ano se dava no mês abril, quando se celebrava a Páscoa, a Festa dos Pães Asmos. No mês seguinte, tinha o Pentecostes, sete semanas depois da Páscoa, lembrando a Lei dada por Deus para Moisés no monte Sinai. No mês de outubro, celebrava-se a Festa das Trombetas, o início do ano civil, e a Festa dos Tabernáculos. A Festa das Luzes era celebrada no mês de dezembro, e no mês de março celebrava-se a Festa do Purim. As duas últimas festas foram introduzidas após o exílio babilônico. A Páscoa era a mais importante, lembrando a saída do povo de Israel do Egito. Jesus participou da festa muitas vezes. Lucas nos lembra de que Jesus esteve na infância participando da festa em Jerusalém. O evangelista João organiza seu Evangelho com base nas idas de Jesus a Jerusalém para participar da Páscoa. A lembrança da Lei dada por Deus no monte Sinai era lembrada na Festa das Semanas. Para a Igreja Cristã, o Pentecostes nos lembra da descida do Espírito Santo, conforme o relato de Atos. 30 Fundo religioso e teológico do Novo Testamento A Festa do Ano-Novo não atraía muitos peregrinos a Jerusalém, pois marcava o início do ano civil. O Dia da Expiação era um dia de Jejum conforme Atos 27.9. Era o dia em que o sacerdote entrava no Santo dos Santos e realizava o sacrifício expiatório. Em Hebreus, este dia é aplicado à obra de Cristo, que, como sacerdote, entregou-se em sacrifício pela humanidade pecadora. A Festa dos Tabernáculos era uma festa que encerrava o ano litúrgico dos judeus. De caráter popular e de natureza alegre, a festa é um ato de ação de graças do povo, lembrando os anos que o povo de Israel passou pelo deserto. 2.5 Os grupos religiosos judaicos Os fariseus foram o grupo mais radical nos tempos de Jesus. O grupo surgiu no período dos macabeus e sua teologia baseava-se na Lei de Moisés, nos profetas e suas interpretações orais e escritas. Destacava-se a crença na existência dos anjos, na imortalidade da alma e na ressurreição do corpo. Praticavam o jejum, a oração, o dízimo, o sábado. Frequentemente, Jesus os enfrenta nos relatos dos Evangelhos. Paulo, antes de ser cristão, foi um fariseu rigoroso [Atos 23.6]. Dos diversos judaicos, o grupos dos fariseus se faz presente em meio aos judeus ortodoxos, que seguem a lei, as cerimônias e a moral judaica. Os saduceus, descendentes de um sumo sacerdote dos tempos de Davi e Salomão, eram menos numerosos do que os fariseus e eram os mais políticos, com uma relação muito próxima dos herodianos. Seguidores das leis do Antigo Testamento, mas negavam a existência de anjos e espíritos e não acreditavam na imortalidade. Como eram oportunistas, deixaram de existir após a queda de Jerusalém. Os essênios eram sábios e observavam uma conduta restrita. O sábado era observado com excessivo rigor e davam atenção especial à pureza individual e eram muito semelhantes aos fariseus. Alguns sugerem que João Batista teve contato com esse grupo, mas o Novo Testamento não dá testemunho. Comparando com a Igreja Cristã posterior, esse grupo é muito semelhante ao monges que se recolhiam nos mosteiros.31Fundo religioso e teológico do Novo Testamento Os zelotes eram radicais nacionalistas. Com um interesse mais político do que religioso, um dos discípulos de Jesus, Simão, era desse grupo, conforme Lucas 6.15. Autoavaliação 1. Relacione as colunas. (1) Deusa egípcia ( ) Imperador (2) Zeus ( ) Cibele (3) Deus romano ( ) Ísis (4) Divindade asiática ( ) Júpiter (5) Deus grego ( ) Deus grego 2. Dentre as diversas correntes filosóficas gregas encontradas no Novo Testamento, temos: a) O platonismo, com as ideias de certo e errado. b) o epicurismo, com o ensinamento de que as divindades não estavam preocupadas com os seres humanos. c) Os ensinamentos científicos oriundos do pensamento de Aristóteles d) O platonismo, que ensinava que a matéria é boa e o que espírito é mau. e) a teologia de Sócrates, rebatida por Paulo na carta aos Colossenses, quando discorre sobre a pessoa e a obra de Jesus Cristo. 3. Sobre a teologia ensinada pelos judeus da época de Jesus, é correto afirmar: a) que há muitos aspectos retirados do Antigo Testamento, mas também há elementos adicionados no tempo do exílio judaico. b) que havia um calendário que lembrava as festas para o povo e o seu início se dá no mês de janeiro. c) que a celebração da Páscoa era a festa religiosa mais importante para o povo da época de Jesus. 32 Fundo religioso e teológico do Novo Testamento d) que, longe de Jerusalém, o papel do rabino se tornou predominante. e) que os sacerdotes que faziam sacrifícios nas sinagogas eram as maiores autoridades teológicas. 4. Identifique, nos Evangelhos, autoridades teológicas do mundo do Novo Testamento que encontramos na época de Jesus. 5. Pesquise, no judaísmo moderno, elementos presentes já na época de Jesus. Respostas: 1) 3 – 4 – 1 – 5 – 2 2) b 3) a, c, d 3 Os Evangelhos sinóticos Gerson Luis Linden 3.1 Introdução Os três primeiros Evangelhos, na ordem dos livros do Novo Testamento, Mateus, Marcos e Lucas, têm sido denominados Evangelhos sinóticos. A palavra “sinótico”, com origem na língua grega e significando um olhar conjunto, foi provavelmente utilizada pela primeira vez em referência aos três Evangelhos por um estudioso do século XVIII, Johann J. Griesbach. Esta designação ressalta os muitos aspectos semelhantes na maneira como estas três obras relatam a vida e o ministério de Jesus. A leitura dos quatro Evangelhos permite ao leitor constatar que o termo geral Evangelhos “sinóticos” tem sua razão de ser, especialmente quando comparados ao Evangelho conforme João. Ao mesmo tempo em que se constatam as inúmeras semelhanças entre os Evangelhos sinóticos, sua leitura também revela diferenças, seja na ordem em que os eventos são relatados, seja em detalhes próprios de cada narrativa, ou até mesmo no fato de haver certos eventos relatados em apenas um, ou dois dos três sinóticos. Tal constatação tem levado estudiosos a tentarem harmonizar os relatos. Já no século II da era cristã, Taciano tentou fazê-lo com a obra Diatessaron (“Através dos quatro [Evangelhos]”). Em tempos modernos também foram empreendidas tentativas de “harmonizações” dos Evangelhos. Independentemente de como se avaliam as harmonizações dos relatos, é sempre recomendável ler cada um deles como uma obra completa, naquilo que seu autor 34 Os Evangelhos sinóticos pretendia transmitir aos seus leitores originais e aos atuais. Por isso, mesmo antes de iniciarmos o estudo de cada um dos Evangelhos sinóticos, é importante que o estudante leia estes textos. 3.2 A questão sinótica Como já foi observado acima, os três primeiros Evangelhos canônicos apresentam convergências que levantam questões sobre seu relacionamento. Por “questão sinótica” entende-se o estudo e a tentativa de explicação destas convergências (semelhanças) e das diferenças entre Mateus, Marcos e Lucas. E isto está diretamente ligado à questão da origem de cada um dos Evangelhos. Passaremos agora a mencionar, de maneira breve, as principais semelhanças e diferenças, passando depois a sugerir algumas explicações possíveis. No que se refere às convergências, podemos citar: 1. Roteiro – os três Evangelhos relatam basicamente o mesmo conteúdo sobre o ministério de Jesus, ainda que Ele certamente fez muito mais do que está registrado; 2. Ordem ou sequência – mesmos episódios aparecendo na mesma sequência (Mt 3.1–4.12 e paralelos; Mt 8.23–9.26 e paralelos; Mt 16.13–17.23 e paralelos); 3. Forma narrativa – mesmos detalhes e mesmas palavras sendo empregados (Mt 8.14,15 e paralelos; Mt 3.7-10 e paralelos). Em termos de diferenças no relato dos três Evangelhos, podemos citar: 1. Roteiro – cada evangelista tem material exclusivamente seu (Mt 20; Mt 25; Mc 4.26; Lc 7.36; Lc 15); 2. Ordem de eventos relatados – em alguns textos, os evangelistas colocam os eventos numa ordem diferente, por exemplo: Mt 5–7 e Lc 6.20-49; Mt 4 e Lc 4; 3. Forma narrativa – algumas diferenças podem ser constatadas nas palavras utilizadas, bastando comparar textos paralelos: Mt 9.18-26 e paralelos; O Pai Nosso – Mt 6.9-13; Lc 11.2-4. 35Os Evangelhos sinóticos O assunto tem sido muito debatido desde o início do século XVIII. Como explicar tantas semelhanças e diferenças, especialmente no que se refere à origem dos Evangelhos? Não há uma solução que tenha contentado a todos os estudiosos, mas diversas explicações têm sido dadas, que passamos agora a mencionar brevemente: 1. Dependência literária – os evangelistas teriam tido acesso ao(s) texto(s) do(s) outro(s), o que explicaria as semelhanças; e cada um deles teria também sua fonte própria, o que poderia explicar as diferenças. Assim, por exemplo, Agostinho propôs que Mateus teria sido o primeiro e que Marcos teria se utilizado dele para seu próprio relato. Johann J. Griesbach (1783) sugeriu que Marcos teria se utilizado de Mateus e Lucas, hipótese esta seguida por alguns autores no século XX, como William R. Farmer (The Synoptic Gospels, 1964). Uma das explicações, aceitas por grande parte dos estudiosos ainda hoje, é a chamada teoria das duas fontes. Mateus e Lucas teriam se utilizado de Marcos (especialmente nas narrativas) e de uma fonte hipotética, normalmente denominada de Q (Quelle – fonte), que seria uma coleção de ditos de Jesus. Outra hipótese, a teoria das quatro fontes, além de defender a prioridade de Marcos e da existência de Q, procura explicar o material peculiar a Mateus e a Lucas com duas outras fontes, que cada um destes evangelistas teria: M (fonte peculiar de Mateus) e L (fonte de Lucas). 2. Protoevangelho – Gottfried Ephraim Lessing (1779) propôs que os Evangelhos tiveram um texto básico comum – Ur-Markus, o que explicaria as semelhanças. 3. Fragmentos (Diegneses) – solução proposta por Friedrich Schleiermacher (1817) – antes dos Evangelhos serem escritos teriam existido fragmentos (relato da paixão; milagres de Jesus; palavras de Jesus; etc.). Esta explicação surgiu novamente no século XIX pela chamada “Crítica das Formas” (Formgeschichte). 4. Outra explicação possível para a origem dos Evangelhos, humanamente falando, é aquela que reconhece um conjunto de fatores que podem explicar as semelhanças entre os Evangelhos sinóticos, sem que isto signifique que um tenha 36 Os Evangelhos sinóticos copiado de outro.2 Esta explicação leva em conta o seguinte: a) a importância da tradição antiga (no sentido do ensino oficial da Igreja), de que os Evangelhos se originaram no ensino dos apóstolos; b) a existência de possíveis fontes escritas, disponíveis aos escritores (ao que parece, Lucas se refere a estas: Lc 1.2); c) o importante papel da transmissão oral, isto é, a cuidadosa manutenção dos relatos dos eventos envolvendo Jesus. As diferenças teriam explicação nos diferentes locais onde eram empregadas: Jerusalém (Mateus); Antioquia (Lucas) e Roma (Marcos).3 3.3 Os títulos dos Evangelhos e seu significado4 Os Evangelhos não trazem, como as cartas de Paulo ou como o Apocalipse, a identificação dos respectivos autores.No entanto, os nomes dos quatro evangelistas aparecem nos manuscritos, como acréscimo de copistas, nas chamadas “inscrições”. Estas são de data muito antiga e são dignas de confiança. As fórmulas são as seguintes: Euangélion katá Mattaion, Euangélion katá Markon, Euangélion katá Loukan, Euangélion katá Ioánnen. O significado destas fórmulas é “As boas novas de acordo com (ou, na versão de) Mateus, Marcos, Lucas, João”. Por certo, estas fórmulas dependem de ter havido uma coleção dos quatro textos. Estes títulos podem ser datados em cerca de 100 d.C., ou até mesmo antes disso, quando a informação histórica ainda estava disponível; portanto, 2 Seguimos aqui o tratamento ao assunto dado por um exegeta especialista em Mateus, Jeffrey | A. Gibbs, em seu excelente comentário ao Evangelho: Matthew 1.1-11.1, Saint Louis, Concordia Publishing House, 2006, p.12-30. 3 A discussão do relacionamento entre os três Evangelhos e mesmo entre os três autores e possíveis | dependências literárias não depõe necessariamente contra a inspiração divina do texto bíblico. Para um maior detalhamento de toda esta questão sinótica e das principais possibilidades de explicação, recomendamos o capítulo “Evangelhos sinóticos” do livro Introdução ao Novo Testamento, de D. A. Carson, Douglas J. Moo e Leon Morris, p.19-65. Uma das grandes virtudes da abordagem deste livro é que, ao lado de uma exposição das principais explicações (em grande parte seguidas em nossa abordagem), os autores não negam a origem divina dos Evangelhos. Assim, toda esta discussão do relacionamento entre os três Evangelhos e mesmo entre os três autores e hipotéticas dependências literárias não precisa negar a inspiração divina do texto bíblico, apesar de que, infelizmente, é o que acontece em diversas explicações do assunto. 4 Material baseado em: Bo I. Reicke, | The Roots of the Synoptic Gospels, Philadelphia, Fortress Press, 1986, 150-189. 37Os Evangelhos sinóticos trazem informação fidedigna. Chega-se a esta data com o seguinte raciocínio. As inscrições empregam o termo “evangelho” em um sentido coletivo, enquanto que as expressões “conforme...” buscam particularizar. Este uso coletivo de euangélion no singular, concedendo a pregação e ensino cristãos superioridade histórica sobre os documentos escritos, corresponde ao uso da expressão no Novo Testamento e nos Pais Apostólicos até cerca de 120 d.C. Na metade do século II, a palavra mudou de significado, assim que começou a denotar qualquer evangelho canônico ou apócrifo, mas o sentido coletivo encontrado nos títulos dos quatro Evangelhos foi uma peculiaridade do período antes e pouco depois de 100 d.C. No NT, a palavra euangélion é encontrada 77 vezes e é sempre empregada com um significado coletivo, acerca da mensagem oral que as pessoas conheciam da pregação e do ensino (ex.: Mt 4.23; Rm 1.1; Ap 14.6; etc.). É assim que se deve entender o início de Marcos: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo”. O termo não significa “livro” (o que nós chamamos de Evangelho de Marcos), mas a mensagem proclamada por e a respeito de Jesus Cristo. Como um sumário, esta introdução de Marcos indica que o material que segue estará ilustrando o início da pregação cristã (euangélion). Isto é, o pano de fundo da atividade presente da Igreja se encontra na atividade histórica de Jesus Cristo. Este mesmo sentido retrospectivo de “princípio” se encontra em outros lugares no NT (Lc 1.2; 1 Jo 1.1; Fp 4.15). Também nos Pais Apostólicos (Didaquê, Epístola de Barnabé; Inácio de Antioquia; Papias) o sentido de euangélion é aquele coletivo, relacionado à proclamação cristã. Após a metade do século II, já se costumava falar de euangélia, no plural, e aplicando a palavra para “Evangelhos” específicos. Cerca do ano 160 d.C., Justino Mártir menciona o costume litúrgico de utilizar os Evangelhos na Igreja. Assim também se referem outros Pais da Igreja, como Ireneu (180 d.C.). Não se pode pensar que os títulos dos Evangelhos foram dados simplesmente para ligá-los aos nomes de pessoas importantes para a Igreja. Isto não explicaria o porquê dos nomes de Marcos e Lucas, que nunca foram considerados entre os apóstolos de Jesus. A única explicação possível é que os cristãos que viveram por volta do ano 100 d.C. lembravam das origens dos Evangelhos e assim o comunicaram às gerações posteriores, de onde temos testemunho escrito. 38 Os Evangelhos sinóticos 3.4 O Evangelho conforme Mateus Autor O primeiro Evangelho canônico tem sido tradicionalmente atribuído ao apóstolo Mateus, um dos doze discípulos de Jesus e, portanto, testemunha ocular de muitos dos acontecimentos relatados. É bem verdade que o próprio Evangelho, em seu texto, não diz quem é o autor (diferentemente do que acontece, por exemplo, nas Epístolas de Paulo). Como foi visto acima, a inscrição “Evangelho conforme Mateus” não faz parte do texto, mas é certamente bastante antiga, sendo, portanto, um forte testemunho a favor da autoria do discípulo Mateus. Há alguns elementos no próprio texto do Evangelho que têm sido citados como argumentos a favor da autoria por parte do discípulo Mateus. Por exemplo, por ser ele o único dos Evangelhos a referir-se ao discípulo como “Mateus, o cobrador de impostos” (Mt 10.3), título este que não seria um elogio, mas um humilde reconhecimento de sua origem marcada pela má fama dos publicanos (cobradores de impostos). Este Mateus seria o mesmo designado como Levi por Marcos (2.14) e Lucas (5.27), comparando com Mt 9.9. O fato de ter sido coletor de impostos faria de Mateus um homem com conhecimento da língua hebraica (e aramaica) e também da grega, fatos que transparecem no texto do Evangelho, um texto com boa qualidade de grego e com amplo conhecimento da Escritura do Antigo Testamento. Nenhum destes argumentos é decisivo, mas aliados ao título atribuído ao Evangelho em data bastante antiga e a outros testemunhos de Pais da Igreja (abaixo), são elementos que contribuem para a autoria tradicional. O historiador Eusébio, que escreveu uma história da Igreja no início do século IV da era cristã, cita Papias, que viveu no século II, falando a respeito do Evangelho conforme Mateus: “Mateus compôs sua história no dialeto hebraico e cada um a traduzia como era capaz”. Também Ireneu (Bispo de Lyons, desde cerca de 177 d.C.) dá um testemunho antigo e importante sobre a autoria, inclusive dando pistas sobre a data da escrita do Evangelho: “Mateus, de fato, produziu seu evangelho escrito entre os hebreus em seu próprio dialeto e escrita, enquanto que Pedro e Paulo proclamavam o evangelho e fundavam a Igreja em Roma”.5 5 Eusébio, | História Eclesiástica, livro III, capítulo 39. Traduzido à base do texto original, em Kurt Aland, Synopsis Quattuor Evangeliorum, 13ª edição revisada, Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1988, 531. 39Os Evangelhos sinóticos Data e local da escrita Uma data importante para a determinação da época das escritas dos Evangelhos sinóticos é aquela da queda de Jerusalém e destruição do Templo, quando da invasão romana à Palestina. Aquele evento, que marcou profundamente a vida dos judeus no século I da era cristã e no período subsequente, aconteceu no ano 70 d.C. A data é significativa para a datação dos Evangelhos. Há textos que sugerem que o templo de Jerusalém continuava existindo (por exemplo, Mt 5.23,24; 12.5-7; 23.16-22; 26.60,61). Além disso, no chamado discurso escatológico de Jesus (Mt 24; Mc 13; Lc 21), as palavras de Cristo são apresentadas como profecia preditiva. Estudiosos com posicionamento mais crítico sugerem que Mateus e os demais evangelistas colocaram as palavras na boca de Jesus após os eventos terem ocorrido. No entanto, para quem reconhece que Jesus anunciou eventos futuros, não apenas na linha dos genuínos profetas de Deus, mas especialmente como o Filho de Deus, os textos citados podem ser reconhecidos como anúncios feitos antes do fato acontecer. E é exatamente desta forma que os três textosapresentam o evento, como algo ainda por ser realizado. Quanto a local da escrita, tradicionalmente se tem atribuído a região de Antioquia da Síria, um dos centros da Igreja Cristã já na metade do século I, e que tinha em seu meio uma mescla de judeus bem como de gentios na Igreja. Além disso, vem de Inácio, bispo de Antioquia no início do século II, a mais antiga referência ao Evangelho conforme Mateus. Assim, a Síria surge como uma sugestão bastante possível, ainda que não haja dados que permitam uma posição categórica a respeito. Temas e propósito O amplo uso feito por Mateus de citações e alusões ao Antigo Testamento (ver abaixo, em “Destaques”) chama a atenção para o propósito de mostrar que em Jesus aconteceu o cumprimento das profecias. Esta perspectiva transparece já no início do Evangelho, particularmente com a primeira frase: “Livro da genealogia (ou: “da origem”) de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1.1). Na genealogia, em que são citados diversos personagens do Antigo Testamento, fica evidenciado o desejo do autor em mostrar aos seus leitores (possivelmente muitos dos quais de origem judaica) a vinculação de Jesus à história do povo de Deus. Chama a atenção que são destacados alguns personagens que parecem 40 Os Evangelhos sinóticos manchar a genealogia. Mulheres são mencionadas explicitamente, o que por si só é incomum em genealogias judaicas. Além disso, suas histórias, assim como dos homens que as acompanharam, trazem à tona eventos que as pessoas não gostariam de lembrar (imoralidade, adultério, ambiente pagão). Logo após é mencionada a origem de Jesus, especificamente de Maria, situação esta que provocou até mesmo em José um desconforto (1.18,19). No entanto, no mesmo início do Evangelho também fica evidenciado outro tema fundamental, qual seja, do aspecto distintivo de Jesus em relação a todas as outras pessoas: ele não nasce de um pai humano, o que fica expresso na mudança dentro da genealogia (1.16 – quebrando a rotina de “A gerou B”) e na dupla menção do papel do Espírito Santo (1.18,20). Jesus não apenas é o cumprimento e ápice da história do Antigo Testamento, mas é o verdadeiro Deus (1.23), o Filho de Deus (2.15; 3.17). Ligado ao que foi dito acima está a ênfase de Mateus no tema do “Reino de Deus / dos céus”, referido cerca de quarenta vezes neste Evangelho. O Reino de Deus, que será plenamente manifesto no fim dos tempos, é antecipado na vinda de Jesus (cf. Mt 3.2; 4.17; 12.28; etc.). Em Cristo este reino se cumpriu, sendo Ele próprio a concretização do reinar de Deus sobre os homens. Ele é o Messias, o cumprimento de todo o Antigo Testamento e a antecipação do Reino de Deus, proclamado e manifestado em sua obra de salvação da humanidade. Destaques Mateus apresenta inúmeras alusões indiretas ao Antigo Testamento, mas que seriam reconhecidas por leitores com conhecimento daquele texto. Além disso, traz também citações diretas de textos do Antigo Testamento. Dentre as referências, onze são as chamadas “citações de cumprimento”. São aquelas em que o autor refere-se a textos do Antigo Testamento empregando a fórmula: “para que se cumprisse” ou “se cumpriu” (1.22; 2.15,17, 23; 4.14; 8.17; 12.17; 13.35; 21.4; 26.56; 27.9). Desta maneira Mateus mostra que os eventos ocorridos no ministério de Jesus demonstram ser ele o Messias prometido pelos profetas, conforme registrado nas páginas do Antigo Testamento. Teologicamente estas citações adquirem especial importância por mostrarem a perspectiva com a qual Mateus ensina seus leitores a lerem o Antigo Testamento. Em outras palavras, a hermenêutica (princípio de interpretação) do autor é cristocêntrica, isto é, para 41Os Evangelhos sinóticos ele as palavras da Lei e dos Profetas somente chegam a sua plena realização (é o que significa “cumprir”) na vida, ministério e obra de Jesus. Mesmo textos que à primeira vista parecem não ser uma referência a Jesus são lidos com uma perspectiva de que em Cristo há uma realização, um cumprimento, que vai além de meras profecias preditivas diretas (por exemplo, Oseias 11.1, citado em Mt 2.15). Outro exemplo da hermenêutica cristológica de Mateus é a forma como mostra as tentações de Jesus e especialmentre suas citações de textos de Deuteronômio (Mt 4.1-11), como uma realização perfeita daquilo em que Israel foi imperfeito. Tem sido observado que Mateus alia de maneira harmoniosa uma visão universalista e um enfoque mais restrito àqueles que tinham o Antigo Testamento como seu texto padrão. Este particularismo pode ser visto, por exemplo, nas muitas menções à lei (5.18, 21, 27, 33, 38, 43; etc.), no reconhecimento do papel dos escribas e fariseus (23.2), no reconhecimento das regulamentações dadas ao povo de Israel (23.23) e até mesmo na afirmação de Jesus de que Ele veio para buscar as ovelhas perdidas da casa de Israel (15.24; cf. 10.6). Além disso, Mateus em diversos momentos apresenta Jesus em relação a importantes personagens do Antigo Testamento (por exemplo, na genealogia; no sermão do monte, com a comparação com o ensino de Moisés; etc.). Também fica evidenciada a comparação com o próprio povo de Israel (como referido acima, por exemplo, em 2.15; 4.4-10 – onde Israel falhou, ao ser testado, Jesus foi vitorioso). Cristo é o novo Israel, o novo povo de Deus, de maneira que aqueles que estão nele formarão um novo povo (cf. 21.43). Ao lado deste “particularismo”, Mateus também apresenta uma visão “universalista”, no sentido de que Jesus veio para todos os povos e sua salvação é para todos. Na genealogia, há pessoas de fora do povo de Israel (como Raabe e Rute); os primeiros adoradores de Jesus são os magos do Oriente, provavelmente de origem gentílica; na parábola dos lavradores maus (21.33-46) o conceito de povo de Deus se amplia, para além dos limites do povo de Israel. Tudo isto fica ainda mais claro na assim chamada “grande comissão”, quando o objetivo é chegar a “todas as nações” (28.19). No que se refere à estrutura (esboço) do Evangelho conforme Mateus, duas propostas têm sido as mais aceitas entre os estudiosos. A primeira delas, talvez a mais popular, é aquela que considera a organização do material de Mateus com 42 Os Evangelhos sinóticos base nos cinco grandes discursos de Jesus, intercalados por narrativas. Assim, o esboço ficaria: 1–4 – Narrativa 5.1–7.29 – Sermão do Monte 8.1–10.4 – Narrativa 10.5-42 – Preparação dos discípulos para a missão 11.1–13.2 – Narrativa 13.3-52 – As parábolas do Reino 13.53–18.2 – Narrativa 18.3-35 – A mensagem sobre o perdão 19.1–22.46 – Narrativa 23.1–25.46 – Mensagem contra os escribas e fariseus e o sermão escatológico 26.1–28.20 – Narrativa Outra proposta, mais recente, considera de maneira mais central a pessoa e obra de Jesus e trata os textos de 4.17 e 16.21 como pontos-chave na narrativa. Ambos trazem a mesma expressão grega (“Desde então começou Jesus a ...”). Na primeira parte do Evangelho (1.1–4.16) é apresentada a pessoa de Jesus, o Messias; na segunda parte (4.17–16.20), entra em evidência o ministério de Jesus, com sua pregação do reino dos céus; a terceira parte (16.21–28.20) apresenta a rejeição de Jesus, seu sofrimento, morte e ressurreição.6 3.5 O Evangelho conforme Marcos Autor O mais antigo testemunho que chegou até nós a respeito da origem do segundo Evangelho canônico é aquele de Papias, bispo da cidade de Hierápolis, 6 Esta proposta foi feita com bastante detalhe pelo estudioso Jack D. Kingsbury, em diversos livros | e artigos. Destaca-se seu livro: Matthew as Story, Philadelphia: Fortress, 1988. Mais recentemente, Jeffrey A. Gibbs, em seu comentário a Mateus, também utiliza desta mesma perspectiva (Matthew 1.1–11.1, St. Louis, Concordia, 2006). 43Os Evangelhos sinóticos escrevendo no início do século II da era cristã (cerca de 125 d.C.). Ele fala de um presbítero, chamado João, que vivera bem próximo aos apóstolos e que escreveu o seguinte: “Marcos, de fato, sendo intérprete de Pedro,tanto quanto lembrava, escreveu acuradamente, mas não na ordem em que foi dito ou realizado pelo Senhor, pois ele nem ouviu, nem seguiu o Senhor, mas, como foi dito anteriormente, ele estava na companhia de Pedro, que lhe deu tal instrução de acordo com as necessidades, mas não para dar uma história dos discursos de nosso Senhor; de modo que Marcos não errou em nada, escrevendo algumas coisas que ele recordava; pois ele foi cuidadoso em uma coisa, em não omitir nada do que tinha ouvido, nem mentir quanto a qualquer coisa nestes relatos”.7 Temos também o testemunho de outros pais eclesiásticos do final do século II e início do III. Clemente, mestre em Alexandria (cerca de 150-215 d.C.), afirmou que “Quando Pedro proclamou a palavra publicamente em Roma, e declarou o evangelho sob a influência do Espírito, os que estavam presentes, sendo em grande número, solicitaram de Marcos, que o seguia há tempo e que lembrava bem o que ele havia dito, que ele registrasse estas coisas em escrito; e, tendo-o feito, que repartisse o evangelho com aqueles que o solicitassem. O que, quando Pedro soube, ele diretamente nem impediu, nem encorajou o fato”.8 Ireneu, bispo em Lyons, desde cerca de 177 d.C., escreveu: “Depois da partida [de Pedro e Paulo], Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos transmitiu por escrito o que havia sido proclamado por Pedro”.9 Embora o próprio texto seja anônimo, o testemunho da Igreja antiga (cf. acima e diversos outros testemunhos) é unânime a favor de João Marcos, que acompanhara Pedro. Este mesmo João Marcos havia sido companheiro de Paulo em uma das viagens missionárias, junto com seu primo Barnabé (At 12.25; Cl 4.10). Na casa de sua mãe, Maria, a Igreja esteve reunida quando Pedro foi preso (At 12.12), local este que pode ter sido o cenáculo em que se reuniam os discípulos de Jesus (At 1.13). Há quem identifique Marcos com o jovem não identificado, mas mencionado em Mc 14.51,52, pois não há explicação para a inclusão deste episódio no Evangelho. 7 Eusébio, | História Eclesiástica, livro III, capítulo 39. Traduzido à base do texto original, encontrado em: Kurt Aland, Synopsis Quattuor Evangeliorum, 13ª edição revisada, Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1988, 531. 8 Eusébio, | História Eclesiástica, livro VI, capítulo 14; Aland, 539. 9 Eusébio, | História Eclesiástica, livro V, capítulo 8; Aland, 533. 44 Os Evangelhos sinóticos Os testemunhos mais antigos sobre a escrita de Marcos (cf. acima) associam à origem deste Evangelho a influência de Pedro (que chama Marcos de seu “filho” – 1 Pedro 5.13). Algumas evidências internas no Evangelho também apontam nesta direção: algumas referências ao apóstolo feitas somente por este evangelista (1.36; 8.32,33; 16.7) e duas ocorrências de lembranças de Pedro (11.21; 14.72). Data e local da escrita O testemunho dos Pais da Igreja parece ser conflitante quanto à época da escrita de Marcos. Se Ireneu está se referindo à morte de Pedro ao falar em “partida” seu testemunho seria que o Evangelho foi escrito após a morte de Pedro e Paulo (segunda metade da sexta década da era cristã). Mas “partida” pode referir-se também à saída de Pedro da cidade de Roma. Por outro lado, Clemente afirma que a escrita ocorreu quando Pedro ainda estava vivo. Os estudiosos estão bastante divididos quanto à datação da escrita do Evangelho. Levando em consideração a profecia preditiva de Jesus quanto à queda de Jerusalém (Mc 13), fato este ocorrido em 70 d.C., é razoável supor que o Evangelho tenha sido escrito um bom tempo antes desta data, antes mesmo de os romanos começarem o cerco a Jerusalém, no final da década de 60. Seguindo a argumentação dos estudiosos Carson, Moo e Morris (1997, p.108-112), consideramos o final da década de 50 ou início da década de 60 como a melhor possibilidade. Alguns dos testemunhos antigos sobre Marcos sugerem que ele tenha escrito o Evangelho em Roma. A favor desta hipótese há elementos internos no Evangelho. Por exemplo, o uso de termos latinos (4.21; 12.14; 6.27; 15.39). Da mesma forma, o uso de termos aramaicos, com a devida tradução (3.17; 5.41; 7.11,34; 14.36; 15.34), parece sugerir que os destinatários não teriam o conhecimento da língua aramaica. Apesar de não podermos afirmar taxativamente este ponto, a hipótese da escrita em Roma, para leitores de origem gentílica, tem sido bastante aceita. Tema e propósito A primeira frase do escrito de Marcos diz algo sobre seu tema e propósito: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1.1). É importante lembrar que, no tempo da escrita, o termo “evangelho” ainda não era usado 45Os Evangelhos sinóticos como referência a um “livro”10. O próprio Marcos utiliza este termo (13.10; 14.9), assim como Paulo (1 Co 15.1; Fp 4.15), no sentido da proclamação da boa-nova a respeito de Jesus. Assim, “princípio do evangelho” refere-se a como a mensagem da salvação começou a ser proclamada. Note-se que Marcos inicia pela pregação de João Batista e conclui com o relato da morte e ressurreição de Jesus. Assim, Marcos não é exatamente uma “biografia” de Jesus, no sentido estrito, mas uma “proclamação” de Jesus. O próprio estilo deste escrito mostra o propósito do autor. Há uma ênfase nos atos de Jesus, mais do que nos seus ensinamentos. A narrativa é dinâmica (note-se o amplo uso do advérbio “imediatamente”, usado mais de 40 vezes em Marcos, um número maior do que em todo o restante do Novo Testamento) e reserva um grande espaço para o relato da paixão, morte e ressurreição. As observações acima ajudam a entender por que grande parte dos estudiosos tem atribuído a este Evangelho um propósito evangelístico. Ele quer levar o leitor de maneira rápida a refletir sobre os feitos de Jesus, culminando com a morte de cruz. Um ponto-chave do relato acontece em Cesareia de Felipe, quando os discípulos, através de Pedro, afirmam ser Jesus o Cristo (8.29). A partir deste ponto, a narrativa passa a apontar mais decisivamente para o desfecho do ministério de Jesus, com diversas referências aos eventos futuros e decisivos na Sua obra (8.31; 9.31; 10.34, 45; etc.). Destaques O estudioso inglês Charles H. Dodd sugeriu que Marcos apresenta uma sequência muito semelhante àquela usada por Pedro em sua mensagem registrada em Atos 10.36-40. De fato, diversos paralelos podem ser realmente apontados11: Atos 10 Marcos “evangelho” (v. 36) “princípio do evangelho” (1.1) “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo” (v. 38) A vinda do Espírito sobre Jesus (1.10) 10 | Ver, acima, “Títulos dos evangelhos e seu significado”. 11 | CARSON, MOO, MORRIS, Introdução ao Novo Testamento, p.121. 46 Os Evangelhos sinóticos Atos 10 Marcos “tendo começado desde a Galileia” (v. 37) O ministério na Galileia (1.16-8.26) “Jesus andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo” (v. 38) O ministério de Jesus concentra-se em curas e expulsões de demônios “nós somos testemunhas de tudo o que ele fez ... em Jerusalém” (v. 39) O ministério em Jerusalém (caps. 11-14) “ao qual também tiraram a vida, pendurando-o no madeiro” (v. 39) Destaque à morte de Jesus (cap. 15) “a este ressuscitou Deus no terceiro dia” (v. 40) “ele ressuscitou, não está mais aqui” (16.6) Estas semelhanças vêm a ressaltar o caráter proclamatório de Marcos, com os destaques nas ações de Jesus e especialmente os eventos fundamentais para toda a proclamação cristã, quais sejam, a realização da obra da redenção da humanidade através do sacrifício na cruz e a vitória na ressurreição. Marcos dá um lugar relevante às reações das pessoas diante de Jesus: admiração (1.27), crítica (2.6,7), medo (4.41), perplexidade (6.14), espanto (7.37), hostilidade (14.1). Este Evangelho também ressalta as emoções de Jesus, referindo-se a sua compaixão, severidade, ira, tristeza e manifestações de carinho (1.41, 43; 3.5; 6.34; 8.2, 12, 33; 10.14, 16, 21). Duas vezes Marcos menciona que Jesus suspirou (7.34;
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