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Aula 15 – Filosofia Contemporânea 119 VestCursos – Especialista em Preparação para Vestibulares de Alta Concorrência se discute sobre isso apenas por amor da discussão. É uma coisa com que nos preocupamos muito. Por isso temos de fazer a distinção entre a questão filosófica sobre a existência de Deus e a relação do indivíduo com a mesma questão. Qualquer indivíduo está completamente só perante essas questões. Além disso, só podemos aceder a elas pela fé. As coisas que podemos compreender com a nossa razão não são importantes para Kierkegaard. Oito mais quatro são doze. Podemos ter a certeza disso. É um exemplo de verdades da razão, de que todos os filósofos desde Descartes falaram. Mas vamos incluí-las na nossa oração da noite? E vamos quebrar a cabeça com elas no leito de morte? Não, essas verdades podem ser «objetivas» e «universais», mas justamente por isso são indiferentes para a existência do indivíduo. Não podes saber se uma pessoa te perdoou por lhe teres feito algo de mal. Mas justamente por isso é importante para ti existencialmente. É uma questão com a qual tens uma relação viva. Também não podes saber se alguém gosta de ti. Só podes acreditar ou esperar que goste. No entanto, isso é mais importante para ti do que o facto indiscutível de a soma dos ângulos de um triângulo perfazer cento e oitenta graus. Enfim, também não se pensa na lei da causalidade ou nas formas kantianas da intuição quando se dá o primeiro beijo. A fé é o mais importante quando se trata de questões religiosas. Kierkegaard pensa que, se posso compreender Deus objetivamente, não acredito, mas justamente porque não posso compreender, tenho de acreditar. E se quero conservar a minha fé, tenho de ter em atenção não esquecer que estou na incerteza, e no entanto acredito. Antigamente, muitos tentaram provar a existência de Deus - ou pelo menos compreendê-la com a razão. Mas se nos contentamos com essas provas da existência, ou argumentos racionais, perdemos a fé - e consequentemente também o sentimento religioso. Porque o essencial não é o cristianismo ser verdadeiro, mas ser verdadeiro para mim. Na Idade Média a mesma ideia foi expressa através da fórmula «credo quia absurdum» - «creio porque é absurdo». Se o cristianismo tivesse apelado à razão - e não a outros aspectos nossos, não seria uma questão de fé. Vimos então o que Kierkegaard entendia por «existência», «verdade subjetiva» e «fé». Estes três conceitos foram formulados como uma crítica à tradição filosófica e sobretudo a Hegel. Mas havia neles toda uma crítica da civilização. Segundo Kierkegaard, na sociedade urbana moderna, o homem tornara-se «público», e a primeira característica da multidão era a «tagarelice» irrelevante. Hoje usaríamos talvez o termo «conformismo», ou seja, todos «pensam» e «defendem» as mesmas coisas, sem que ninguém tenha uma relação apaixonada com isso. Segundo Kierkegaard, existiam três possibilidades de existência. Ele próprio usa o termo «plano». Chama a estas possibilidades o «plano estético», o «plano ético» e o «plano religioso». Ao escolher o termo «plano» quer mostrar que podemos viver num dos dois inferiores e fazer subitamente o «salto» para um mais elevado. Mas muitos homens passam toda a sua vida no mesmo plano. Quem vive no plano estético, vive no momento e procura sempre o prazer. O que é bom é o que é belo, interessante ou agradável. Assim, essa pessoa vive completamente no mundo dos sentidos. O esteta torna-se joguete dos seus próprios prazeres e disposições. Tudo o que é monótono é negativo, como se diz hoje. O típico romântico é esteta, porque não se trata apenas de prazer sensual. Uma pessoa com uma atitude contemplativa em relação à realidade - ou por exemplo em relação à arte ou à filosofia, com que se preocupa - vive no estádio estético. Mesmo em relação à aflição e ao sofrimento nos podemos comportar de um modo estético ou «contemplativo». Para Kierkegaard, a angústia é algo quase positivo. É um sinal de que alguém se encontra numa «situação existencial». O esteta pode decidir que quer fazer o salto para um estádio mais elevado. Ou consegue, ou não consegue. Não serve de nada ter quase saltado, quando não salta de fato. E ninguém pode fazer o salto por nós. Temos de decidir e saltar por nós próprios. Quando Kierkegaard fala sobre esta decisão, faz lembrar um pouco Sócrates, que explicara que qualquer conhecimento verdadeiro vem de dentro. A escolha que leva um homem a saltar de uma visão da vida estética para uma visão ética ou religiosa também tem que vir de cada um. Kierkegaard pensa que quando alguém é sério deve escolher uma outra forma de vida, e começa a viver no plano ético. Este caracteriza-se pela seriedade e decisões coerentes com critérios morais. Faz lembrar a ética do dever de Kant, que também exige que procuremos viver de acordo com a lei moral. Tal como Kant, também Kierkegaard dirige a sua atenção em primeiro lugar para a sensibilidade humana. Não é importante o que alguém considera verdadeiro ou falso. O importante é que alguém se decida a ter uma opinião em relação ao que é correto ou falso. O esteta interessa-se apenas pelo que é divertido ou aborrecido. Mas o plano ético não satisfaz Kierkegaard. O homem ético também se cansa de ser apenas consciente do dever. Muitas pessoas vivem essa fase de enfado e cansaço quando são adultos. E alguns recaem então na vida leviana do plano estético. Mas outros fazem um novo salto para o novo plano, o plano religioso. Ousam fazer o verdadeiro grande salto na profundidade da fé. Preferem a fé ao gozo estético e às leis da razão. E apesar de poder ser assustador «cair nas mãos do Deus vivo», como Kierkegaard afirmou, só então o homem se pode reconciliar com a sua vida Para Kierkegaard o estádio religioso era o Cristianismo. Mas, a sua filosofia influenciou pensadores não-cristãos. No nosso século nasceu mesmo uma filosofia existencial fortemente inspirada por ele. O EXISTENCIALISMO O termo existencialismo reúne diversas correntes filosóficas que têm como ponto de partida a situação existencial do homem. Falamos também da filosofia existencial do século XX. Muitos dos pensadores que se podem chamar existencialistas basearam as suas ideias não apenas em Kierkegaard mas também em Hegel e Marx. Um outro filósofo que teve muita influência no século XX foi o alemão Friedrich Nietzsche que viveu entre 1844 e 1900. Nietzsche também reagiu à filosofia de Hegel e ao «historicismo» alemão proveniente dela. A um interesse anêmico pela história contrapôs a própria vida. Exigia uma «transformação de todos os valores». Recusava sobretudo a moral cristã - a que chamou «moral dos escravos» - para que a força vital dos fortes não fosse reprimida pelos fracos. Segundo Nietzsche, tanto o cristianismo como a tradição filosófica se tinham afastado do mundo verdadeiro e dirigido para o «céu» ou o «mundo das ideias». Eram considerados o «verdadeiro mundo» mas eram na realidade um mundo falso. «Sede fiéis à terra», disse. «Não deis ouvidos àqueles que vos oferecem esperanças sobrenaturais.» Um filósofo existencialista que foi influenciado por Kierkegaard e por Nietzsche foi o alemão Martin Heidegger. Mas vamos concentrar-nos no existencialista francês Jean-Paul Sartre, que viveu entre 1905 e 1980. Foi o filósofo existencialista 120 VestCursos – Especialista em Preparação para Vestibulares de Alta Concorrência CURSO ANUAL DE FILOSOFIA – (Prof. Márcio Michiles) mais influente, pelo menos para o grande público. Elaborou o seu pensamento sobretudo nos anos 40, após a II Guerra Mundial. Em seguida aderiu ao movimento marxista francês, mas nunca foi membro de nenhum partido. Sartre afirmou: «Existencialismo é humanismo.» Significa que o existencialismo parte exclusivamente do homem. Podemos acrescentar que o humanismo de Sartre vê a situação do homem de uma forma diferente e mais sombria do que o humanismo do Renascimento.Kierkegaard e alguns existencialistas do nosso século eram cristãos, mas Sartre defende o que chamamos um existencialismo ateu. A sua filosofia pode ser considerada uma análise impiedosa da situação humana desde que «Deus morreu», uma expressão de Nietzsche. A palavra-chave da filosofia de Sartre, como para Kierkegaard, é existência, um termo que não significa o mesmo que «existir». Também as plantas e os animais existem, ou seja, vivem, mas não sabem o que isso significa. O homem é o único ser vivo consciente da sua existência. Sartre diz que as coisas físicas são «em si», mas o ser humano é também «para si». Ser homem é portanto diferente de ser uma coisa. Sartre afirma também que a existência humana é anterior ao seu significado: o facto de eu existir é anterior ao que eu sou. «A existência precede a essência», afirmou. Como essência entendemos aquilo que uma coisa é realmente, a «natureza» de uma coisa. Para Sartre, o homem não tem nenhuma natureza deste gênero, por isso deve criar-se a si mesmo: deve criar a sua natureza ou «essência» porque esta não está dada a priori. Durante toda a história da filosofia, os filósofos tentaram responder à questão de o que é um homem - ou qual é a natureza do homem. Segundo Sartre, por seu lado, o homem não possui nenhuma «natureza» eterna. Por isso é inútil procurar o significado da vida em geral. Por outras palavras, estamos condenados a improvisar. Somos como atores que são mandados para cena sem ter um papel, um guia ou um ponto que nos possa sussurrar aquilo que devemos fazer. Nós próprios temos de escolher como queremos viver. Mas quando o homem sente que vive, e que vai morrer um dia, e sobretudo quando não vê sentido em tudo isto, gera-se a angústia, segundo Sartre. A angústia era também um elemento importante na descrição que Kierkegaard fizera do homem que se encontra numa situação existencial. Sartre diz ainda que o ser humano se sente estranho num mundo privado de sentido. Quando descreve a «alienação» do homem, aceita ideias centrais de Hegel e de Marx. A sensação humana de se ser um estranho no mundo gera um sentimento de desespero, tédio, náusea e absurdo. Os humanistas renascentistas tinham afirmado quase triunfalmente a liberdade e a independência do homem. Sartre sentia a liberdade humana como uma maldição. «O homem está condenado a ser livre»; afirmou. Condenado porque não se criou a si mesmo, mas todavia é livre, porque quando é posto no mundo é responsável por tudo o que faz. Não pedimos a ninguém que nos criasse como seres livres, é essa a questão, segundo Sartre. Porém, nós somos indivíduos livres e a nossa liberdade faz com que durante toda a vida estejamos condenados a escolher. Não existem nem valores eternos nem normas pelas quais nos possamos orientar. Por isso é ainda mais importante a escolha que fazemos, porque somos totalmente responsáveis pelas nossas acções. Sartre põe em evidência justamente o facto de o homem não poder negar a sua responsabilidade pelo que faz: deve tomar as suas decisões e não pode, para se subtrair a essa responsabilidade, afirmar que «devemos» trabalhar ou «devemos» orientar-nos por determinadas perspectivas burguesas acerca do mundo no qual «devemos» viver. Quem se envolve assim na massa anônima é apenas um homem massificado e impessoal (aliena-se): foge de si mesmo e vive uma vida de mentiras. A liberdade humana, pelo contrário, impõe-nos que façamos algo de nós mesmos, que existamos «de um modo autêntico». Isso é válido sobretudo para as nossas escolhas éticas. Não podemos nunca atribuir a culpa à «natureza humana», à «fraqueza humana», ou coisa semelhante. Por vezes sucede que certos homens se comportam de modo ignóbil e empurram a sua responsabilidade para o «velho Adão», que supostamente têm em si. Mas esse «velho Adão» não existe, é apenas uma personagem a que recorremos para fugirmos à nossa responsabilidade. Se bem que Sartre afirme que a vida não tem significado algum a priori, isso não significa que queira que seja assim: Sartre não era um niilista. Um niilista é uma pessoa para a qual nada tem significado e tudo é possível. Para Sartre, a vida deve ter um significado, mas somos nós que o devemos criar para a nossa vida: existir é criar a nossa própria existência. Sartre tenta demonstrar que a consciência não é nada antes de perceber alguma coisa, porque consciência é sempre consciência de alguma coisa. E essa coisa depende tanto de nós como do ambiente que nos rodeia: nós próprios temos um papel ativo no que percebemos, escolhendo o que é importante para nós. Duas pessoas podem estar presentes no mesmo local e senti-lo de um modo completamente diferente, porque, quando percebemos o mundo externo, fazemo-lo partindo do nosso ponto de vista ou dos nossos interesses. Por exemplo, uma mulher grávida pode ter a sensação de ver grávidas em todo o lado. Isso não significa que antes não houvesse, mas a gravidez fez com que o mundo adquirisse para ela um novo significado. Uma pessoa doente pode ver ambulâncias por toda a parte... A nossa existência contribui portanto para determinar o modo como percebemos as coisas: se uma coisa não é importante para mim, não a vejo. Sartre serve-se justamente de um encontro no café para explicar o modo como nós «destruímos» o que não tem importância para nós. Se estás apaixonada e esperas uma chamada do teu namorado, «ouves» durante todo o tempo que não te telefona. Reparas justamente no fato de ele não te telefonar. Se tens de ir ter com ele à estação, e há um mar de gente nas plataformas, tu não vês as pessoas: apenas perturbam, são insignificantes para ti. Se calhar até as achas desagradáveis e repugnantes. Ocupam muito espaço. A única coisa em que reparas é que ele não está lá. Simone de Beauvoir tentou aplicar o existencialismo à análise dos papéis dos sexos. Sartre tinha afirmado que o homem não tem uma natureza eterna a que se agarre. Nós próprios criamos o que somos. Isso também se aplica à nossa concepção dos sexos. Simone de Beauvoir defende que não existe uma «natureza feminina» e uma «natureza masculina». Esta é a opinião tradicional. Por exemplo, afirmou-se sempre que o homem tem uma natureza «transcendente», ou seja, que supera o mundo sensível, e por isso procura sempre um significado e um objetivo fora do domínio doméstico. E que a mulher, pelo contrário, tem uma orientação de vida oposta: ela é «imanente», ou seja, quer estar onde está. Por isso se preocupa com a família, com a natureza e com as coisas próximas. Hoje diz-se que a mulher está mais interessada do que o homem nos aspectos mais suaves e doces da vida. Segundo Simone de Beauvoir não existe uma natureza feminina ou Aula 15 – Filosofia Contemporânea 121 VestCursos – Especialista em Preparação para Vestibulares de Alta Concorrência masculina desse gênero. Pelo contrário: segundo ela, as mulheres e os homens devem libertar-se desses preconceitos. O seu livro mais importante foi publicado em 1949 e tinha o título O Segundo Sexo. Pensava na mulher, que na nossa cultura foi sempre considerada o «segundo sexo». Só um homem aparece como sujeito nesta cultura. A mulher é tratada como o objeto do homem e por isso é privada da responsabilidade pela sua vida. Para Simone de Beauvoir, a mulher deve reconquistar esta responsabilidade. Deve recuperar-se a si mesma e não ligar a sua identidade ao homem. Com efeito, não é apenas o homem que oprime a mulher, a mulher também se reprime a si mesma não assumindo a responsabilidade pela sua vida. Somos nós que decidimos de que modo queremos ser livres e independentes. O existencialismo também influenciou a literatura desde os anos quarenta até hoje. Isso é válido sobretudo para o teatro. O próprio Sartre escreveu romances e obras teatrais. Outros autores importantes são o francês Albert Camus, o irlandês Samuel Beckett, o romeno Eugène Ionesco e o polaco Witold Gombrowicz. A característicacomum a estes e a muitos outros escritores, foi a tendência para enfatizar a presença do absurdo na vida, um termo que é usado sobretudo quando se fala de 'teatro. O «teatro do absurdo» nasceu por contraposição ao «teatro realista» e queria mostrar em cena a falta de sentido da existência. Esperava-se que os espectadores não apenas vissem mas também reagissem. Mas não se tratava de um culto do absurdo. Pelo contrário, mostrando e pondo a nu o absurdo, por exemplo nos acontecimentos de todos os dias, o público era forçado a refletir na possibilidade de uma existência mais autêntica e verdadeira. Muitas vezes, o teatro do absurdo apresenta situações completamente banais: por isso podemos falar de uma espécie de «hiperrealismo». O homem é representado exatamente como é. Mas se mostra na palco de um teatro aquilo que acontece numa casa de banho de um dia qualquer numa casa qualquer, o público começa a rir. Este riso pode ser interpretado como uma defesa por se ser posto a nu em cena. O teatro do absurdo também pode ter conotações surrealistas: muitas vezes as personagens encontram-se enredadas nas situações mais improváveis e quase oníricas. Se aceitam tudo sem se espantarem, o público é obrigado por seu lado a reagir com perplexidade. Isto também vale para os filmes mudos de Charles Chaplin: o aspecto cômico das suas obras cinematográficas consiste frequentemente na ausência de espanto do protagonista perante as situações absurdas nas quais se encontra. O público é levado a entrar em si mesmo para procurar algo mais verdadeiro e mais autêntico. A MORTE Ora, nesse questionar, o problema mais agudo, mais equívoco e por isso mais discutido, é justamente o problema da morte. E de tal modo isto é assim, que esse problema da morte (e paralelamente o do absurdo, o da angústia e da náusea) se tomou como que o sinal de identificação de uma obra existencialista. Em que consiste esse problema? A que vem ele? Qual o seu significado histórico-social e humano? (...) Antes de mais, reparai bem que na literatura existencialista praticamente não há cadáveres, mesmo quando há mortos (como por exemplo num Malraux), pondo-se quase sempre o problema da morte, precisamente a propósito dos vivos. Um «Noivado do sepulcro», com os seus esqueletos, seria hoje inconcebível. E um morto, quando nos enfrenta na literatura existencial, não apela nunca para o que há nele de mórbido, de pútrido (que foi já um modo de conversão cristã) , mas para o que há nele de intrigante, de inquietante. A literatura existencialista não é uma literatura cemiterial - essa que já irritou um Garrett; e mesmo em vez dos mortos prefere os vivos, ou, quando muito os assassinados. Creio esta anotação absolutamente importante, mas eu não vou demorar-me nela, porque, como prometi, desejo ser simples e claro para ao menos uma vez não me acusarem de obscuro. (...) Mas o preocupar-se com a morte tende precisamente a preocupar- se com ai vida. Só meditando profundamente no que significa a morte, é que nós poderemos ver bem o que com ela se perde e o valor disso que se perde. Por outro lado, a morte é uma prefiguração do que de limite, de fim, preside a todos os actos da vida, já que a cada instante nós estamos de algum modo a realizar actos irremediáveis. A meditação da morte não é pois um fim, mas um meio. Meio de valorizarmos a vida, meio de assim mesmo respeitarmos a vida nossa e alheia, meio de refletirmos sobre o irremediável do que formos fazendo, meio, em suma, de encararmos a sério esse fato extraordinário que é a vida do homem. Imediatamente assim vós estareis vendo que longe de ser isso, pois, uma razão de derrotismo, de pessimismo, de inclinações doentias e reacionárias, é bem pelo contrário um fator de seriedade e de valorização alta do homem em função do qual se fala em reação e em progresso. Se eu não valorizar a vida do homem (e não posso fazê-lo devidamente, se não souber o que na morte se perde), eu estou apto a destruir um homem com a mesma insensibilidade com que destruo um verme. Morte por morte, uma e outra são iguais. O que já não é igual é o que com uma e outra se destrói. Acaso ignorais o vil desprezo com que no nosso tempo se olha a vida de um homem? Mas atenção! Quem evita, sob o pretexto de que é um derrotismo, encarar de frente o problema da morte, está apto a desprezar igualmente uma vida. Acaso, na verdade, uma vida seria assim tão valiosa, se precisamente não houvesse morte? Eis porque um Lukacs, no início da sua carcereira, encarou esse problema com um radicalismo muito maior, segundo Goldmann, do que o próprio Heidegger. No tempo de um Eça a verdade era o riso boêmio, a alegria burguesa; e se o tédio aí aponta algumas vezes, é o tédio de quem tudo tem, o fastio da abundância. Nas obras de um Eça passa-se a vida a comer e a amar, em reuniões mundanas, e a morte afugenta-se para não estragar a festa. Lucaks implanta o problema da morte para impor seriedade à vida. Escola de Frankfurt A Escola de Frankfurt nasceu no ano de 1924, em uma quinta etapa atravessada pela filosofia alemã, depois do domínio de Kant e Hegel em um primeiro momento; de Karl Marx e Friedrich Engels em seguida; posteriormente de Nietzsche; e finalmente, já no século XX, após a eclosão dos pensamentos entrelaçados do existencialismo de Heidegger, da fenomenologia de Husserl e da ontologia de Hartmann. A produção filosófica germânica permaneceu viva no Ocidente, com todo vigor, de 1850 a 1950, quando então não mais resistiu, depois de enfrentar duas Guerras Mundiais. Ela reuniu em torno de si um círculo de filósofos e cientistas sociais de mentalidade marxista, que se uniram no fim da década de 20. Estes intelectuais cultivavam a conhecida Teoria Crítica da Sociedade. Seus principais integrantes eram Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal, Erich Fromm, Jürgen Habermas, entre outros. Esta corrente foi a responsável pela disseminação de expressões como ‘indústria http://www.infoescola.com/filosofia/escola-de-frankfurt/ 122 VestCursos – Especialista em Preparação para Vestibulares de Alta Concorrência CURSO ANUAL DE FILOSOFIA – (Prof. Márcio Michiles) cultural’ e ‘cultura de massa’. A Escola de Frankfurt foi praticamente o último expoente, o derradeiro suspiro da Filosofia Alemã em seu período áureo. Ela foi criada por Félix Weil, financiador do grupo, Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, que a princípio a administraram conjuntamente. Ernst Bloch e o psicólogo Erich Fromm acompanhavam à distância o despertar desta linha filosófica, que vem à luz justamente em um momento de agitação política e econômica vivido pela Alemanha, no auge da famosa República de Weimar. Seus membros seriam partícipes e observadores das principais mutações que convulsionariam a Europa durante a Primeira Guerra Mundial, seguida por outros movimentos subversivos, dos quais ninguém sairia impune. Esta Escola tinha uma sede, o Instituto para Pesquisas Sociais; um mestre, Horkheimer, substituído depois por Adorno; uma doutrina que orientava suas atitudes; um modelo por eles adotado, baseado na união do materialismo marxista com a psicanálise, criada por Freud; uma receptividade constante ao pensamento de outros filósofos, tais como Schopenhauer e Nietzsche; e uma revista como porta-voz, publicada periodicamente, na qual eram impressos os textos produzidos por seus adeptos e colaboradores. O programa por eles adotado passou a ser conhecido como Teoria Crítica. Os integrantes da Escola assistiram, surpresos e assustados, a deflagração da Revolução Russa, em 1917, o aparecimento do regime fascista, e a ascendente implantação do Nazismo na Alemanha, que culminou com um exílio forçado deste grupo, composto em grande parte por judeus, a partir de 1933. Esta mudança marcou definitivamente cada um deles, principalmente depois do suicídio de Walter Benjamin, em 1940, quando provavelmentetentava atravessar os Pireneus, temeroso de ser capturado pelos nazistas. Eles se tornam nômades, viajando de Genebra para Paris, então para os EUA, até se fixarem na Universidade de Columbia, em Nova York. A primeira obra produzida pelo grupo foi denominada Estudos sobre Autoridade e Família, gerada na Cidade-Luz, na qual eles questionam a real vocação da classe operária para a revolução social. Assim, eles naturalmente se distanciam dos trabalhadores, atitude que se concretiza com o lançamento do livro Dialética do Esclarecimento, lançado em 1947, em Amsterdã, que já praticamente elimina do ideário destes filósofos a expressão ‘marxismo’. Erich Fromm e Marcuse dão uma guinada teórica ao juntar os conceitos da Teoria Crítica aos ideais psicanalíticos. Marcuse, que optou por ficar nos Estados Unidos depois da volta do Instituto para o solo alemão, em 1948, foi um dos integrantes da Escola que mais receptividade encontrou para sua produção intelectual, uma vez que inspirou os movimentos pacifistas e as insurreições estudantis, fundamentais em 1968 e 1969, os quais alcançaram o auge no chamado Maio de 68. Por outro lado, Adorno, até hoje tido como um dos filósofos mais importantes da Escola de Frankfurt, prosseguiu sua missão de transformação dialética da racionalidade do Ocidente, na sua obra Dialética Negativa. Sua morte marca a passagem para o que alguns estudiosos consideram a segunda etapa da Escola, que encontra seu principal líder em Jürgen Habermas, ex-assessor de Adorno e, posteriormente, seu crítico mais ardoroso. Filosofia pós-moderna - Michel Foucault: A genealogia dos micropoderes. COMENTE Desde crianças, adoramos os super-heróis. Torcemos por eles e esperamos que derrotem os vilões. São narrativas importantes em nossas vidas, e nos ajudam a assimilar noções de bem e mal, certo e errado. Em geral, nos identificamos também como o mais fraco, que desafia o poder do mais forte, como o tímido e fraco Clark Kent, que usa seus poderes secretos, como Superman, para derrotar Lex Luthor. Afinal de contas, também somos fracos e o mundo, tão cruel, que não custa imaginar que temos algum tipo de superpoder para enfrentar os vilões que aparecem pelo caminho. Agora, imaginem a confusão de uma HQ (História em Quadrinhos) como Watchmen- cujo filme estreia em 2009 -, em que os super-heróis cuidam de sua própria vida, não têm mais uma "causa" pela qual lutar e, pior, alguns deles comportam-se como vilões! Escrita nos anos 80 por Alan Moore, o enredo é tipicamente pós-moderno. Em uma realidade fragmentada, com um cotidiano multifacetado e sem coesão, como agiriam os super-heróis? E como fica a questão do poder? Para responder a essas perguntas, vamos conhecer um pouco do pensamento de Michel Foucault (1926-1984), um dos mais conhecidos e estudados filósofos franceses contemporâneos, sendo alinhado, por suas teorias, tanto entre os estruturalistas como entre os pós-estruturalistas ou pós-modernos. De sua obra, nos interessa discutir aqui apenas sua teoria do poder. Poder no plural Antes de Foucault, a teoria política concebia o poder como algo que uns tem, outros não, além de estar associado, mais comumente, à figura da Igreja ou do Estado. Toda teoria política clássica, de Maquiavel e os contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau) até Marx, discutia-se como legitimar o poder de uns poucos sobre muitos, e assim, manter (ou subverter, no caso de Marx) a ordem social. Foucault entende o poder não como um objeto natural, mas uma prática social expressa por um conjunto de relações. Temos que pensar o poder não como uma "coisa" que uns tem e outros não, como, por exemplo, o pai e o filho, o rei e seus súditos, o presidente e seus governados, etc., mas como uma relação que se exerce, que opera entre os pares: o filho que negocia com o pai, os súditos que reivindicam ao rei, os governados que usam dispositivos legais para fiscalizar o presidente, etc. Deste ponto de vista, poder não se restringe ao governo, mas espalha-se pela sociedade em um conjunto de práticas, a maioria delas essencial à manutenção do Estado. O poder é uma espécie de rede formada por mecanismos e dispositivos que se espraiam por todo cotidiano - uma rede da qual ninguém pode escapar. Ele molda nossos comportamentos, atitudes e discursos. Para descobrir como o poder funciona, Foucault vai usar o método genealógico, empregado por Nietzsche para contar a "história secreta" dos valores. Vamos ver alguns exemplos disso. Corpos dóceis Uma manifestação externa desses poderes que Foucault analisa diz respeito aos seus efeitos sobre nossos corpos, que ele chama de poder disciplinar e que caracterizou determinadas sociedades no século 20. Foucault argumenta que nenhum poder que fosse somente repressor poderia se sustentar por muito tempo, porque uma hora as pessoas iriam se rebelar. Portanto, seu segredo é que, ao mesmo tempo em que reprime, gera conhecimento e corpos produtivos para o trabalho. Era comum, e ainda é nos dias atuais, encontrarmos pátios http://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/filosofia-pos-moderna---michel-foucault-a-genealogia-dos-micropoderes.htm#comentarios http://educacao.uol.com.br/biografias/paul-michel-foucault.jhtm http://educacao.uol.com.br/biografias/maquiavel-niccolo-machiavelli.jhtm http://educacao.uol.com.br/biografias/thomas-hobbes.jhtm http://educacao.uol.com.br/biografias/john-locke.jhtm http://educacao.uol.com.br/biografias/jean-jacques-rousseau.jhtm http://educacao.uol.com.br/biografias/karl-marx.jhtm http://educacao.uol.com.br/biografias/friedrich-wilhelm-nietzsche.jhtm Aula 15 – Filosofia Contemporânea 123 VestCursos – Especialista em Preparação para Vestibulares de Alta Concorrência escolares em que se formam filas com crianças para entrar nas salas de aula. Depois, na sala de aula, era preciso que as crianças controlassem suas vontades corporais (fome, vontade de fazer xixi, etc.) até que tocasse o sinal. Este é um exemplo da domesticação de corpos de que fala o filósofo. Mais tarde, na Igreja, no Exército e nas fábricas, esse indivíduo viveria a mesma rotina de adestramento corporal. O objetivo? Segundo Foucault, maximizar a utilidade econômica de nossos corpos, para o trabalho, e diminuir a força política e criativa, de contestação, que temos também, criaturas cheias de desejos que somos. Afinal de contas, imagine o que seria de uma sociedade, livre de mecanismos de poder, em que quiséssemos trabalhar ou estudar na hora em que desse na telha e resolvêssemos passar a maior parte do nosso tempo namorando, jogando futebol ou simplesmente não fazendo nada? E, para dar o exemplo para aqueles que são considerados corpos improdutivos para a sociedade, diz Foucault, foram criados asilos para os loucos e prisões para os ladrões. Desse encarceramento surgem áreas de conhecimento como a psiquiatria e a criminologia. Resistências locais O ponto em que a teoria de poder de Foucault converge com o pós-modernismo é que, da mesma maneira que lidamos com o fim das visões totalizantes de mundo, o poder também se pulveriza em micropoderes. E, consequentemente, a resistência aos poderes passa a ser local, em ações cada vez mais regionalizadas. Não adianta investir contra o Estado, achando que ele é a causa de todos os males. Ele é apenas uma das representações desse poder que se exerce em uma série de mecanismos, que reproduzimos todos os dias sem ao menos nos darmos conta disso. Por exemplo, quando tratamos com autoritarismo nossos filhos, namoradas ou pais. E onde Foucault identifica estes focos de resistências locais aos poderes? Nos movimentos ativistas pelos direitos humanos, além de gays, negros, feministas, ecologistas e outras minorias que se organizaram como polos de contra-poder, principalmente a partir da década de 1960, quando emerge o pós-modernismo. Neste nosso mundo pós-moderno, fica cada dia mais difícil saber quem é o vilão e quem é o mocinho. Ossuper-heróis estão cada vez mais humanos. Ou, como diria Nietzsche, demasiadamente humanos. Vigiar e Punir – O Panoptismo No fim do século XVII, quando se declarava a peste numa cidade, medidas como divisão da cidade em quarteirões, cada rua sob a autoridade de um síndico, responsável por trancar as pessoas em suas casas eram adotadas. A ordem responde à peste, desfaz as confusões entre corpo são e doente, e evita a desordem causada pelo medo e a morte. Enquanto a lepra suscitou modelos de exclusão que deram forma ao grande fechamento, a peste suscitou esquemas que intensificaram e ramificaram o poder. O espaço de exclusão de que o leproso era o habitante vai ser recortado no século XIX e os excluídos (leprosos), individualizados. O asilo psiquiátrico, a penitenciária e os hospitais, por exemplo, funcionam de um duplo modo: o da marcação (louco – não louco; perigoso – inofensivo etc), e o da repartição diferencial (quem é, onde deve ficar, o que fazer com cada um). Todos os mecanismos de poder que, até hoje, se organizam em função de marcar e modificar o anormal articulam essas duas formas de que derivam. O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. Um anel dividido em celas circunda uma torre. Janelas permitem que a luz atravesse a cela. Basta colocar um vigia na torre central, e em cada cela, trancar um “anormal” (louco, doente, condenado). A separação das celas implica em uma invisibilidade lateral que garante a ordem: se são detentos, não há perigo de fuga em massa ou projeto de novos crimes, por exemplo. Aí o efeito mais importante do Panóptico: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre, tudo se vê sem nunca ser visto. Ao induzir um estado consciente de visibilidade e sustentar uma relação de poder que independe de quem o exerce, faz com que os detentos se encontrem em uma relação de poder de que eles mesmos são os portadores. O Panóptico automatiza e desindividualiza o poder. A cidade pestilenta e o estabelecimento panóptico marcam as transformações do programa disciplinar. Num caso, uma situação de exceção: contra um mal extraordinário, o poder torna-se presente e visível, compartimenta e imobiliza. O Panóptico, ao contrário, é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, pessoal e tempo); sua eficácia por seu caráter preventivo por permitir a intervenção a cada momento; e seu funcionamento contínuo. O objeto e fim do Panóptico não é a soberania, mas as relações de disciplina. Há, então, duas imagens: a disciplina-bloco, que rompe comunicações e suspende o tempo (como na lepra); e a disciplina-mecanismo, um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais eficaz. Entre a disciplina de exceção e a vigilância generalizada há a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo do século XVII e XVIII e a formação da sociedade disciplinar. Essa extensão é o aspecto mais visível de processos mais profundos: 1) A inversão funcional das disciplinas: além de fixar populações inúteis ou agitadas, evitar reuniões muito numerosas, as disciplinas passam a ter o papel de aumentar a utilidade dos indivíduos, como a disciplina militar que, além de impedir a desobediência, deve aumentar o poder de ataque e de resistência da unidade. Isso vem da dupla tendência do século XVIII de multiplicar o número das instituições de disciplina e de disciplinar os aparelhos existentes. 2) A ramificação dos mecanismos disciplinares: aparelhos fechados acrescentam à sua função interna um papel de vigilância externa que desenvolve controles laterais. Exemplo: a escola cristã, além de formar crianças dóceis, deve permitir vigiar os recursos e costumes dos pais, caso a criança se comporte mal. Também se difundem focos de controle na sociedade, como as associações de beneficência. O território é dividido e repartido entre membros da companhia, que visitam a população inclusive individualmente, para que informações precisas fossem obtidas, como estabilidade de habitação, frequência nos sacramentos etc. 3) A estatização dos mecanismos de disciplina: A organização de uma polícia centralizada passa a fazer parte de uma máquina administrativa responsável pela ordem e harmonia. Para exercer esse poder, é preciso fazer uma vigilância capaz de tornar tudo visível e ela própria invisível. Deve-se ainda gerar relatórios e registros sobre atitudes suspeitas – uma tomada de contas permanente do comportamento dos indivíduos. A polícia do século XVIII une o poder do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas na sociedade, o que permite sujeitar espaços não atingidos pelas instituições fechadas de disciplina, e estender o alcance do Estado. A arquitetura dos templos, teatros e circos da Antiguidade torna acessível a visão de um pequeno número de objetos a uma multidão de homens. A Idade Moderna proporciona o oposto, a um pequeno número a visão instantânea de uma grande multidão. A Filosofia - Mundo Contemporâneo Filosofia pós-moderna - Michel Foucault: A genealogia dos micropoderes. COMENTE Poder no plural Corpos dóceis Resistências locais Vigiar e Punir – O Panoptismo
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