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FARMÁCIA HOSPITALAR Caroline Faria Interações e incompatibilidades medicamentosas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever os principais conceitos relacionados a e incompatibilidades interações medicamentosas. � Reconhecer sistemas de classificação de risco de interações medicamentosas. � Identificar classes de medicamentos mais vulneráveis à interação e à incompatibilidade medicamentosa. Introdução Neste capítulo, você vai ler sobre aspectos relacionados às interações medicamentosas, uma área de destaque no que tange aos estudos e à prática em farmacologia. Esses eventos ocorrem quando a biodisponibi- lidade e/ou o efeito de um fármaco são alterados pela presença de outro fármaco, nutriente, álcool ou qualquer outra substância biologicamente ativa. Didaticamente, as interações podem ser classificadas em incompa- tibilidades medicamentosas (ocorrem in vitro) ou, ainda, em interações medicamentosas propriamente ditas (ocorrem in vivo). As incompatibilidades (INCs) ocorrem durante o preparo ou a ad- ministração do medicamento ao paciente e podem ser genericamente classificadas em físicas e químicas. Ainda que majoritariamente relacio- nadas ao preparo de medicamentos para uso endovenoso, INCs podem ocorrer durante transformações de formulações de via oral, no preparo de medicamentos inalatórios e subcutâneos, bem como entre recipiente e as soluções. Por seu turno, interações medicamentosas (IM) podem ser classificadas em farmacodinâmicas e farmacocinéticas e dispõem de sistemas de classificação de riscos baseados na gravidade. Nesse contexto, ressalta-se que, diante da inviabilidade de monitorizar efetivamente todas as possíveis IMs, devem ser considerados os fatores de risco relacionados aos pacientes, tais como presença de disfunções renais e hepáticas; idade avançada; e uso de polifarmácia, medicamentos de baixo índice terapêutico e de indutores e inibidores enzimáticos. Dessa forma, estudar os conceitos, as classificações e os exemplos de INCs e IMs contribui para o dimensionamento da importância de identificá-las e manejá-las corretamente visando à redução dos riscos de RAMs. Além disso, neste capítulo também será possível entender a necessidade da correta análise de IMs durante o cuidado farmacêutico centrado na pessoa. 1 Conceitos relacionados às interações e incompatibilidades medicamentosas Conceitualmente, define-se a ocorrência de interação medicamentosa (IM) como um evento clínico em que a biodisponibilidade e/ou o efeito de um fármaco são alterados pela presença de outro fármaco (interação fármaco- -fármaco), outro alimento (interação fármaco-alimento), outra bebida (interação fármaco-bebida) ou qualquer outro agente ambiental interagente (WANNMA- CHER; HOEFLER, 2010). Por sua vez, interações medicamentosas potenciais ocorrem quando dois ou mais fármacos sabidamente interagentes são utilizados por um paciente. Quanto a essas, é imprescindível a sua identificação a fim de que se previna a ocorrência de tais eventos, sendo esse um instrumento de grande valia para a prática clínica, sobretudo, do profissional farmacêutico. Ocorridas ou em potencial, interações medicamentosas são um dos temas de destaque no campo dos estudos e das práticas em farmacologia devido, especialmente, aos possíveis impactos clínicos no que tange à eficiência e à segurança da farmacoterapia em uso. Sob a perspectiva farmacovigilante, o efeito indesejável de uma IM é considerado uma reação adversa a medica- mento (RAM), a qual, cabe salientar, representa valores percentuais notórios no que diz respeito a causas de internações hospitalares associadas às RAMs (KIM et al., 2018). Ressalve-se, entretanto, que nem toda IM resulta em efeito indesejável; há casos em que ela pode ser intencionalmente utilizada para melhorar desfechos clínicos. Interações e incompatibilidades medicamentosas2 Tais questões relacionadas às resultantes maléficas e benéficas das IM serão posteriormente abordadas. Para fins didáticos, por ora se faz neces- sária a classificação das interações de acordo com o ambiente em que ocor- rem: interações que ocorrem in vitro (antes da administração ao paciente) serão classificadas como interações farmacêuticas ou incompatibilidades medicamentos (INCs); interações que ocorrem in vivo serão denominadas de interações medicamentosas propriamente ditas ou simplesmente interações medicamentosas (IMs). A seguir, aprofundaremos nossa discussão sobre os conceitos relacionados às incompatibilidades medicamentosas e às interações medicamentosas, respectivamente. Incompatibilidades medicamentosas ou interações farmacêuticas Como apresentado anteriormente, INCs ocorrem in vitro, isto é, durante o preparo dos medicamentos para subsequente administração ao paciente. Em linhas gerais, INCs podem ser definidas como reações físico-químicas entre dois ou mais medicamentos; entre medicamentos e soluções de reconstituição e diluição; entre medicamentos e alimentos (notoriamente compostos nutricio- nais da dieta enteral); e, ainda, entre medicamentos e recipientes. Saliente-se que “medicamento” inclui o fármaco (ou princípio ativo) e os excipientes da formulação — o que incrementa consideravelmente as possibilidades de incompatibilidade entre as substâncias. Reconstituição e diluição são termos erroneamente empregados como sinônimos. É importante esclarecer que a reconstituição consiste em retornar um medicamento em forma de pó para sua forma original líquida (e, para isso, adicionam-se diluentes ao recipiente com o pó medicamentoso); a diluição, por sua vez, objetiva alterar a concentração da solução do medicamento previamente reconstituída adicionando-se, normalmente, os mesmos diluentes, mas em diferentes volumetrias. Em síntese, primeiro reconstitui-se o pó, e, em um momento seguinte, realiza-se a diluição. 3Interações e incompatibilidades medicamentosas As INCs são categorizadas em físicas ou químicas. As INCs físicas resultam em alterações visíveis (formação de precipitado, alteração na cor, produção de gás) e/ou alterações invisíveis (alterações no pH e formação de subpartículas). As INCs químicas, por seu turno, são determinadas por reações químicas que causam redução ou inativação do potencial do (s) fármaco (s); formação de novos compostos (ativos, tóxicos, inócuos); e elevação da toxicidade do (s) fármaco (s). São consideradas graves quando há degradação, frequentemente por hidrólise, de mais de 10% da molécula ativa do fármaco (PAES et al., 2017). Entre os eventos clínicos que advêm de INCs e podem ser prevenidos, estão a redução da efetividade da terapia proposta; a obstrução ou o mau funciona- mento dos cateteres de acesso, como, por exemplo, o cateter venoso central (CVC); o embolismo e as reações inflamatórias locais, como, por exemplo, a flebite. Também já foram relatados alguns casos mais graves, inclusive fatais, secundários às INCs, o que torna evidente a relevância desses eventos para a segurança do paciente (MAISON et al., 2019). Destacadamente, as INCs ocorrem quando da mistura de soluções para administração de medicamentos por via parenteral (1), com ênfase para a via endovenosa — alternativa largamente requerida no ambiente hospitalar devido à necessidade de efeitos farmacológicos rápidos e/ou existência de barreiras para administração por via oral. Contudo, ainda que de modo menos frequente, INCs podem ocorrer também nas situações listadas a seguir, cujo detalhamento será apresentado adiante. 2. Durante o preparo e a administração de formas farmacêuticas líquidas e/ou sólidas (uso oral) que requerem procedimentos de maceração/ suspensão/diluição para posterior administração via oral (em caso de pacientes pediátricos ou disfágicos) ou via enteral alternativa (em caso de ostomias ou sondas enterais). 3. Durante o preparo de medicamentos inalatórios para administração em nebulizadores. 4. Durante o preparo ea administração de medicamentos por via subcu- tânea (hipodermóclise). 5. Durante o preparo e o acondicionamento de medicamentos em reci- pientes interagentes. Interações e incompatibilidades medicamentosas4 É recomendável que a administração de medicamentos via endovenosa (1) seja feita de forma separada. Todavia, nem sempre isso é possível, e, então, lança-se mão da administração concomitante de medicamentos, o que favorece a ocorrência de INCs. Tais eventos podem acontecer tanto durante o preparo dos medicamentos em um mesmo recipiente (seringa ou bolsa), quanto durante a administração em Y. No primeiro caso, o tempo de contato entre as substâncias é maior em comparação ao segundo; como consequência, cria-se uma situação propícia à ocorrência de reações químicas. Interessa pontuar que nem sempre medicamentos compatíveis em Y serão compatíveis para preparo conjunto no mesmo recipiente (e vice-versa), e, dessa forma, deve-se dispor de informações específicas para cada caso (MARSILIO; SILVA; BUENO, 2016). Em diversas situações clínicas, podem ser necessárias transformações de formas farmacêuticas sólidas ou líquidas (2) — farmacotecnicamente formuladas para uso oral. Assim, comprimidos, drágeas e cápsulas podem ser macerados e diluídos, e soluções/suspensões podem ser diluídas para posterior administração ao paciente (por via oral em pediátricos ou disfágicos, ou por via enteral alternativa no caso de ostomizados ou de indivíduos em uso de sonda enteral). Todavia, esses procedimentos exigem cuidados específicos, dentre os quais se destaca a necessidade de se conhecerem aspectos farmacotécnicos e de preparo de cada medicamento separadamente a fim de que se evitem INCs físico-químicas. Saliente-se que o conhecimento de aspectos farmacotécnicos garante que apresentações de liberação modificada e de revestimento gastro- entérico, por exemplo, não tenham suas propriedades farmacodinâmicas e farmacocinéticas alteradas. Ademais, formulações líquidas são usualmente hiperosmolares quando administradas por via enteral alternativa, podendo causar desconfortos do trato gastrointestinal — e, portanto, devem ser diluídas antes da efetiva administração via sonda enteral ou via ostomia (ISMP, 2015). O medicamento omeprazol é formulado em microgrânulos revestidos (pellets), que o protegem da passível inativação pelo meio ácido estomacal e da fotossensibilidade. Nesse caso, a trituração compromete a ação do fármaco e não deve ser realizada. Portanto, sugere-se o preparo magistral do medicamento, a diluição dos pellets em bicarbonato de sódio e, mais enfaticamente, a avaliação de substituição da terapia para a via endovenosa (solução de omeprazol endovenoso) ou solução oral de ranitidina. 5Interações e incompatibilidades medicamentosas Portadores de doenças pulmonares crônicas (p. ex., fibrose cística) fazem uso de medicamentos inalatórios por meio de nebulizadores (3). Algumas vezes, faz-se necessária a mistura de mais de um fármaco na solução a ser nebulizada pelo equipamento, o que, evidentemente, pode provocar INCs. Nesse contexto, assim como nos demais casos, INCs entre medicamentos inalatórios podem reduzir a eficiência e comprometer a segurança farmacológica. Ademais, especificamente nesse caso, INCs podem provocar alterações na “entrega” de fármacos aos sítios de ação devido às alterações na distribuição do tamanho das partículas. Tal distribuição de tamanho deve ser definida e regular (dentre 1 µm e 5µm de diâmetro), uma vez que partículas maiores podem aderir-se às vias áreas superiores e não alcançar, por exemplo, os alvéolos (KAMIN; ERDNÜSS; KRÄMER, 2014). A preparação e a administração de grande volume de medicamentos por via cutânea (hipodermóclise) também são passíveis de INCs (4). Os medica- mentos administrados por tal via, especialmente indicada nos casos em que há dificuldades de manutenção de acesso venoso, devem ser avaliados quanto à compatibilidade; em caso de incompatibilidade, preconiza-se o uso de pun- ções diferentes e distantes (SOCIEDADE BRASILEIRA DE GERIATRIA E GERONTOLOGIA, 2016). O uso de grandes volumes por via subcutânea é um recurso valioso, especialmente em geriatria, pediatria e cuidados paliativos, embora seja pouco explorado pelos profissionais de saúde. Acesse o guia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, disponível no link a seguir, e conheça um pouco mais sobre o assunto. https://qrgo.page.link/XgGwz Usualmente, recipientes de acondicionamento de medicamentos (p. ex., bolsas e seringas) são feitos de diversos tipos de plástico ou de vidros. Esses materiais, idealmente, não devem interagir com a formulação acondicionada em seu interior; porém, INCs entre o recipiente e os medicamentos (5) foram amplamente relatadas pela literatura. Os mecanismos por meio dos quais ocorrem as interações entre o recipiente e o (s) medicamento (s) estão relacio- nados à sorção (processo simultâneo de adsorção e absorção de substâncias Interações e incompatibilidades medicamentosas6 para a matriz do material acondicionante); à extração (processo no qual o material acondicionante migra para a solução medicamentosa); à permeação (processo no qual o medicamento atravessa o material e pode, posteriormente, depositar-se ou evaporar) e à modificação polimérica (causada pela reação química entre o medicamento e as modificações das propriedades do polímero). O polímero policloreto de vinila (PVC) constitui espécie notória de recipiente interagente, por diversos mecanismos e com muitos medicamentos (nitrogli- cerina e ciclosporina, p. ex.) (GOTARDO; MONTEIRO, 2005; MCELNAY; HUGHES, 1996). Aliás, observe-se que o potencial de toxicidade derivada da extração de DEHP, um ftalato presente em plásticos PVC, tem levado ao desenvolvimento e ao uso de embalagens de PVCs livres de DEHP ou, ainda, de embalagens totalmente livres de PVC. As INCs são preocupações inerentes a todos os profissionais envolvidos di- retamente com o uso de medicamentos: enfermeiros, farmacêuticos e médicos. Portanto, diante da complexidade e da variabilidade de terapêuticas, tornam-se imprescindíveis a disponibilização de guias institucionais de reconstituição, diluição e compatibilidade elaboradas e revisadas continuadamente por equipe multidisciplinar; os sistemas de prescrição eletrônica com funcionalidades informacionais (p. ex., alerta) sobre o assunto; o acesso às bases de dados e/ ou a livros para consulta em caso de dúvidas; e a comunicação eficiente entre as equipes assistenciais. Interações medicamentosas Assim como as INCs, interações medicamentosas propriamente ditas (IMs), isto é, in vivo, podem ocorrer entre medicamentos (interação fármaco-fármaco), entre medicamentos e alimentos (interação fármaco-alimento), entre medi- camentos e bebidas (p. ex., interação fármaco-álcool), entre medicamentos e plantas medicinais e entre medicamentos e quaisquer outros agentes xenobióti- cos, conforme exposto a seguir, no Quadro 1. Ainda, ressalte-se que é possível haver interações do tipo fármaco-doença, isto é, quando um fármaco causa efeitos indesejáveis em pacientes com determinadas condições patológicas — por exemplo, em pacientes com doença de Parkinson, o uso de haloperidol tende a agravar sintomas extrapiramidais (OLIVEIRA et al., 2017). 7Interações e incompatibilidades medicamentosas Em linhas gerais e de forma sucinta, as IMs podem ser classificadas em relação a (SANTOS; TORRIANI; BARROS, 2013): � mecanismos de ação; � documentação na literatura; � tempo de início do efeito; e � gravidade do efeito. Quanto aos mecanismos de ação, as IMs podem ser classificadas em far- macodinâmicas e farmacocinéticas, que, por sua vez, são categorizadas de acordo com os processos de absorção, de distribuição, de biotransformação e de eliminação de fármacos. As interações farmacodinâmicas envolvem os mecanismos de ação do (s) fármaco (s) no (s) sítio (s) de atividade biológica, podendo resultar em efeitos sinérgicosou antagônicos. Sinergismo é o aumento do efeito de um ou mais fármacos, quanto administrados concomitantemente, que pode acarretar tanto desfechos clínicos benéficos quanto aumento do risco de toxicidade. Antagonismo, por outro lado, refere-se à redução do efeito de um fármaco em decorrência do uso de outros. Exemplos notórios de IM sinérgica e IM antagônica são, respectivamente, a associação entre sulfametoxazol e trimetropina, que garante melhores resultados na antibioticoterapia, e o uso de antídotos, por exemplo, de vitamina K em caso de alteração no tempo de protrombina provocada por varfarina. No Quadro 1, são apresentados detalhes sobre interações farmacocinéticas. Pondere-se que, em alguns casos, dois fármacos podem interagir de forma mista, ou seja, por meio de mecanismos tanto farmacodinâmicos quanto farmacocinéticos. Por exemplo, o uso conco- mitante de fluoxetina e ondansetrona pode elevar o risco de prolongamento do intervalo QT (por mecanismos farmacodinâmicos sinérgicos) e aumentar a biodisponibilidade do antiemético (por mecanismos farmacocinéticos do tipo biotransformação). Interações e incompatibilidades medicamentosas8 Fonte: Adaptado de Wannmacher e Hoefler (2010). Interação farmacocinética Mecanismos envolvidos Exemplo Absorção Alterações no pH do TGI; Adsorção, quelação e outros mecanismos de complexação; Alterações na motilidade do TGI; Alterações na flora bacteriana. Uso concomitante de tetraciclina e carbonato de cálcio reduz a eficiência do antimicrobiano devido à redução da absorção da tetraciclina por quelação. Distribuição Competição pela ligação com as proteínas plasmáticas; Hemodiluição com redução das proteínas plasmáticas. Uso concomitante de AAS e glibenclamida promove o aumento da porção livre do antidiabético (e do risco de hipoglicemia) devido à competição pelo sítio de ligação com as proteínas plasmáticas. Biotransformação Indução do complexo enzimático; Inibição do complexo enzimático. Uso concomitante de carbamazepina e fluoxetina aumenta a biodisponibilidade da carbamazepina devido à inibição do seu metabolismo pelo antidepressivo. Eliminação Alteração do pH urinário; Alteração na excreção ativa tubular renal; Alteração no fluxo sanguíneo renal; Alteração na excreção biliar e ciclo ueová-hepático Uso concomitante de bicarbonato de sódio e AAS aumenta a eliminação do salicilato devido à alcalinização urinária. Quadro 1. Interações medicamentosas farmacocinéticas 9Interações e incompatibilidades medicamentosas Quanto à documentação na literatura, as IMs podem ser classificadas em muito bem documentadas, bem documentadas, pouco documentadas, muito pouco documentadas e improváveis, o nível de evidência é crescente daquela para essa. Nesse contexto, níveis de evidência excelentes são provenientes de estudos controlados; níveis bons refletem a forte recomendação na literatura, ainda que estudos controlados não tenham sido conduzidos; níveis razoáveis carecem de estudos mais aprofundas; e níveis pobres foram embasados em estudos de relatos de casos. Já em relação ao tempo de início do efeito, as IMs podem ser categorizadas em rápidas, aquelas cujos efeitos iniciam em até 24 horas do uso concomitante dos fármacos, de modo que um monitoramento cauteloso nesse período pode ser requerido; e tardias, nas quais os efeitos po- dem ser evidenciados dias ou semanas após o uso concomitante dos fármacos (SANTOS; TORRIANI; BARROS, 2013). Na seção seguinte, será abordada de forma pormenorizada a classificação quanto à gravidade, uma vez que a compreensão da significância clínica das potenciais IMs e do manejo correto das IMs já em curso é de fundamental importância para o melhor exercício do cuidado farmacêutico. 2 Classificações de riscos de interações medicamentosas Sistemas de classificação dos riscos associados às potenciais interações medi- camentosas são propostos baseados na gravidade da possível reação adversa advinda da IM. Todavia, eles podem adotar terminologias diferentes para categorizar o espectro de gravidade. Tanto para fins acadêmicos quanto para a prática clínica, os sistemas mais comumente utilizados são: � classificação da IM em desconhecida, leve, moderada, grave e con- traindicada (DrugReax®) e � classificação de IM do tipo A, B, C, D ou X (UptoDate®). De acordo com a classificação proposta pelo DrugReax®, as IMs do tipo “desconhecida” não têm gravidade conhecida e carecem, portanto, de estudos mais contundentes. Por sua vez, as IMs consideradas leves acarretam efeitos clínicos limitados: aumento da frequência ou gravidade do evento adverso, mas sem necessidade de alterações na farmacoterapia. Já as IMs moderadas implicam exacerbação do problema de saúde do paciente e/ou requerem mo- dificações na farmacoterapia, ao passo que as IMs graves representam risco Interações e incompatibilidades medicamentosas10 de morte e/ou requerem intervenção médica para reduzir ou evitar eventos adversos importantes. Por fim, interações contraindicadas dizem respeito aos medicamentos cujo uso concomitante é expressamente não recomendado. A seguir, no Quadro 2, são apresentadas as determinações relacionadas aos sistemas de classificação de risco de IMs propostas pelo UptoDate®. Classificação Considerações relacionadas aos riscos Recomendação A Nenhum; não foram encontradas IMs. Não se aplica. B Ainda que haja interação, não há evidências da relevância clínica dessas IMs. Nenhuma ação é necessária. C IMs potencialmente relevantes, mas os benefícios superam os riscos. Realizar plano de monitoramento e/ ou ajustes de doses. D Avaliação criteriosa deve ser feita a fim de se analisar se os benefícios superam os riscos. Realizar monitoramento, ajuste de dose e considerar alteração da terapia. X Os riscos associados geralmente superam os benefícios. Evitar o uso concomitante. Quadro 2. Classificação A, B, C, D e X Saliente-se que os sistemas de classificação de riscos de interações me- dicamentosas são certamente muito úteis para o norteamento de condutas a serem aderidas diante de IM potenciais ou já em curso. Entretanto, somente a avaliação contextualizada e em consonância com o caso clínico específico do paciente pode determinar, de fato, os possíveis impactos das IMs e as tomadas de decisão individualizadas — e, portanto, mais assertivas. 11Interações e incompatibilidades medicamentosas 3 Fatores de risco associados às interações medicamentosas Ao longo das primeiras seções deste capítulo, foi possível observar que as possibilidades de ocorrência de IMs são diversas e complexas, especialmente na esfera hospitalar, que ambienta condições de saúde mais graves e intervenções clínicas mais ou menos invasivas. Sendo assim, os esforços para a identifi- cação prévia de IMs potenciais devem ser realizados, idealmente, de forma direcionada a fim de que se evitem informes volumosos, descontextualizados e infrutíferos. Nesse sentido, torna-se pertinente reconhecer fatores de risco individuais associados às interações medicamentosas e as justificativas de suas escolhas, a saber: � pacientes cujas condições de saúde (crônicas ou agudas) aumentam o risco de RAMs, tais como disfunções hepáticas e renais; � indivíduos em uso de múltiplos medicamentos (polifarmácia); � indivíduos idosos; � pacientes que possuem, na farmacoterapia prescrita, fármacos de baixo índice terapêutico; e � pacientes que possuem, na farmacoterapia prescrita, fármacos indutores ou inibidores enzimáticos. Adiante, justificam-se as escolhas desses grupos de risco. Inicialmente, cabe lembrar que as funções excretórias, regulatórias e en- dócrinas dos rins contribuem significativamente para a homeostase de todo o organismo. Por esse motivo, as perdas funcionais decorridas de doença renais, especialmente crônicas, comprometem a capacidade do organismo de manter-se em equilíbrio; portanto, indivíduos portadores de doenças renais podem serconsiderados frágeis, também no que tange à suscetibilidade às IMs. Pode-se afirmar, inclusive, que tais pacientes constituem um grupo de alto risco para IMs, uma vez que são predominantemente idosos, diabéticos, hipertensos e apresentam dificuldades de excreção renal dos fármacos (MARQUITO et al., 2014). Em indivíduos com problemas hepáticos crônicos, especialmente os graves, as IMs podem ocorrer de forma mais frequente — ou, pelo menos, pouco previsível — devido às alterações nas concentrações de proteínas plasmáticas (sintetizadas no fígado) e ao impacto na biotransformação dos fármacos, que pode não se realizar aos moldes dos indivíduos saudáveis por causa da redução do aporte sanguíneo hepático (PALATINI; MARTIN, 2016). Interações e incompatibilidades medicamentosas12 É intuitivo atestar que o risco de IMs potenciais ascende à proporção do aumento no número de medicamentos em uso. Estima-se que a taxa de IMs entre pacientes em uso de poucos medicamentos varia entre 3% e 5%; em indivíduos polimedicamentalizados (com mais de dez e menos de vinte espécies terapêuticas), essa taxa eleva-se para em torno de 20% (SANTOS; TORRIANI; BARROS, 2013). É evidente, portanto, que o uso de polifarmácia é um fator de risco para IMs e está comumente relacionada aos indivíduos com múltiplos problemas de saúde. As alterações fisiológicas da senescência e, por ventura, da senilidade podem, por si só, aumentar os riscos de RAMs em idosos. Isso ocorre porque tais alterações podem modificar as propriedades farmacocinéticas e farma- codinâmicas dos medicamentos envolvidos na terapia em uso do público geriátrico (OLIVEIRA; CORRADI, 2018). Além disso, associados a tais alterações, o número elevado de problemas de saúde e o uso de múltiplos medicamentos contribuem significativamente para que esse grupo etário seja considerado de risco para a ocorrência de IMs, o que justifica, portanto, a necessidade de cuidado farmacêutico atencioso centrado nesses indivíduos (FARIA et al., 2018). As alterações das propriedades farmacodinâmicas e farmacocinéticas dos medica- mentos utilizados por idosos podem ser mais bem compreendidas a partir da leitura atenta do artigo científico de revisão disponível no link a seguir. https://qrgo.page.link/AyrsR São considerados fármacos de baixo índice terapêutico aqueles que apre- sentam estreita margem de segurança, ou seja, cujas doses terapêuticas são próximas das doses tóxicas. Tais medicamentos, exemplificados a seguir, no Quadro 3, devem ser cautelosamente monitorizados no que diz respeito às IMs, uma vez que pequenas alterações (tanto nos processos farmacodinâmicos quanto nos farmacocinéticos) podem provocar RAMs graves. 13Interações e incompatibilidades medicamentosas Medicamento Classe farmacológica Varfarina Antagonista da vitamina K Carbonato de Lítio Antipsicótico Ciclosporina Imunossupressor Digoxina Digitálico Ácido valproico Antiepiléptico Quadro 3. Exemplos de medicamentos de baixo índice terapêutico Deve-se afirmar, por fim, que fármacos indutores e inibidores enzimáticos (especialmente do complexo enzimático hepático P450) merecem atenção devido aos elevados potenciais de interação com muitos outros medicamentos (WANNMACHER; HOEFLER, 2010). Para fins elucidativos, considere um fármaco A indutor enzimático de um conjunto de proteínas responsáveis pela biotransformação do fármaco B. Quando esses fármacos são utilizados conco- mitantemente, infere-se que a atividade enzimática elevada (devido à indução pelo fármaco A) provocará aumento da biotransformação do fármaco B e, consequentemente, redução da sua biodisponibilidade. Por outro lado, imagine um fármaco C inibidor enzimático de um conjunto proteico responsável pela biotransformação do fármaco D. Ao serem utilizados em conjunto, entende- -se que a reduzida atividade enzimática (devido à inibição do fármaco C) provocará a redução da biotransformação do fármaco D e, consequentemente, a elevação da sua biodisponibilidade. Como ilustração, tome-se o exemplo da interação farmacocinética entre o fluconazol e o tacrolimos: a inibição do complexo enzimático CYP3A4 pelo fluconazol reduz a biotransformação do tacrolimus, elevando as concentrações séricas. Portanto, ainda que alguns casos determinados de IMs sejam desejáveis, em termos gerais, medidas são necessárias para amenizar os riscos advindos desses eventos clínicos. A revisão abrangente da farmacoterapia (incluindo medicamentos prescritos, terapias complementares e alternativas e automedi- cação) com propósitos de redução do número de medicamentos, a identificação prévia de interações potenciais, o manejo prospectivo adequado e as ações interdisciplinares são apontados como eficientes para aquele propósito e, evidentemente, para a garantia da segurança do paciente. Interações e incompatibilidades medicamentosas14 FARIA, C. de O. et al. Interações medicamentosas na farmacoterapia de idosos com câncer atendidos em um ambulatório de onco-hematologia. Revista Brasileira de Can- cerologia, v. 64, n. 1, p. 61–68, 2018. 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No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudandode local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. PAES, G. O. et al. Incompatibilidade medicamentosa em terapia intensiva: revisão sobre as implicações para a prática de enfermagem. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 19, 2017. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fen/article/view/38718. Acesso em: 5 mar. 2020. PALATINI, P.; MARTIN, S. Pharmacokinetic drug interactions in liver disease: an update. World Journal of Gastroenterology, v. 22, n. 3, p. 1260–1278, 2016. SANTOS, L.; TORRIANI, M. S.; BARROS, E. Medicamentos na prática da farmácia clínica. Porto Alegre: Artmed, 2013. SOCIEDADE BRASILEIRA DE GERIATRIA E GERONTOLOGIA. O uso da via subcutânea em geriatria e cuidados paliativos. Rio de Janeiro: SBGG, 2016. 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