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FILOSOFIA Capítulo 4 Platão 40 Os antecedentes do pensamento platônico A base do pensamento platônico reside em três ele- mentos: tentativa de restaurar a pólis em crise, solucionar os pontos controversos do pensamento socrático e lidar com os dilemas da herança dos pré-socráticos. O modo de vida da pólis era característico da Grécia clássica, mas estava ameaçado na época de Platão e acabaria por ser destruído completamente num futuro próximo, pelas conquistas dos macedônicos, que anexaram a Grécia a um império e aca- baram com seu modo de organização próprio. A conquista pelo Império Macedônico, contudo, foi ape- nas o final de um processo de decadência da pólis que, à época de Platão, já era significativo. Os fatores que levaram a essa crise são, por um lado, as guerras que as cidades gregas travaram entre si, sendo a Guerra do Peloponeso especialmente danosa para a cidade de Atenas, que foi derrotada, e, por outro, o crescente enfraquecimento dos valores e das tradições em que se baseava a pólis. O questionamento das tradições, que começou a ocorrer em torno do século V a.C., vinha de três fontes diferentes: os filósofos pré-socráticos, os sofistas e os místicos. Os primei- ros questionavam as explicações tradicionais para a origem e ordenamento do mundo físico e a própria existência de deuses tais como concebidos pela religião grega. Os se- gundos trouxeram a discussão sobre a origem convencional dos valores morais e sobre a possibilidade de uma lei natural oposta à lei da cidade, que nada tinha de divina. Os terceiros, influenciados pelos ensinamentos do orfismo (conjunto de crenças e práticas religiosas cujas origens são atribuídas ao poeta mítico Orfeu), traziam uma nova compreensão do divino e do sobrenatural, defendendo a religião como uma preocupação do indivíduo, e não do Estado. As bases tradicionais da cidade-estado estavam minadas, mas Platão, como pensador político, decidiu defender a sua permanência. Ao fazê-lo, reinventou completamente a cidade-estado levando seus ideais às últimas consequências e, também, precisou incluir em seu sistema uma compreensão da realidade que fosse capaz de fundar as novas estruturas sociais, como antes a religião grega sustentava a pólis tradicional. Por outro lado, dois pontos da filosofia de Sócrates em especial apresentavam dificuldades. O primeiro era justamente o resultado da insistência socrática em acreditar que termos morais têm um significado objetivo e único e em buscar definições gerais para eles, superando os casos particulares. O segundo ponto controverso do pensamento de Sócrates é a importância que ele dá à alma. É uma surpresa para os atenienses que Sócrates defenda o cuidado da alma e confie na capacidade desta para reconhecer o bem e o mal. Enquanto é um herdeiro claro de Sócrates e tem os temas morais e políticos como prioridade, Platão recebe os questionamentos dos pré-socráticos e oferece uma resposta para eles. Além de Heráclito e Parmênides, outro pré-socrático teve influência determinante no pensamento de Platão – Pitágoras. Platão entrou em contato com seu pensamento por meio das comunidades pitagóricas que encontrou em viagens às cidades gregas do sul da Itália e da Sicília. A filosofia pitagórica combinava de forma curiosa elementos matemáticos com elementos místicos e religiosos. Organização política, moralidade objetiva, entendimen- to sobre a alma, possibilidade de conhecimento verdadeiro: são muitos os temas que motivam Platão em seu desen- volvimento filosófico, e uma de suas características mais notáveis é justamente a habilidade de reunir de forma articulada soluções a problemas tão diversos. A teoria pla- tônica que perpassa todos esses temas é também a mais famosa – a teoria das ideias. A teoria das ideias Platão postula a existência de um outro tipo de realidade, diferente da que percebemos pelos sentidos e pelas experiências cotidianas, e que, por estarem fora do espaço e do tempo, não estão sujeitas à mudança. Esses novos objetos são as chamadas ideias platônicas. Fig. 1 Teoria platônica das ideias: os entes particulares participam em certo grau de uma Ideia perfeita no mundo das ideias. Considere, por exemplo, o conceito de justiça. Este único termo pode ser aplicado a diversos casos – podemos dizer que uma pessoa é justa, ou que uma situação é justa, ou que uma decisão é justa. Nenhum desses casos, no en- tanto, representa a justiça completa, mas são apenas formas particulares e, portanto, limitadas da justiça. Platão diria que esses casos são instanciações da ideia da Justiça, ou que participam da ideia de Justiça, que é ela mesma perfeita e imutável. Como as instanciações são imperfeitas, é possível que em uma situação vejamos alguns elementos justos e outros injustos, o que pode gerar discordâncias. Também é possível que algo seja justo em um momento, mas, de- pois, deixe de sê-lo. A justiça não é apenas um conceito ou uma palavra; ela existe em uma realidade diferente do nosso mundo cotidiano – o chamado mundo das ideias. Tome muito cuidado com o termo: o fato de serem chamadas ideias não significa que a existência delas se resuma às nossas mentes. Ao contrário, as ideias platônicas são as únicas coisas que existem de maneira totalmente independente. A facilidade de confundirmos as ideias platônicas com conteúdos de nossa própria mente e criados por ela vem do fato de usarmos a palavra “ideia”, que posteriormente adquiriu esse sentido. Atenção PV_2021_FIL_FU_CAP4.INDD / 07-09-2020 (16:26) / LEONEL.MANESKUL / PROVA FINAL PV_2021_FIL_FU_CAP4.INDD / 07-09-2020 (16:26) / LEONEL.MANESKUL / PROVA FINAL FR EN TE Ú N IC A 41 Para Platão, o conhecimento verdadeiro é possível porque seus objetos não pertencem ao mundo sensível, sujeito à mudança e à destruição, mas ao mundo das ideias, também chamado por ele de mundo inteligível, que é o mundo da estabilidade e da perfeição. O conhecimento do mundo sensível, então, se limita ao que conhece- mos sobre as ideias, na medida em que os objetos sensíveis participam delas. São as ideias o objeto do conhecimento por excelência. Ao mesmo tempo, as ideias oferecem um correspondente objetivo aos termos gerais e são toma- das como o modelo para as avaliações morais na vida cotidiana. Com essa proposta, Platão oferece uma solução ao problema do conhecimento herdado dos pré-socráticos e também completa a filosofia de seu mestre. Mundo das ideias captado pela alma inteligível imaterial imutável perfeito estável absoluto Mundo sensível captado pelos sentidos corporais material mutável imperfeito transitório relativo Fig. 2 A proposta de Platão para separar o que pertence ao mundo das ideias e o que está no mundo sensível. O conhecimento de realidades que estão além do mundo físico seria impossível para nós se nossa alma não pertencesse ao mundo inteligível e eterno, se a vida ter- rena não representasse um encarceramento da alma no corpo. Assim, se podemos intuir as ideias de Beleza ou Justiça, ou quaisquer outras, isso não se explica pelo fato de vermos coisas belas ou experimentarmos ações justas – porque essas coisas e ações são belas e justas de forma imperfeita, limitada e passageira. Se podemos entender o significado da Beleza e da Justiça em si mesmas, é porque conhecemos essas ideias separadas dos casos particulares que as instanciam. A experiência sensorial tem, no entanto, um impor- tante papel no processo de conhecimento: é a partir do que experimentamos em nossa vida cotidiana que somos lembrados do conhecimento das ideias perfeitas que pos- suíamos antes de nos encarnarmos em nossa forma atual. Conhecer não é descobrir, mas lembrar daquilo que nossa alma já conheceu e que esquecemos ao nos tornarmos seres corpóreos. Precisamos, assim, usar a sensação para ir além dela, e reconhecer com nossa capacidade inteligível a existência de uma realidade que vai além do mundo físico. Fig. 3 Conhecer, para Platão, é, antes de tudo,recordar-se. pa th do c/ Sh ut te rs to ck .c om A República e o Timeu A República é considerada um diálogo do grupo intermediário da carreira de Platão, em que a influência de Sócrates, ainda que sempre presente, já não é tão deter- minante e em que as ideias originais de Platão são desenvolvidas. O tema do diálogo é a justiça. Platão tomará para si a tarefa de sanar uma dificuldade que Sócrates tinha em sua refutação das teorias sofísticas. Uma das teorias bastante difundidas na época e que Sócrates rejeitou era o hedonismo. Como os sofistas criam a distinção entre a lei dos homens e a lei da natureza e, em diversos casos, propõem a segunda como verdadeiro critério para a ação humana, segue-se que a força é o que determina o poder de ação do homem. De acordo com a natureza, o mais forte pode agir segundo seu próprio interesse e não sofrer consequências por isso. Essa é exatamente a tese defendida pelo sofista Tra- símaco no livro 1 de A República. E a maneira encontrada por Sócrates para combatê-la durante sua vida foi mostrar que o que desejamos ou o que nos dará prazer imediato nem sempre é o que será bom para nós em longo prazo. Ele enfatiza, então, a importância da racionalidade para determinar adequadamente o que é benéfico para além de nossos impulsos. A ênfase na necessidade do conhe- cimento para bem conduzir nossa vida é um marco do pensamento socrático. Você pode achar que as ideias platônicas estão muito distantes da maneira que nós comumente pensamos a realidade. Além do fato de usarmos termos gerais e sugerirmos a existência de uma referência comum para esses termos, um outro exemplo, trazido por Kenny, mostra um paralelo entre as ideias e um conceito usado em nosso cotidiano: os pontos cardeais. Considere, por exemplo, o conceito de “leste”. Podemos usar esse conceito para falar de vários lugares que estão a leste de nós – uma cidade que esteja a leste pode assim ser considerada “parte do leste (participação) e encontra-se na mesma direção que o leste (imitação)”. Mas o leste “não pode ser identificado com qualquer ponto no espaço, não importa quão a leste ele possa estar. [...] Nada senão o Leste pode ser irrestritamente qualificado como leste: o Sol é algumas vezes leste, algumas oeste; a Índia está a leste do Irã, mas a oeste do Vietnã, mas a todo momento e lugar o leste é leste” (KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental. Volume I: “Filosofia Antiga”. Edições Loyola. p. 83). Estabelecendo relações PV_2021_FIL_FU_CAP4.INDD / 07-09-2020 (16:26) / LEONEL.MANESKUL / PROVA FINAL PV_2021_FIL_FU_CAP4.INDD / 07-09-2020 (16:26) / LEONEL.MANESKUL / PROVA FINAL FILOSOFIA Capítulo 4 Platão 42 De alguma forma, no entanto, o problema permanece: ainda que adotemos a posição de Sócrates e defendamos a necessidade de questionar o que é verdadeiramente be- néfico, ao invés de meramente prazeroso, ainda estaremos presos a uma concepção de justiça baseada no interesse egoísta de cada um e em concepções individualistas e relati- vistas sobre o que é esse benefício que queremos alcançar. Platão vê, então, a necessidade de ir além da solução socrá- tica e fornecer uma nova concepção da justiça que afastasse definitivamente a resposta sofista. Também é importante para ele defender que a justiça é um bem por si mesma. A justiça, virtude própria do ser humano, significa a ade- quada realização de sua função, e, para Platão, essa função só será realizada quando o homem se estruturar de maneira correta; ordenar suas partes em função do todo. Essa tese, bastante difícil de assimilar, será exposta ao longo de toda a obra através da seguinte ideia: para compreender o que é a justiça no indivíduo (a justiça como virtude a que todos almejamos), pode ser útil compreender como seria a justiça em uma escala maior – na cidade. Platão se põe, então, a conceber uma cidade-estado justa. Para Platão, a alma de cada indivíduo tem três faculdades diferentes, que a dirigem a diferentes objetos. A primeira dessas pulsões seria a apetitiva, que é aquilo em nós que busca o que precisamos para sobreviver e para termos prazer de forma imediata. É ela que responde pelo impulso sexual, pela busca de alimento e de conforto, por nossos instintos. A segunda é nossa faculdade irascível, que responde pelos sentimentos, busca a glória e é capaz de ira ou de coragem. O terceiro impulso que temos é o racional, que se dirige a buscar o conhecimento e que é capaz de controlar os outros impulsos quando estes são bem-educados. Cada pessoa naturalmente tem uma dessas pulsões mais desenvolvidas que as outras, e todos deveriam fazer uso de seus talentos da melhor forma para que todos vivessem bem em sociedade. Ele identifica, assim, três classes que formariam sua cidade, às quais pertenceriam aqueles que se destacassem em sua aptidão para a função. A primeira delas é a classe dos camponeses e artesãos, que trabalham para que as necessidades materiais de todos sejam supridas. A segunda é a classe dos guerreiros, responsáveis por defender a cidade, que deve cultivar a honra e a lealdade. A terceira é a classe dos governantes, destinada a planejar, organizar e tomar decisões para melhor ordenar o trabalho de todos. Assim, cada uma das classes teria como função exercer uma das virtudes cardeais – os governantes, a sabedo- ria; os guerreiros, a coragem; os artesãos, a moderação – e a última delas, a justiça, estaria justamente na divisão equilibrada da cidade de acordo com as características de cada um. Da mesma forma, essas virtudes no indivíduo se mostram quando cada faculdade é bem cultivada e bem ordenada em relação às outras. Não existe justiça, portanto, sem que as outras virtudes estejam presentes. Platão desenvolve a seguir todo um plano educacional para sua cidade, voltado a desenvolver virtudes e a identifi- car as pulsões preponderantes de cada um. Neste ponto, as preocupações éticas, políticas e educacionais abrem espa- ço para uma discussão metafísica e epistemológica, já que, para poder explicar os estágios mais altos da educação dos governantes, Platão precisa expor sua teoria das ideias. Essa exposição ocupa a parte central do livro e é feita por meio de três alegorias – representações figuradas daquilo que Platão quer transmitir ao leitor, a saber, sua teoria das ideias. Assim, Platão sempre opta por expor figurativamente aquilo que não pode ser totalmente compreendido pela linguagem argumentativa. B rid ge m an Im ag es /E as yp ix B ra si l Vo ro pa ev V as ili y/ Sh ut te rs to ck .c om Figs. 4, 5 e 6 As três classes de A República de Platão: os camponeses, os guerreiros e o governante sábio. V la di m ir Ko ro st ys he vs ki y/ Sh ut te rs to ck .c om A primeira, a Alegoria do Sol, é menos conhecida e acaba por se integrar à terceira, que a completa. Vejamos, então, a segunda: a Alegoria da Linha. Platão sugere, de forma descritiva, uma representação visual que resume sua concepção da realidade e das possibilidades do conheci- mento. A descrição se dá da seguinte forma: imagine uma linha dividida em duas grandes partes, cada uma dividida também em duas partes menores, obtendo, assim, uma PV_2021_FIL_FU_CAP4.INDD / 07-09-2020 (16:26) / LEONEL.MANESKUL / PROVA FINAL PV_2021_FIL_FU_CAP4.INDD / 07-09-2020 (16:26) / LEONEL.MANESKUL / PROVA FINAL