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História - Livro 2-148-150

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Em 1774, no Primeiro Congresso Continental da Fila-
délfia, decidiu-se pelo boicote total ao comércio inglês e
por uma petição ao rei e ao Parlamento pela revogação
das leis, em nome da igualdade de direitos dos colonos.
Verifica-se ainda nesse momento uma situação negociá-
vel, manifesta no próprio reconhecimento do Parlamento
inglês pelos colonos. Todavia, a recusa inglesa foi total. Em
1775, tropas inglesas realizaram ataques às localidades de
Lexington e Concorde, que causaram várias mortes entre
os colonos, levando-os a se organizar militarmente. Era o
início da Guerra de Independência. Nesse momento, um
dos maiores pensadores iluministas, o inglês Thomas Paine,
publicou, em janeiro de 1776, o que é considerado um dos
clássicos da civilização norte-americana, The Common
Sense (traduzido como Senso comum), e o segundo pan-
fleto mais influente de todos os tempos. Ele propôs que
os Estados Unidos da América (termo utilizado nesse mo-
mento) se tornassem o primeiro país a combinar república
e democracia, conceitos antes separados. Segundo o autor,
“o que Atenas foi em miniatura, a América será em magni-
tude. A primeira era a maravilha do mundo antigo, a outra
está se tornando a admiração e o modelo do presente”.
A Guerra de Independência
Não se pode deixar de considerar como foi possível
que colônias, teoricamente áreas periféricas, de econo-
mia bem menos desenvolvida e muito menos populosas,
foram capazes de enfrentar e derrotar a maior potência da
época. O primeiro elemento a ser levado em consideração
é o fato de que o poderio inglês dificilmente poderia ser
transportado para a América do Norte. As óbvias dificulda-
des de transporte da época tornavam limitada a presença
de tropas inglesas na região. Além disso, as colônias nor-
te-americanas não eram como as outras, pois possuíam
relativa riqueza e certo grau de desenvolvimento, além de
uma experiência de organização militar decorrente das
batalhas ao lado das tropas inglesas durante a Guerra dos
Sete Anos contra a França. De qualquer modo, é inegável
que a vitória dos colonos norte-americanos significou um
estímulo considerável para que outras colônias passassem
a ver como possível a vitória sobre suas metrópoles. Não
por acaso, a independência das colônias inglesas acendeu
a luta anticolonial em todo o restante da América.
As primeiras vitórias dos colonos abriram a perspectiva
de que decisões políticas fossem tomadas no sentido do
rompimento. Em 1776, a colônia da Virgínia declarou sua
independência ao promulgar a Declaração dos Direitos
do Homem. No mesmo ano, no Segundo Congresso da
Filadélfia, representantes de todas as colônias assinaram
a Declaração de Independência, elaborada por Thomas
Jefferson, com a colaboração de Benjamin Franklin e
Samuel Adams.
Naturalmente, tratava-se de uma declaração unilateral.
O fato de as colônias declararem-se independentes não
significava o fim da Guerra ou a aceitação por parte da In-
glaterra. Ao contrário, a Guerra prosseguiu ainda por cinco
anos e foi árdua. Os colonos, comandados por George
Washington, sofriam de falta de organização e tinham inte-
resses divergentes. Seu exército de voluntários, engajados
por um ano, penalizava o treinamento e a eficiência – muitas
vezes, os homens abandonavam a luta para cuidar de suas
tarefas particulares. Das colônias sulistas, apenas a Virgínia
empenhou-se a fundo e os canadenses permaneceram
fiéis à Coroa.
Fig. 8 John Trumbull. Declaração de Independência, 1819. Rotunda do Capitólio dos Estados Unidos, Washington, Estados Unidos. Na imagem, a entrega da Declaração
da Independência no Segundo Congresso Continental.
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HISTÓRIA Capítulo 6 O fim do Antigo Regime e a montagem do mundo burguês148
Após algumas derrotas frente às tropas inglesas, a vitó-
ria de Saratoga (1777) reacendeu o ânimo dos colonos para
continuar a luta e facilitou a tarefa de Benjamin Franklin, em-
baixador em Paris, empenhado em obter auxílio da França.
A intervenção francesa foi decisiva. Procurando re-
cuperar as áreas coloniais perdidas para a Inglaterra em
1763, a França aliou-se formalmente aos americanos, for-
necendo-lhes recursos econômicos e enviando tropas para
o combate. Envolvendo a Espanha na aliança antibritânica,
ampliou as operações militares para a Índia e o Caribe,
sujeitando a Inglaterra a uma guerra em larga escala e em
múltiplas frentes.
A partir de 1779, um exército franco-espanhol de mais
de sete mil homens participou ativamente das operações
na América. Em 1781, sitiado em Yorktown, o exército inglês
se rendeu, pondo fim à guerra.
Em 1783, pelo Tratado de Paris, a Inglaterra reconheceu
a independência das colônias, fixando-lhes as fronteiras nos
Grandes Lagos, ao norte, e no Mississippi, a oeste.
Fig. 9 John Ward Dunsmore’s. George Washington e Marquês de Lafayette
em Valley Forge,1909. A ajuda francesa foi decisiva para a independência dos
Estados Unidos.
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A organização do novo Estado
A Declaração de Independência, de 1776, havia es-
tabelecido alguns princípios de unidade, mas nada que
caracterizasse a efetiva união das antigas colônias, agora
Estados independentes, num único país. Essa tarefa coube à
Convenção Constitucional de Filadélfia, reunida em 1787. Os
anos que se seguiram à Declaração de Independência gera-
ram a certeza da necessidade da união dos Estados, embora
ainda houvesse divergências quanto à forma que assumiria
essa união. No Congresso, duas tendências predominaram:
a republicana, liderada por Thomas Jefferson, que propunha
um poder central simbólico com ampla autonomia para os
Estados membros; e a federalista, chefiada por Alexander
Hamilton, que desejava um poder central forte.
É interessante notar que o modelo que acabou adotado
incorporou elementos de ambas. Pela Constituição de 1787,
estabelecia-se uma república federalista presidencialista.
Nela, os Estados gozariam de autonomia quanto a assuntos
especificamente internos. Caberia à União, entretanto, atuar
sobre temas como defesa, política tributária e economia. Ao
mesmo tempo, a presença das ideias liberais e iluministas
ficava clara na ampla autonomia que se atribuía aos pode-
res (Executivo, Legislativo e Judiciário) e na obrigatoriedade
de sufrágio para o preenchimento dos cargos públicos. O
Poder Legislativo era composto de duas casas: a Câmara
dos Representantes, com um número de membros propor-
cional à população de cada Estado; e o Senado, com dois
membros por Estado. O presidente seria eleito de forma
indireta, por um colégio eleitoral formado por delegados
eleitos nos vários estados, proporcionalmente à população
de cada um, e teria um mandato de quatro anos, sendo
permitida uma única reeleição.
Numa postura típica do liberalismo da época, o voto
obedecia a um critério censitário. Outro limite típico do li-
beralismo era o fato de que as mulheres não tinham direito
de voto. Além disso, a Constituição, ao garantir a autonomia
de cada estado, não tocava na questão da escravidão, que
foi motivo de sérios confrontos ao longo do século XIX, os
quais convergiram na Guerra de Secessão.
A Revolução Francesa
A abolição dos privilégios feudais, o fim do absolutis-
mo monárquico, a afirmação dos princípios da igualdade
jurídica e da liberdade econômica, a ascensão da burgue-
sia ao poder e a extinção do Antigo Regime são algumas
das consequências atribuídas à Revolução Francesa. En-
tretanto, não cabem à França méritos como pioneirismo
ou maior grau de perfeição no modelo político e social
criado. O absolutismo na Inglaterra começou a ser sepul-
tado 150 anos antes, com a Revolução Puritana. O modelo
de Estado criado pela Revolução Gloriosa na Inglaterra (a
Monarquia Parlamentar), um século anterior à Revolução
Francesa, subsiste até hoje, ao passo que a França pas-
sou por sucessivas formas diferentes de governo nos anos
que se seguiram à Revolução. A Constituição criada pela
Revolução Francesa no primeiro momentonão sobreviveu
por mais de dois anos.
Tudo isso demonstra que, se analisada pela perspectiva
dos resultados práticos imediatos, a Revolução Francesa
perde grande parte de sua importância. Todavia, essa im-
portância não reside apenas aí. Sua riqueza reside na sua
extraordinária repercussão externa e na fantástica diver-
sidade apresentada no transcorrer do processo, inclusive
tendo como componente fundamental a intensa participa-
ção popular, com reivindicações que iam muito além dos
limites impostos pelas demais revoluções burguesas.
Mais que isso, a Revolução Francesa pode ser vista
como a culminância de um processo revolucionário mais
amplo, que corresponde à hegemonia da burguesia e à
implantação de seus valores. Tal processo compreende a
Revolução Industrial inglesa, a independência dos Estados
Unidos e, como desdobramento da Revolução Francesa, a
independência da América Latina. E não se trata apenas de
uma culminância, mas do caráter profundamente irradiador
do processo revolucionário francês, sua decisiva influência
para a ocorrência de uma série de outros processos revo-
lucionários. Cabe lembrar que a Revolução Francesa não
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foi, a todo momento, liderada pela burguesia. O historiador
Georges Lefebvre, por exemplo, disse que a revolução,
principiada pela nobreza, foi ora protagonizada pela bur-
guesia, ora pelo proletariado urbano (sans-culottes), ora
pelos camponeses. Sendo assim, essa revolução é cha-
mada de “burguesa” não por ter “colocado a burguesia no
poder” (termo demasiado vago), mas por criar condições
para que o modo de produção capitalista vigorasse, ao
derrubar a aristocracia. Thomas Paine, pensador iluminista
que participara do processo de independência dos Estados
Unidos, também fez parte da Revolução Francesa; esse
protagonista criou o termo “Era das Revoluções”, pois, para
ele, o que ocorreu na França foi um aprofundamento e uma
radicalização do que houve na América do Norte.
Por outro lado, a violência e a dramaticidade da Revo-
lução Francesa, principalmente se comparada às demais
revoluções burguesas, só podem ser compreendidas de
forma mais concreta à luz das condições apresentadas pela
França às vésperas da Revolução. A grandiosidade das
contradições apresentadas pelo modelo francês constitui o
cenário ideal para a eclosão de uma revolução de enormes
proporções.
A França às vésperas da revolução
No século XVIII, a França encontrava-se submetida
ao modelo clássico que se atribui ao Antigo Regime. A
sociedade, embora altamente diversificada, quando vista
pela perspectiva do Estado, apresentava uma divisão em
três ordens ou estamentos (ou, ainda, Estados): clero (Pri-
meiro Estado), nobreza (Segundo Estado) e povo (Terceiro
Estado). Essa divisão, totalmente artificial para a época,
que remontava à Idade Média, jogava na vala comum do
povo elementos totalmente díspares: industriais, ricos co-
merciantes, banqueiros, operários, camponeses, lojistas,
aprendizes, artesãos, mendigos, pequenos proprietários,
servos etc.
Nesse momento, a França ainda era um país agrário: de
uma população de 25 milhões, 20 milhões viviam no campo.
Desses, 4 milhões eram servos e 10 milhões, camponeses
semilivres. A talha e a corveia eram as formas padrão de
tributação, e a produtividade era baixa. Além disso, a terra
estava quase inteiramente concentrada nas mãos da Igreja
e da nobreza.
A miséria da grande massa contrastava com aqueles
setores que compunham a burguesia. Porém, um elo os
unia: constituíam o enorme contingente que, por estar pri-
vado de qualquer privilégio ou direito político, representava
uma forte oposição ao Antigo Regime.
Clero e nobreza, por outro lado, apresentavam uma
característica em comum. Antes de qualquer coisa, os
altos dignitários da Igreja eram nobres. A condição da
Igreja como instituição era a de grande proprietária, o que
aproximava, de forma inseparável, seus interesses aos
da nobreza. Esses segmentos gozavam de uma série de
privilégios, tais como isenção da maioria dos impostos (eles
pagavam apenas dois impostos diretos: a capitação e o
vigésimo) e monopólio de determinados cargos públicos
e pensões, o que os levou a agarrar-se a essas prerrogati-
vas. Esse fator contribuiu para agravar ainda mais a tensão
revolucionária.
Toda estrutura tributária e fiscal do país repousava nos
ombros do Terceiro Estado, dado que clero e nobreza eram
isentos do pagamento de tributos. Além disso, contribuíam
de forma absoluta para onerar o Estado, através das pen-
sões e regalias que recebiam. Esse era apenas um dos
elementos de contradição da estrutura francesa.
Politicamente, o absolutismo em sua forma clássica
caracterizava a França. Existiam poucos instrumentos de
limitação ao poder real. Curiosamente, apesar de os reis
Luís XIV e Luís XV terem sido conhecidos pelo seu au-
toritarismo, o monarca Luís XVI, que reinava à época da
revolução, era abertamente reformista e influenciado pelo
contexto do despotismo esclarecido. Contudo, as contradi-
ções e as condições objetivas da França, como será visto,
impossibilitaram tais tentativas de reforma.
Economicamente, a França pré-revolucionária vivia uma
crise cujas razões devem ser buscadas na combinação
de elementos estruturais com questões conjunturais que
contribuíram para um agravamento dos problemas. Numa
análise mais ampla, vemos que a economia francesa sofria
um anacronismo em relação à sua grande rival, a Inglaterra.
Ao mesmo tempo que os ingleses viviam o processo de Re-
volução Industrial, intensificando brutalmente sua produção
e monopolizando mercados, a França ainda se via às voltas
com as velhas manufaturas estatais e com as excessivas
regulamentações econômicas impostas pelo Estado abso-
lutista. Dessa forma, a concorrência tornava-se impossível,
levando grandes parcelas da população ao desemprego
e à fome. Além disso, o luxo da Corte, a isenção de impos-
tos para a nobreza e o clero e a ineficiência administrativa
contribuíam para uma situação de insustentabilidade da
economia francesa.
Fig. 10 Joseph Siffred Duplessis. Luis XVI, 1777. Óleo sobre tela. Palácio de Versa-
lhes, França. Luís XVI: seu governo conheceu a decadência definitiva da monarquia
francesa.
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Sans-culottes: literalmente “sem calções”; pessoas que não usavam
calções, vestimenta típica da nobreza; as camadas populares.
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