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Gerenciamento de riscos baseado em fatores humanos e cultura de segurança Estudo de caso de simulação computacional do comportamento humano durante a operação de escape e abandono em instalações offshore Gerardo Portela © 2014, Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Copidesque: Wilton Fernandes Palha Revisão: Adriana Kramer Editoração Eletrônica: Thomson Digital Elsevier Editora Ltda. Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 – 16o andar 20050-006 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Rua Quintana, 753 – 8o andar 04569-011 – Brooklin – São Paulo – SP – Brasil Serviço de Atendimento ao Cliente 0800-0265340 atendimento1@elsevier.com ISBN: 978-85-352-7603-9 ISBN (versão eletrônica): 978-85-352-7604-6 Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P857g Ponte Junior, Gerardo Portela Gerenciamento de riscos baseado em fatores humanos e cultura de segurança : estudo de caso de simulação computacional do comportamento humano durante a operação de escape e abandono em instalações offshore / Gerardo Portela da Ponte Junior. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2014. 200 p. ; 24 cm. ISBN 978-85-352-7603-9 1. Segurança no trabalho - Brasil. 2. Acidentes - Brasil - Prevenção. 3. Indústria petrolífera. 4. Gás natural - Indústria. I. Título. 13-05669 CDD: 363.11 CDU: 331.4 mailto:atendimento1@elsevier.com Dedico este trabalho primeiramente a Deus, que criou todas as coisas e me deu Angélica como mulher, a minha filha Alana, o meu pai Gerardo, minha mãe Cléo, os irmãos Lincoln, Florence, e uma família maravi- lhosa que me apoia e incentiva. Também dedico este trabalho aos profissionais que priorizam o be- nefício das pessoas e da sociedade nos empreendimentos tecnológicos de todos os tipos. Agradecimentos Ao Professor José Márcio Vasconcellos da COPPE UFRJ, que nos orientou em direção do que há de mais avançado tecnologicamente, motivando e apontando caminhos para o sucesso. Ao Professor Louis Freund, que nos Estados Unidos estudou e acreditou em nossa proposta brasileira de trabalho abrindo as portas da San Jose State University, onde aprendemos muito sobre fatores humanos com os engenheiros e professores do Vale do Silício. Ao Professor David Krack que lecionou Engenharia de Segurança sob o apoio do International Students Department da University of Califórnia, que sempre nos recebeu com todo cuidado e atenção. Aos Professores Dracos Vassalos, Luis Guarin e toda a equipe do Kelvin Hydrodynamics Laboratory e da University of Strathclyde que nos ajudaram a realizar a parte mais difícil do trabalho. Em especial à minha instrutora, Professora Yasmine Hifi, que sempre dedicou tempo e conhecimento técnico à pesquisa realizada. Ao consultor técnico do Cenpes (Centro de Pesquisas da Petrobras), Guilherme da Silva Telles Naegeli, e aos gerentes (Petrobras) Carlos Cyranka, Dennis Botinelly, Antônio Luiz Fernandes dos Santos, Marcos Assayag e Maria de Fátima que viabilizaram as pesquisas que per- mitiram a realização deste trabalho. VII Agradecimento especial Agradecimento especial a duas famílias indispensáveis para a rea- lização deste trabalho. Primeiramente a família Mike, Kim e Phillip Kirouac, que nos receberam na pequena cidade de Campbell na Califórnia, nós um casal de brasileiros com um bebê de 2 meses. Nosso trabalho nos Estados Unidos não teria sido possível sem o apoio cons- tante da família Kirouac desde a instalação na cidade até a emissão dos certificados de conclusão do curso. Além disso, após toda sua dedicação na Califórnia, a família Kirouac ainda nos indicou outra família cristã escocesa para continuar o suporte em Glasgow, Escócia, UK. Aos queridos Roddy e Moira Shaw, que também nos receberam maravi- lhosamente bem em Glasgow, nós agradecemos igualmente por terem estado ao nosso lado, nos ajudando a superar as dificuldades típicas de uma família brasileira, sozinha, num país tão distante. Em nenhum mo- mento nos sentimos sós quando longe de nossa terra. Teremos sempre um carinho especial pelos americanos e escoceses que sempre serão lembrados por nós, simbolizados por esses amigos extraordinários. IX Prefácio Os conceitos de cultura de segurança e fatores humanos precisam ser abordados de forma prática no gerenciamento de riscos e na segurança de empreendimentos tecnológicos. Esses temas incluem aspectos subjetivos normalmente estranhos ao dia a dia dos engenheiros e técnicos em suas atividades rotineiras. Esta obra aborda tais conceitos sintetizando-os e indicando uma metodologia aplicável a qualquer empreendimento tecnológico. O estudo de caso escolhido para emprego da metodologia é a análise de segurança do sistema de escape e abandono de uma unidade de exploração e produção de óleo e gás offshore do tipo FPSO (Floating, Production, Storage and Offloading). A escolha de um FPSO foi baseada na pesquisa da tese de doutorado que originou o livro, mas os sistemas de escape e abandono têm aplicação generalizada em qualquer edificação, instalação ou meios de transporte. Sistemas de escape e abandono des- tacam a interação homem × sistema sempre presente em qualquer em- preendimento tecnológico, que se intensifica durante uma emergência. A pesquisa original criou um modelo 3D representativo de um FPSO e, através de simulações computacionais, considerou mais de 30 grupos diferentes de cenários acidentais que postulam vazamentos de gás, in- cêndios e avarias navais. Os resultados experimentais foram avaliados estatística e analiticamente, propiciando a identificação de oportunidades de melhorias de projeto, melhorias operacionais e na qualidade dos procedimentos. Isso resulta na elevação da qualidade do gerenciamento de riscos e segurança. As simulações desenvolvidas na pesquisa alcan- çaram a suficiente correspondência com as características técnicas e operacionais de um FPSO, bem como reproduziram os aspectos com- portamentais, aspectos de fatores humanos e aspectos de cultura de segurança que caracterizam o suposto grupo de operadores que opera unidades de exploração e produção de óleo e gás offshore do tipo FPSO. Plataformas de petróleo do tipo FPSO são instalações muito complexas, e por isso os especialistas, em seu estudo, alcançam adicionalmente resultados aplicáveis também às instalações terrestres como indústrias, edifícios, estádios, shoppings centers, campus universitários, hospitais, complexos hoteleiros e conglomerados de lazer. Ou seja, a metodologia empregada aplica-se a qualquer situação cuja movimentação de pessoas tenha importância. Os resultados também são aplicáveis aos problemas envolvendo a movimentação de pessoas em sistemas e veículos de trans- porte aéreo, marítimo e terrestre, sobretudo em situações de emergência. XI XII Prefácio Para interagir diretamente com o autor, acesse: gerardoportela. com.br ou risksafety.com.br O autor Lista de figuras Figura 2.1 Posicionamento relativo das estratégias de segurança 8 Figura 2.2 Influência sobre o ambiente projetado 20 Figura 2.3 Influências sobre o erro humano 22 Figura 4.1 Definição de problema e regra 51 Figura 4.2 Solução possível numa cultura legalista 52 Figura 4.3 Solução possível numa cultura de heroísmo52 Figura 4.4 Solução possível numa cultura de segurança forte 52 Figura 6.1 Tela de interface do software Evi (simulador) 119 Figura 6.2 Tela de interface do software EvE (editor do modelo 3D) 120 Figura 6.3 Modelo 3D do FPSO estudado 120 Figura 6.4 Arranjo geral final do FPSO estudado 122 Figura 6.5 Detalhe de módulo offshore e suas rotas de fuga 124 Figura 6.6 Exemplo de janela de interface para atribuição de fatores humanos ao POB 130 Figura 6.7 Exemplo de posicionamento dos agentes no FPSO 131 Figura 6.8 Apresentação das propriedades e dos efeitos sobre o agente e grid de propagação de incêndio 133 Figura 7.1 Avaria naval, com angulação instantânea de 16 graus 142 Figura 8.1 Modelo de tabela de enquadramento de evento acidental 147 XVII CAPÍTULO 1Introdução e roteiro de leitura 3Gerenciamento de riscos Este livro é baseado nos resultados obtidos em mais de 10 anos de trabalho e pesquisas em projetos de sistemas de segurança offshore e mais de 30 anos de efetiva atuação profis- sional na área de engenharia e tecnologia. Também serviram para o desenvolvimento do seu conteúdo as pesquisas realizadas durante os estudos de Doutorado em Gerenciamento de Riscos e Mestrado em Gestão de Tecnologia. Os estudos e pesquisas foram desenvolvidos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE, CEFET/RJ), The California State University (San Jose, USA) e University of Strathclyde (Glasgow, UK). Com o objetivo de facilitar a compreensão da obra, apresentamos a seguir um resumo que serve como roteiro para a sua leitura. Os Capítulos 2 e 3 iniciam o trabalho com um levantamento da evolução dos modelos de gestão tecnológica nos últimos 40 anos, os modismos e paradigmas de gestão que prevaleceram em cada década e a influência histórica da gestão tecnológica no gerenciamento de riscos e segurança. É apresentado um levanta- mento conceitual sobre os temas erro humano e fatores humanos, cuja abordagem identifica aplicações práticas na gestão de ati- vidades de engenharia, especialmente em projeto, construção e operação. O trabalho pesquisou o impacto do elemento humano em acidentes, as consequências do erro humano e as concepções de modelos de gestão para o gerenciamento adequado dos pro- blemas relacionados com o erro humano. No Capítulo 4 são apresentadas estratégias de aplicação dos conceitos de cultura de segurança e fatores humanos nas ativi- dades de gestão relacionadas com o gerenciamento de riscos e segurança nos empreendimentos tecnológicos. O texto descreve uma forma atualizada de abordagem dos assuntos relacionados à segurança e gerenciamento de riscos, identificando os principais vícios prejudiciais ao processo, mostrando a importância da multidisciplinaridade, da influência dos aspectos subjetivos e imprevisíveis nas decisões de aceitação ou não de riscos. O texto resume em sete princípios de fatores humanos e em sete princí- pios de cultura de segurança os principais conceitos identificados no estudo dos temas. Essa consolidação é apresentada como uma estratégia de aplicação prática dos conceitos de fatores humanos e cultura de segurança em empreendimentos tecnológicos. O Capítulo 5 descreve a importância dos sistemas de escape e abandono para o objetivo de priorização de proteção à vida humana em qualquer empreendimento tecnológico. O texto explica a escolha do sistema de escape e abandono como objeto 4 CAPÍTULO 1 Introdução e roteiro de leitura de estudo de caso para a aplicação dos conceitos de cultura de segurança e de fatores humanos em empreendimentos tec- nológicos como, por exemplo, instalações offshore, inshore, onshore e at shore (marítimas, costeiras, terrestres e na costa). É apresentado o potencial de uso de ferramentas de simulação computacional para o estudo e melhoria dos sistemas de escape e abandono de instalações offshore, aplicáveis também na melhoria do gerenciamento de riscos e segurança de empreendimentos tecnológicos em geral. Nos Capítulos 6 e 7 o trabalho faz uma investigação sobre a aplicação de ferramentas de simulação computacional de es- cape e abandono em instalações offshore, especialmente do tipo FPSO (Floating, Production, Storage and Offloading). O texto descreve a tecnologia desenvolvida para adequar o uso de um software de simulação computacional de escape e abandono às características técnicas de um FPSO. A tecnologia desenvolvida para a definição de cenários de emergências em instalações off- shore é descrita de modo que tais cenários possam alcançar a representatividade necessária para serem usados na realização de simulações tecnicamente corretas, realistas e com corres- pondência operacional. Os Capítulos 8 e 9 relatam os parâmetros e as metodologias adotadas na estratégia de abordagem do sistema de escape e abandono, com base nos resultados de mais de 4.000 simulações computacionais em mais de 30 grupos de cenários acidentais postulados para instalações offshore. Os resultados dessas simu- lações são apresentados de forma consolidada após a realização de análises estatísticas e qualitativas dos valores obtidos com as simulações. As considerações finais e a conclusão são apresentadas no Capítulo 10 e resumem os resultados teóricos e práticos, através de uma abordagem que inclui o conceito atualizado de geren- ciamento de riscos e segurança, bem como a importância e os meios de inserção dos conceitos de cultura de segurança e fatores humanos nas estratégias de proteção de empreendimentos tecno- lógicos. A conclusão do livro sugere oportunidades de melhorias e demonstra a aplicabilidade dos conceitos e resultados obtidos em quaisquer outros empreendimentos tecnológicos. CAPÍTULO 2Cultura de segurança SUMÁRIO DO CAPÍTULO 2.1 Paradigmas organizacionais e consequências para a segurança ................................................................. 7 2.1.1 Paradigma mecanicista da década de 1970 ...........9 2.1.2 Paradigma orgânico da década de 1980 ..............11 2.1.3 Paradigma holístico da década de 1990 ..............13 2.1.4 Paradigma da globalização da década de 2000 .....14 2.1.5 Tendência no início do terceiro milênio ................17 2.2 Conceito de cultura de segurança ...................................... 18 2.3 Conceitos básicos de fatores humanos e erro humano ......... 19 7Gerenciamento de riscos 2.1 PARADIGMAS ORGANIZACIONAIS E CONSEQUÊNCIAS PARA A SEGURANÇA Assim como o dia a dia das pessoas, o mundo tecnológico e corporativo também tem seus modismos e sofre a influência das constantes mudanças de tendências que se renovam de tempo em tempos. Podemos nos lembrar de várias tendências que surgiram, alcançaram seu máximo de aceitação e depois caíram em desuso de forma similar ao que acontece com os modismos do cotidiano das pessoas. Os modismos acabam deixando marcas, algumas definitivas que passam a simbolizar um determinado período e caracterizar determinadas décadas. Tais modismos de gestão tecnológica e organizacional in- fluenciam as atividades das empresas, dos seus gestores técnicos, das pessoas e da sociedade. Por isso, o gerenciamento de riscos e o tratamento das questões de segurança não poderiam passar isentas por essa influência, ora positiva, ora negativa, exercida pelos paradigmas organizacionais de seu tempo, contribuindo, assim, para o movimento do pêndulo da segurança. Ou seja: as estratégias de segurança oscilam entre um máximo e um mínimo de rigor, passando sempre por um ponto de equilíbrio no qual, devido à dinâmica organizacional, nunca permanecem. A posi- ção estratégica varia sob a influência de fatores como acidentes recentes, traumas corporativos, traumas sociais entre outros que conduzem o pêndulo da segurança para o ponto de mais alta proteção. Em contrapartida, outros fatores, como o excesso de autoconfiança, custos excessivos, competitividade influenciam a posição do pêndulo da segurança para o lado oposto, em que se busca a proteção mínima suficiente (Figura 2.1).Para um bom trabalho estratégico de segurança, é preciso entender bem em que posição o pêndulo da segurança se encontra na organização e na sociedade em que ela se insere, considerando o estágio de desenvolvimento da tecnologia envolvida, e assim concluir se ainda é possível ceder espaços ou se já estamos no limite máximo de risco aceitável. A partir desse entendimento, são definidos os fatores estratégicos para limitar a aproximação operacional dos dois picos desse movimento pendular, tanto para evitar uma proteção tão elevada que inviabilize a operação/ empreendimento, assim como para impedir que haja proteção insuficiente, o que pode levar ao acidente. O objetivo é manter a máquina operacional em funcionamento seguro, estável mes- mo sob a influência das variações inevitáveis na abordagem 8 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança da segurança, às vezes circunstanciais, tão frequentes na vida organizacional. Além dos paradigmas organizacionais, inúmeros fatores ex- ternos compõem uma influência cultural sobre a percepção e aceitação de riscos. Essas informações incluem opinião pública, tradições familiares, tradições regionais, educação, histórico de vida individual e comunitária, as redes de comunicação eletrônica conhecidas – como as redes sociais –, a mídia, influências geo- gráficas e históricas, religião, supertições, acidentes anteriores, traumas sociais, naturais, pessoais etc. Todo esse conjunto de influências participa da formação da cultura de segurança, que, por sua vez, exerce influência específica sobre a percepção e a aceitação de riscos. Uma das formas de materialização dessa cultura de segurança são os efeitos de sua influência nos registros que compõem as le- gislações, normas e procedimentos. Por exemplo: após um aciden- te socialmente traumático, os procedimentos relacionados com o evento podem ser modificados, as rotinas podem ser alteradas e os equipamentos podem ser substituídos. Isso pode acontecer tanto em nível internacional, nacional e empresarial, como em âmbito individual e familiar. Trata-se da cultura geral gerando a FIGURA 2.1 Posicionamento relativo das estratégias de segurança. 9Gerenciamento de riscos cultura de segurança propriamente dita, a qual influencia direta- mente a percepção e aceitação de riscos. A influência socioeconômica na legislação afeta as rotinas operacionais e a execução de tarefas. Tal influência resulta na alteração da probabilidade de ocorrer o erro humano e o acidente. São de grande importância os aspectos associáveis à cultura de segurança para a origem dos eventos acidentais. Entre as razões originais para os acidentes estão a falha técnica, a fa- lha humana e eventos externos ao sistema produtivo como questões naturais, econômicas ou sociais, estes considerados componentes formadores da cultura de segurança. As ações individuais e coletivas têm suas condições de controle de ris- cos e de perigos alteradas por questões organizacionais e por condições ambientais e isso também faz parte da cultura de segurança. De acordo com nossas pesquisas, o conceito de cultura de segurança definido pela IAEA Safety Series No 75-INSAG-4 (1991) é o que possibilita uma aplicação prática e sistemática por parte das organizações em problemas de engenharia e tec- nologia. De acordo com a IAEA Safety Series No 75-INSAG-4, Cultura de segurança é o conjunto de características e atitudes das organizações e indivíduos, que estabelece que uma prioridade absoluta seja dada a segurança nuclear de modo que esta receba a devida atenção pela sua importância. A partir dessa definição, buscamos a extensão da aplicação do conceito de cultura de segurança para os demais empreendimentos tecnológicos, além das fronteiras da engenharia nuclear, o que será melhor explicado ao longo deste trabalho. Apresentamos a seguir um resumo dos paradigmas organiza- cionais (um dos principais componentes de formação da cultura de segurança) que caracterizaram as últimas décadas. Ressalta- mos a influência desses paradigmas nas questões associadas ao gerenciamento de riscos e segurança e a consequente evolução conceitual da abordagem de tais temas. 2.1.1 Paradigma mecanicista da década de 1970 Os ícones de desenvolvimento tecnológico popularizados nos anos 1970 foram: a chegada do homem à Lua, a transmissão de TV via satélite e em cores, a substituição das válvulas por transistores, a fita cassete para gravação de áudio, as calculadoras 10 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança eletrônicas portáteis, os relógios digitais, os primeiros te- lejogos rudimentares. O controle estatístico de processos, a programação de cronogramas tipo PERT-CPM e o controle de qualidade também ganham espaço e são exemplos de ferramentas de gestão tecnológica. Os computadores começam a ser usados pelas grandes corporações, e programações em Fortran (que é usado até hoje) eram ensinadas nas faculdades de engenharia e transferidas para os computadores através de uma mídia hoje completamente obsoleta: cartões de papel perfurados. Foi uma década na qual a especialização tornou-se o objetivo daqueles que buscavam estar tecnológica e cientificamente atua- lizados. Quanto mais especializado, melhor. Essa tendência foi legitimada por um modo cartesiano newtoniano de pensar, que prevalece desde a origem do método científico no século XVII, e obteve imensos avanços e resultados tecnológicos ao longo de séculos, sempre fundamentados nos conceitos propostos por René Descartes (1637) e, posteriormente, aperfeiçoados por Isaac Newton (1687), os quais praticamente definiram o que conhecemos então como método científico. O valor do método estava associado em conhecer as partes, os detalhes e a partir daí é que se poderia chegar ao entendimento do todo como consequência. Cada parte funciona como o com- ponente de uma máquina maior, logo, se cada parte funcionar perfeitamente, a máquina também funcionará com perfeição. Esse é o chamado paradigma mecanicista. A repercussão desse conceito nas atividades do dia a dia da engenharia e da tecnologia resultou na valorização dos equipamentos e seus desempenhos, uma vez que estes eram as partes do todo, e pensava-se que se cada parte obtiver o desempenho ideal, consequentemente o todo também alcançará o melhor desempenho. Para fazer cada parte funcionar bem, o foco tecnológico do paradigma mecanicista era centrado no desempenho do equipamento e no detalhamento dos procedimentos associados a cada parte. Isso resultou numa década dedicada à confiabilida- de, cuja prioridade foi associada à qualidade dos equipamentos e procedimentos e os esforços concentrados na fase de projeto. Os procedimentos eram elaborados de tal maneira a evitar o risco de estar sob a influência do erro humano, mas minimi- zando o papel do indivíduo, cuja principal tarefa era aplicar os procedimentos. Em termos de segurança, um acidente marcou os anos 1970. O incidente nuclear de Three Mile Island USA, em 28 de março 11Gerenciamento de riscos de 1979. O paradigma mecanicista da década de 1970 não foi eficiente para evitar esse tipo de acidente, mesmo tendo criado várias proteções através de barreiras sobrepostas. Para cada siste- ma (parte) da usina (todo) havia uma proteção, mas mesmo assim houve liberação limitada para a contenção de gases radioativos acima do esperado, embora sem danos para a população e meio ambiente. Os melhores procedimentos e equipamentos reunidos pelo projeto da usina não foram suficientes para evitar o acidente que quase se tornou uma catástrofe ambiental de consequências extremamente graves. Durante a emergência, os operadores mostraram-se desorientados e confusos, com dificuldade de iden- tificar o cenário de degradação que se estabelecia. Verificou-se a necessidade de aperfeiçoamento da confiabilidade, do desempe- nho e da atitude do elemento humano, independentemente da qualidade dos equipamentos e procedimentos. Com o acidente de Three Mile Island em 1979, enfatizou-se a importânciado conceito de defesa em profundidade, o qual consiste em prever falhas técnicas, humanas ou organizacionais e evitá-las através de sucessivas linhas de defesa em todas as fases da vida de uma instalação industrial. 2.1.2 Paradigma orgânico da década de 1980 Nos anos 1980, os resultados mais popularizados do desen- volvimento tecnológico foram as missões dos ônibus espaciais, o videocassete, os primeiros e limitados computadores pes- soais, as agendas eletrônicas, entre outros. No campo político, a segunda parte da década foi marcada pelas mudanças nos regimes comunistas da Europa Oriental que culminaram com a queda do muro de Berlim, estabelecendo um novo cenário para o desenvolvimento técnico e científico. Em termos de gestão tecnológica, foi uma década marcada por ondas bem-sucedidas de vendas de modelos e propostas de planos de reengenharia e qualidade total que serviram para seguidas reorganizações tanto bem-sucedidas quanto desastrosas. Quase sempre inspiradas no sucesso da indústria japonesa e nos trabalhos profícuos de W.E. Deming (1982), essas ferramentas de gestão tecnológica proliferaram e algumas foram massificadas, como a MASP (Me- todologia de Análise e Solução de Problemas) e o 5S, baseado nas 5 palavras japonesas de iniciação à chamada qualidade total. A informatização chega às atividades de rotina das grandes em- presas, ainda com monitores monocromáticos e drivers externos, 12 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança sendo necessário agendar horários para utilização das máquinas que eram disponibilizadas em pools para grupos de profissionais que precisavam se alternar. Houve uma valorização do desempenho humano, seu com- prometimento e sua confiabilidade em seguir procedimentos. Não mais apenas a valorização dos equipamentos e procedimentos. Era necessário considerar a interação dos processos técnicos com os recursos humanos e também a questão da atitude do elemento humano diante do trabalho técnico a ser feito. Foi uma década dedicada a levar em conta os erros humanos, o que se tornou o ponto de partida para se mostrar que a confiabilidade humana suplantava o conceito da aplicação pura e simples dos procedimentos. O paradigma mecanicista que via a organiza- ção e a tecnologia como uma gigantesca máquina cujo sucesso resultava do perfeito funcionamento de cada equipamento que compunha as partes evoluiu para o paradigma orgânico, no qual o homem e a máquina juntos passam a definir o êxito do resultado organizacional. Mesmo assim, em 26 de abril de 1986, um dos mais emblemá- ticos acidentes de todos os tempos aconteceu na Usina Nuclear de Chernobyl, URSS. Apesar da rigidez dos projetos e procedimen- tos de segurança adotados em usinas nucleares, e mesmo com to- da experiência e disciplina operacional soviética, o grave acidente causou a perda instantânea e simultânea da primeira e segunda barreiras de defesa em profundidade (em geral são seis barreiras na indústria nuclear: natureza cerâmica do combustível, reves- timento do combustível, vaso de pressão do reator, blindagem radiobiológica, vaso de contenção de aço, edifício de concreto reforçado). A terceira barreira não tinha sido projetada para evitar liberação de materiais radioativos em cenários com tal grau de degradação das duas primeiras barreiras e, como consequência, houve uma liberação inaceitável de parte do núcleo radioativo para o meio ambiente. O vazamento foi detectado em países da Europa como a Holanda e causou contaminação e perda de vidas. A catástrofe resultou na comprovação de que a confiabilidade humana no cumprimento de normas, o desempenho humano no projeto e operação da planta, não foram suficientes para evitar o acidente catastrófico de tamanha magnitude. O paradigma orgânico possuía uma limitação associada à influência da ges- tão sobre as atividades operacionais. Ordens superiores para a realização de testes de segurança em um momento operacional inoportuno haviam sido dadas durante a operação em Chernobyl 13Gerenciamento de riscos e foram seguidas pelos operadores, o que levou ao grave acidente. Identificou-se que nesse tipo de situação, a segurança precisaria ir além dos limites da confiabilidade humana, da qualidade dos equipamentos e da rigidez no cumprimento de normas e ordens hierárquicas. Entendeu-se necessário desenvolver uma cultura de segurança acima de regras, normas e equipamentos e que propicie a priorização da segurança no tempo certo, ou seja: quando ainda é possível evitar uma catástrofe. 2.1.3 Paradigma holístico da década de 1990 Os símbolos tecnológicos mais populares dos anos 1990 foram a Internet, o CD, os produtos da MicrosoftTM, a telefonia celular, as armas eletrônicas (Guerra do Golfo), entre outros. Em termos de gestão tecnológica, o tema ambiental, que já vinha ocupando cada vez mais espaço nas décadas anteriores, atinge o seu ponto de mutação sob a influência de autores como Fritjof Capra (1982), físico, doutor pela Universidade de Viena e fundador do Elmwood Institute na Califórnia. Ele publicou diversas obras que discutem diferenças e semelhanças entre ciência e espiritualidade, os quais apresentam uma abordagem muito mais radical em relação à questão de proteção ambiental. A revolução da questão ambiental na ciência e tecnologia veio para ficar a partir dos anos 1990, mas também deixou para trás ameaças questionáveis como a ideia de que a poluição prevista para os dias de hoje nos obrigaria a usar permanente- mente máscaras nos grandes centros urbanos, temores como o polêmico efeito de destruição da camada de ozônio, com sua variante mais ampla, o chamado efeito estufa, bem como mais recentemente o aquecimento global tão temido, apesar de que a temperatura da Terra só tenha sido cientificamente monitorada nos últimos três séculos, tempo insuficiente para qualquer conclusão definitiva se considerarmos o tempo de existência do planeta. A microinformática já estava disseminada e aliada à in- ternet, a qual era quase sempre acessada por conexão telefô- nica. Foi também nos anos 1990 que chegaram os primeiros notebooks. O novo paradigma que se estabelece nos anos 1990 é chamado de holístico por enfatizar o valor da visão do todo. Faz contrapon- to ao paradigma mecanicista e ao método cartesiano de análise compartimentada que prevaleceu desde a origem do método 14 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança científico, influenciada pelos conceitos de Descartes (1637) Newton (1687). O paradigma holístico não contradiz o método científi- co tradicional, baseado na especialização e na análise deta- lhada de cada parte para chegar ao conhecimento do todo. Pelo contrário, o paradigma holístico reconhece os resultados produzidos pelo método científico tradicional, mas passa a agregar e a valorizar a necessidade da visão do todo para que a especialização e a análise específica de cada parte não ve- nham a se perder por falta de orientação, comprometimento e objetivo com o todo que justifica cada parte. O paradigma holístico trabalha pontualmente, localmente, mas com a visão do todo muito bem definida e posicionada no mais alto grau de importância científica. O paradigma holístico que prevaleceu nos anos 1990 valoriza o ser humano, a informação, as maneiras diferentes de pensar sobre o mesmo tema, a intuição, a flexibilidade, a inovação, o questionamento e a capacidade de aprender. Em termos de gestão, revela o estreito relacionamento entre o estilo de ge- renciamento e liderança com os resultados de segurança. Es- tabelece uma relação entre o grau de comprometimento de cada indivíduo e os resultados para a segurança. O acidente nuclear de Chernobyl, nos anos 1980, influenciou a década de 1990 e provocou uma mudança de paradigma em termos de segurança e gerenciamento de riscos. As lições foram aprendidas a um altíssimo preço, mas em contrapartida desenvolveu-se o conceito de cultura de segurança, o qual extrapola os mecanismos nor- mativos, hierárquicos e coercitivos gerando um poderososenso comum em defesa da segurança (incluindo o meio ambiente), especialmente por tornar-se um senso de defesa cultural da segurança, independente de forças externas para aqueles in- divíduos que o assimilam. 2.1.4 Paradigma da globalização da década de 2000 Como consequência de um processo originado nos anos anteriores, na década de 2000 a revolução da internet se con- solidou. O uso de e-mails passou a ser massificado e oficiali- zado como documento pelas organizações, e a transferência de arquivos e dados eletrônicos de forma relativamente segura foi facilitada pela melhoria obtida com a tecnologia da banda larga, que suplantou a limitada conexão discada. Vídeos e imagens 15Gerenciamento de riscos passaram a ser transferidos ao redor de um mundo cada vez mais globalizado, com muito mais rapidez, através de computa- dores portáteis, notebooks e outros dispositivos como telefones celulares. O comércio eletrônico tornou-se acessível a um maior número de consumidores, as redes sociais surgiram e se proli- feraram de modo diversificado. Novos canais de comunicação como o YouTube e os portais de notícias revolucionaram o acesso à informação de interesse jornalístico. As transações comerciais, bancárias e aquisições em bolsas de valores foram facilitadas pelo acesso seguro à compra pela internet. O uso do papel foi reduzido no dia a dia da vida corporativa e até mes- mo eliminado oficialmente em muitas das rotinas do cidadão comum. Um dos símbolos dos avanços tecnológicos da década de 2000 foi a substituição dos monitores catódicos (tubo de ima- gem) por tecnologia de plasma e LCD, tanto para computadores como para novos aparelhos de televisão. As telas passaram do formato 4:3 para 16:9, adequando-se às novas tecnologias de alta definição de imagem em HD, HDMI e 3D. A transmis- são de TV por satélite, cabo e internet se proliferou e abriu competição com a televisão aberta. Toda a imprensa escrita, falada e televisiva passou a concorrer com a rapidez da in- ternet, e muitos veículos não suportaram essa concorrência sem mudanças radicais. Porém o evento de maior influência na década de 2000 foi o surpreendente ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, que desestabilizou a ordem mundial através de ações até então imaginadas apenas em roteiros cinematográficos, contra a maior potência do planeta: os Estados Unidos da América. O ataque provocou um profundo questionamento sobre a segurança de Nova York, dos Estados Unidos e do mundo, agora compro- vadamente vulnerável em relação a ações que não podem ser impedidas apenas pelo sofisticado armamento de ataque e defesa existente até então. O ataque de 11 de setembro exerceu uma enorme influência nas demandas relacionadas com a segurança pública e, grande parte dessas demandas foi encaminhada para os engenheiros. O tema da segurança pública e antiterrorismo tomou tal vulto, que máquinas, equipamentos, projetos arquitetônicos, veículos terrestres, marítimos e aéreos tiveram seus projetos alterados e atualizados em resposta aos novos cenários de risco postulados. A tecnologia passou a ser não apenas fundamental, mas a própria 16 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança arma de inteligência, talvez única, capaz de enfrentar as novas ameaças. Neste cenário conturbado em que várias guerras se desenca- dearam, outro componente importantíssimo agravou a situação econômica mundial interferindo com os paradigmas de gestão adotados pelas organizações do planeta. Após um ciclo de pros- peridade que se encerrou em 2007, a crise hipotecária americana foi o fato iniciador de um processo de crise econômica mun- dial, agravada pelo processo paralelo de globalização que tanto propagou os benefícios tecnológicos, como propagou também os elementos de contaminação da crise econômica além de radicalizar a competitividade entre empresas e países. Todas as organizações tiveram de ajustar seus paradigmas de gestão considerando as consequências do evento de 11 de setembro e da crise econômica mundial. A cultura de segurança e o geren- ciamento de riscos também se submeteram às consequências desses ajustes e mudanças. Num sentido mais amplo, podemos dizer que o sucesso do ataque terrorista de 11 de setembro, derrubando as torres do World Trade Center em Nova York, pode ser considerado um acidente inesperado, no qual a cultura de segurança mundial mostrou-se frágil por não ter dado a devida atenção à ques- tão da maior dependência entre os atores mundiais, o que teria tornado as insatisfações associadas aos desequilíbrios sociais, econômicos e éticos motivos suficientes para que as facilidades tecnológicas do terceiro milênio fossem usadas numa vingança “sem armas”, pelo menos do ponto de vista do que era conside- rado como armas até então. Para o gerenciamento de riscos e segurança, os traumas decorrentes de 11 de setembro e da crise econômica mundial da década de 2000 tornaram-se influências que impuseram marcas definitivas para os critérios de aceitação de riscos. Os cenários de riscos que pareciam absurdos e impossíveis passaram a ser alvo prioritário de investimentos e desenvolvi- mentos tecnológicos. Essa lição de que não existe impossível, apesar de ser antiga, ainda não tinha tido, para alguns, uma evidência tão objetiva e constrangedora como foi o choque de aeronaves lotadas de passageiros com as torres gêmeas do World Trade Center e com o prédio do Pentágono, quartel general responsável pela segurança da maior potência do planeta. 17Gerenciamento de riscos 2.1.5 Tendência no início do terceiro milênio Toda a história da ciência (e da filosofia, quando esta era a única a oferecer as respostas) continua presente, influenciando nossos tempos, nossa tecnologia e, consequentemente, a se- gurança envolvida na evolução tecnológica da sociedade. Os paradigmas modificam-se, mas deixam marcas, e até mesmo os modismos vão, mas voltam ajustados, modificados ou exata- mente como antes. Tais fatores do passado, mais os fatores do presente e as expectativas sobre o futuro tecnológico criam uma resultante em termos de segurança e posicionam o pêndulo da segurança num ponto de equilíbrio dinâmico que oscila entre a proteção máxima e mínima. Os profissionais envolvidos em produzir soluções para problemas de segurança precisam ter a capacidade de fazer uma boa leitura do momento tecnológico presente, e para isso estar abertos à multiplicidade disciplinar e incluir – além de todas as especialidades disponibilizadas pela engenharia como opção de solução – as novas especialidades que envolvem subjetividade. Estas, embora não tão precisas, são necessárias para melhorar a interação homem × sistema e reduzir as consequências dos inevitáveis erros humanos. Segurança envolve ir até o limite em que a engenharia pode prever como as coisas podem acontecer e se permitir imaginar o que, além disso, pode acontecer. A partir desse limite, o especialista em segurança precisa exercitar em sábia dose sua subjetividade, pois as análises matemáticas, estatísticas e simulações nunca passarão de referências, por melhores que sejam, sendo por isso preciso ter a criatividade aguçada e ao mesmo tempo o equilí- brio para limitá-la, mas sempre, sem exceção, considerando o imponderável, o inesperado, o elemento surpresa presente em toda a natureza e sua interação com o homem e com a vida. Já foi o tempo em que a ciência e a engenharia sobreviviam apenas com a verdade dos números. Realmente, os números não mentem, mas também ajudam a esconder pelo menos algumas partes da verdade. Como exemplo de mudanças originadas fora do contexto puramente técnico e que geram reflexos na abordagem do tema segurança no início do terceiro milênio, podemos destacar as demandas técnicas geradas pelo ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. O fato incomum e antes imaginado apenas como um roteiro cinematográfico gerou uma demanda tecnoló- gica enorme por novos recursos de segurança associados a esses 18 CAPÍTULO 2Cultura de segurança novos cenários, que envolvem o terrorismo e a sabotagem. São controles que vão desde a monitoração da Internet, de softwa- res e proteção contra vírus eletrônicos, até scanners de corpo inteiro (portáteis) em aeroportos, modificações nas cabinas das aeronaves, modificações em projetos de construção civil, urbanísticos, preocupação com a sabotagem industrial, e uma demanda multidisciplinar de recursos e tecnologias a serem inseridos, criados ou recriados para um novo contexto. Dessa forma, hoje a engenharia está sendo convidada a responder também a essa demanda e, possivelmente, em breve poderemos assistir a segurança pública, individual, social e até policial sofrendo uma transmutação para tornarem-se mais um campo da engenharia de segurança. Para os que desenvolvem soluções de segurança, o mais im- portante não é criar denominações e termos para definir os novos paradigmas que se apresentam e se renovam permanentemente num processo contínuo. O importante é percebê-los a cada mo- mento e manter o equilíbrio dinâmico do pêndulo da segurança entre a proteção máxima e a proteção mínima, cabível, viável e possível, a qual permita evitar que a máquina da segurança deixe de funcionar e o acidente aconteça. 2.2 CONCEITO DE CULTURA DE SEGURANÇA É a combinação de compromissos e atitudes, nas organizações e indivíduos, que estabelecem como prioridade absoluta que os assuntos relacionados com a segurança recebam atenção certa no tempo certo. Esse conceito foi adaptado para a aplicação geral, em empreendimentos tecnológicos, a partir do conceito original de cultura de segurança da International Atomic Energy Agency – IAEA Safety Series No 75-INSAG-4, que define: “Cultura de segurança é o conjunto de características e atitudes das organi- zações e indivíduos, as quais estabelecem que uma prioridade absoluta seja dada a segurança nuclear de modo que esta receba a devida atenção pela sua importância.” Muitas vezes, dedicamos toda atenção à segurança o tempo todo e mesmo assim não temos o resultado de uma cultura de segurança consistente que é a atenção certa no tempo certo. Atenção certa no tempo certo é o que pode ser reconhecido como tecnologia (como se faz) de segurança. 19Gerenciamento de riscos Atenção certa significa não apenas seguir normas, estabe- lecer controles, fazer inspeções, fazer o melhor treinamento e utilizar os melhores recursos disponíveis de segurança. Atenção certa significa a atitude na medida exata para evitar o acidente. Tempo certo significa não apenas prontidão, dedicação per- manente, cuidado constante, verificação redundante, aperfei- çoamento contínuo nas melhores práticas de segurança. Tempo certo significa a atitude no momento exato no qual um acidente pode ser evitado. Não adianta adotar permanentemente todos os procedimentos e boas práticas de segurança se, num único momento (tempo cer- to) em que uma ação (atenção certa) capaz de evitar um acidente precisar ser realizada e isso não acontecer. Resumindo: é preciso saber exatamente que ação deve ser adotada, e a hora boa de ser adotada é a que consegue evitar o acidente. 2.3 CONCEITOS BÁSICOS DE FATORES HUMANOS E ERRO HUMANO Dados da Primatech Specialists in Safety, Security and Risk USA (2008) indicam que entre 50% e 90% dos incidentes indus- triais podem ser atribuídos a erros humanos. Na realidade, 100% dos acidentes estão associados a algum tipo de falha humana. Os valores citados devem ser compreendidos como referentes aos acidentes que apresentam como causa raiz, ou seja, a causa mais importante para a ocorrência do evento o erro humano. A análise de falha humana lida com as falhas que as pessoas podem cometer em suas interfaces com os processos de engenharia. Quanto mais cedo a análise de falha humana é realizada, maior sua eficiência em reduzir a probabilidade de erro humano, por isso é importante uma abordagem baseada na análise de falha humana desde a fase de projeto. As falhas humanas e suas consequências são influenciadas diretamente pelo projeto para fatores humanos do empreendi- mento tecnológico como um todo. Consideramos neste trabalho os fatores humanos aqueles que podem aumentar ou diminuir a possibilidade de o homem cometer erros, sendo esses fatores estabelecidos como resultado de um projeto ou empreendimento tecnológico. Ou seja, o erro humano pode ou não acontecer de- pendendo dos fatores humanos envolvidos na forma de interação 20 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança homem × sistema criada a partir do projeto ou empreendimento tecnológico. O projeto para fatores humanos pode ser fruto de um trabalho realizado de forma consciente e com essa intenção explícita por parte dos projetistas. Mas vai também ser estabelecido mesmo quando houver total ignorância em relação a esse tipo de abor- dagem. Isso acontece porque todo empreendimento tecnológico gera em algum momento um tipo de interface homem × sistema, com características próprias, o que no final acaba se constituindo num projeto para fatores humanos, consciente ou não, criado com a devida técnica ou não, diminuindo os riscos de erro humano ou aumentando-os conforme a habilidade e o conhecimento de fato- res humanos. Como numa sequência natural de causas e efeitos, a cultura geral exerce inúmeras influências sobre a organização e esta, por sua vez, cria sua própria cultura organizacional. Dela, uma cultura de segurança se estabelece e influencia o tratamento dado aos fatores humanos, que são aqueles que geram o ambiente de indução ao erro (Figura 2.2). Temos como exemplo de grandes acidentes catastróficos, cujas investigações identificaram causas principais diretamente associadas ao erro humano nos projetos e nos demais processos de engenharia: Explosão de Planta Química em Flixborough UK, 1974; Acidente Nuclear de Three Mile Island USA, 1979; Vazamento Tóxico em Planta Química, Bhopal, 1984; Acidente FIGURA 2.2 Influência sobre o ambiente projetado. 21Gerenciamento de riscos Nuclear de Chernobyl, 1986; Incêndio e Explosão da Plataforma Offshore Piper Alpha, UK, 1988. Uma análise do erro humano e sua influência sobre a ocorrên- cia dos acidentes permite perceber o quão é importante investir em um bom projeto de fatores humanos. Podemos observar pelas evidências que as condições naturais, que também são responsáveis por acidentes catastróficos, são em grande parte imprevisíveis e estão fora do controle absoluto dos projetos de engenharia. Por outro lado, o projeto de engenharia consi- derado mais seguro mesmo assim estará exposto à interação homem × sistema e, consequentemente, à influência das limita- ções humanas, que também são inevitáveis. Ou seja, mais cedo ou mais tarde, em alguma circunstância o ser humano comete erro. Sendo assim, a engenharia precisa enfrentar as limitações impostas pela natureza, e isso já vem historicamente sendo feito através do desenvolvimento tecnológico. Mas a engenharia pre- cisa também atuar sobre os fatores humanos que podem reduzir as consequências do erro humano, uma vez que o erro humano propriamente dito é inevitável, bem como terremotos, furacões, tempestades, nevascas, enchentes. Ou seja, assim como a enge- nharia deve oferecer segurança aos riscos naturais, deve também fazer o mesmo para os riscos decorrentes do erro humano. A Figura 2.3 ilustra o conceito descrito. O ideal é projetar sistemas de segurança que contemplem mecanismos de proteção contra o erro humano a partir de uma análise dos fatores humanos estabelecidos pelo projeto como um todo. O erro humano é um tema complexo e multidisciplinar. De modo simplificado, através de uma abordagem prática contex- tualizada para a engenharia, podemos classificar os tipos de erro humano em: j Falta de habilidade (ex.: pular uma etapa). j Desconhecimento de regras (ex.: acionar o botão errado). j Falta de experiência e vivência (ex.: diagnóstico incorreto de um problema). j Violações (ex.: ações proibidas, diferentes da prescrita).Os princípios básicos de fatores humanos aplicáveis aos pro- jetos de engenharia podem ser identificados como: j Equipamentos e plantas devem servir humanos e precisam ser projetados com o ser humano em mente. 22 CAPÍTULO 2 Cultura de segurança j Os indivíduos possuem capacidades e limitações diferentes, o que resulta em implicações importantes para os projetos de engenharia. j O projeto de plantas, equipamentos e os procedimentos influenciam o ambiente humano, o que indiretamente cria um projeto para fatores humanos associado. j Equipamentos, procedimentos, ambientes e pessoas não existem isoladamente, sendo requerida uma orientação sistêmica que inclua a relação entre esses quatro fatores. Há duas abordagens importantes para a proteção contra o erro humano: uma com enfoque na melhoria do desempenho humano e outra com enfoque na melhoria do projeto de fatores humanos. A segunda abordagem é a que gera a maior demanda dos projetistas de sistemas de engenharia de segurança e pode ser compreendida conceitualmente através dos seguintes itens: j Projetar para pessoas, removendo as oportunidades para erro humano. FIGURA 2.3 Influências sobre o erro humano. 23Gerenciamento de riscos j Prover oportunidades de recuperação facilitando as mudanças e a discussão de opções enquanto o projeto ainda está no papel. j Projetar mecanismos à prova de falhas nos sistemas ou pelo menos associar mecanismos de mitigação de falhas. j Orientação sistêmica desde o projeto, de equipamentos, ambiente, procedimentos e pessoas, já que a incidência de erros pode ser reduzida com maior eficiência quando essa orientação sistêmica ocorre desde o projeto. Modelos conceituais e/ou matemáticos para tentar simular o comportamento humano são desenvolvidos alternando o uso de ferramentas baseadas em métodos determinísticos, lógica fuzzy, dados históricos e avaliações subjetivas. Porém, mesmo com os métodos desenvolvidos, permanece a dificuldade em predizer um erro humano. Trabalhos científicos de levantamento de dados estatísticos indicam como estratégia o desenvolvimento de métodos que organizem a investigação das interferências dos componentes sociais externos, na cultura de segurança que influencia direta- mente a execução das tarefas operacionais. CAPÍTULO 3Fatores Humanos e Engenharia SUMÁRIO DO CAPÍTULO 3.1 Da ergonomia ao conceito de fatores humanos .................... 27 3.2 Analfabetismo tecnológico como ameaça à segurança ........ 30 3.3 Fatores humanos, engenharia e segurança offshore ............. 31 27Gerenciamento de riscos 3.1 DA ERGONOMIA AO CONCEITO DE FATORES HUMANOS A ergonomia pode ser definida como o estudo da interação homem × sistema e dos fatores que afetam essa interação. A palavra sistema, neste contexto, tem como significado máquinas, instalações e empreendimentos tecnológicos que geram interação com o homem. Isso inclui desde os objetos de uso pessoal até equipamentos como aviões, navios, automóveis, instalações in- dustriais complexas, equipamentos de alta tecnologia, veículos espaciais, refinarias, usinas nucleares, plataformas offshore, abrangendo assim praticamente todo o resultado de trabalho tecnológico. Até mesmo uma pesquisa científica que não produza um resultado físico e material que venha a interagir diretamente com as pessoas pode ser considerada, numa visão mais ampla, como objeto de estudo da ergonomia, já que seus resultados podem influenciar a sociedade e consequentemente interagir de alguma forma com os indivíduos. Originalmente a ergonomia assumiu uma característica híbri- da, sendo uma disciplina formada pela integração de fragmentos de vários ramos do conhecimento. Tal característica motivou cientistas de diferentes áreas a trabalharem em conjunto para o al- cance de problemas complexos multidisciplinares. A abordagem inicial adotada pela ergonomia para solução desses problemas pode ser denominada como AHT (Adaptar o Homem ao Traba- lho). Tal abordagem é focada em projetar máquinas e métodos eficientes e depois buscar pessoas que possam se enquadrar nas tarefas geradas por esses métodos e máquinas, ou pelo menos que possam ser treinadas para esse fim. A base da abordagem AHT é que todo o sistema projetado possui características específicas e exige também que as pessoas tenham características específicas para executar suas tarefas, especialmente para alguns tipos de sistemas, como, por exem- plo, para a pilotagem de avião de caça ou para a operação de reator nuclear de potência. Entretanto, a sociedade, bem como a legislação trabalhista cada vez mais enfatizam a igualdade de oportunidades para todos e questionam se realmente é necessário um perfil específico para a execução de uma dada tarefa ou se isso é requerido porque o projetista não explorou os recursos de engenharia suficientemente para permitir que uma maior parcela da população pudesse executar a tarefa adequadamente. 28 CAPÍTULO 3 Fatores Humanos e Engenharia Diante desses questionamentos a ergonomia evoluiu pa- ra uma nova abordagem que pode ser denominada de ATH (Adaptar o Trabalho ao Homem). Nessa forma de abordagem reside a essência do correto entendimento da ergonomia. A abordagem ATH possibilita que os projetos sejam melhorados de forma a propiciar condições mais eficientes de interação homem × sistema, alcançáveis por uma diversidade maior de pessoas. Evidentemente, alguns sistemas específicos possuem carac- terísticas que tornam inviável uma abordagem completamente ATH. É o caso de pilotos militares cuja estatura precisa ser limitada para evitar a amputação de pernas em caso de ejeção em emergência. Porém, excetuando-se esses casos extremos, um projeto com abordagem ATH oferece melhores condições de segurança, melhor eficiência operacional, maior igualdade de oportunidades e responsabilidade social. Muitos pesquisadores contribuíram para que a evolução da ergonomia, dentre os quais destacamos Jastrzebowski que em 1857, na Polônia, elaborou o tratado filosófico de ergonomia. Murrell (1949), no Reino Unido, reinventou o nome ergonomia logo após a Segunda Grande Guerra. Acreditava-se que o nome poderia ser confundido com economia. O termo ergonomia na Europa estava muito associado com as ciências biológicas. Foi então que nos Estados Unidos surgiu o termo fatores humanos com rota científica ancorada em Psicologia. Temas similares aos abordados pela ergonomia faziam parte dos temas também tratados por fatores humanos. Enquanto a ergonomia permanecia com foco maior nas questões biológicas, fatores humanos enfatizava a integração dos aspectos compor- tamentais humanos aos processos que compõem os sistemas. Fatores humanos alcançaram notável sucesso no projeto de grandes sistemas na indústria aeroespacial, em particular através da NASA, agência espacial americana, e do próprio programa espacial americano. A ergonomia europeia permaneceu mais fragmentada e tem tradicionalmente sido mais associada às ciências básicas, limitando-se a um determinado tópico ou área específica de aplicação. Apesar dessas diferenças, não deve haver preocupação com relação ao uso dos dois termos. Nos Estados Unidos, a Human Factors Society (HFS) recentemen- te modificou seu nome para Human Factors and Ergonomics Society HFES (2012) (http://www.hfes.org/web/Default.aspx). Atualmente, o termo fatores humanos é considerado mais amplo, http://www.hfes.org/web/Default.aspx 29Gerenciamento de riscos abrangendo ergonomia, confiabilidade humana como partes. A disciplina fatores humanos deve ser estudada considerando-se dois pontos de vista principais. O primeiro com foco voltado para o ambiente de indução ao erro humano. Sob esse ponto de vista o erro humano é inevitável, e cabe aos engenheiros atuar desde o projeto em todos os fatores que formam o ambiente de indução ao erro na interação homem × sistema. O objetivo é re- duzir ou eliminar as consequências dos erros humanos, os quais, como os fenômenos naturais,são inevitáveis. O segundo ponto de vista para estudo da disciplina de fatores humanos é focado no erro humano propriamente dito. Neste caso é necessária uma base relativamente profunda de psicologia em associação às ferramentas de engenharia. Esse segundo ponto de vista aborda com maior profundidade questões cognitivas, comportamentais e sociais. Em ambos os pontos de vista os componentes de objetividade da engenharia e de subjetividade do comportamento humano precisam ser dosados para que resultados objetivos sejam alcançados. Fatores humanos é um tema multidisciplinar que contempla vários ramos do conhecimento científico e tecnológico, tais co- mo: engenharia, psicologia, biomecânica, antropometria, física, probabilidade e estatística, comunicação, sociologia, além de estar relacionado com o conceito de cultura de segurança. As aplicações de engenharia para a melhoria da interface dos sis- temas homem × sistema abordam os seguintes temas de estudo em fatores humanos: j análise de riscos biomecânico j projeto centrado no usuário j análise de riscos do trabalho estático j análise de riscos do trabalho repetitivo j projeto e avaliação de trabalho manual j demanda de trabalho psicológico: estresse e fadiga j demanda de trabalho (sobrecarga) j estresse ambiental j projeto e análise de influência da temperatura j ambiente visual j audição, som, ruído e vibração j processamento humano de informação e carga de trabalho mental j projeto de painéis e controles operacionais j processamento da informação, memória e linguagem 30 CAPÍTULO 3 Fatores Humanos e Engenharia j erro humano j análise de acidentes e segurança j análise de projetos e interação (homem × sistema) 3.2 ANALFABETISMO TECNOLÓGICO COMO AMEAÇA À SEGURANÇA Um tema também a ser tratado por abordagem de fatores humanos ameaça as sociedades tecnológicas. Trata-se da dispari- dade entre produtos que dependem da tecnologia para funcionar e o ambiente em que se inserem. Essa disparidade ocorre tanto do ponto de vista da disponibilidade da tecnologia suplementar necessária para o bom funcionamento do equipamento, bem como do ponto de vista da capacitação mínima do usuário. É o que acontece, por exemplo, com usuários de telefones celulares em locais com indisponibilidade de rede, ou quando o usuário não conhece as funcionalidades tecnológicas e tem dificuldade para usar o aparelho. Não só esses produtos, mas a maioria dos atuais projetos de engenharia depende de fatores, como dis- ponibilidade e capacitação tecnológica para funcionar, e com segurança. O progresso tecnológico requer o aumento do nível de conhecimento e habilidade dos usuários. Como resultado, alguns usuários têm habilidades e conhecimentos para manter a segurança do trabalho, enquanto outros não entendem por com- pleto a tecnologia usada e, por isso, desconhecem os perigos em potencial associados à tecnologia envolvida na máquina. O nível social e econômico influencia o grau de analfabetismo tecnológico devido ao menor acesso à tecnologia oferecido às camadas sociais mais baixas. Os engenheiros precisam projetar equipamentos, sistemas e ambientes seguros que incorporem cada vez mais tecnologia, mesmo para aqueles usuários que possuem pouco conhecimento tecnológico ou pouco entendimento sobre os recursos tecnoló- gicos disponibilizados pelo projeto. Também devem considerar uma eventual indisponibilidade de tecnologias associadas a esse projeto. A percepção de perigos, os julgamentos e a tomada de ações corretivas para evitar acidentes não podem ser deixadas por conta de usuários despreparados. Isso deve acontecer desde situações relacionadas com instalações industriais complexas até o uso diário de produtos, como um telefone celular. Por exem- plo, um celular pode não ter como funcionar numa determinada 31Gerenciamento de riscos região por falta de cobertura, ou ainda que funcione, mas se suas funções forem de difícil entendimento por parte dos usuários tecnologicamente menos instruídos, o risco existe. Tais eventos também podem acontecer com grandes navios, de capacidades imensas de carga, que se forem operados em portos sem o co- nhecimento tecnológico adequado podem se acidentar durante o carregamento. Levar alta tecnologia para sociedades pouco desenvolvidas tecnologicamente, ou a públicos despreparados, pode sujeitar pessoas a riscos ignorados se o projeto não tiver uma abordagem de segurança específica para essas situações. 3.3 FATORES HUMANOS, ENGENHARIA E SEGURANÇA OFFSHORE As atividades tecnológicas associadas à engenharia, como a segurança offshore, a exploração, produção e refino de pe- tróleo, exigem constante atualização e atenção às novas formas de abordagem técnica e à crescente complexidade de soluções em projetos, instalações e atividades operacionais. Um lapso de sensibilidade e atenção sobre as novas ideias e novas soluções nesse mercado pode significar a perda de competitividade, além de transformar projetos – e projetistas – que estão seguramente na liderança desse processo, em projetos – e projetistas – superados tecnologicamente, sem espaço competitivo no mercado, num curto espaço de tempo. Especialmente, nos últimos 30 anos, as atividades tecnoló- gicas associadas à engenharia vêm adotando uma linha que as aproxima de valores novos, como preservação do meio ambiente, busca da qualidade e excelência, aumento de segurança, respon- sabilidade social, igualdade de oportunidades, visão globalizada de consequências, entre outros. Primeiramente, o despertar pelas questões ambientais que ocorreu, em especial nos anos 1980. Depois a questão da busca da excelência e da qualidade nos anos 1990. Finalmente, no início do novo milênio, as questões sociais se aliam às ambientais, formando uma nova consciência sobre a extensão de cada projeto, instalação e operação de engenharia. Agora, o produto é comprado juntamente com seus efeitos ao meio ambiente, à sociedade e à economia, pagando-se um preço compatível não só com o desempenho e com a qualidade do pro- duto, mas também com os seus efeitos ambientais e sociais. Uma instalação industrial, uma refinaria, uma plataforma offshore 32 CAPÍTULO 3 Fatores Humanos e Engenharia valem não apenas pela sua produtividade e eficiência técnica, mas também têm seu valor avaliado pelos efeitos produzidos na sociedade, na economia e no meio ambiente. Neste cenário de início de milênio, é possível imaginar que cada vez mais será requerida dos engenheiros a realização de pro- jetos, instalações e operações mais harmoniosas com a natureza, com a sociedade e com o equilíbrio econômico. As máquinas, projetos e intervenções humanas feitas pela engenharia parecem estar transcendendo as limitações do modelo lógico-matemático clássico, para adotar um novo modelo mais abrangente, rico e completo, sem abandonar a lógica matemática original, porém contemplando uma visão maior dos efeitos de cada uma das inter- venções promovidas pela engenharia no indivíduo, na sociedade, na economia e no meio ambiente. Os novos produtos precisam interagir com muito mais preci- são e eficiência, porque resolvem problemas em cenários muito mais complexos do que aqueles das últimas décadas do milênio anterior. A comunicação homem × sistema precisa ser muito mais bem desenvolvida, com menos frases incompletas, além da inversão do processo: em vez de os homens tentarem se tornar máquinas, as máquinas, os projetos e as instalações precisam se aproximar mais do homem, do comportamento humano. Isso envolve todas as áreas, mas o crescente aumento de complexidade tecnológica afeta em especial uma área básica: a segurança. Não é mais possível regredir no grau de complexidade da teia de relações requerida para manter o nível tecnológico de nossos tempos. Portanto, os projetos, máquinas e instalações precisam ser operados num grau cada vez maior de complexidade e risco. Embora a automação venha viabilizando sistemas mini- mamente operados com elevado percentualde ações automáticas, mesmo assim, a interação homem × sistema torna-se ainda mais crítica. Se, por um lado, o número de operadores é reduzido pela diminuição de tarefas manuais, por outro lado esses operadores passam a atuar em situações mais críticas, nas quais o nível de complexidade dos problemas supera a capacidade da máquina e o automatismo não mais oferece soluções. A aplicação dessa abordagem em termos de engenharia é geral, serve para todas as atividades e especializações. Mas, par- ticularmente no âmbito da segurança e análise de risco offshore, há um grande espaço a ser preenchido até que os projetos de unidades offshore saiam do conceito AHT (Adaptar o Homem ao Trabalho) para o conceito ATH (Adaptar o Trabalho ao Homem). 33Gerenciamento de riscos Ainda é preciso evoluir os projetos atuais para que possam in- corporar o conceito de projeto externo, que busca aprimorar a interação homem × sistema, por meio de uma ampla visão no que se refere aos efeitos comportamentais do projeto na execução final de tarefas e organização do trabalho, sem prejuízo para o projeto interno, que já se refere à interação homem × sistema com os equipamentos e instalações propriamente ditos. Com a tendência de redução do número de pessoas nas unida- des de exploração e produção offshore, tais plataformas exigirão operadores mais capacitados e preparados para uma carga maior de tarefas. Isso pode gerar uma disparidade entre o novo conceito de plataforma com o operador e o ambiente operacional que ainda pos- sui uma cultura tradicional e diferente. Se o projeto não incorporar conceitos de fatores humanos adequadamente, pode-se estabelecer uma situação de analfabetismo tecnológico. Ilustrativamente, seria como um advogado brasileiro que tivesse de defender uma causa no Japão em japonês. A despeito de toda a capacidade técnica, o desconhecimento dos novos códigos e linguagens cria um ambiente onde as ações poderiam ser confundidas como decorrentes de uma espécie de analfabetismo, gerando consequências desastrosas, principalmente no âmbito da segurança e aumento de riscos. Seguindo o padrão clássico do projeto de sistemas de segu- rança, a maioria dos projetos atuais na área offshore demanda dos engenheiros soluções de segurança voltadas para a prevenção de acidentes baseadas na eliminação ou redução de condições inseguras. Mas a outra face do problema, a proteção contra o ato inseguro, não é tão explorada pelos projetistas, e um dos motivos é a carência de ferramentas que atendam essa demanda no âmbito da engenharia clássica. Para preencher essa lacuna, é necessária a inclusão de conceitos de fatores humanos, capazes de contemplar, além da engenharia clássica, os aspectos subjetivos e multidis- ciplinares indispensáveis para prover soluções de segurança associadas aos atos inseguros e erros humanos. Como incluir tecnologicamente nos projetos de máquinas e instalações prote- ção contra erros humanos? Melhorando a interface homem × sis- tema, melhorando o ambiente, a cultura, o conhecimento técnico, as máquinas. A resposta para a proteção contra erros humanos paradoxalmente inclui melhorar todos os aspectos envolvidos, exceto o próprio homem. O homem comete erros, e os projetos devem conviver e estar preparados para essa realidade, em vez de requerer ou esperar que o homem venha a se descaracterizar de sua natureza e se torne perfeito, à prova de erros. 34 CAPÍTULO 3 Fatores Humanos e Engenharia Ferramentas clássicas, como a matemática e a estatística, devem ser acrescidas dos aspectos não modeláveis matemática e estatisticamente, como são as características comportamentais, culturais e sociais dos usuários da interface homem × sistema. A forma de inclusão dessas características subjetivas requer ferra- mentas capazes de reunir tanto os aspectos modeláveis matemá- tica e estatisticamente como a influência de aspectos subjetivos, através de simulações definidas com base nos procedimentos praticados e nas particularidades de cada cenário acidental pos- tulado. Características antropométricas e biomecânicas, estas de maior afinidade com as ferramentas clássicas, também devem ser consideradas para o projeto de sistemas de segurança mais eficientes e com soluções mais completas e realistas. Ampliando a abordagem tradicional dos projetos para contemplar também fatores humanos em suas soluções de segurança, os projetistas estarão minimizando o impacto do comportamento humano nos acidentes e projetando para o comportamento humano. Projetos que não contemplam conceitos de fatores humanos em suas soluções de segurança possuem um limitador quase inacessível: o próprio homem. Esses projetos deixam para o bom senso dos envolvidos a responsabilidade pela segurança do usuário, clientes, população e sociedade. Quando esse bom senso se soma com um projeto omisso quanto ao tratamento dos fatores humanos, pode ser produzido um certo tipo de falha do sistema, e, consequentemente, um acidente sem justificativa aparente. Normalmente, chama-se a isso de fatalidade. Dentro de uma abordagem de fatores humanos não existe fatalidade, mas sempre há um fato original, sempre há causas, e os projetos devem ser concebidos com essa consciência. O desejo de ser seguro é comum a todos e pode ser apurado pelo chamado bom senso. Mas as ações requeridas para o alcance da segurança não são comuns, dependem da experiência anterior, da habilidade, do ambiente e de todos os fatores humanos envolvidos com a intervenção tecnológica do homem no ambiente e na sociedade em que se insere. No caso, por exemplo, de projetos de sistemas de segurança offshore, dentre as inúmeras situações de emergência, a mais extrema é a de escape e abandono da unidade. Nesse caso, a decisão pelo abandono é tomada depois de constatado que o grau de degradação da segurança da instalação chegou a um es- tágio tal cujo risco em permanecer já não mais se justifica. São projetadas rotas de fugas e definidas estratégias prévias para 35Gerenciamento de riscos fazer frente a essa emergência, porém cada operação de escape e abandono tem suas características muito particulares, exigindo decisões também rápidas e muitas vezes contraditórias com as estratégias previamente definidas. Um dos mais famosos exem- plos de situação de evacuação e abandono malsucedidos foi a do clássico acidente da plataforma fixa de Piper Alpha, ocorrido no Mar do Norte em 1988, quando 167 pessoas morreram seguindo corretamente os procedimentos e mantendo-se no casario da plataforma, aguardando um resgate que jamais chegou. Os sobre- viventes, 62 tripulantes, em sua maioria tomaram a decisão de se lançar diretamente ao mar, contrariando todos os procedimentos e estratégias previamente definidos para esse tipo de emergência. Os procedimentos, estratégias, rotas de fuga, cultura opera- cional e sistemas de segurança da Piper Alpha foram projetados e definidos sem uma análise completa, incluindo fatores humanos. Foram projetadas apenas com as ferramentas de engenharia clássica, obedecendo a regras de dimensões de rotas de fuga, estimativa de tempo. Os fatores humanos associados à emergên- cia real foram ignorados ou subestimados em sua importância. Contemplar fatores humanos nos projetos de segurança offshore representa primeiramente evoluir da engenharia clássica para a engenharia resiliente, com regulações funcionais baseadas em fa- tores humanos e capazes de fazer, durante uma emergência, que a instalação retorne a sua condição inicial, preservando os sistemas e as estratégias de projeto. Mais que isso, um degrau acima seria evoluir ainda mais, da engenharia resiliente para a engenharia robusta, na qual os sistemas homem × sistema robustos, com regulações estruturais baseadas em fatores humanos modificam o ambiente externo e a estrutura interna do projeto em resposta a uma perturbação. Sistemas robustos não se limitam a garantir as funções originais de projeto. Plataformas offshore projetadasem engenharia robusta po- dem, diante de uma emergência, eliminar funções de projeto e criar funções inéditas para solucionar perturbações, como se o projeto pudesse ser corrigido e transformado durante a emer- gência com a fluidez de uma máquina de aparência quase viva, propiciada pela presença e intensa interação humana com a mes- ma. Para que um empreendimento alcance esse patamar de ro- bustez, um profundo conhecimento de fatores humanos deve ser considerado desde o projeto até a operação do empreendimento. Para o desenvolvimento de sistemas homem × sistema des- se nível, é necessário um estudo de projeto mais amplo com 36 CAPÍTULO 3 Fatores Humanos e Engenharia ferramentas que possibilitem simulações mais ricas e diversifica- das dos cenários acidentais possíveis. Um erro é tentar modelar matematicamente – e com ferramentas clássicas – aspectos sub- jetivos e de fatores humanos que não se enquadram na engenharia clássica. Outro erro é ignorar os fatores humanos e considerar apenas os resultados obtidos com as ferramentas da engenharia clássica, criando uma disparidade entre projeto e realidade, o que pode custar vidas preciosas. Projetos de engenharia robusta que contemplem conceitos de fatores humanos propiciam ambiente externo × sistema; homem × sistema bem conectados. No terreno onde a engenharia clássica e os modelos matemá- ticos não podem prover resultados confiáveis, é possível estender os resultados obtidos, considerando os conhecimentos multidis- ciplinares sobre fatores humanos. Não fazê-lo é empobrecer a análise técnica e gerar resultados tão incompletos em relação à realidade que podem levar a soluções, regras e estratégias grotescas, como as que aconteceram em Piper Alpha. Lá, 167 pessoas morreram seguindo uma estratégia e procedimentos carentes de conhecimentos de fatores humanos e projetados em disparidade com a situação real da emergência de que deveriam fazer frente. Apenas a engenharia clássica é insuficiente para o projeto de sistemas de segurança complexos, uma vez que os acidentes envolvem sempre aspectos de imprevisibilidade, aspectos subjetivos, forças naturais, e, principalmente, fatores humanos desde o projeto, passando pela fabricação/construção até a operação. Com a evolução tecnológica e o aumento da qualidade técnica, as causas de acidentes relacionadas com a tecnologia vêm de- crescendo, e as relacionadas com a organização e cultura vêm aumentando, conforme dados levantados pela Primatech (2008). Curiosamente, as causas relacionadas ao erro humano têm di- minuído em quantidade, mas a sua influência tornou-se muito maior porque quando acontecem têm maior possibilidade de gerar situações catastróficas, já que a intervenção humana nos proces- sos operacionais está se dando em níveis cada vez mais elevados de complexidade de consequências. Dessa forma, a experiência profissional passou a ser muito mais importante e o seu valor tem sido resgatado nos últimos anos. Para fazer um bom projeto de evacuação e abandono de unidade offshore, por exemplo, não basta uma boa simulação da movimentação de pessoas no layout da unidade, nem apenas cálculos precisos da velocidade das pes- soas pelas diferentes rotas de fuga. É fundamental a experiência 37Gerenciamento de riscos operacional em situações de emergência desse porte, para incluir nas análises de projeto muito mais do que resultados numéricos e estatísticos, mas as possíveis reações comportamentais, psico- lógicas dentro de um contexto cultural, social e ambiental em que a unidade se insere. Para isso, é necessária a experiência operacional, neste caso insubstituível. Este livro incluiu em seu estudo de caso dados e informações acumulados por décadas de experiência operacional em harmonia com as ferramentas es- tatísticas e computacionais, com o objetivo de se alcançarem simulações o mais realistas possíveis. Do ponto de vista técnico e científico, o surgimento de possibilidade de simular, ainda que de forma limitada, a in- teração social e emocional que pode ocorrer em um ambiente homem × sistema real em estado de emergência constitui uma verdadeira ruptura tecnológica. As reações e consequências as- sociadas aos comportamentos indissociáveis de toda atividade humana possibilitam, ainda, o aprimoramento do estudo dessa interação entre homem e sistema. CAPÍTULO 4Estratégias para gerenciamento de riscos SUMÁRIO DO CAPÍTULO 4.1 Segurança e limite da engenharia ...................................... 41 4.2 Abordagem atualizada de segurança e gerenciamento de riscos ........................................................................... 43 4.3 Cultura de segurança em substituição ao legalismo e heroísmo ........................................................................ 47 4.4 Segurança, meio ambiente e multidisciplinaridade .............. 53 4.5 Princípios de fatores humanos para gerenciamento de riscos e segurança ........................................................ 55 4.5.1 Princípio 1: Centralização de objetivos nas pessoas .......................................................56 4.5.2 Princípio 2: Adaptação do projeto ao homem ........57 4.5.3 Princípio 3: Controle da interação homem × sistema ..............................................57 4.5.4 Princípio 4: Proteção contra o erro humano ..........58 4.5.5 Principio 5: Superioridade da decisão humana .....58 4.5.6 Princípio 6: Não mecanização do trabalho humano ............................................................59 4.5.7 Princípio 7: Inclusão de projeto antropométrico e psicológico .....................................................59 4.6 Princípios de cultura de segurança para gerenciamento de riscos e segurança ........................................................ 60 4.6.1 Princípio 1: Multidisciplinaridade ........................60 4.6.2 Princípio 2: Subjetividade...................................60 4.6.3 Princípio 3: Priorização ......................................61 40 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... 4.6.4 Princípio 4: Atenção certa ..................................61 4.6.5 Princípio 5: Tempo certo .....................................61 4.6.6 Princípio 6: Inclusão de projeto de fatores humanos ...........................................................61 4.6.7 Princípio 7: Inteligência técnica ..........................62 4.7 Princípios de eficiência para gerenciamento de riscos e segurança ........................................................ 62 4.7.1 Princípio 1: Descarte de riscos desnecessários ......63 4.7.2 Princípio 2: Respeito às leis naturais ...................63 4.7.3 Princípio 3: Simplicidade ...................................64 4.7.4 Princípio 4: Concisão de regras ...........................64 4.7.5 Princípio 5: Combate ao legalismo .......................64 4.7.6 Princípio 6: Combate ao heroísmo .......................65 4.7.7 Princípio 7: Humildade ......................................66 4.8 Lições aprendidas com eventos acidentais ......................... 67 4.8.1 Titanic e Costa Concordia ....................................67 4.8.2 Acidente nuclear de Fukushima...........................74 4.8.3 Acidente no voo 447 Rio de Janeiro-Paris ............79 4.8.4 Queda de meteorito na Rússia .............................84 4.8.5 Incêndio na boate Kiss em Santa Maria, RS .........88 4.8.6 Furacão Sandy, Nova York, USA ..........................98 4.8.7 Desmoronamentos por tempestades de verão, Brasil ................................................101 41Gerenciamento de riscos O termo segurança tem sido usado pela engenharia por décadas, mas há no seu uso alguma imprecisão. Se fosse o nome de um produto, vender segurança não seria uma atividade honesta, pois segurança absoluta é impossível de ser obtida. Também há uma dificuldade na língua portuguesa, que utiliza o mesmo termo para questões relacionadas com os acidentes em geral, como também para questões de segurançapública e patrimonial. Em inglês, são usadas palavras diferentes: safety, para acidentes; e security para segurança pública e patrimonial. Talvez, antes de o problema de utilização dupla do termo ser completamente sanado, isso se torne desnecessário. Depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, aumentou a tendência de incluir no escopo da tradicional enge- nharia de segurança assuntos relacionados à segurança pública, física e patrimonial. Isso tem se intensificado porque cada vez mais a engenharia é demandada para prover soluções nessas áreas; sendo a engenharia de segurança reconhecidamente um ramo multidis- ciplinar, tende a aceitar cada vez mais essas demandas, bem como as relacionadas com a proteção ao meio ambiente. Ao mesmo tempo em que os profissionais de segurança não podem excluir esses novos temas de suas demandas, também não há ainda uma delimitação de fronteiras entre a atuação dos engenheiros e dos demais profissionais necessários para o alcance do resultado de aplicação multidisciplinar requerido, a fim de robustecer os sistemas de segurança para reduzir as consequências dos acidentes. Também é preciso atentar para as correções geradas pelas déca- das de evolução na gestão tecnológica, que inseriram novos valores a serem protegidos pela engenharia. Não seria possível prover soluções compatíveis com os nossos tempos, se a engenharia de segurança não aceitasse novos desafios tecnológicos e principalmente não en- tendesse a necessidade da multidisciplinaridade necessária para isso. Nos itens a seguir, apresentamos o posicionamento estra- tégico da segurança e gerenciamento de riscos em relação às suas demandas cada vez mais multidisciplinares, complexas, competitivas e, principalmente, em contextos nos quais a tec- nologia exige cada vez mais a operação no limite da máquina. 4.1 SEGURANÇA E LIMITE DA ENGENHARIA Todas as disciplinas de engenharia trabalham com questões de se- gurança. Não se pode atribuir a uma parte específica do grupo de enge- nheiros, técnicos e gestores a segurança de um empreendimento tecno- lógico. Um organograma técnico desse tipo levaria a uma distribuição 42 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... de responsabilidades desigual, como se alguns engenheiros tivessem mais responsabilidade do que outros pela segurança do empreen- dimento. Isso descaracteriza o conceito de cultura de segurança, visivelmente dedicado a valorizar o comprometimento de todos para prover a atitude certa, no tempo certo de modo a evitar o acidente. A aparente centralização da responsabilidade da segurança em um grupo ou especialidade de engenharia pode também propi- ciar um ambiente favorável para uma série de atitudes negativas e vícios por parte dos teoricamente responsáveis pela segurança. Os procedimentos operacionais, as interações homem × sistema, a multiplicidade e complexidade de sistemas fazem com que cada profissional ou gestor envolvido com o empreendimento seja o maior responsável pela segurança dos sistemas com os quais interage. Ou seja, ninguém melhor do que o especialista de cada sistema para prover ações de segurança e evitar acidentes. Isso não significa que um determinado grupo não possa ser dedicado especificamente a projetos e normas de sistemas de segurança (dedicados exclusivamente a prover contramedidas em caso de acidente). Esses sistemas de emergência, por exem- plo, de água de combate a incêndio, como qualquer outro sis- tema, necessitam de engenheiros para o seu projeto, instalação e operação. Mas é importantíssimo diferenciar a capacidade de projetar, construir e operar esse sistema, da responsabilidade com a segurança do empreendimento tecnológico, que é de todos os envolvidos ao longo de sua vida. Ao se concentrar em uma parte específica da organização, a responsabilidade pela segurança do empreendimento como um todo, é criada a oportunidade para que um determinado grupo adote a postura viciada de controle e superioridade – como dono da última palavra – ou ainda uma abordagem na forma de auditoria julgadora. Isso pode acarretar nos demais grupos formadores do empreendimento tecnológico uma atitude defensiva, menos com- prometida e menos transparente, o que não interessa nem um pouco para a formação de uma boa cultura de segurança. A auditoria deve existir, a fiscalização deve existir, mas a responsabilidade pelo nível de segurança é de todos os envolvidos ao longo de toda a vida do empreendimento tecnológico, inclusive gestores e administradores. Há casos como o da plataforma Piper Alpha, destruída por um incêndio no Mar do Norte (1988), com 167 vítimas fatais, em que o processo que desencadeou o seu incêndio catastrófico teve início na localização de um simples formulário no escaninho errado, o que demonstra as consequências de falhas em todos os níveis. 43Gerenciamento de riscos Ao contrário de concentrar a responsabilidade pela cobrança e auditoria dos assuntos relacionados com a segurança, melhor é ado- tar o conceito de cultura de segurança como valor da organização, porque reduz o indispensável questionamento referente ao cum- primento de normas, uma vez que os mecanismos não são apenas burocráticos, mas fazem parte da cultura da empresa. O processo viciado de cobrança, muitas vezes sem autoridade operacional, leva a uma mentalidade na qual fazer segurança passa a ser promover a exibição das evidências de eventuais descumprimentos, através de imensas listas de não conformidades, sempre por parte daqueles que se consideram guardiões da segurança. Tais profissionais caem na tentação de acreditar que a partir de uma posição cômoda podem dizer o que seja certo e errado, quando apenas geram um ambiente de cobrança no lugar do ambiente de comprometimento e res- ponsabilidade, proposto pelo conceito de cultura de segurança. É importante não confundir o vício da falsa concentração de res- ponsabilidade, com a tarefa da auditoria construtiva e produtiva que serve de suporte aos verdadeiros responsáveis pela segurança, comprometidos e envolvidos com o empreendimento tecnológico, e que tem como objetivo detectar possíveis vulnerabilidades, as- sim como as oportunidades de melhorias, não como sendo uma finalidade da segurança, mas sim como meio de alcançá-la. 4.2 ABORDAGEM ATUALIZADA DE SEGURANÇA E GERENCIAMENTO DE RISCOS A engenharia e a tecnologia incluídas nos projetos permitem a superação contínua de limites de desenvolvimento, exigindo também uma maior capacidade de gerenciamento dos riscos associados. Por essa razão, talvez seja mais apropriado usar o termo gerenciamento de riscos do que segurança, uma vez que segurança absoluta é um produto intangível, inalcançável em termos materiais, pois significaria risco nulo, o que é impossível. O que os engenheiros fazem na realidade é analisar e, princi- palmente, gerenciar os riscos associados aos empreendimentos tecnológicos, apresentando soluções para que eles se mantenham em níveis aceitáveis. Gerenciar riscos significa fornecer soluções técnicas de engenharia, considerando o envolvimento do im- previsível, do imponderável e do subjetivo na ocorrência dos acidentes, seja por influência de forças naturais, falhas de projeto, falhas de equipamento, falhas de operação, falhas de gestão ou qualquer tipo de erro humano. 44 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... Todas as disciplinas de engenharia se empenham em desen- volver as condições técnicas que viabilizem o empreendimento tecnológico. O limite surge quando os riscos tornam-se superio- res ao aceitável. A percepção de risco e a percepção do que é aceitável não são absolutamente exatas, apesar dos esforços das análises quantitativas de risco em prover números desse tipo para tomada de decisão. As análises quantitativas de risco ainda são muito mais úteis como referência do que como valores absolutos para tomada de decisão. Análises, simulações, levantamentos que envolvem a quantificação de riscos sempre adquirem maior valor e reciprocidadecom a realidade dos empreendimentos tecnoló- gicos quando ajustadas por uma análise qualitativa de riscos e pela experiência operacional, esta a mais importante de todas. As simulações computacionais, as técnicas de análise de risco e análises quantitativas através de ferramentas estatísticas tentam reproduzir de forma teórica cenários para os quais a falta de experiência operacional ainda não reuniu dados históricos confiáveis. Nesse particular, quando não há dados históri- cos que possam indicar uma percepção de risco aceitável, as simulações e os cálculos teóricos são mais que úteis, na realidade são as únicas ferramentas para orientar o nível de risco que o empreendimento tecnológico pode estar levando a organização a assumir. Por outro lado, o uso da experiência operacional as- sociado a simulações e análises teóricas torna-se a mais poderosa das ferramentas de gerenciamento de risco. Essa combinação de experiência, simulações e teoria, quando equilibrados com uma boa cultura de segurança, possibilitam transformar alguns anos de experiência operacional em décadas. Com base na experiência operacional é possível a boa escolha e definição de cenários realistas, o descarte de resultados teoricamente perfeitos, mas operacionalmente irreais, e assim, produzir estudos e análises de segurança bastante úteis para a tomada de decisão, baseada em simulações computacionais e experiência operacional. Pior do que não utilizar ferramentas de simulação computacional e aná- lises teóricas é utilizá-las sem a devida experiência operacional. Curiosamente, há casos reais de análises teóricas com resulta- dos que nos levam a reflexões. Uma plataforma de exploração e produção de petróleo com projeto dos anos 1970 e que entrou em operação nos anos 1980 iniciou um processo de revitalização por volta de 2007. Nessa ocasião, foram requeridos os estudos e as aná- lises de segurança por meio das mais sofisticadas ferramentas de simulação disponíveis do mercado. Como na época da construção 45Gerenciamento de riscos da plataforma (anos 1970) essas ferramentas não existiam, as análises seriam realizadas pela primeira vez, mais de 20 anos após a entrada em operação, que até aquele momento sempre foi considerada segura. Surpreendentemente, os técnicos, ao inicia- rem as primeiras simulações, verificaram que não seria viável uma análise tecnicamente aceitável. Pelos cálculos teóricos e simulações, a plataforma não conseguiria passar do primeiro ano sem um acidente catastrófico que ocasionasse a perda da unidade. Isso significa que a unidade operou por 20 vezes mais tempo do que as análises quantitativas de risco calcularam como tempo máximo até o acidente fatal. Por outro lado, também existem casos reais de empreendimentos que foram aprovados pelos es- tudos de segurança para uma vida útil segura de até 40 anos, e que simplesmente sofreram um acidente catastrófico real e definitivo, encerrando suas atividades com menos de cinco anos. Esses casos não significam que devamos desacreditar das técnicas de análise de riscos empregadas, mas sim que devemos utilizá-las como suporte à experiência operacional acumulada, que é a parte mais importante. Nenhum estudo ou análise de riscos, quantitativos ou qualitativos, substitui os fatos registrados através da coleta de dados históricos viabilizada pela experiência operacional. Os estudos e as análises de riscos devem complementar a experiên- cia operacional e onde, nessa experiência operacional, houver lacunas em relação a um novo projeto ou intervenção. Teria o empreendimento bem-sucedido dos anos 1970 chegado a 20 anos de operação por mera sorte? E o empreendimento tec- nológico aprovado para 40 anos que não passou dos cinco teria se acidentado por azar? Os números são meras referências quando o assunto é análise de risco. Mesmo o melhor projeto, com os me- lhores recursos de segurança, dependerá da cultura de segurança da organização para não se acidentar. E, mesmo empreendimentos limitados pelas influências da natureza e pela tecnologia disponível podem, sim, ter uma história operacional bem-sucedida se houver um gerenciamento de riscos compatível e, principalmente, uma cul- tura de segurança consciente desses elevadíssimos riscos. O sucesso da engenharia no gerenciamento de riscos requer uma avaliação não apenas baseada em números e simulações, mas principalmente em experiência operacional e cultura de segurança. O objetivo central do gerenciamento de riscos é o de não aceitar riscos desnecessários, e apenas aceitar aqueles riscos que sejam absolutamente necessários para a organização e compatíveis com as pessoas, com a sociedade e o meio ambiente em que se insere. Entenda-se por “absolutamente 46 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... necessários” aqueles riscos que, independentemente de seu valor, por alguma razão subjetiva ou objetiva precisam ser aceitos e en- frentados para a sobrevivência das partes envolvidas, sejam estas organizações, indivíduos ou sociedades. O que realmente importa na visão atualizada da análise e geren- ciamento de riscos não é o valor quantitativo do risco traduzido em um número, mas a certeza de que aceitar esse risco é absolutamente necessário. Se o risco é absolutamente necessário para a organi- zação, sociedade ou mesmo para um indivíduo, mesmo sendo um alto risco, este precisará ser gerenciado uma vez que a organização, sociedade ou indivíduo precisa se submeter a ele, em alguns casos para sobreviver. Para exemplificar, as chances de sucesso ao pousar um helicóptero em uma instalação offshore sinistrada são muito pequenas, porém se esta é a única opção para salvar a vida de centenas de pessoas, esse risco passa a ser considerado, estudado e talvez até se opte por gerenciá-lo na tentativa de realizar o pouso, pois em um cenário extremo como o descrito, aceitar esse elevado risco pode se tornar a única chance de sobrevivência para muitos. Diante disso, a decisão sobre aceitar ou não um risco não pode deixar de considerar os aspectos subjetivos multidisciplinares (mais ricos) em complementação aos valores quantitativos de engenharia clássica (limitados), os quais devem ser considerados em posição de importância menor na decisão final. A decisão so- bre aceitar ou não um risco deve ser baseada em dois parâmetros: j O risco é absolutamente necessário? j E caso a resposta seja positiva, investe-se em análises e avaliações qualitativas e quantitativas desse risco, porém sempre considerando que seja qual for a metodologia, ferramenta, modelo matemático ou computacional adotado nestas análises e avaliações, se isso resultar em um número, ele será apenas uma referência, jamais será definitivo e sempre estará sujeito a questionamentos dependendo da abordagem do tema. Por isso, o valor quantitativo do risco tem sempre importância secundária em relação à necessidade de aceitá-lo. E gerenciar riscos é aceitá-los o mínimo possível, independentemente de seus valores. Se, para a sobrevivência de uma pessoa ou organização, é necessário aceitar um determinado risco, então as pessoas e organizações terão de tentar gerenciá-lo independentemente de seu valor quantificado por uma questão de sobrevivência. Gerenciar riscos torna-se primeiramente aceitar o mínimo possível de riscos que permita a sobrevivência e a competitividade, 47Gerenciamento de riscos independente de seus valores, descartando-se riscos mesmo que baixos quando desnecessários, e em alguns casos, aceitando riscos elevados “absolutamente necessários”. Depois desse descarte, sim, cabe o refinamento desse gerenciamento e a correção de excessos a partir das análises quantitativas e qualitativas de riscos. 4.3 CULTURA DE SEGURANÇA EM SUBSTITUIÇÃO AO LEGALISMO E HEROÍSMO Há inúmeros vícios que comprometem o comportamento de indivíduos, grupos e sociedades em relação ao gerenciamento de risco e segurança. Poderíamos enumerar uma grande quanti- dade de vícios e comentar um a umquanto aos danos que podem trazer para a segurança dos empreendimentos tecnológicos. Porém, cada indivíduo, grupo ou sociedade pode gerar vícios exclusivos, desenvolvidos especificamente no ambiente em que se inserem. Isso torna impossível prever todos os vícios e com- portamentos nocivos à segurança e impossível gerar mecanismos de prevenção para cada um. O que fazer para reduzir ou eliminar tais vícios que tendem a surgir continuamente durante toda a vida operacional dos empreendimentos tecnológicos? A melhor solução para o problema é o desenvolvimento de uma cultura de segurança forte em vez de procurar identificar vícios, erros e comportamentos nas pessoas e grupos a fim de comba- tê-los. Para simplificar, existem dois tipos de vícios principais que concentram a origem da maioria dos demais vícios da segurança: o heroísmo e o legalismo. O heroísmo representa os vícios originais dos primeiros em- preendimentos tecnológicos. Representa também o menor nível de profissionalismo e pode ser infelizmente utilizado como recurso manipulador de grupos, para que eles atuem acima da técnica e do profissionalismo, movidos por sentimentos, motiva- ções, emoções que, embora possam ser ou parecer nobres, não se comparam com a habilidade técnica, o treinamento e a capa- citação para o gerenciamento de riscos em situações de crise. Um exemplo polêmico que vamos citar é o caso do incêndio na base naval da Marinha Brasileira na Antártida. Como sabemos, faz parte da cultura das instituições militares o elevado grau de comprometimento e sacrifício em nome dos interesses da pátria, o que muito dignifica e orgulha o país. Porém, esse elemento fun- damental da vida militar não é adequado em termos de cultura de segurança e engenharia de gerenciamento de riscos. Observemos 48 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... que, em termos de engenharia, o gerenciamento de uma crise como o incêndio devastador em unidade tão limitada pelas con- dições da região deve ser conduzido medindo sempre os riscos a serem assumidos no combate propriamente dito. A primeira pergunta que deveria ser feita é: o que será ganho com a atitude de adentrar na instalação em chamas para fazer o combate, com limitações de equipamentos e suporte técnico? A segunda per- gunta que deveria ser feita é: o que poderá ser perdido? No caso desse lamentável acidente, o máximo que poderia ser ganho era a redução das perdas de documentos, dados e materiais científicos resultantes das pesquisas brasileiras, mas não havia vidas em risco, e a própria instalação já estava altamente danificada a essa altura. Por outro lado, havia muito a perder: duas vidas. Infelizmente, as perdas se somaram, ou seja, o material científico foi perdido e as duas vidas também. O saldo da operação foi a atitude louvável de heroísmo, cabível por se tratarem de militares altamente comprometidos com o país, capazes de assumirem riscos tão elevados. Porém, em termos técnicos de engenharia de gerenciamento de riscos, esse heroísmo é nocivo. O objetivo técnico deveria ter sido minimizar as perdas humanas e se isso fosse tecnicamente seguido, teríamos um incêndio gravíssimo, com perda total da instalação e do material científico, mas sem perdas humanas. Esse resultado, em termos de gerenciamento de riscos e segurança, tornar-se-ia o grande motivo de orgulho. O heroísmo ainda está muito presente em organizações, gru- pos, indivíduos e sociedade e é um vício que pode prejudicar a eficiência do gerenciamento de riscos e segurança. Infelizmente, algumas pessoas e até mesmo organizações abusam desse nobre comportamento e extraem de colaboradores atitudes desbalan- ceadas entre risco e objetivo. Por tudo isso, o heroísmo deve ser combatido e considerado como um vício de gerenciamento de riscos e segurança, para que durante a crise, apenas a técnica, capacitação e experiência profissional orientem as decisões e ações no sentido de não se assumir nenhum risco desnecessário e salvar o maior número possível de vidas humanas. Com relação ao legalismo, trata-se de um vício presente no gerenciamento de riscos e segurança, no qual os assuntos técnicos de engenharia e gestão tecnológica, através do mau uso de nor- mas, regras e procedimentos, passa a ser gerido por similaridades com os ritos legais. Nas sociedades modernas e democráticas, as leis, para serem legítimas, precisam ser criadas e aprovadas pelo poder legislativo 49Gerenciamento de riscos e só após o cumprimento democrático dessas exigências, o ci- dadão passa a ser sujeito às consequências se transgredi-las. Por similaridade, e, principalmente, por influência dos paradigmas mecanicistas e orgânicos da gestão tecnológica dos anos 1970 e 1980, alguns técnicos utilizam normas internacionais, procedi- mentos e regras como se fossem textos legais. São estabelecidos mecanismos para conferir poder coercitivo aos procedimentos e normas exigindo-se o cumprimento dos mesmos com uma falsa força de lei. São criados também grupos para julgamento desse cumprimento e ritos que se tornam verdadeiros processos com direito a condenação e absolvição. O que muitas vezes é esquecido pelos envolvidos é que cada país limita os textos com força de lei aos seus códigos, e mesmo em questões de acidentes catastróficos com implicações econômi- cas e sociais, os textos de normas e procedimentos técnicos jamais serão tratados oficialmente como leis, sendo, no máximo, utiliza- dos por peritos, réus, advogados e promotores como embasamento para teses de acusação e defesa, que receberão o tratamento da justiça segundo os códigos legais do país e não pelas normas técnicas. Não se pode justificar a culpa ou o dolo por um acidente com base específica no não cumprimento de normas, mesmo que reconhecidas internacionalmente. A culpa ou dolo será atribuído com base na legislação do país e isso faz grande diferença. É possível inclusive, em algum caso de não conformidade, alegar que as normas estejam erradas, ao contrário do que acontece em relação às leis do país que, em vigor, não podem ser questionadas. Esse vício é extremamente nocivo à segurança e ao geren- ciamento de risco e é desmotivador do desenvolvimento tecno- lógico. As normas e procedimentos técnicos de segurança não devem ser vistos como textos legais. Há uma grosseira confusão ao substituir o respeito, o comprometimento e a conformidade às normas e aos procedimentos, pela ideia de que as normas técnicas de segurança são como leis. Por falta de preparo técnico, ou pobreza de referências, faz-se essa analogia equivocada de tratamento entre os códigos legais e as normas internacionais de segurança. Isso poderia ser compreensível e aceitável para leigos, uma vez que as regras e regulamentos em geral estão presentes no dia a dia quase sempre respaldadas em mecanis- mos legais e coercitivos para seu cumprimento. Mas o profissional de gerenciamento de risco e segurança deveria ter o conhecimento mínimo de que as normas e os procedimentos reúnem o que há de melhor na técnica para se tentar evitar um acidente, mas isso não 50 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... os isenta de erros e falhas e, em alguns casos, a conformidade aos mesmos não é suficiente e eficaz para evitar uma catástrofe. É preciso muito mais do que obedecer a regras e normas de segurança para evitar acidentes. Um profissional de gerenciamento de risco e segurança eticamente não deveria usar regras e procedi- mentos como escudo para justificar casos de acidentes que poderiam ser evitados com raciocínio, boa técnica, identificação e reconheci- mento de falhas nas normas. É preciso entender em profundidade os fenômenos envolvidos com a atividade tecnológica e dar tratamento de engenharia às regras e aos procedimentos usando-os como refe- rências diante dos fenômenos e imprevisibilidades que acontecem na operação real de um empreendimento tecnológico. Obedecê-los sempre que estiverem corretos, descumpri-los sempre que isso evitar o acidente.Esse descumprimento é obrigatório para os casos em que o profissional tem condições de identificar a falha no procedimento. Se isso for apurado em termos legais, o fato de ter seguido a norma com erro mesmo com informações suficientes para concluir que isso levaria ao acidente poderá gerar culpabilidade legal para o profis- sional, uma vez que é suposto que o mesmo possua a habilidade e a perícia suficientes para evitar o acidente nessas circunstâncias, argumento que pode ser utilizado em juízo. Se o procedimento estiver correto e for descumprido, o operador responsável não estará cumprindo a sua função como esperado. Se o procedimento estiver errado e mesmo assim for cumprido, idem. Nesse contexto, o homem passa a ser o centro da diferença entre acontecer ou não um acidente e passa a ter muito mais valor no contexto geral da segurança dos empreendimentos tecnológicos. O desenvolvimento tecnológico dos sistemas de segurança é prejudicado quando o vício do legalismo está presente. Se por lega- lismo é dada uma interpretação de lei às normas de segurança, e se há a falsa obrigação legal de segui-las sem questionamento, as novas soluções de problemas de engenharia de segurança acabam não sendo alvo de pesquisa e desenvolvimento justamente por ainda não terem sido contempladas pelas normas, o que intimida as iniciativas de desenvolvimento tecnológico de soluções de segurança. Afinal, por que investir em pesquisa e desenvolvimento de novos sistemas de segurança se eles não podem ser utilizados na prática por não estarem previstos nas normas e procedimentos existentes? Essa questão inibe pesquisa e desenvolvimento na área de segurança. Mas o cenário está mudando, e já há uma tendência em corrigir os danos do vício do legalismo por parte das próprias entidades nor- mativas. A IMO (International Maritime Organization) tem oferecido o recurso de reconhecimento da segurança marítima de projetos com 51Gerenciamento de riscos base em demonstração dessa segurança através de análises de riscos, quando esses projetos envolvem desenvolvimentos tecnológicos que possam não permitir a conformidade plena com as normas IMO de segurança aplicáveis. Sem dúvida, um grande passo é o reco- nhecimento da necessidade urgente de combate ao vício do legalismo na abordagem de questões de gerenciamento de risco e segurança. Muito mais do que obedecer a normas, os profissionais de gerenciamento de risco e segurança devem questioná-las a cada projeto, a cada dia e, principalmente, a cada ato operacional. Reconhecê-las como a maior fonte de referência para reunir o co- nhecimento que nos trouxe até o atual ponto de desenvolvimento tecnológico. Nunca usá-las como escudo para justificar omissões, quando for necessário identificar e apontar suas próprias falhas como meio de evitar acidentes. A presença do vício do legalismo denota um baixo nível de cultu- ra de segurança e leva a consequências danosas para as organizações, sociedades e para os indivíduos. A cultura de segurança deve ser enfatizada em ambientes contaminados pelo vício do legalismo, de modo a substituí-lo o mais rapidamente possível através dos con- ceitos, compromissos e atitudes, que estabelecem como prioridade absoluta que os assuntos relacionados com a segurança recebam atenção certa, no tempo certo, independentemente da necessidade de isso estar ou não previsto em regra. O vício do legalismo nas ques- tões de segurança pode levar a danos organizacionais e sociais que extrapolam o âmbito da segurança propriamente dita e contaminam a gestão da organização e o comportamento social. Transformando normas técnicas em falsas leis, surgem também falsos legisladores, falsos juízes, falsos processos, falsos condenados e falsos inocentes. FIGURA 4.1 Definição de problema e regra. 52 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... FIGURA 4.2 Solução possível numa cultura legalista. FIGURA 4.3 Solução possível numa cultura de heroísmo. FIGURA 4.4 Solução possível numa cultura de segurança forte. 53Gerenciamento de riscos 4.4 SEGURANÇA, MEIO AMBIENTE E MULTIDISCIPLINARIDADE A questão da multidisciplinaridade requerida em gerencia- mento de riscos e segurança já é reconhecida e aplicada, princi- palmente nas grandes organizações. Porém, há uma disciplina específica que tem demandado soluções de segurança com par- ticular interesse e urgência: a proteção ao meio ambiente. A urgência e a afinidade entre algumas das disciplinas as- sociadas às questões de segurança criaram, nos anos 1980, a sigla SMS (Segurança, Meio Ambiente e Saúde). Mais à frente, algumas organizações incluíram na sigla a letra Q de qualidade, também com o objetivo de ressaltar a importância dessa dis- ciplina, a qual por suas intensas demandas associadas à segurança acabou por requerer seu espaço na sigla. Uma previsão que pode ser feita, mas que não podemos as- segurar que realmente será concretizada, é a substituição da sigla SMS ou QSMS pelo termo gerenciamento de riscos, apesar da confusão que pode ocorrer com outro termo bastante difundido que é análise de riscos. No nosso entendimento, gerenciamento de riscos é muito mais adequado e coerente com a variada gama de especialidades envolvidas com o objetivo de reduzir os acidentes e suas consequências. Além do termo segurança se confundir com questões de se- gurança pública e patrimonial, também conduz à falsa ideia de que a disciplina possa realmente prover a garantia de segurança, o que é utópico. O trabalho de fato realizado pelos profissionais desta especialidade é a gestão, o gerenciamento dos riscos com o objetivo de conduzi-los a um nível aceitável. Por esse motivo, tem sido frequentemente empregado o termo gerenciamento de riscos como o nome da especialidade. Este trabalho também sugere isso ao fazer referência à especialidade utilizando ge- renciamento de riscos e segurança juntos, reconhecendo a pos- sibilidade de transição. Como dissemos, o gerenciamento de riscos envolve basi- camente engenharia, mas cada vez mais precisa incorporar a multidisciplinaridade, assimilando conhecimentos de saúde, fatores humanos, gestão tecnológica, qualidade, biologia e muitas outras. Mas a questão ambiental tomou, nas últimas décadas, um espaço grandioso nas atividades tecnológicas. O comportamento em relação à questão ambiental passou a ser um componente cultural nas sociedades ocidentais e em alguns casos leva ao 54 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... próprio questionamento dos empreendimentos tecnológicos, sua relação custo-benefício social, bem como sua viabilidade social. Com base firmada no antigo termo segurança, pode ser criada uma resistência em aceitar essas novas demandas por parte da- queles que já atuam nesta área, alegando falta de preparação em outras disciplinas, incompatibilidades técnicas entre os modelos biológico/ecológico com os modelos tipicamente matemáticos da engenharia, entre outras razões. Em geral, esta mesma linha de justificativa é usada para se evitarem as demandas de saúde, gestão, qualidade e fatores humanos. Esse posicionamento conservador demonstra muito mais uma resistência ao entendimento do novo contexto da disciplina e da necessidade de atualização, do que uma postura tecnicamente correta. Mais uma vez, os velhos paradigmas mecanicista e or- gânico dos anos 1970 e 1980 acabam sendo difíceis de serem deixados para trás pelos especialistas mais conservadores. Esse erro pode custar a perda da competitividade das organizações e a perda da eficiência em evitar os acidentes. Isso acontece quando as organizações e os especialistas em segurança não conseguem perceber a complexidade da teia de interdependência multidisciplinar que influencia a ocorrência de acidentes e suas consequências no mundo tecnológico de hoje. O engenheiro ainda é o profissional teoricamente mais ade- quado para prover soluções de segurança para um cenário tec- nológico, ao mesmo tempo limitado e ilimitado, pela existência dessa teiade interdependência multidisciplinar. Mas para isso o engenheiro vai ter de estar preparado para assimilar novos conhecimentos de biologia, comportamento humano, gestão tecnológica e de todos os ramos de especialidades necessários para reduzir os riscos dos empreendimentos tecnológicos a níveis aceitáveis. Não é possível resolver tudo só com cálculos. Esse tempo já passou. Parece difícil acreditar, mas essa é a nova reali- dade da engenharia, em especial da engenharia de gerenciamento de riscos e segurança. Já se foi o tempo em que a engenharia era baseada apenas em números. Realmente os números não mentem, mas ajudam a esconder a maior parte da verdade. A proteção ao meio ambiente ocupa hoje posição de impor- tância quase no nível da proteção das pessoas, mas nunca igual. Essa demanda não pode ser recusada pelos engenheiros nem encaminhada para outro profissional, pois nenhum está mais bem preparado para oferecer soluções materiais de segurança para proteção do meio ambiente do que os engenheiros. Poderíamos 55Gerenciamento de riscos citar os biólogos, mas eles estão para este tema assim como os físicos, químicos, matemáticos estão para os demais pro- blemas de engenharia. O engenheiro de gerenciamento de riscos e segurança terá de incluir mais essa disciplina e entender que a biologia em breve estará no mesmo nível da química e física para a engenharia de gerenciamento de riscos e segurança. Talvez a diferença seja a dificuldade em fazer modelagens matemáticas associadas a muitas das questões relacionadas com a proteção ambiental. Isso significa apenas que a matemática precisará de aliados nesse esforço e talvez seja tempo de reconhecer que ela, hoje ferramenta praticamente oculta nos softwares que quase tudo calculam, não seja tão completa para explicar a natureza e a própria engenharia como se pensava há algumas décadas. 4.5 PRINCÍPIOS DE FATORES HUMANOS PARA GERENCIAMENTO DE RISCOS E SEGURANÇA O objetivo deste trabalho é pesquisar o tema fatores humanos, identificar os conceitos mais importantes e introduzir um cami- nho de aplicação prática desses conceitos no gerenciamento de riscos e segurança de empreendimentos tecnológicos. Existem trabalhos específicos sobre confiabilidade humana e fatores humanos que permitem um maior aprofundamento no conteúdo teórico multidisciplinar. O tema, por sua multidis- ciplinaridade, desafia engenheiros a conviver com outros tipos de ferramentas até então incomuns na engenharia clássica, mas ne- cessários em termos de engenharia robusta. Um dos pontos mais complexos é trazer tais conceitos da teoria para a prática sem incoerências técnicas, principalmente em relação às ferramentas matemáticas da engenharia clássica. A partir de nossa pesquisa, podemos verificar a grande quan- tidade de novos conceitos a serem incorporados pelos empreen- dimentos tecnológicos e, consequentemente, assimilados pelos engenheiros em atividades que requeiram competitividade. A lógica e a subjetividade desses conceitos diferem da rotina tradicional e cartesiana da engenharia clássica, mas nem por isso deixam de reconhecer o valor dos já usuais métodos de engenharia. O melhor a ser feito é agregar os conceitos de fatores humanos em harmonia com a engenharia clássica, adequando-a e ajustando-a para alcançar o nível desejado de engenharia robusta. 56 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... Com esse objetivo, adotamos uma estratégia específica para trazer os conceitos de fatores humanos que consideramos mais importantes para o contexto do gerenciamento de riscos e se- gurança. Essa estratégia consiste em identificar através de sete princípios os conceitos com maior relevância prática para a introdução do tema fatores humanos no gerenciamento de riscos e segurança. A razão de estarmos resumindo um tema tão extenso em apenas sete itens também tem uma justificativa relacionada com o próprio tema fatores humanos. James Reason (2003), em sua discussão sobre o erro humano, abordou o tema sob três pers- pectivas: psicológica comportamental, cognitiva (informação) e natural (orgânica). Considerando a abordagem natural do erro humano, ele descreve que a memória primária do homem é a responsável pela percepção imediata. A memória primária pode fixar vários itens e conceitos numa operação de percepção ime- diata, mas a quantidade de itens memorizáveis depende de haver ou não a associação entre esses itens. (O limite na quantidade de itens memorizáveis pela memória primária do homem sem associação entre si por semelhança ou laços afetivos, segundo Ja- mes Reason, é de no máximo sete itens.) Portanto, através de um esforço de pesquisa e de consolidação dos conceitos estudados, decidimos concentrar em sete princípios básicos a metodologia de introdução das ferramentas de fatores humanos no contexto do gerenciamento de riscos e segurança. Assim, chegamos a um conjunto de sete princípios de per- cepção imediata para a aplicação de fatores humanos em geren- ciamento de riscos e segurança. Por extensão, podemos dizer que tais princípios também servem para introduzir fatores humanos na engenharia de empreendimentos tecnológicos em geral. 4.5.1 Princípio 1: Centralização de objetivos nas pessoas O objetivo de qualquer empreendimento tecnológico deve ser centralizado no benefício ao ser humano, enquanto indivíduo e como sociedade, incluindo a segurança necessária para a proteção em relação à maior extensão possível de consequências, advindas do empreendimento tecnológico, que possam afetar indivíduos e a sociedade. Pesquisas científicas, projetos, obras de construção e montagem, instalações, edificações, procedimentos, regras, normas, práticas 57Gerenciamento de riscos operacionais, treinamentos, planos estratégicos, sistemas de gestão, administrações, hierarquias, valores, culturas organizacionais e ge- nericamente qualquer empreendimento tecnológico devem, desde a concepção teórica até sua extinção, ter objetivos centralizados nos in- divíduos e na sociedade, em todos os níveis desse empreendimento. Embora isso possa parecer óbvio em algumas circuns- tâncias, através da observação podemos encontrar evidências objetivas de que quase sempre esses objetivos naturalmente se afastam dos benefícios para os indivíduos e a sociedade. Uma das maiores evidências objetivas desse afastamento natural é a ausência da representação de pessoas nas plantas e documentos de engenharia e arquitetura. Em geral, o ser humano aparece apenas em demonstrações para fins de comercialização. Em termos de projetos de engenharia, as pessoas supostas de estarem interagindo com os equipamentos, bem como a diversidade de biótipos dessa população deveriam ser representadas em todos os documentos, pois o equipamento está sendo projetado para interagir com elas e isso precisa ser representado como acontece com os demais componentes do projeto. Por exemplo, os docu- mentos de projeto de uma plataforma offshore, uma edificação, um veículo, deveriam ter o total de pessoas suposto para interagir com o equipamento representado em sua documentação. A re- presentação das pessoas só deveria ser retirada dos documentos nas vistas onde isso seja indispensável para visualização. Ao simplesmente se inserir a representação da totalidade dos agentes supostos a futuramente interagir com o equipamento, muitas oportunidades de melhoria podem ser identificadas. 4.5.2 Princípio 2: Adaptação do projeto ao homem O empreendimento tecnológico deve ser projetado para in- teragir em segurança com a maior diversidade possível de seres humanos, independentemente de características antropométricas, comportamentais ou culturais. Sempre que possível o trabalho deve ser projetado para ser adaptado ao maior número de pessoas possível, ao invés de as pessoas se adaptarem ao trabalho. 4.5.3 Princípio 3: Controle da interação homem × sistema Todo empreendimento tecnológico gera, conscientemente ou não, um projeto de fatores humanos quedefine a forma de interação desse empreendimento com as pessoas. Esse projeto 58 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... de fatores humanos exerce influência direta na ocorrência de falhas, erros e acidentes. O projeto de fatores humanos deve atuar sobre o ambiente de indução ao erro, possibilitando uma influência positiva sobre a interação homem × sistema, e limi- tando as consequências dos erros humanos para que estes não venham a ocasionar acidentes catastróficos. 4.5.4 Princípio 4: Proteção contra o erro humano O erro humano é influenciado pelas vulnerabilidades naturais (imprevisíveis), pelas limitações humanas (inevitáveis) e pelo ambiente de indução ao erro (projetado). O controle das con- sequências do erro humano para limitá-las a níveis aceitáveis só é possível através de um projeto de fatores humanos que atua limitando o ambiente de indução ao erro, uma vez que as vulnerabilidades naturais e as limitações humanas não estão ao alcance da engenharia. Proteger contra erro humano é reconhecer que os erros humanos são inevitáveis, cabendo ao projeto de fatores humanos criar as soluções de engenharia que limitem as consequências desses erros a níveis de riscos aceitáveis. 4.5.5 Princípio 5: Superioridade da decisão humana Nenhum tipo de automação, intertravamento ou computa- dor de processo oferece melhor decisão do que o profissional técnico devidamente capacitado para a condução das medidas de mitigação de uma emergência. Os acidentes sempre incluem aspectos imprevisíveis ou inesperados, seja por falhas de equi- pamentos, falhas de procedimentos, falhas de pessoas ou por ação da natureza. A conjugação de todos esses fatores mais a percepção do impacto do escalonamento do acidente tanto em seus efeitos técnicos, como ambientais e sociais geram um grau de complexidade acrescido de aspectos subjetivos que tornam a automação limitada para prover a melhor decisão, havendo maior chance de resultados positivos através da tomada de decisão por um profissional devidamente capacitado à frente do gerencia- mento da crise. É importante perceber que a automação é indispensável como suporte para ações rápidas, simultâneas em processos complexos. Mas a automação deve ter como objetivo reduzir o volume das demandas sobre o profissional técnico devidamente capacitado, de modo que este direcione a sua capacidade de processamen- to de informações para as decisões mais críticas e complexas, 59Gerenciamento de riscos e assim, seja poupado de receber quotas de demandas superiores à capacidade humana de processamento. Faz parte do projeto de automação considerar os fatores humanos envolvidos com a tarefa, para impedir que o projeto de automação não apenas dispare variáveis e alarmes sobre os operadores sem a devida consideração ao processo de gerenciamento humano associado, o qual deve ser desenvolvido para viabilizar o processamento das informações durante a crise. 4.5.6 Princípio 6: Não mecanização do trabalho humano O empreendimento tecnológico deve prover soluções de enge- nharia que impeçam a mecanização do trabalho humano em todos os níveis, através de um abrangente projeto de fatores humanos. A mecanização de qualquer atividade humana aumenta os riscos de acidentes catastróficos por conduzir a uma redução, ainda que momentânea, da capacidade de analisar e de prover soluções em cenários acidentais em que os elementos imprevisíveis e ines- perados sempre estão presentes. Inclui-se como mecanização do trabalho humano sistemas de interação homem × sistema que limitam essa interação ao cumprimento de normas, regras e procedimentos sem margem para que os mesmos sejam a qualquer momento questionados, avaliados e, se necessário, descumpridos como meio de evitar um acidente. Normas e procedimentos, mesmo que especificamente de segurança, devem ser adotados enfaticamente como uma mera referência considerando que teoricamente guardam em seu conteúdo o melhor da experiência e das boas práticas de engenharia aplicáveis à atividade em curso. Isso não significa que não possam conter erros ou avaliações inapropriadas para o cenário acidental real, o qual é único e pode nunca antes ter sido previsto, mesmo hipoteticamente. Por isso, para evitar e enfrentar acidentes, deve ser eliminado o vício do legalismo, bem como o comportamento mecânico de engenheiros e técnicos, sendo, portanto, indispensável uma atuação com liberdade inteligente, rica de habilidade técnica e experiência operacional. 4.5.7 Princípio 7: Inclusão de projeto antropométrico e psicológico Os projetos de engenharia, para alcançarem maior nível de se- gurança, devem incluir abordagem antropométrica e psicológica, a fim de estabelecer um projeto adequado de fatores humanos. 60 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... A partir de dados antropométricos, devem ser consideradas análises de riscos biomecânicos, riscos de trabalhos estáticos e repetitivos, riscos de trabalhos manuais, bem como devem ser avaliadas as influências de temperatura, ambiente visual, audição, vibração, entre outros. Com relação à psicologia, devem ser consideradas questões como estresse e fadiga individual, estresse ambiental, sobrecarga de demanda, processamento humano de informação e carga de trabalho mental. 4.6 PRINCÍPIOS DE CULTURA DE SEGURANÇA PARA GERENCIAMENTO DE RISCOS E SEGURANÇA Do mesmo modo como fizemos para fatores humanos, apresentamos em sete princípios um resumo que consolida os principais conceitos pesquisados para introdução do tema cultura de segurança nos projetos de empreendimentos tecnológicos. Mais uma vez, não é escopo deste trabalho esgotar o assunto, mas sim fornecer um caminho para a inclusão dos conceitos de cultura de segurança no gerenciamento de riscos e segurança de empreendimentos tecnológicos. 4.6.1 Princípio 1: Multidisciplinaridade O desenvolvimento da cultura de segurança requer visão mul- tidisciplinar dos acidentes. Os cenários acidentais se apresentam como situações adversas com características multidisciplinares relacionadas com as consequências da imprevisibilidade de deter- minados fatos, fenômenos naturais e relacionados com falhas de equipamentos, falhas de procedimentos, falhas comportamentais, falhas de gerenciamento entre outras. Em síntese, acidentes são problemas de solução multidisciplinar. E essa solução multidisciplinar depende tanto dos conhecimentos típicos de engenharia, como dos conhecimentos sobre fenômenos naturais e sobre as falhas decorrentes das deficiências do compor- tamento humano sob a influência maior da cultura de segurança. 4.6.2 Princípio 2: Subjetividade O desenvolvimento da cultura de segurança requer a inclusão de temas subjetivos ao conjunto de temas objetivos para a for- mação do escopo de trabalho da engenharia de gerenciamento de risco e segurança. Relacionar os temas subjetivos com os 61Gerenciamento de riscos temas objetivos de forma coerente e eficiente é que justifica o desenvolvimento de uma cultura de segurança. Como exemplo, o comprometimento (subjetivo) com os conceitos adquiridos na capacitação técnica conduz à atitude (objetiva) correta. 4.6.3 Princípio 3: Priorização O desenvolvimento da cultura de segurança requer a priori- zação dos assuntos relacionados à segurança. Não é possível desenvolver cultura de segurança quando é permitido que outros assuntos adiem a atenção que deve ser dada aos assuntos relacionados com a segurança. 4.6.4 Princípio 4: Atenção certa O desenvolvimento da cultura de segurança requer a capaci- dade de prover a atenção certa aos assuntos relacionados com a segurança. Não é suficiente prover atenção, mas é requerida a atenção certa. Implantar variadas medidas de segurança e prevenção, planos e projetos de segurança, redundâncias de sistemas de segurança, propaganda e divulgação, cursos, treinamento e capacitação, tudo isso significa atenção. Atenção certa é aquela suficiente e eficaz para evitar o acidente específico. 4.6.5 Princípio5: Tempo certo O desenvolvimento da cultura de segurança requer a capaci- dade de identificar o tempo certo para agir. Não é suficiente agir o tempo todo, mas é requerido agir no tempo certo em que a ação seja eficaz para evitar o acidente. Manter continuamente ações de segurança preventivas e sis- temáticas não assegura que esteja sendo mantida continuamente a percepção do tempo certo em que se deve ter a atitude para evitar o acidente. Rotina de segurança não é garantia contra acidente. Perceber o tempo certo de agir e agir, sim. 4.6.6 Princípio 6: Inclusão de projeto de fatores humanos O desenvolvimento da cultura de segurança requer um projeto de fatores humanos capaz de controlar a extensão das consequên- cias dos inevitáveis erros humanos. 62 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... O erro humano é inevitável. Para evitar acidentes por erro humano, podemos alterar tudo menos o ser humano, pois este não perderá a sua característica de errar, mesmo com a melhor capacitação possível. Para evitar acidentes por erro humano, tratam-se todos os fatores capazes de influenciar a extensão das consequências dos inevitáveis erros humanos, para que essas con- sequências se mantenham dentro de um limite definido por um projeto de fatores humanos. 4.6.7 Princípio 7: Inteligência técnica O desenvolvimento da cultura de segurança requer inteligência técnica para prover soluções de engenharia isentas de vícios, como legalismo, heroísmo e, principalmente, de comportamentos meca- nicistas que possam reduzir ou impedir a capacidade de analisar e prover soluções multidisciplinares em cenários acidentais nos quais os elementos imprevisíveis e inesperados sempre estão presentes. Usar normas e procedimentos de segurança de forma legalista, explorar o heroísmo alheio e mecanizar as ações das pessoas reduzem a capacidade de inteligência técnica e de engenharia de gerenciamento de riscos e segurança, conduzindo o empreen- dimento tecnológico ao acidente e ao escalonamento de suas consequências. 4.7 PRINCÍPIOS DE EFICIÊNCIA PARA GERENCIAMENTO DE RISCOS E SEGURANÇA Complementarmente aos princípios de fatores humanos e cultura de segurança, alguns princípios gerais mínimos podem fazer grande diferença nos resultados relacionados ao geren- ciamento de riscos e segurança. Estes princípios estão longe de esgotar todas as oportunidades de melhoria, que deve ser contínua, associadas aos processos de gerenciamento de riscos e segurança. Mas o fato de a complexidade do tema conduzir para o sentimento de termos pela frente uma longa caminhada não impede que se perceba a necessidade da simplicidade do primeiro passo necessário em qualquer jornada. Sem o primeiro passo pouco adiantaria termos as melhores estratégias para es- calar as altas montanhas. Como primeiro passo para a melhoria da eficiência no gerenciamento de riscos, apresentamos sete princípios (conforme a mesma estratégia adotada para fatores humanos e cultura de segurança) a serem considerados. 63Gerenciamento de riscos 4.7.1 Princípio 1: Descarte de riscos desnecessários Aceite apenas os riscos absolutamente necessários. Todas as atividades incluem riscos, mais que isso a vida inclui riscos. Quanto mais riscos desnecessários forem descartados, mais atenção será dada para o gerenciamento de riscos indispensáveis. 4.7.2 Princípio 2: Respeito às leis naturais Quanto mais a intervenção provocada pelo empreendimento tec- nológico se opõe aos fenômenos naturais, às leis físicas, químicas e biológicas, maior o risco. Tanto quanto possível, as intervenções humanas através de empreendimentos tecnológicos devem explorar o sentido de evolução natural dos fenômenos a elas associados. Por exemplo, ao projetar um equipamento do tipo embar- cação de salvamento para abandono de instalação offshore, os projetistas podem optar entre dois sistemas predominantes no mercado: descida ao mar por cabos e descida ao mar por queda livre. O equipamento que conceitualmente está mais alinhado com o princípio de respeito às leis naturais é o que executa a descida ao mar por queda livre. Na realidade, durante a operação de descida a embarcação de salvamento por cabos trava uma disputa com a mais imperiosa força conhecida do universo físico: a força da gravidade. Os cabos estão lá para evitar a ação da força natural, que é a gravidade, já que embarcações conven- cionais não resistem ao choque com a água após a queda livre. Em contrapartida, a embarcação por queda livre, quando liberada, usa a imperiosa força da gravidade como aliada do movimento desejado, sendo assim, essa importantíssima força natural atua no mesmo sentido do objetivo da intervenção promovida pelo empreendimento tecnológico, neste caso, a embarcação de sal- vamento para abandono em direção ao mar. Obviamente, há outros componentes que precisam ser con- siderados pelo projetista que podem até inviabilizar a aplicação de uma embarcação por queda livre, mas o conceito de descer ao mar numa situação de emergência por efeito de queda livre é sem dúvida um conceito mais alinhado com as forças naturais do que aquele que se baseia no emprego de embarcações con- vencionais que descem ao mar assistidos por cabos. O uso da força da gravidade para movimentar a embarcação livremente reduz, conceitualmente, os riscos teóricos de mau funcionamen- to. Isso significa maior eficiência de gerenciamento dos riscos envolvidos. 64 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... 4.7.3 Princípio 3: Simplicidade Em relação à eficiência no gerenciamento de riscos e segurança, o mínimo é máximo. Quanto menos partes móveis, quanto menos pessoas envolvidas, quanto menos automação, quanto menos va- riações, quanto menos procedimentos, quanto menos palavras para comunicar, quanto menos sofisticação, quanto menos complexidade houver em um empreendimento tecnológico, mais eficiente ele será em termos de gerenciamento de riscos se comparados aos demais empreendimentos que alcançam o mesmo resultado final. É importante notar que determinados resultados não podem ser alcançados sem empreendimentos tecnológicos sofisticados e complexos, envolvendo inclusive extensos sistemas de auto- mação. Mas o gerenciamento de riscos desses empreendimentos serão tão eficientes quanto os projetistas puderem reduzir essa sofisticação, automação e complexidade ao mínimo necessário. Se, para um mesmo resultado, outros empreendimentos tecno- lógicos apresentam-se mais simples, estes outros alcançarão maior eficiência no gerenciamento de seus riscos. Para fins de gerenciamento de riscos, o mínimo é o máximo. 4.7.4 Princípio 4: Concisão de regras Regras, normas, procedimentos, sinalização, especificações técnicas, diretrizes, manuais, alarmes, painéis, consoles, telas e quaisquer textos e meios de comunicação relacionados com a segurança devem ser os mais concisos e simples possível. Quanto menos sinais, letras e palavras utilizadas nos textos relacionados com a segurança, maior será a eficiência da comunicação das informações técnicas importantes para a segurança. Textos e sinais relacionados à segurança devem ser eficientes como um “biquíni”: grande o bastante para cobrir as partes essenciais, e pequeno o bastante para chamar a atenção. 4.7.5 Princípio 5: Combate ao legalismo Textos, procedimentos e regras formais de segurança devem ser tratados como as melhores referências técnicas para as ações relacionadas com a segurança e devem ser, tanto quanto possível, respeitados, amplamente questionados e revisados com a maior frequência possível. Jamais devem ser tratados como verdades absolutas e definitivas ou terem sua aplicação confundida com os ritos legais impostos pela legislação formal constituída, nos 65Gerenciamento de riscos quais as leis não podem ser questionadas em juízo. Cabe aos engenheiros e especialistas a total responsabilidade pela análise científica dos fenômenos associados aos cenários de aplica- ção dos textos, procedimentos e regras formaisde segurança, e, se necessário, ajustarem ou mesmo – em casos extremos – descumprirem-nos para se evitar um acidente. Consequentemente, esse ato de descumprimento exige muito conhecimento técnico, operacional e fenomenológico sobre o cenário em andamento, e os que assim decidem assumem todas as consequências decor- rentes dessa decisão. Em algumas situações, a formação do cenário acidental, que sempre inclui imprevisibilidade como um de seus componentes, pode requerer tanto do projetista como do operador final a ati- tude de correção do lapso entre regras e realidade, até porque esse lapso pode ser maior ou menor, conforme a qualidade e concisão das regras. Quando as regras falham ou são omissas por distanciarem-se do mundo real operacional, a solução emergencial é procurada nos elementos da cultura de segurança. Quando essa cultura de segurança é pobre, a solução que resta é limitar-se às regras, mesmo que, por alguma falha, essas regras sejam com- pletamente insuficientes para prover a atenção certa no tempo certo a fim de evitar o acidente. Muitas vezes, dada a diferença entre o mundo ideal projetado e o mundo real operado, é necessário descumprir as regras e os procedimentos para atender aos requisitos de cumprimento das leis naturais envolvidas no cenário acidental. Segurança não é parar no sinal vermelho de trânsito. Segurança é avançar o sinal verde da mesma forma que se avança o sinal vermelho quando isso é necessário. Para evitar acidentes é necessário tomar co- mo referência as regras estabelecidas, como, por exemplo, as cores dos sinais de trânsito, mas em nenhum momento deve-se considerá-las garantia para evitar o acidente, sendo necessário avaliar os fenômenos reais em andamento. No exemplo do trân- sito, devem ser considerados parâmetros como velocidade dos veículos envolvidos, espaço disponível e tempo disponível, para de fato se tomar a decisão correta, seja ela de avançar ou não, esteja o sinal de trânsito verde, amarelo ou vermelho. 4.7.6 Princípio 6: Combate ao heroísmo A contribuição da engenharia para o gerenciamento de riscos é a tecnologia capaz de promover a atenção certa no tempo certo 66 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... de modo a evitar o acidente. Buscar a segurança das pessoas, do meio ambiente e do patrimônio pode ser um desejo natural, mas a maneira de alcançar essa segurança não. O mesmo se aplica no caso de se manter heroicamente a produção de uma instalação sob riscos para o alcance dos objetivos corporativos. São ne- cessários tecnologia e conhecimento técnico sobre o cenário acidental, e uma profunda consciência fenomenológica sobre os eventos em andamento, para que a atenção certa seja dada no tempo certo, de modo a evitar o acidente e seus danos à vida, ao meio ambiente e à propriedade. A decisão pelo ato heroico é direito de todos, mas para os engenheiros e profissionais de gerenciamento de riscos o ato heroico só é cabível após o emprego inteligente da tecnologia de análise e resposta ao cenário acidental. Cumprindo primeiro sua obrigação de prover as soluções que mais reduzam o número de vítimas, o engenheiro e os profissionais de gerenciamento de riscos também podem exercer seu direito de ser verdadeiramente herói. O heroísmo ainda está presente em organizações, grupos, indivíduos e sociedade e é um vício que pode prejudicar a efi- ciência do gerenciamento de riscos e segurança. Infelizmente algumas pessoas e até mesmo organizações abusam desse nobre comportamento humano e extraem de colaboradores atitudes des- balanceadas entre risco e objetivo. Por tudo isso o heroísmo deve ser combatido e considerado como um vício de gerenciamento de riscos e segurança, para que durante a crise apenas a técnica, capacitação e experiência profissional orientem as decisões e ações no sentido de não se assumir nenhum risco desnecessário e salvar o maior número de vidas humanas, ao invés de ampliar o número de vítimas. 4.7.7 Princípio 7: Humildade Os empreendimentos tecnológicos são intervenções humanas no mundo natural o qual possui suas próprias regras imperiosas e que estão fora do alcance do controle absoluto por parte do homem. Qual o pior acidente que pode acontecer com qualquer ser humano? Aquele no qual ele torna-se vítima fatal. Entre- tanto, com toda ciência e tecnologia desenvolvida por séculos, esse acidente um dia ocorrerá para todos. Seja por falhas de comportamento, falhas de equipamentos, forças naturais ou acidentes biológicos (doenças) que se desenvolvem em nosso 67Gerenciamento de riscos organismo, e por não termos a menor capacidade de controlá-los os denominamos naturais. A ciência e tecnologia parece ter avançado muito e sua inte- ligência nos fascina, nos cativa e infelizmente também nos ilude temporariamente com seus encantos passageiros. Mas talvez para a questão mais importante relacionada ao gerenciamento de riscos da vida, nada acrescenta para evitar o acidente fatal que a natureza nos impõe. Em muitíssimos casos, a atenção certa no tempo certo não é dada de forma eficiente para evitar o acidente, por falta de reconhecimento desse fato, por falta de humildade. 4.8 LIÇÕES APRENDIDAS COM EVENTOS ACIDENTAIS As investigações de acidentes fornecem grande quantidade de informações para o aprendizado sobre as causas dos acidentes e melhorias no gerenciamento de riscos e segurança. Mas nem sempre os temas associados aos fatores humanos são investigados com a profundidade desejável. Muitas vezes, a principal razão disso é a dificuldade de conciliação entre a subjetividade presente nas questões relativas aos fatores humanos e as metodologias objetivas empregadas nas investigações de acidentes. Mas, in- dependentemente das questões estritamente técnicas registradas nos relatórios finais de investigação de acidentes, muitas lições podem ser aprendidas a partir da simples reflexão sobre os fa- tos comprovados sobre os eventos acidentais. Apresentamos a seguir comentários livres e curiosidades sobre alguns acidentes importantes, como exemplo de exercício de reflexão pós-eventos acidentais. 4.8.1 Titanic e Costa Concordia Naufrágios habitam o inconsciente coletivo Cem anos se passaram e fica a certeza de que grandes nau- frágios habitam o inconsciente coletivo reforçando imagens universais que existem desde os tempos mais remotos. O desafio de navegar é tão antigo que nem é possível precisar como e quando exatamente o homem iniciou sua jornada pelas águas. É fácil reconhecer que a simples visão da imensidão do mar desperta sentimentos desafiadores. Vários fatores formam a ideia de desafio associada à navegação, seja a natural vontade de ver além do horizonte, o medo do desconhecido, a possibilidade de que algo melhor possa estar do outro lado das águas, a possibilidade 68 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... do isolamento, da solidão em alto mar, a energia e o poder das ondas e tempestades, a presença de baleias, tubarões, cardumes. Alguns relatos históricos chegam a imaginar cidades e civilizações subaquáticas, tesouros perdidos e monstros assustadores. Navegadores vislumbram conquistas e temem derrotas, bus- cam sucesso e temem o fracasso, confiam no porto seguro e temem o naufrágio, sempre encontrando nas águas o pano de fundo para a busca da superação. O mar e os céus talvez sejam os maiores desafios explícitos e objetivos para a curiosidade humana. Não precisam de palavras nem de uma cultura específica para serem compreendidos como tal. Simplesmente apontam para nossos limites, tanto para os limites físicos, como os do conhecimento. Se observarmos o dia a dia, tais sentimentos fazem parte de diversas situações nas vidas das pessoas, e o desafio das águas apenas nos coloca frente a frente, de forma objetiva, com uma realidade que se repete incessantemente a cada momento: nos- sas limitações. Acidentes aéreos e naufrágios parecem causar sentimentos especiais sobre as pessoas. Muitas vezes, acidentes rodoviáriose ferroviários causam um número de fatalidades superior, mas parecem não exercer o mesmo poder de chamar a atenção, despertar o interesse, nem de gerar tanto questionamento. Talvez seja mais fácil entender e aceitar que uma composição de vagões possa descarrilar e perder o rumo, do que um navio naufragar ou um avião cair. Não há nada de lógico nisso, mas há muitos sentimentos coletivos que ampliam a magnitude de alguns tipos de acidentes. Teoricamente deveria ser o contrário, pois os céus e o mar são habitats naturais para outras espécies, e nossa presença lá obvia- mente seria “menos natural” e os acidentes menos surpreendentes. Não é isso que acontece. Especialmente o mar, por ser um desafio perseguido por séculos por nossos antepassados, parece gerar no inconsciente coletivo uma reação diferenciada quanto aos aciden- tes navais, nos atingindo em relação a nossa real capacidade de superação de limites. Pode haver no inconsciente coletivo qualquer coisa de “ponto de honra abalado” que diminua nossa autoconfian- ça na tecnologia quando um naufrágio acontece. Qual a importância disso para o gerenciamento de riscos? É muito importante, para os gestores, entender estes aspectos subjetivos ou “arquétipos” que compõem a parte submersa do 69Gerenciamento de riscos “iceberg da cultura de segurança”. Justamente é aquela parte que fica oculta onde residem os fatores mais importantes para que as pessoas, organizações e sociedades tomem decisões sobre a aceitação ou não de determinado risco. Acidentes aéreos e naufrágios simbolizam um questiona- mento sobre a sensatez de desafiarmos os limites além de nosso habitat natural. Esse questionamento é registrado e guardado pelas pessoas como parte de sua experiência e entendimento. Esse conjunto subjetivo exerce grande influência na aceitação de riscos de cada pessoa ao longo da vida, sejam os pessoais, como os profissionais. Talvez os naufrágios tenham um peso ainda maior do que os acidentes aéreos, pois existem desde a antigui- dade, incomodando e construindo o inconsciente coletivo das pessoas há mais tempo, em relação à aceitação ou não de riscos. Titanic e Costa Concordia são um exemplo da importância dessa influência. O Titanic transformou-se de símbolo de ca- pacidade tecnológica em símbolo de fracasso tecnológico em apenas uma noite, 15 de abril de 1912, quando naufragou com mais de 1500 vítimas fatais. Hoje em dia, praticamente em todo o planeta o nome Titanic significa “algo que deu muito errado”. O desastre do Titanic tem muitas versões fantásticas que com- plementam as evidências objetivas e históricas, mas elas não devem ser totalmente desprezadas, porque de fato fazem parte do “iceberg da cultura de segurança” e, portanto, influenciam também na predisposição das pessoas em aceitar ou rejeitar riscos, mesmo que todos saibam que tais versões não sejam verdadeiras. Quando citamos o modelo do “iceberg da cultura de segurança”, lá na origem desta ilustração, talvez esteja também incluída a informação registrada no inconsciente coletivo de que icebergs ocultam riscos e afundam navios. Já o naufrágio do Costa Concordia ocorreu quase exatamente 100 anos depois, em 13 de janeiro de 2012, justamente quando o emblemático naufrágio do Titanic está sendo mais relembrado. O naufrágio do Titanic não foi o maior e mais dramático da história e muitos outros desastres de mesmas e até maiores proporções ocorreram nesses 100 anos (Kichemaru, The Empress of Ireland, Montblanc, Wilhelm Gustloff, Estônia e muitos outros), mas nenhum ficou tão registrado no inconsciente coletivo das pessoas como o Titanic. O número de vítimas fatais do Costa Concordia foi de 32 pessoas, mas a repercussão e o impacto do acidente no inconsciente coletivo somou-se aos efeitos dos 100 anos de influência exercida pelo Titanic. Uma série de questionamentos 70 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... sobre a navegação foram levantados, em especial sobre os as- pectos de segurança offshore. A seguir apresentaremos uma comparação sobre alguns dos principais aspectos relacionados com os dois acidentes, na qual é possível encontrar semelhanças e diferenças que irão também continuar a alimentar o inconsciente coletivo das pessoas por muito tempo. Causas do acidente Tanto o Titanic como o Costa Concordia incluem como uma das razões para os naufrágios uma falha dos seus Capitães. No caso do Titanic o capitão é acusado de não dar a devida atenção ao alerta sobre a presença de icebergs na rota, enquanto o capitão do Costa Concordia está sendo acusado de se desviar da rota e navegar em região não compatível com o calado do transatlântico. Tomada de decisão na hora da emergência Em ambos os acidentes há indícios de que houve falta de lide- rança e organização no momento de tomar a decisão de abandono do navio. No caso do Titanic os relatos conduzem a uma figura do capitão em estado de choque, sem reação, enquanto no Costa Concordia existe a suposição de o capitão ter retardado decisões fundamentais, perdendo a janela de tempo de tomada de decisão pelo abandono da embarcação. O capitão é o último a sair Muitos pensam que essa é uma norma ou regra de segurança offshore, mas não é verdade. Em alguns países esse conceito de permanência está oficializado nas regras, em outros não. É fato que esta é uma das expectativas das pessoas, que o capitão seja o último a abandonar o navio. No caso do Titanic o capitão não sobreviveu e isso preservou esse paradigma de permanência do capitão até o fim. Não podemos afirmar com exatidão se isso ocorreu conscientemente ou pelas circunstâncias, mas o paradig- ma foi mantido. Já no caso do Costa Concordia, o capitão aban- donou a embarcação antes de a operação de abandono ter sido encerrada, como se fosse uma pessoa a mais a tentar sobreviver (e não era?). Ele, mesmo que não fosse obrigado por normas a ser especificamente o último a sair, era o responsável principal pela operação de escape e abandono, e aparentemente não cumpriu sua obrigação. A mais forte influência sobre o inconsciente coleti- vo das pessoas sobre o acidente é que o Capitão não cumpriu seu 71Gerenciamento de riscos script, ou seja, a história que tem sido narrada há um século sobre o que aconteceu com o Titanic incluía o personagem do capitão que permaneceu no navio e afundou com ele, pagando inclusive pelos seus possíveis erros, mas essa parte da história do Titanic não foi bem desempenhada pelo capitão do Costa Concordia. A história do Titanic é muito famosa, conhecida e talvez esperada de ser repetida por aqueles que, conscientemente ou não, comparam os dois acidentes. Autoridades marítimas externas No caso do Titanic não tiveram uma participação muito relevan- te, exceto quanto aos alertas sobre a presença de icebergs na rota, os quais foram ignorados pelo capitão, o que se tornou uma das causas diretas do acidente. Mas no acidente com o Costa Concordia a autoridade marítima da Capitania dos Portos teve um papel de destaque. Ao contactar o capitão do Costa Concordia e ser informado por ele que o abandono estava em andamento e que ele, o próprio capitão, estaria já fora do navio, sendo resgatado para terra, a autoridade da Capitania dos Portos se indignou e proferiu ordens carregadas de emoção e energia tentando convencer o capitão a retomar para cumprir sua missão. Isso conquistou a opinião pública, e alguns passaram a considerar a autoridade da Capitania dos Portos um verdadeiro herói, mesmo não tendo em nenhum momento retirado os seus pés de terra firme. Analisando o episódio sob a perspectiva puramente técnica, a autoridade da Capitania dos Portos demonstrou estar tão despre- parada quanto o capitão do Costa Concordia para a emergência. A autoridade em terra deveria, sim, tentar mostrar ao capitão o equívoco que estava cometendo ao deixar o comando da operação de abandono, mas o compromisso maior da Capitania dos Portos deveria ser salvar as vidas das pessoasno local do acidente. Ou seja, se a autoridade da Capitania dos Portos estivesse realmente bem preparada iria identificar que o capitão não tinha naquele momento capacidade técnica, emocional ou comportamental para exercer suas obrigações e por isso a Capitania dos Portos deveria estabelecer uma nova liderança imediatamente. Deveria, por exemplo, ele próprio, em vez de agir emocionalmente querendo fazer o capitão trabalhar na base do grito, assumir o comando da operação de abandono, e se necessário ir ao mar com os recur- sos da Capitania dos Portos, uma vez que o navio estava muito próximo à costa. A condenação, as sanções administrativas e criminais aplicáveis ao capitão deveriam ser foco das atenções 72 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... num segundo momento, e não em meio ao resgate de centenas de pessoas sem comando e sem liderança sendo realizado durante a noite no mar. Localização O naufrágio do Titanic ocorreu em alto mar com temperaturas fatais para a sobrevivência na água. Já o Costa Concordia sofreu avaria numa região muito próxima ao litoral, podemos dizer pri- vilegiada em termos de recursos de resgate. Isso foi decisivo para fazer a diferença no número de sobreviventes nos dois acidentes. Recursos de salvamento O número de embarcações de salvamento do Titanic era in- ferior ao número de passageiros. Não havia lugares nas em- barcações de salvamento para todos. Tais equipamentos eram extremamente limitados e com muitos problemas técnicos, prin- cipalmente quanto aos meios de lançamento ao mar (turcos). Na época a regulamentação técnica vinculava o peso do navio com o número de embarcações de salvamento obrigatórias. Engenheiros alertaram a empresa responsável pelo Titanic dos problemas, tanto dos turcos de lançamento quanto da quantidade de embar- cações, mas a empresa optou por cumprir as regras de segurança vigentes e incluiu apenas 16 embarcações de salvamento no Titanic, suficiente para atender apenas 33% das pessoas a bordo. É preciso ir muito além do cumprimento de regras e normas para se alcançar a segurança. Depois do acidente, uma reformulação completa das normas de segurança marítima ocorreu. Foi criado o SOLAS (International Convention for the Safety of Life at Sea) que estabeleceu regras muito mais consistentes sobre equipamen- tos de sobrevivência em situações de emergências marítimas. Essas regras promoveram uma evolução das embarcações de salvamento, dos turcos e demais equipamentos de segurança ao longo destes 100 anos pós-Titanic. Um século depois, o Costa Concordia era equipado com embarcações de salvamento e turcos de última geração e em quantidade suficiente para atender pelo menos 125% da quantidade de passageiros e tripulantes. O pro- blema mais crítico é que tais embarcações só podem ser lançadas até uma inclinação máxima do navio e essa inclinação é atingida após uma janela de tempo desde o início do acidente. O capitão sempre deve avaliar a situação e iniciar o abandono dentro da janela de tempo disponível para o lançamento das embarcações de salvamento, antes que se torne impossível a operação de 73Gerenciamento de riscos abandono, como aconteceu no Costa Concordia. Outro aspecto importante é lançar as embarcações de salvamento totalmente lotadas. Se as primeiras embarcações forem lançadas com lugares vazios, no final poderão faltar lugares para as pessoas nas últimas embarcações a serem lançadas. Isso aconteceu no Titanic. Empresas responsáveis pela embarcação Em ambos os acidentes há críticas ao posicionamento das empresas responsáveis pelos navios. No caso do Titanic as acusações são de ordens para seguir viagem a todo custo e o estabelecimento de um ambiente de euforia e excesso de auto- confiança. Já com relação ao Costa Concordia, as acusações são de se querer fazer propaganda do navio fazendo-o navegar por regiões incompatíveis com sua classe e porte. Certamente grande parte da parcela de responsabilidade por ambos os acidentes pode ser atribuída com justiça às empresas responsáveis pelos navios. Mas alguns dos produtores e diretores de filmes sobre o Titanic, quando indagados sobre algumas acusações até então desconhecidas contra a empresa responsável pelo Titanic, as quais foram incluídas nas últimas versões do cinema, responderam que mesmo não havendo base no histórico do acidente, tais pos- sibilidades são psicologicamente tão interessantes para quem conta, como para quem assiste a narrativa do acidente, que eles, como produtores e diretores de Hollywood, não poderiam deixar de incluí-las, mesmo com certa dose de irresponsabilidade em relação à fidelidade histórica. Mais uma ampliação dos efeitos do naufrágio sobre o inconsciente coletivo das pessoas. Lições aprendidas O naufrágio do Titanic teve imensa repercussão em sua época e continua tendo mesmo 100 anos depois. Houve uma completa reformulação das regras de segurança depois do acidente que na realidade foi o início de um processo de evolução da segurança marítima. Apesar de ter acontecido há mais de um século, o Tita- nic está fortemente presente na mídia, principalmente por cerca de oito filmes de longa-metragem com versões de sua história. Já o impacto do naufrágio do Costa Concordia foi ampliado pelo fato de o acidente ter ocorrido muito próximo à costa, com acesso fácil dos veículos de comunicação de massa, em local de grande interesse turístico. Outro fator que colaborou para a repercus- são do acidente foi justamente a analogia imediata com o mais famoso naufrágio do mundo: Titanic. Ambos com passageiros 74 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... desfrutando de luxo e sofisticação dos melhores transatlânticos de sua época. Ambos com personagens e atores executando seus scripts. Ambos associáveis a dúvida de cada pessoa sobre a capacidade humana de superação dos limites naturais. A principal lição dos naufrágios é que temos limites em rela- ção à natureza e nunca devemos subestimá-los. Isso é tão forte que faz parte de nosso inconsciente coletivo. E serve não apenas para navios, mas para qualquer empreendimento tecnológico que o homem pretenda fazer. 4.8.2 Acidente nuclear de Fukushima 1979 – Estados Unidos, Three Mile Island 1986 – Ucrânia, Chernobyl 2011 – Japão, Fukushima Desde o início da operação de Usinas Nucleares, os três mais importantes acidentes aconteceram distribuídos dentro de um intervalo de mais de 30 anos. Mesmo assim, alguns países como a Alemanha e o Japão estão recuando e desistindo de priorizar as centrais nucleares em sua matriz energética. Quando se toma uma decisão pela aceitação ou não de um risco, o primeiro item que deve ser analisado é se realmente o risco em questão é necessário. Afinal, se o risco não é neces- sário, também não importa muito o seu valor e consequências, pois a melhor regra é não aceitá-lo e assumir apenas os riscos absolutamente indispensáveis, que já são muitos em todos os empreendimentos tecnológicos e demandam considerável ge- renciamento técnico. Antes de determinar o fim das atividades de centrais nucleares em seu território, a Alemanha já era um dos maiores detentores de tecnologia em projetos nesta área. Suas usinas não estão rela- cionadas na lista dos grandes acidentes e nem os vários projetos alemães para usinas espalhadas pelo mundo. Tecnologicamente os projetos alemães de centrais nucleares utilizam o que há de melhor em termos de segurança, com redundâncias de sistemas críticos, lógicas e intertravamentos sofisticados e proteção em profundidade que inclui até seis camadas de segurança para proteger os maiores perigos para uma central nuclear. Mesmo assim, a decisão foi de não aceitação do risco nuclear. Outros países, como a França e os Estados Unidos, mantêm e até ampliam seus programas de geração de energia por cen- trais nucleares. A França inclusive assumiu parte das empresas 75Gerenciamento de riscos alemãs que detinham alta tecnologia na área de projetos de cen- trais nucleares.A opção francesa é produzir energia nuclear e vendê-la para aqueles que desistiram ou recuaram nesta indús- tria. Já os Estados Unidos, que passaram pela experiência de enfrentar um dos três maiores acidentes nucleares (Three Mile Island em 1979), demonstraram alguma hesitação nas décadas subsequentes ao acidente, mas retomaram novos investimentos no desenvolvimento de usinas nucleares mais seguras e possuem novos conceitos de projetos em andamento. Toda decisão sobre a aceitação ou não de um risco envolve uma parcela subjetiva, associada à imprevisibilidade em que tudo acontece na natureza. Mesmo com as análises quantitati- vas e qualitativas de risco, os dados estatísticos e os modelos matemáticos que permitem variados tipos de simulações sobre a segurança dos empreendimentos tecnológicos, a decisão final incluirá sempre uma parcela de subjetividade por conta do fato de que risco zero absoluto não existe, e por menor que seja o valor do risco calculado, se aceito assumem-se também as consequên- cias advindas dessa decisão, caso essa pequena possibilidade se torne realidade em forma de acidente. Isso serve para qualquer análise de risco. A diferença é que as consequências de um acidente nuclear têm se mostrado inaceitá- veis logo após cada um dos três grandes acidentes registrados na indústria nuclear (Three Mile Island, Chernobyl e Fukushima). Os projetos e as operações seguem com o firme conceito de que os números das análises quantitativas de risco estão corretos. Mesmo havendo em teoria alguma possibilidade de acidente (cal- culada como remotíssima), quando as autoridades e a sociedade aceitam o risco nuclear acreditam de forma subjetiva e sem base matemática que essa possibilidade remotíssima jamais irá virar realidade. Aí está o ingrediente de subjetividade sempre presente em aceitação ou não de riscos. A sociedade japonesa, tecnológica e com alto nível de edu- cação, sempre entendeu a necessidade de conviver com os riscos de centrais nucleares. Acostumada com as adversidades impostas pela natureza, enfrentar catástrofes com respostas de engenharia e tecnologia faz parte da cultura japonesa. Depois do acidente na central nuclear de Fukushima, tanto as autoridades, como a população e até mesmo as empresas responsáveis parecem reco- nhecer que talvez seja melhor o recuo. O acidente que aconteceu recentemente superou todos os cenários previstos nas análises quantitativas de risco, mostrando que os cenários postulados 76 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... como possíveis de gerar um acidente foram subestimados ainda na fase de projeto. Diante das consequências do acidente (algu- mas ainda imprevisíveis), percebe-se que irão impactar o Japão e o Planeta por longo tempo. A sociedade japonesa tem manifes- tado o anseio pelo “risco zero” em relação à segurança nuclear, como já aconteceu na Suécia e na Alemanha, que optaram por encerrar suas atividades nessa área. Apresentamos a seguir três dos principais pontos decorrentes do acidente de Fukushima que levam a reflexão sobre a necessidade de “risco zero” em relação à segurança nuclear. Acidentes de origem externa (terremoto, maremoto e terrorismo) Centrais nucleares, inclusive as nossas em Angra, são pro- jetadas para os chamados acidentes de origem externa que são identificados tecnicamente pela sigla em alemão “EVA” (Einwir- kungen von außen). Em Angra, por exemplo, existem as seguintes premissas de proteção contra terremotos: j Proteção Contra Terremoto de Projeto: Terremoto de máxima intensidade que ocorreu no passado, dentro de uma área em torno com raio máximo de aproximadamente 50 km. j Proteção Contra Terremoto de Segurança: Terremoto de máxima intensidade que possa vir a ocorrer considerando-se uma área em com raio máximo de aproximadamente 200 km. j Efeito Combinado: Terremoto de segurança acrescido de onda de choque causada pela explosão de vaso de pressão convencional integrante da usina em consequência do terremoto de segurança. A central de Angra possui ainda redundâncias de fontes de água de refrigeração e proteção contra maremoto, atos terroristas e até queda de aeronave sobre a central. Apesar de se tratar de um projeto mais antigo, Fukushima também foi projetada para acidentes do tipo EVA, mas não resistiu ao terremoto de março de 2011 conforme esperado. Três podem ter sido as causas: j Os cálculos sobre os fenômenos naturais podem ter sido subestimados. j As instalações podem ter sido construídas abaixo do nível de dimensionamento projetado. j A gestão ou manutenção não foi adequada degradando as camadas de defesa. 77Gerenciamento de riscos Independente de qual destas tenha sido a causa, qualquer delas demonstra a vulnerabilidade da segurança nuclear e levanta a suspeita de que os resultados teoricamente precisos das análises quantitativas de risco chegaram a números muito inferiores do que os riscos reais, o que sugere o questionamento dessas técnicas de cálculo e projeto. Acidentes com perda de refrigerante (liberação de radioatividade) Centrais nucleares são projetadas com até seis camadas de se- gurança para proteger o ambiente externo de acidentes com a liberação de radioatividade por perda de refrigerante do reator. Esses acidentes são os mais temidos pelos projetistas de cen- trais nucleares e são conhecidos pela sigla em inglês LOCA (Loss-of-Coolant Accident). Por serem tão fundamentais para a segurança de um projeto de central nuclear, o LOCA também é chamado de “acidente básico de projeto”. É o acidente para o qual todo o projeto é direcionado para evitá-lo. Outros acidentes também podem gerar a liberação indesejável de radioatividade para o meio ambiente, mas o que estabelece maior risco e maior quantidade de radioatividade liberada em curto espaço de tempo é o LOCA. Em Fukushima, mesmo com as camadas de proteção e con- tenção, as dificuldades de disponibilidade de energia para manter o núcleo refrigerado resultaram no aumento de pressão no vaso do reator e finalmente o acidente de LOCA. É surpreendente, para toda a comunidade nuclear, que mesmo tendo havido um terre- moto e um tsunami de grandes proporções, uma central nuclear tenha se degradado a esse nível. Afinal, a grande “propaganda” da segurança nuclear é a de trabalhar assegurando a proteção mesmo nos cenários mais extremos, como catástrofes naturais. Foram poucas as vezes no mundo em que a engenharia nuclear foi submetida a uma prova real de sua eficiência como aconteceu em Fukushima. Infelizmente, para a sociedade japonesa, boa parte das autoridades e comunidade técnica, a segurança nuclear foi reprovada no evento real para o qual foi projetada. Efeitos da contaminação e radioatividade Muitos que defendem as vantagens da opção por geração termonuclear destacam que as centrais nucleares causam menor impacto ambiental do que as usinas térmicas e hidroelétricas. Em defesa das centrais nucleares, estas muitas vezes são identificadas como uma opção para a geração de “energia limpa”, já que não 78 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... queimam combustíveis fósseis. Esta é uma verdade, ou parte dela, pois tecnicamente a afirmação correta deveria acrescentar mais uma palavra: “energia limpa de carbono”. As centrais nucleares geram os rejeitos convencionais de quaisquer instalações industriais, como: lixo industrial, sucata, efluentes líquidos e gasosos. Até mesmo emissões decorrentes da queima de combustível fóssil são normais em centrais nucleares devido aos subsistemas, como os de geração de emergência que utilizam grandes geradores que queimam óleo diesel. Mas, quando comparadas com as usinas termoelétricas convencionais, a emissão de gases resultantes da queima de combustível fóssil realmente é muito inferior nas centrais nucleares. O problema é que usinas nucleares possuem para cada um des- ses tipos de rejeito convencional outro similar, porém contaminado por radioatividade. Assim, além dos rejeitos convencionaisque são produzidos com menor impacto ambiental do que por outras tecno- logias, as centrais nucleares a cada ciclo geram efluentes líquidos radioativos, gasosos radioativos, lixo industrial radioativo, sucata radioativa etc. Isso sem contar com o próprio elemento combustível queimado que possui produtos de fissão radioativos com meia vida de até 45 mil anos que sequer existem na natureza. Para todo esse rejeito, a engenharia nuclear forneceu uma resposta, se não definitiva, pelo menos gerenciável. As usinas gastam elevadas somas para tratar e encapsular rejeito radioativo e depois estocá-lo indefinidamente, pois até o momento a ciência e a tecnologia não possuem uma solução para o processamento defi- nitivo de rejeito radioativo. A quantidade de rejeito radioativo que é produzida, tratada, estocada e gerenciada pelas centrais nucleares já demanda grandes preocupações para a comunidade técnica e sociedade em geral. Acrescentando-se ao problema do rejeito nuclear ao longo da vida operacional das centrais, os efeitos de uma desastrosa liberação de radioatividade decorrente de acidentes como o da central de Fukushima elevam os riscos e as consequências pa- ra níveis tecnicamente ingerenciáveis. A sociedade, as autorida- des e principalmente as populações mais próximas de usinas aci- dentadas, como aconteceu no Japão, despertam para o fato de que o “risco zero” deveria ser adotado em relação ao verdadeiro terror que é o impacto de acidentes dessa ordem sobre a sociedade. Os efeitos de acidentes desse porte alteram o background de radioatividade do planeta, ou seja, estações de medição em todo o mundo registram os efeitos da pluma radioativa de acidentes 79Gerenciamento de riscos desse tipo, seja no mar, na atmosfera, alimentos e nas pessoas sob a forma de incidência de doenças como o câncer. Diante do realismo dos fatos, mesmo a sociedade japonesa com elevado nível de cultura científica e adaptados ao mundo tecnológico demonstra reconhecer os limites da natureza que devem ser respeitados. Agora o Japão clama pelo desligamento das centrais nucleares em todo o país. Busca novas opções para sua matriz energética tão dependente e limitada. Talvez seja necessário reconhecer que a ciência e a tecnologia ainda não estão totalmente preparadas caso centrais nucleares sofram acidentes dessa gravidade, mesmo que raros. O conceito de “risco zero” de acidente nuclear se reforça. E “risco zero” significa em termos práticos a não aceitação de risco, ou seja, a não aceitação de centrais nucleares. Se isso ainda não foi viabili- zado no Japão, o mais provável é a falta de opção imediata. Para os países que possuem opções alternativas para suas matrizes energéticas como o Brasil, Alemanha e Suécia o “risco zero” é viável e depende da parcela de subjetividade sempre presente em toda decisão por aceitação ou não de um risco. 4.8.3 Acidente no voo 447 Rio de Janeiro-Paris Uma falha na interação do conjunto tripulação × aeronave e cultura de segurança equivocada construíram a catástrofe. Espera-se mais da segurança de aviões do que de outros equipamentos? A falha de um instrumento básico de indicação de velocidade pode parecer muito mais complicada do que real- mente é quando esse equipamento faz parte de uma aeronave. As pessoas têm cristalizado em sua cultura geral que tudo numa aeronave é complexo, sofisticado e difícil de ser operado. Quando se fala em comandar uma aeronave, a imagem do cockpit cheia de indicações, relógios, botões vem logo a mente e faz com que as pessoas acreditem que as atividades dos profissionais na cabine de um avião sejam para “super-homens”. Essa percepção é irreal, pois toda aquela complexidade foi projetada e testada para ser operada por pessoas normais. Aliás, quanto mais normal, melhor será o operador. Visão normal, audição normal, coordenação normal, raciocínio lógico normal etc. são os fatores relevantes do perfil de um bom operador ou piloto. O perfil dos melhores operadores e pilotos é muito mais um conjunto de normalidades equilibradas e confiáveis do que uma lista de super-habilidades atípicas e imprevisíveis. 80 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... O pesquisador britânico da área de fatores humanos James Reason (2003) abordou o tema sob três perspectivas: psicológica comportamental, cognitiva (informação) e natural (orgânica). Se- gundo Reason, pela abordagem natural do erro humano, a memória primária do homem é a responsável pela percepção imediata. Mas a quantidade de itens memorizáveis depende se houver ou não a associação entre esses itens. O limite na quantidade de itens me- morizáveis pela memória primária sem associação entre si (ou seja, sem confundi-los), segundo James Reason, é de no máximo sete itens. Por isso em geral as salas de controle de usinas nucleares, cockpits de aeronaves e outras estações de controle são projeta- das para requerer o gerenciamento máximo de seis informações simultâneas e diretas durante uma emergência (funções críticas de segurança). Um sétimo canal de informação fica em aberto para a comunicação externa. Pelo menos essa seria a condição correta a ser definida em projetos de salas de controle e cockpits. Há uma grande confusão entre as dificuldades do longo cami- nho de preparação e estudo até que uma pessoa possa trabalhar num cockpit de aeronave, e as atividades que são demandadas no comando ou pilotagem de uma aeronave. O estudo e preparação exigem muita dedicação, persistência e habilidades que podem parecer tarefa de “super-homem”, mas pilotar ou comandar uma aeronave deve, necessariamente, ser uma atividade natural e tranquila para aqueles que realmente chegaram até o cockpit de comando devidamente preparados. Se ficam confusos, nervosos ao ponto de perderem os canais de percepção, ou não foram preparados para a função, ou a aeronave foi mal projetada, ou ambos. Considerando isso, pilotar um avião ou dirigir um auto- móvel pode exigir demandas cognitivas e motoras semelhantes e responsabilidades iguais sobre vidas humanas. Poderíamos então perguntar: se o velocímetro do seu carro quebrasse no meio de uma viagem, isso seria motivo justificável para você bater num poste ou cair num precipício matando todos os passageiros? Guardadas as proporções técnicas, em termos de gerenciamento de riscos e segurança, aconteceu algo bem semelhante em junho de 2009 com os 228 passageiros do voo AF 447 que decolou do Rio de Janeiro com destino a Paris. Entenda a comparação: suponha que o seu carro tivesse um piloto automático que permitisse que você ficasse sentado, na frente do volante, assistindo toda a evolução do veículo pelo trajeto. Por alguma razão o velocímetro parasse de funcionar e o computador que controlasse o piloto automático simplesmente 81Gerenciamento de riscos o desligasse por falta de informação sobre a velocidade. Nes- te momento, você que é motorista e está na frente do volante deveria assumir o controle do veículo, bem como do acelerador e do freio passando a conduzir o carro manualmente, sem o uso do piloto automático. Se a falta do velocímetro causasse maiores complicações, você poderia fazer uma parada interrompendo a viagem para corrigir as falhas do equipamento. Caso contrário, mesmo sem o velocímetro e sem ferir o código de trânsito, você como motorista conduziria o carro até seu destino final, tal- vez com um pouco mais de trabalho, mas em segurança. O que aconteceu no cockpit do voo AF 447 foi uma demons- tração de despreparo técnico da tripulação, resultado de uma cultura de segurança equivocada capaz de gerar projetos “hi-tech”, mas que subestimam a importância do elemento hu- mano na tomada final de decisões em emergências. Tubo de pitot: inventado no século XVIII O tubo de pitot, um instrumento de medição de velocidade bas- tante conhecido, inventado no século XVIII, congelou enquanto a aeronave atravessava uma tempestade sobre o Atlântico. O tubo de pitot é um instrumento relativamente simplesque mede a velocida- de da aeronave através da comparação de pressões decorrentes do deslocamento de ar e depende que pequenos furos do instrumento estejam desobstruídos para que funcione perfeitamente. Em geral, as aeronaves possuem mais de um instrumento como esse, jus- tamente para o caso de haver falha. Além disso, tais instrumentos são mantidos aquecidos por sistemas auxiliares justamente para evitar o congelamento. Lamentavelmente algo falhou e o tubo de pitot congelou bloqueando os orifícios e impedindo a medição de velocidade. Trata-se de um equipamento muito conhecido, e praticamente todos os engenheiros mecânicos construíram um protótipo de tubo de pitot durante sua formação acadêmica nas aulas de laboratório de mecânica dos fluidos. Mas mesmo assim, o equipamento falhou. Todavia apenas isso não seria suficiente para derrubar a aeronave. Há inclusive outros meios de se obter a velocidade, mas manter a aeronave em condições mínimas para manutenção do voo não depende exclusivamente do tubo de pitot. Os sofisticados sistemas de automação que têm se proliferado em nossos tempos desde os eletrodomésticos em nossas casas até as aeronaves dependem de um volume de dados coletados por uma rede de instrumentação que inclui, por exemplo, no caso do Airbus 330, o tubo de pitot. Esses dados são tratados por sistemas 82 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... lógicos complexos e reduzem a demanda cognitiva daqueles que são responsáveis pelo controle do equipamento (pilotos). Porém, isso não significa que tais operadores, ou no caso os pilotos, possam abrir mão do conhecimento técnico necessário para conduzir o equipamento em situações de emergência, nas quais o ingrediente “imprevisibilidade” sempre está presente. Para lidar com a “impre- visibilidade”, sempre presente nas emergências, nada melhor e mais sofisticado do que o cérebro humano bem preparado, capaz de me- dir consequências, considerar aspectos subjetivos e imprevisíveis, o que coloca os computadores em um patamar de inferioridade. AF 447: sem automatismo e sem piloto No voo AF 447 o automatismo no comando da aeronave parou de funcionar por falta de dados sobre a velocidade devido à falha do tubo de pitot. Os pilotos atualmente passam a maior parte do tempo supervisionando o voo e não de fato pilotando. Os treinamentos também consideram essa realidade gerada pela cada vez maior sofisticação dos sistemas de automação e não preparam suficientemente a tripulação para situações em que, durante uma emergência, eles tenham de pilotar a aeronave. Trata-se de um problema de cultura de segurança. Determinadas culturas de segurança, “encantadas” com a inteligência contida nos sofisticados sistemas de automação, acabam por considerar a capacidade humana inferior ao que de fato é, o que é uma falha grave. Mais que isso, os defensores desse grau de automação exagerada, que de certa forma minimiza a capacidade da in- tervenção humana, na realidade supervalorizam o seu próprio trabalho teórico de elaboração e projeto desses sistemas. A inteligência fascina, os sistemas extremamente automa- tizados formam uma espécie de “registro de inteligência” e, encantados com suas próprias obras-primas de automação, os fenômenos físicos, químicos e a imprevisibilidade da natureza são subestimados por alguns projetistas. Há uma ilusão de que os sistemas extremamente automatizados estejam preparados para quase tudo e sejam mais seguros. É apenas uma ilusão, talvez uma vaidade técnica. O que os acidentes ensinam é que a simpli- cidade é amiga da segurança. Isso não significa que a automação não contribua para a segurança. A automação, quando limitada pela busca de projetos simples e intrinsecamente seguros, gera muito mais acertos do que erros. Quando os erros acontecem, geralmente apontam para o distanciamento do operador dos fundamentos físicos da máquina, erro este explicável por uma 83Gerenciamento de riscos confiança exagerada na automação, muitas vezes excessiva, cara e com baixa relação custo/benefício. Pelos registros da caixa preta e conclusões do relatório final elaborado pelo Escritório de Investigações e de Análises (BEA) da Aviação Civil da França, quando o problema aconteceu a tripulação do voo AF 447 ficou muito mais preocupada em tentar recuperar a automação da aeronave do que propriamente em assumir as ações de voo manual e manter as condições mínimas de controle neces- sárias para o voo. Isso pode indicar a possibilidade de “medo de pilotar” ou “medo de operar”, comportamento típico de operadores que se afastam das atividades de rotina em decorrência de exces- siva automação em suas tarefas. Desatentos em relação à visão do “todo” e com o comandante mais experiente ausente da cabine, poucos segundos de confusão foram suficientes para selar o destino de um voo previsto para cerca de 10 horas. Voos de longa duração como esses, na rotina dos atuais pilotos, talvez se constituam de cerca de 9 horas de supervisão e uma hora de “real pilotagem”. Uma sucessão de erros de pilotagem básica e a total incapaci- dade de entender o cenário fizeram com que os fatores humanos se alinhassem a uma cultura de segurança pobre desde o projeto, e assim fosse construída uma catástrofe. O que fazer para evitar novas catástrofes como AF 447 ? Depois que uma catástrofe acontece, encontrar inúmeras falhas associadas ao evento não parece tarefa difícil. Principal- mente quando elas recaem especificamente sobre aqueles que, além de responsáveis, também foram vítimas. De uma forma ou de outra, todo o acidente tem alguma relação com uma falha humana. Mesmo que um eixo ou chapa estrutural da fuselagem se rompesse, pelo menos um erro humano relacionado com a manutenção, a gestão ou o projeto original teria sido come- tido. Portanto todo acidente envolve erro humano. O pior é que o erro humano é mesmo inevitável, pela natureza bem conhecida dos seres humanos. A solução de gerenciamento de riscos que permite a elevação da segurança é reduzir ao máximo os fatores que possam propiciar o erro humano, para que quando este venha a acontecer não chegue a provocar uma catástrofe como aconteceu com o AF 447. Indo mais além, é preciso desenvolver uma cultura de se- gurança na qual os projetos de automação tenham limites de complexidade, uma vez que a segurança é mais “amiga” da sim- plicidade do que do conforto. O excesso de automação, além de gerar vulnerabilidades operacionais, pode afastar os operadores 84 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... e pilotos do entendimento cotidiano dos fenômenos físicos, químicos que estão envolvidos em suas atividades técnicas. O mais importante para a segurança é agir conscientemente, entendendo o fenômeno e, por conseguinte, o cenário de cada instante da operação e do voo. A partir do momento em que os operadores e pilotos concentram sua capacidade cognitiva em entender “sistemas de automação”, alguma coisa está errada, pois não é essa sua atividade-fim. É bom lembrar que se existe uma automação ela foi construída com base na experiência anterior de pilotos que puderam fornecer parâmetros e informações para a construção das lógicas desses sistemas. Ou seja, a automação e os procedimentos operacionais reúnem o que se acredita ser o melhor do conhecimento acumulado sobre aquela atividade, mas não pode garantir 100% de solução para tudo que possa acontecer na realidade operacional. A atividade-fim de um piloto ou operador de qualquer máquina ou instalação é insubstituível e indispensável, além de sempre estar acima da importância da atuação de qualquer máquina. Investir na sensibilidade do operador em relação aos fenômenos com os quais lida é investir em segurança. Uma lição aprendida desse acidente para a segurança de todos os empreendimentos tecnológicos: níveis de automação devem ter limites. O cérebro humano bem treinado ainda é o melhor, mais so- fisticado e eficiente equipamento para gerenciar crises em emergên- cias. Estessão conceitos fundamentais que precisam ser enfatizados e incluídos na cultura de segurança adotada nos empreendimentos tecnológicos. Afinal, com o grau de evolução tecnológica de nos- sos tempos, os recursos de automação sempre oferecerão mais um passo em direção à substituição do homem pela máquina. Não apenas em aeronaves, mas nas indústrias, usinas nucleares e até em cirurgias através do uso de robôs capazes de realizar cirurgias mesmo à distância. Não há nada de errado em toda essa tecnologia, mas caso os robôs e computadores parem de fazer seu trabalho, conforme projetado durante um voo ou cirurgia, o cirurgião, por exemplo, deve estar preparado para enfrentar a proximidade com o paciente, seus órgãos e seu sangue já que esses são os componentes que jamais deixarão de fazer parte de sua atividade-fim. 4.8.4 Queda de meteorito na Rússia Como tratar acidentes atípicos como a queda de um meteo- rito sobre uma área habitada? A engenharia oferece algum tipo de abordagem para esse cenário? Há realmente alguma medida de segurança a ser adotada? 85Gerenciamento de riscos Classificação do acidente Acidentes envolvem sempre algum componente de impre- visibilidade e surpresa. Quase sempre não é apenas uma, mas várias causas que contribuem para que um acidente ocorra. Para que os acidentes sejam evitados, os investigadores buscam em seus relatórios a identificação da chamada causa raiz, aquela que foi a mais decisiva para que o evento chegasse às consequências indesejáveis com vítimas, perdas ambientais e materiais. Nesse contexto, uma estratégia importante é classificar os acidentes para permitir o estudo das medidas de proteção conforme os pontos de semelhança entre cada causa raiz. Existem várias formas de classificar acidentes. Basicamente podemos classificá-los quanto sua origem da seguinte forma: j Origem Operacional: quando a origem está numa ação operacional errada. j Origem de Projeto: quando a origem está num erro de projeto ou conceitual. j Origem de Construção e Montagem: quando a origem está num erro ocorrido durante a construção ou montagem. j Origem de Manutenção: quando os cuidados necessários para manter equipamentos e instalações em conformidade com o projeto original não são cumpridos, originando o acidente. j Origem Externa: quanto uma influência completamente alheia ao escopo do projeto é a causa que origina o acidente. A origem externa pode ser, por exemplo, uma catástrofe natural (terremoto, enchente, furacão, raios, meteoritos etc.) ou um ato hostil (sabotagem, queda intencional ou não de aeronave, ataque militar, atentado terrorista etc.). Acidente de origem externa No caso das consequências geradas por um meteoro que invade a atmosfera terrestre, ou um meteorito que atinge o solo terrestre, a classificação imediata é como um acidente de origem externa. Um exemplo clássico, similar, de acidente de origem ex- terna é a descarga atmosférica ou raio. O Brasil é o país do mundo que possui a maior incidência de raios. Mesmo nos países onde os raios não acontecem com tanta frequência, ainda assim os danos causados por uma descarga na atmosfera são considerados tão elevados que tornam obrigatório o uso de equipamentos de proteção como para-raios. 86 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... Também existem proteções contra terremotos, maremotos, furacões, mas estas são incluídas nos projetos quando a frequência dos eventos as justificam. Na realidade, a decisão sobre incluir um sistema de proteção contra um tipo de acidente de origem externa irá depender da conjugação de dois fatores principais: a frequência de ocorrência do evento e as suas possíveis consequências. Análise de riscos Utilizando ferramentas de análises de riscos, os especialistas primeiro identificam os potenciais cenários e perigos que podem ocorrer ao longo da vida útil do projeto. Através de uma matriz de classificação de riscos, os especialistas identificam aqueles pe- rigos que ocorrem com grande frequência e/ou aqueles com con- sequências muito severas e catastróficas. Tais perigos e cenários, uma vez identificados, passam a ser estudados, e os engenheiros projetam meios de proteção para reduzir suas consequências. O perigo propriamente dito muitas vezes é impossível de ser evitado, pois este pode ser de origem externa, estando fora do controle dos engenheiros e projetistas. Sistemas de segurança podem ser criados para reduzir as consequências catastróficas que os perigos inevitáveis possam ocasionar em caso de acidente. Meteoros e meteoritos A frequência de acidentes com fatalidades, feridos, danos ma- teriais e ambientais por eventos devido a meteoros e meteoritos é muito baixa. Embora possamos dizer que um único objeto de origem espacial com um tamanho significativo pode até destruir o planeta, a probabilidade de esse evento ocorrer é baixíssima. Por um lado, a teórica baixa frequência, e por outro a extrema severidade do evento precisam ser equilibradas nas análises de segurança. Outros fenômenos igualmente fora do controle do ser huma- no, como: descargas atmosféricas (raios), terremotos, maremotos, enchentes recebem tratamento mais rigoroso por parte da enge- nharia por causa de sua frequência significativa. Com relação aos meteoros e meteoritos, o fenômeno ocorrido em fevereiro de 2013 serviu para estabelecer mais um registro. O meteoro que atingiu a Rússia foi mais uma ocorrência para compor as estatís- ticas e lembrar que, apesar da baixa frequência, dependendo do tamanho do objeto, as consequências podem ser inaceitáveis, merecendo tratamento adequado por parte dos engenheiros ge- renciadores de riscos. 87Gerenciamento de riscos Isso já acontece no caso de proteção contra terremoto nas usinas nucleares, mesmo em locais onde não haja frequência significativa desse tipo de fenômeno. Também podemos citar o caso das inúmeras medidas de segurança antiterrorismo após a queda do World Trade Center em Nova York. O ato terrorista é um típico acidente de origem externa, embora não seja uma catástrofe natural. Assim também como os atos de sabotagem. Outro exemplo é o projeto estrutural de plataformas de petróleo que operam em alto mar. Elas são projetadas para resistir às chamadas ondas centenárias (as maiores possíveis em 100 anos). Usinas nucleares também são protegidas contra queda intencional ou não de aeronaves. Mesmo os projetos de usinas nucleares datados de antes de 11 de setembro de 2001 já consideravam esse nível de proteção e para isso algumas usinas nucleares pos- suem uma contenção externa com cerca de 70 cm de concreto especial e mais outra contenção com 2,5 cm de espessura, de aço, para proteger as partes vitais de acidentes com liberação de material radioativo. Evidentemente, cada proteção a mais representa custo e, muitas vezes, um custo inviável. Quanto aos riscos devidos a meteoros e meteoritos, o que a engenharia de gerenciamento de riscos tem a oferecer é a análise de todos estes fatores re- lacionados com a frequência e a severidade dos fenômenos naturais e assim tratar o tema dentro do realismo em termos de engenharia, viabilidade econômica e dados históricos. Na proximidade de ocorrência dos eventos acidentais envolvendo meteoros e meteoritos, a tendência natural é de se investir em estudos e em sistemas de proteções. Com o afastamento tempo- ral das ocorrências desses fenômenos, a tendência é considerar as estatísticas, equilibrar os custos e benefícios e, acima de tudo, considerar o fato inegável de que os riscos, ainda que com suas consequências bem tratadas, jamais estarão com- pletamente eliminados de nenhuma atividade humana. Neste momento, quando recentemente ocorreu um impressionante evento acidental originado por um meteoro, muitas iniciativas e ideias poderão ser alvo de estudos e avaliações por parte das autoridades e especialistas. Mas a sustentação econômica de projetos de sistemas de proteção contra meteoros e meteoritos, bem como sua construçãoe montagem, precisarão resistir aos longos períodos sem acidentes desse tipo até serem efetiva- mente implementados. 88 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... 4.8.5 Incêndio na boate Kiss em Santa Maria, RS A catástrofe de Santa Maria, com mais de 240 fatalidades, deixou clara a necessidade de mudanças no gerenciamento dos riscos associados a esse tipo de estabelecimento em todo o Brasil. Alguns pontos importantes são: Legislação Além das normas prescritivas, deveria ser exigido pelas au- toridades que cada estabelecimento realizasse, na fase de projeto, dois estudos de específicos de engenharia segurança: j Análise Preliminar de Riscos (APR) – Técnica que identifica os perigos do local através de uma reunião prévia com a participação de pessoas que tenham experiência em trabalhar nesse tipo de local (gerente, atendente, segurança, técnicos de manutenção), além dos responsáveis pelo projeto e um engenheiro de segurança que conheça a técnica de APR. O resultado será um relatório contendo uma lista com os potenciais perigos existentes na instalação. j Análise de Consequências – Com base no relatório da APR, esta técnica também reúne grupo de participantes similar para identificar os cenários acidentais relacionados com cada perigo citado no relatório da APR. O resultado da análise de consequências é outro relatório que descreve as consequências e as contramedidas previstas para cada cenário acidental postulado. Por exemplo: no caso das portas a legislação prescritiva de um determinado município pode estabelecer duas portas. Porém, com os estudos, os responsáveis pelo estabelecimento e seu projeto têm de comprovar que com apenas duas portas um possível foco de incêndio jamais ficará entre uma pessoa e uma das saídas de emergência. Caso contrário, outras portas deverão ser incluídas no projeto, tantas quantas forem necessárias até não existir mais a condição de “fogo entre homem e porta”. Isso também se aplica aos extintores, corredores, sprinklers e todos os outros itens já requeridos pelas normas. Fiscalização Deveria acontecer antes, durante e depois do evento e não somente fora do período de funcionamento do estabelecimen- to. Semelhantemente ao caso das “blitz da Lei Seca”, estes 89Gerenciamento de riscos estabelecimentos deveriam receber a visita surpresa de fiscais momentos antes, momentos depois e principalmente durante um evento para avaliar as reais condições de funcionamento. As inspeções deveriam ocorrer com poder coercitivo de interromper/ cancelar o evento, além de aplicar as multas cabíveis. É importante a fiscalização ser realizada durante o funcio- namento do estabelecimento, preferivelmente fazendo-se valer do recurso “surpresa”. Para tal, deve haver apoio policial uma vez que o evento poderá ser interrompido, necessitando força policial para organizar essa operação. A fiscalização apenas fora do momento do evento pode ser ineficaz, uma vez que arti- fícios de bloqueio e disfarce de saídas de emergência podem ser preparados especificamente para o momento de realização dos eventos com a finalidade de facilitar o trabalho dos seguranças patrimoniais e o controle de pagamento. Estratégias e equipamentos de segurança j Estabelecimento de um percentual do terreno como “área de escape” no entorno de todas as portas de acesso da edificação. Estas áreas de escape precisam ter capacidade para comportar todas as pessoas que estejam no evento (lotação máxima). Os cuidados dos seguranças patrimoniais para evitar a saída sem pagamento e tentativas de entrada indevidas nos eventos (“penetras”) deveriam se restringir aos portões externos do estabelecimento. Em outras palavras, boates e estabelecimentos similares com uma grande concentração de pessoas devem ficar em centro de terreno, de modo que as saídas de emergência possam permanecer totalmente disponíveis, sem nenhum tipo de controle que possa retardar a saída durante um sinistro. Essas áreas de escape devem existir para cada saída de emergência e não podem conter os chamados “currais” e guarda corpos os quais podem dificultar a operação de escape e abandono. j Sistemas de escape e abandono projetados através de cálculo que permita a definição clara do tempo máximo para evacuação do estabelecimento. Apresentação de evidências objetivas de compatibilidade desse tempo com os resultados dos Estudos de Análise de Consequências. Resumo de segurança com apresentação contínua ou em intervalos regulares através de telas/monitores de LCD posicionados e dedicados exclusivamente para esse fim durante todo o evento. 90 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... j Rotas de fuga e portas de emergência continuamente sinalizadas com luzes indicativas mesmo em casos de falta de iluminação pública e com intensidade suficiente mesmo havendo fumaça, inclusive cenográfica. j Sistema de combate a incêndio (água e outros meios de combate e supressão) com reconhecimento automático de “fogo confirmado” através de detecção de fogo, fumaça e temperatura possuindo painel de controle externo que possa ser monitorado de fora do local do evento. O sistema de aspersores de água (sprinklers) deve ser provido nas áreas em que não haja risco de a água atingir equipamentos energizados. Essas redes de aspersores devem entrar em operação automaticamente por ação da variação de temperatura na região assistida por cada aspersor. Salas ou locais onde existam equipamentos essenciais, ou que concentram potência elétrica ou salas de geradores devem ser assistidas por rede de aspersores com gases especiais para que o combate ao incêndio não danifique os equipamentos e amplie a extensão do problema. j Sistema de VAC (ventilação e ar-condicionado) com “dampers corta fogo” que impeçam a dispersão de gases entre ambientes e a alimentação do incêndio. O sistema VAC deve possuir um modo operacional em emergência que corte o insuflamento de ar nas áreas onde o incêndio está ocorrendo e bloqueiam a comunicação dos dutos de ventilação entre os ambientes de modo a evitar que a fumaça se espalhe. j Sistema de geração elétrica de emergência com autonomia para pelo menos quatro horas sem reabastecimento. j Barramento elétrico de emergência para atender cargas essenciais e de segurança como equipamentos do sistema de combate a incêndio. j Os materiais utilizados, não só no isolamento acústico, mas também no isolamento térmico e no acabamento de arquitetura, devem ser autoextinguíveis e não podem produzir gases tóxicos quando sob calor intenso. j Os extintores de incêndio devem ser localizados e escolhidos conforme o tipo de incêndio em conformidade com as NRs (Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho). É fundamental uma rotina de verificação da carga e dos cilindros dentro da frequência estabelecida pelas normas, além da rotina interna de observação diária quanto a possíveis utilizações indevidas (vandalismo) que são comuns 91Gerenciamento de riscos em locais como boates, o que deixaria o local do extintor descarregado descoberto. j Todo local que concentra pessoas deve possuir um plano de escape e abandono elaborado por engenheiro especialista em segurança. Esse plano deve considerar os possíveis cenários de emergência que poderão ocorrer durante a vida útil esperada das instalações. Essa identificação de cenários deve ser feita com base no relatório de Análise Preliminar de Riscos, conforme as boas práticas da engenharia de gerenciamento de riscos e segurança. Uma equipe de brigadistas treinados e certificados deve estar a postos durante todo o evento para facilitar o escape e abandono e combater o princípio de incêndio. Brigadas de incêndio locais não são recomendáveis para executar operação de combate a incêndio de grandes proporções, sendo essa tarefa cabível ao Corpo de Bombeiros Militar. Os brigadistas locais devem se restringir à facilitação do escape e abandono e ao combate mínimo, com a finalidade de impedir que o princípiode incêndio alcance o nível de incêndio propriamente dito. Estes são apenas os itens principais e mais urgentes. Cultura de segurança É necessário desenvolver um programa nacional de educação e cultura de segurança desde o ensino básico. Isso não significa a criação de nova disciplina, mas a inclusão nas ementas das disciplinas existentes (estudos sociais, ciências etc.) instruções sobre prevenção de acidentes, incêndios e ações básicas em ca- tástrofes naturais, como: enchentes, cuidados com eletricidade, produtos químicos inflamáveis e combustíveis, prevenção de acidentes com gás, comportamento coletivo em emergências e principalmente formando uma mentalidade observadora e crítica quanto a riscos e condições inseguras, combatendo a famosa expressão “vira essa boca pra lá” diante de alertas sobre riscos e perigos. É fundamental a participação dos meios de comunicação através da inserção de ações educativas e incentivadoras da cultura de segurança, seja de forma diluída no próprio enredo dos programas, como de forma explícita na programação e nos intervalos comerciais. Isso se aplica a cinema, teatro, televisão, rádio, sites de internet, impressos, literatura, outdoors e todo o tipo de mídia. 92 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... Devem ser criados cursos públicos de formação de brigadistas civis e comunitários com certificação e com baixo ou nenhum custo. Além disso, cursos de segurança para síndicos e funcio- nários de condomínios, curso de inspeção de equipamentos de segurança, cursos de layout e requisitos de rotas de fuga, todos disponibilizados para a sociedade. Também deve ser criada uma certificação que classifique o nível de segurança dos estabelecimentos comerciais em níveis 1 (elevado), 2 (médio) ou 3 (mínimo) conforme o nível de prote- ção identificado no projeto e nas instalações quanto a estratégias e equipamentos de segurança. Inclusão da exibição obrigatória de selo de certificação na entrada do estabelecimento. As diferenças de normas são significativas principalmente quando consideramos outros países. Basicamente, para o enge- nheiro o objetivo é evitar o acidente. Cumprir rigorosamente as normas não significa nenhuma garantia. Seguir regras e normas nacionais e internacionais é fazer o mínimo do mínimo. Para evi- tar acidentes é preciso muito mais do que uma postura legalista, uma vez que depois do acidente ocorrido há sempre uma história a ser contada que serve de explicação e em alguns casos “jus- tificativa” para os fatos ocorridos. É preciso desenvolver uma real cultura de segurança que resumidamente significa “atenção certa no tempo certo”. Sendo “atenção certa” aquela ação prática que impede a sequência de eventos que leva ao acidente, e “tempo certo” agir antes de o acidente acontecer. Independentemente de todos os cuidados técnicos, quando um incêndio acontece, qual deveriam ser os cuidados que as pessoas deveriam adotar para ter mais chances de sobreviver? A seguir, uma lista de algumas recomendações para ampliar as chances de sobrevivência em incêndios. Entender o que está acontecendo O que mais contribui para o sucesso de uma pessoa frente a um acidente é o grau de conhecimento que essa pessoa tem sobre os fatos que estão em andamento. Quanto mais informa- ções sobre o que está acontecendo, maiores as chances de agir corretamente. Quanto mais consciente de uma estratégia de es- cape e abandono, maiores as chances de sobreviver. Entender o que está acontecendo começa bem antes da emergência. Começa quando adquirimos uma cultura permanentemente relacionada com a segurança, a qual nos mantenha sempre atentos e mais preparados. O tempo é um fator decisivo em caso de incêndio. É 93Gerenciamento de riscos necessário analisar previamente as opções de escape e abandono, identificar antecipadamente as saídas, pensar sobre possíveis es- tratégias, manter constante atenção sobre o que está acontecendo e se permitir imaginar o que poderia ser feito numa situação de emergência. Quem age assim está mais preparado para sobreviver. Perceber rápido que existe uma emergência Estar atento aos alarmes e sinais suspeitos como fumaça, sirenes, ruídos, sons e calor pode fazer diferença decisiva. Os mais atentos têm mais chances de reagir num tempo menor. Segundos a mais no tempo de reação podem fazer diferença em caso de incêndio. Ter um plano prévio, mas não se limitar a ele Instalações industriais, edificações, aeronaves e embarcações em geral possuem um plano de escape e abandono. Mesmo que você não conheça esse plano formalmente, a sinalização, as portas e os corredores podem indicar uma estratégia. Independentemente do grau de informação sobre os planos de escape e abandono, sempre considere uma estratégia prévia sobre como sair do local em que se encontre. Alguns ambientes não possuem planos de escape, como florestas, cavernas e ambientes naturais, no entanto também é importante estabelecer uma estratégia mínima para o caso de precisar sair rápido. E quando a emergência propriamente dita acontecer, reavalie seu plano prévio considerando os fatos reais que estão presentes no cenário da emergência. Nunca se limite apenas a seguir regras e planos previamente estabelecidos. Todo acidente inclui fatores imprevistos e específicos. Os planos, procedimentos e regras são as melhores referências para se chegar à atitude correta, mas não são em si garantia absoluta de sobrevivência. O enten- dimento do cenário real pode, e deve, corrigir planos e regras previamente estabelecidos. Tentar identificar a direção de origem do fogo Antes de iniciar o escape e abandono, tente identificar de que lado está o incêndio. Pode ser que esteja progredindo no mesmo piso. Pode também estar vindo de cima ou de baixo. Fumaça e calor tendem a subir, e observar isso pode ajudar a identificar a direção de onde vem o incêndio para que seja evitada. Na dúvida saia Caso haja indício ou suspeita de um incêndio, não hesite: siga o plano prévio e saia! Depois verifique se realmente se trata ou 94 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... não de uma emergência. O máximo que vai acontecer é ter de retornar ao seu local de origem. Por outro lado, se realmente for um incêndio e a pessoa hesitar, irá logo ter toda a certeza de que se trata de uma emergência, no entanto poderá ser tarde demais. Estar preparado para escapar rápido Na hora em que se percebe o incêndio o efeito surpresa causa um impacto emocional sobre as pessoas envolvidas. A ideia inicial é sair, mas o ambiente emocional pode tornar difícil a simples localização da chave da porta. Portanto, é recomendável manter as saídas disponíveis. Por exemplo, manter as chaves na própria porta agiliza o processo, principalmente se houver fumaça. O mais importante é priorizar a vida sempre, em vez de documentos e valores. Se algum item essencial precisar ser levado (como, por exemplo, um medicamento, óculos), este por sua importância deverá ser mantido previamente em local de fácil acesso junto ao interessado ou próximo à porta, porém a regra principal é que nada tem mais valor do que a vida. Fumaça Simulações computacionais e investigações de acidentes mos- tram que a fumaça causa mais vítimas do que o fogo direto. Mui- tas vítimas, antes das queimaduras, perdem os sentidos devido a fumaça. Uma toalha molhada sobre a cabeça pode prover um tempo extra de resistência em um ambiente com fumaça. Se for fácil e rápido, entre debaixo do chuveiro com roupa antes de sair porque isso também ajuda em relação ao calor. Em geral a fumaça tende a subir, ou seja, próximo ao piso é mais provável de se respirar melhor. Fumaça negra e muito densa também cria um problema muito importante que muitas vezes é esquecido: perda de visibilidade. Não raramente ambientes podem estar parcialmente tomados por fumaça negra apenas na parte superior. Como as pessoas estão com a cabeça dentro da fumaça negra, não enxergam, ficam desorientadas como cegos e acabamrespiran- do essa fumaça negra, em geral letal e de rápido efeito. Basta abaixar-se para a pessoa perceber que a nuvem de fumaça negra está apenas na parte superior, enquanto é possível respirar e se deslocar abaixado por mais tempo. Infelizmente pessoas podem permanecer confusas e serem asfixiadas, mesmo com fu- maça apenas na metade superior do local. Portanto, em caso de fumaça negra, o mais provável é que junto ao piso as condições sejam melhores para a sobrevivência. Manter uma lanterna disponível junto aos locais de saída pode ajudar a avançar melhor 95Gerenciamento de riscos contra a fumaça. Conhecer as saídas de emergência, percorrê-las com certa frequência também faz diferença. Não deixe pessoas para trás Um erro é sair para ver o que está acontecendo e deixar pes- soas para trás sem comunicação. Se realmente estiver acontecen- do um incêndio, a velocidade de progressão pode ser tão rápida que torne impossível o retorno para avisar as pessoas que ficaram para trás. Isso pode gerar pânico e desespero, fazendo com que a pessoa tente retornar em meio a um incêndio impossível de ser enfrentado. O melhor a fazer é sair em grupo, todos juntos. São raros os casos de existirem rádios autônomos independentes capazes de garantir a comunicação durante o incêndio. Mesmo nesses casos, o melhor é saírem todos juntos para evitar perda de tempo precioso em um incêndio. Elevadores Os elevadores mais modernos possuem uma programação au- tomática para incêndio, que ao ser acionada faz com que a cabine desça para o térreo e abra a porta. Isso significa que se a pessoa es- tiver no elevador e a programação for iniciada, basta aguardar que o elevador chegará ao térreo e abrirá as portas. Porém há incêndios que interrompem a energia elétrica subitamente sem tempo hábil para a programação ser realizada. Nesse caso é preciso ter certeza de que está havendo uma emergência envolvendo fumaça e fogo antes de tentar agir. Se for necessário tentar sair, opte pela saída de emergência no teto do elevador e se não estiver disponível tente liberar a porta principal. Mas essa é uma situação extrema que deve ser evitada ao máximo, pois envolve grandes riscos. O melhor a fazer é aguardar ajuda externa, já que em caso de incêndio um dos primeiros locais a serem atendidos pelos bombeiros são os elevadores. Mesmo sem energia elétrica os bombeiros e técnicos especializados podem descer o elevador através de mecanismo existente na sala de máquinas. Energia elétrica é cortada Uma das primeiras ações a serem tomadas no combate a um incêndio é cortar a energia elétrica para reduzir a propagação do mesmo. Muitas vezes o incêndio se inicia por um curto-circuito que desliga o fornecimento de energia automaticamente mes- mo antes de um agente externo executar essa tarefa. Portanto, opte sempre pelas escadas, mantenha em local de fácil acesso lanternas disponíveis e carregadas. 96 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... Sprinklers atuam automaticamente Alguns locais possuem redes de sprinklers, que são chuveiros aspersores que possuem uma ampola ou dispositivo bloqueando permanentemente a saída de água. No caso de prédios, os sprinklers em geral funcionam a partir do momento em que as ampolas sejam rompidas pela elevação da temperatura. Somente onde haja calor, a água será liberada. Isso ajuda a economizar a água do reser- vatório durante o incêndio. Por isso alguns sprinklers podem estar liberando água, outros não. Onde os sprinklers estiverem liberando água significa que a temperatura atingiu o limite máximo previsto. Se num determinado local for possível identificar uma área com sprinklers liberando água e outra área com os sprinklers intactos, possivelmente o fogo estará mais próximo daqueles que estão abertos. Existem também outros tipos de aspersores que utilizam outros fluidos diferentes da água para combater o incêndio. Um cuidado especial deve ser adotado quando houver a identificação de uso de “CO2”. Locais protegidos por aspersores de “CO2” precisam ser desocupados antes que esse gás comece a ser liberado. Em geral há alarmes e avisos antes da liberação do “CO2” para que as pessoas saiam do local porque podem ficar asfixiadas. Esse tipo de proteção tem sido substituída gradativamente, mas alguns locais como museus, bibliotecas, cofres de documentações, salas com componentes eletroeletrônicos podem ainda utilizar o “CO2”. O objetivo é que a água não danifique obras de arte, documentos e equipamentos, entretanto atualmente existem outros fluidos que também evitam esses danos e não causam asfixia. Crianças e limitações de locomoção Se alguém tem limitações físicas mesmo que transitórias, meios de suporte devem ser providos antecipadamente para facilitar o escape e abandono. Existem cadeiras de rodas não sofisticadas, de funcionamento puramente mecânico que permitem descer escadas. Crianças pequenas devem ser levadas no colo e com o rosto pró- ximo ao do adulto. Assim as condições de respiração para ambos serão as mesmas. Frequentemente pessoas que estão socorrendo outras instintivamente buscam o ar de melhor qualidade, mas não atentam que a alguns centímetros de distância o ar pode estar irres- pirável para quem está sendo socorrido. Portas Antes de abrir uma porta observe a temperatura na superfície e se há passagem de fumaça. Em alguns casos, se do outro lado o fogo estiver intenso, uma vez aberta a porta esta não conseguirá mais ser fechada. 97Gerenciamento de riscos Não siga grupos por seguir Esteja consciente de suas ações. Não siga um grupo apenas por seguir, principalmente se não existia treinamento prévio e uma es- tratégia definida para isso. Grupos muito grandes sem treinamento enfrentam dificuldades de comunicação, o primeiro não consegue falar com o último e se o primeiro perceber que é preciso voltar os últimos poderão estar forçando o grupo para frente gerando confusão. O melhor é o treinamento prévio, mas se isso não tiver acontecido permaneça no grupo enquanto a estratégia se mostrar coerente. Apesar da situação caótica, quanto mais consciente sobre os seus atos maiores as chances de a pessoa sobreviver. Não perca tempo combatendo o incêndio Ao perceber que o fogo está fora do controle, priorize sair e deixe a tarefa de combate para os bombeiros profissionais e brigadistas. Utilize o sistema de combate a incêndio, extintores, mangueiras etc. para abrir caminho para sair. Evite o confinamento Não fique em locais confinados se há opção de saída. A hora de tomar a decisão de sair é enquanto as saídas estão disponíveis. Fuja de ficar confinado mesmo que isso pareça seguro. Só con- sidere a possibilidade de um abrigo confinado em último caso. Mas se não houver opção e for inevitável o confinamento, tente identificar o ponto com a melhor condição de ar e proteja-o como puder. Apesar de ser arriscado, alguns pontos podem, sim, resistir ao incêndio por um bom tempo. Observe se está havendo um avanço progressivo do fogo e fumaça em direção ao local. Caso positivo tente forçar a saída pelo lado oposto. Janelas são uma opção em situações extremas. Em alguns casos é possível passar entre janelas e varandas. Se isso for necessário concentre-se em onde firmar mãos e pés, e tenha em mente que se não houvesse a influência da altura talvez você fizesse os mesmos movimentos em uma aula de ginástica. Se previamente for possível manter algum equipamento como corda e pontos de fixação próximos da janela, esta será uma ação proativa que ampliará bastante as chances de sobrevivência. Nível elevado de consciência Tenha em mente antecipadamente as regras de escape e aban- dono sobre o local onde você se encontra. Mas considere também os fatos que estão acontecendo no momento real do acidente para corrigir e ajustar o plano original se isto for necessário. Seguir regras cegamente é pior do que desobedecê-las conscientemente. 98 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... Ajude outras pessoas Apesarda gravidade do estado emocional gerado durante um incêndio, tente pensar nos outros também. Evite gerar conflitos na hora do escape. É totalmente normal acontecerem divergên- cias, tensão e até brigas. Isso leva a perda de tempo, nervosismo e em termos práticos criam congestionamentos e pânico. Mantenha o senso de companheirismo e evite discussões danosas que só irão agravar o ambiente emocional da emergência. Ajude outras pessoas a sobreviverem, mas não se deixe contagiar pelo pânico de outrem. Mantenha sua atitude positiva e determinada em sobreviver em meio a um desafio extremo. As atitudes de ajuda só têm sentido quando aumentam o número de sobreviventes, não o de vítimas. Um grupo com ambiente de sobrevivência mútua tem mais chances do que um “cada um por si” desesperado. Mas nem sempre o grupo está certo em suas decisões, e em alguns casos pode ser necessário não seguir o grupo. Saiba que essa é uma decisão pessoal e você não poderá obrigar outros a concordarem com você e muito menos você poderá deixar de assumir a total responsabilidade e as consequências da sua decisão. Sorte ? Existem inúmeros relatos de sobreviventes de incêndios e de outros tipos de acidentes que não tiveram nenhuma preparação, orientação, reação ou atitude frente à emergência e mesmo assim sobreviveram. Há casos de recém-nascidos e pessoas que estavam dormindo e que foram os únicos sobreviventes dentre dezenas e até centenas de vítimas fatais. Investigando esses casos, percebe-se que muitas atitudes, escolhas e decisões inconscientes foram tomadas de modo a resultar na perfeita conjugação de todos os fatores para que aquela pessoa específica sobrevivesse. O fato relevante é que para esses raros sobreviventes tudo acon- teceu por “sorte”, mas para a maioria de milhares de pessoas que sobreviveram em todos os incêndios e tragédias, a sobrevivência veio de atitudes, escolhas e decisões corretas tomadas com um mínimo de consciência e que fizeram a grande diferença entre viver e morrer. Não acredito na sorte. Acredito em Deus, seus mistérios e na capacidade concedida ao homem de lutar pela vida. 4.8.6 Furacão Sandy, Nova York, USA Em meio aos esforços de recuperação, o Governador do Estado americano de Nova Jersey Chris Christie fez ontem a seguinte declaração: “não existem meios de resposta suficientes 99Gerenciamento de riscos para algo como o que eu vi na noite passada” (CNN Anderson Cooper), referindo-se ao impacto da supertempestade Sandy na costa leste americana. Apesar de se tratar de uma declaração que possa ter uma influência política, em termos de gerenciamento de risco está tecnicamente correta considerando-se o histórico de grandes catástrofes naturais como terremotos, vulcões, furacões, nevascas e maremotos entre outros. Diante da expectativa de eventos dessa gravidade o verbo “superar” é tecnicamente mais adequado do que o verbo “evitar”. Mesmo as regiões com a melhor infraestrutura do planeta como Europa e Estados Unidos, ou as sociedades com os mais elevados níveis de preparação para catástrofes naturais como o Japão, não conseguem viabilizar meios que possam evitar as consequências desastrosas destes eventos naturais. É o que foi registrado no caso do Furacão Katrina que em 2005 atingiu os Es- tados Unidos, das nevascas do inverno de 2010 que paralisaram a Europa e o terremoto e tsunami do Japão em 2011. Catástrofes naturais como a supertempestade Sandy são fenô- menos que envolvem uma quantidade extremamente elevada de energia, e sua ocorrência e extensão de seus efeitos dificilmente conseguem ser previstos com grande antecedência. É surpreen- dente para alguns cientistas que mesmo com toda a tecnologia e os mais poderosos computadores, tais ferramentas ainda não sejam boas para a modelagem computacional de fenômenos naturais tão complexos. As consequências da supertempestade Sandy resultaram da interação de três enormes massas atmosféri- cas, com deslocamentos diferenciados em velocidades, energia e temperaturas próprias. Um cenário complexo demais para ser simulado previamente, mesmo com a tecnologia do século XXI. Brasil Quando catástrofes como a supertempestade Sandy promo- vem a destruição em cidades como Nova York, alguns poderiam logo perguntar: imagine se isso acontecesse no Brasil? Regiões desenvolvidas como Estados Unidos, Europa e Japão em geral possuem uma infraestrutura de resposta mais estruturada e orga- nizada, mas em se tratando de eventos naturais dessa proporção, o Governador de Nova Jersey Chris Christie está certo em dizer que nada ou muito pouco pode ser feito para evitar os enormes danos às cidades. Nenhuma infraestrutura é perfeita e comparando com o Brasil, há até pontos questionáveis como a tecnologia de casas cons- truídas em madeira, muito disseminada nos Estados Unidos, sendo 100 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... menos resistentes do que as casas brasileiras que em geral são de alvenaria. Talvez o aspecto mais importante para a superação da catástrofe seja a preparação da população para desenvolver uma atitude frente a esse tipo de adversidade. Equipamentos e estruturas físicas em geral não conseguem funcionar em situações extremas dessa magnitude. O Governador Christie chegou a afirmar que não seria possível realizar resgates ou prestar socorro, pois nenhum equipamento conseguia ser mobilizado durante o evento, e o melhor que deveria ser feito seria cada pessoa se manter em local seguro até que o evento natural se abrandasse. Outro aspecto importante é que grandes cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo, apesar de terem mais es- trutura de resposta, também são mais vulneráveis, porque pos- suem sistema de transporte mais crítico, maior movimentação de pessoas, maior dependência de alimentação elétrica etc. As grandes cidades brasileiras têm evoluído bastante no sentido de se estruturarem para oferecer resposta às catástrofes naturais. A população brasileira não tem o mesmo nível de preparação que a população japonesa para reagir em eventos como esses, mas por outro lado é inegável o elevado espírito de solidariedade e mobilização o que em situações caóticas podem fazer grande diferença. Não seria justo, em situações de catástrofes naturais, atri- buir apenas às autoridades a responsabilidade para reduzir o impacto da destruição. Nem mesmo as seguradoras conseguem viabilizar coberturas para esses tipos de evento. O que realmente faz a diferença é uma sociedade preparada para a adversidade. Entende-se por adversidade algo que inevitavelmente afetará pessoas, patrimônio e meio ambiente. Uma população cons- ciente, incluindo-se nela suas autoridades, adota uma cultura de segurança desde a construção adequada dos edifícios, meios de drenagem e provimento de equipamentos de resgate, socorro e evacuação. Somente uma cultura de segurança nesse nível, aliada a uma atitude de solidariedade e mobilização frente à adversidade dá a uma população a capacidade de superação de catástrofes naturais dessa magnitude. Ao contrário do que alguns possam afirmar, o Brasil possui capacitação técnica e características de comportamento coletivo importantes para o sucesso frente a uma catástrofe natural. Cabe a cada setor da sociedade fazer a sua parte coordenando esses recursos e mantendo nossas cidades preparadas para prover a superação frente à adversidade quando isso for requerido. 101Gerenciamento de riscos 4.8.7 Desmoronamentos por tempestades de verão, Brasil Um problema que parece crônico é a repetição de catástrofes em decorrência das chuvas e tempestades no período final do verão no Brasil. O número de vítimas e a reincidência de ocor- rências podem aparentar tratar-se de um problema sem solução alcançável. A seguir, apresentamos cinco questões básicas sobre o gerenciamento desse tipo de risco. j Os desmoronamentos com grande número de vítimas, que ocorrem devido às chuvas de verão, resultam de um fenômeno natural e, portanto, sem solução?Não. Os acidentes por desmoronamentos com vítimas fatais podem ser classificados como acidentes de origem externa, ou seja, acidentes cujo fato original que os gerou é decorrente de uma influência completamente externa ao projeto. Entretanto, a causa raiz desse tipo de acidente é a inadequação do tipo de projeto em relação à sua locação. Atualmente a tecnologia de construção civil permite construir edificações em praticamente qualquer local, mas dependendo das dificuldades de construção, o elevado custo torna determinados locais inviáveis economicamente para a comercialização. Terrenos e áreas que exigem projetos e construções difíceis e caras obviamente têm menor interesse comercial. Muitas vezes esses terrenos transformam-se em áreas aparentemente abandonadas, disponíveis e até convidativas para serem ocupadas pela parcela mais carente da população. Em algumas áreas é até proibido construir edificações, e isso não está claro para todos, principalmente para a população mais carente. j Os responsáveis por esses acidentes são os próprios moradores e usuários da edificação? A princípio não. Afinal, não é esperado que alguém inten- cionalmente construa uma edificação para seu uso nessas condições de alto risco. Em geral, quando isso acontece, há uma ignorância dos moradores sobre o elevado nível de risco ou pelo menos uma cultura de segurança tão baixa a ponto de gerar uma tolerância inaceitável ao risco, por total ignorância. A responsabilidade pela educação básica, principalmente da população mais carente, é do poder público. E é na educação básica que se forma a cultura de segurança, a percepção e o respeito aos riscos, aprendem-se os cuidados necessários 102 CAPÍTULO 4 Estratégias para gerenciamento... para as intervenções do homem no ambiente natural, e se com- bate o menosprezo aos perigos. Nesse caso, ignorância mata. E o antídoto é uma boa educação básica fornecida pelo poder público aliada a informação técnica especializada. Desejar segurança pode ser algo natural e fruto de bom senso. Alcançá- la não. Alcançá-la é fruto de trabalho técnico especializado. j Que atenção certa deve ser dada a esse problema em tempo de evitar as catástrofes de final de verão? Primeiramente as regiões onde são proibidas as construções precisam ser permanentemente fiscalizadas e segregadas. A fiscalização precisa ter presteza para agir imediatamente quando for identificada alguma tentativa de ocupação. Outro fator importante é a educação e a informação dada à população. Tanto a fiscalização das áreas de exclusão como a educação básica da população são responsabilidades das autoridades. Também de responsabilidade das autoridades é a aprovação de projetos em áreas que exijam mais tecnologia para construir estruturas seguras. Muitas vezes, apesar de tecnicamente possível, o terreno exige um projeto estrutural mais robusto e caro, mas por falhas de fiscalização, projetos inadequados acabam sendo aprovados com riscos latentes, como já aconteceu, por exemplo, com hotéis de luxo construídos fora dos requisitos de segurança estrutural e que por isso sofreram soterramentos na região da Costa Verde, Angra do Reis, RJ. j Como devem agir os que já estão ocupando uma edificação que pode estar sob esse tipo de risco? O simples fato de existir a suspeita de se estar ocupando uma edificação com risco de desmoronamento faz grande diferença. O pior é ignorar completamente isso. A primeira atitude deve ser deixar a edificação até que seja verificada a adequação técnica da construção e projeto (se houver) ao terreno. Essa verificação tem de ser feita por profissional de engenharia civil, especializado em estruturas e fundações. A defesa civil dispõe desse tipo de profissional. Depois, caso haja alguma inadequação, a edificação pode ser recuperada se o custo para isso for viável. Caso não seja, o melhor a fazer é não mais fazer uso da edificação. j O que fazer quando o morador de uma edificação condenada pela inadequação do projeto ao terreno não tem para onde ir? E quando nem sequer existiu projeto, tendo sido construída uma edificação amadoristicamente, como acontece na maioria 103Gerenciamento de riscos das comunidades carentes afetadas por esse tipo de tragédia? O fato de não ter para onde ir talvez seja o que exerça maior pressão para o não abandono da edificação condenada. As autoridades, mais uma vez, são os maiores responsáveis para a resolução desse problema de infraestrutura urbana. Não há solução intermediária para esse problema. Pessoas precisam de moradia. Não havendo disponibilidade surgem as ocupações, comunidades e construções amadoras sem a menor segurança, improvisadas nas áreas disponíveis para ocupação que assim torna-se desordenada e irregular. A própria descrição do cenário desse tipo de acidente deixa clara a responsabilidade das autoridades sobre essas tragédias, que tanto se repetem. São necessárias ações a curto, médio e longo prazo, envolvendo desde a infraestrutura de habitação do país, até a fiscalização diária dos princípios de ocupações irregulares. Em termos de gerenciamento de riscos, as chamadas tempestades de verão são apenas o fenômeno natural que dispara a cadeia de eventos que geram catástrofes. A partir do primeiro evento, a tempestade, praticamente todos os demais poderiam são evitáveis por ações de um poder público capacitado e eficiente. Em síntese, as chuvas de verão são fenômenos naturais que têm menor peso no estabelecimento de tantas vítimas fatais, já que não estão no controle das pessoas. O maior peso está na responsabilidade em relação à falta de planejamento urbano e de infraestrutura habitacional. CAPÍTULO 5Escape de perigos e abandono de cenários SUMÁRIO DO CAPÍTULO 5.1 Importância dos sistemas de escape e abandono ..............108 5.2 Acidentes em Instalações offshore e sobrevivência ...........109 5.3 Interação Homem × Sistema durante o Escape e Abandono .......................................................110 5.4 Simulações computacionais de escape e abandono ..........111 5.5 Simulações computacionais de escape e abandono em instalações offshore ...................................................112 107Gerenciamento de riscos A proposta de uma abordagem para gerenciamento de risco e segurança baseada em fatores humanos e cultura de segurança está conceitualmente definida nos capítulos anteriores. Para demonstrar a aplicação prática desta proposta, foi necessário escolher um sistema de segurança específico considerado como ideal para o início da implementação dos conceitos de fatores humanos e cultura de segurança no gerenciamento de riscos e segurança de empreendimentos tecnológicos. O sistema escolhi- do foi o sistema de escape de perigos e abandono de cenários. O nome adotado, sistema de escape de perigos e abandono de cenários, baseia-se na nomenclatura adotada pela ISO – Inter- national Organization for Standardization – n° 13702 (Petroleum and natural gas industries − Control and mitigation of fires and explosions on offshore production installations − Requirements and guidelines). Frequentemente, o termo evacuação é utilizado pelos profissionais de gerenciamento de riscos, pelas normas e procedimentos. Mas de acordo com a ISO 13702, o termo evacuação refere-se ao método planejado para deixar a instala- ção durante uma emergência, enquanto o ato de efetivamente deixar a instalação durante uma emergência é denominado pela ISO 13702 como abandono. O significado do termo escape na mesma norma ISO 13702 é o ato de as pessoas se afastarem do evento perigoso propriamente dito para um local onde os efeitos desse evento sejam reduzidos ou eliminados. Escapar não signi- fica necessariamente sair do cenário do acidente, enquanto aban- donar significa exatamente isso, mesmo que o abandono do cenário do acidente seja para passar a fazer parte de outro cenário de risco, desde que fora da influência do primeiro. As simulações computacionaisapresentadas neste trabalho permitem estudar os atos das pessoas durante o acidente e, a partir desses resultados, é possível reavaliar os métodos e plane- jamentos teóricos. Decidimos por utilizar o termo abandono por ser mais preciso em relação à nomenclatura da norma ISO 13702. Portanto, as simulações estudadas neste trabalho se referem pri- meiramente ao ato de as pessoas se afastarem do perigo imediato, ou seja, se afastarem do local onde o evento gera consequências que afetam as pessoas imediatamente. Depois de as pessoas es- caparem do perigo imediato através de rotas de escape (ou de fuga do perigo, como adotado em algumas nomenclaturas), se necessário, essas pessoas irão efetivamente abandonar a ins- talação e, consequentemente, passarão a ser consideradas fora do cenário original do acidente, mesmo que inseridas em outros 108 CAPÍTULO 5 Escape de perigos e abandono cenários de riscos, todavia não mais sob a influência direta do cenário original do acidente. Portanto, adotamos a denominação sistema de escape de perigos e abandono de cenários ou, de forma simplificada, sistema de escape e abandono, pela sua precisão e coerência com a norma ISO 13702, definindo assim de forma mais precisa o sistema de segurança a ser utilizado para introduzir a abordagem de fatores humanos e cultura de segurança em empreendimentos tecnológicos, e em especial em instalações offshore (nosso estudo de caso). Neste capítulo iremos apresentar as razões da escolha do sis- tema de escape de perigos e abandono de cenários, bem como a potencialidade dos resultados decorrentes desta escolha. 5.1 IMPORTÂNCIA DOS SISTEMAS DE ESCAPE E ABANDONO Considerando o princípio 1 de fatores humanos (centralização de objetivos nas pessoas), o sistema de segurança com maior potencial para salvar vidas em um acidente é o sistema de escape e abandono. Diante da ocorrência de uma situação de perigo, afastar-se dele é a atitude padrão e se aplica a qualquer em- preendimento tecnológico. Muitas vezes, quando o tema é segurança, há uma tendên- cia natural em priorizar a atenção para os sistemas de água de combate a incêndio, detecção de chama, calor e gás por estarem diretamente associados com a mitigação do mais básico acidente postulado em empreendimentos tecnológicos: o incêndio. No caso de instalações offshore, o incêndio é um dos mais importantes cenários estudados nos projetos dos sistemas de segurança, e talvez a maior ameaça a essas ins- talações. Mas a abordagem baseada no princípio 1 de fatores humanos permite perceber que, se o acidente acontece, os sis- temas de combate a incêndio e detecção protegem com muito mais eficiência a própria instalação. Obviamente tais sistemas também servem para proteger as pessoas, mas de forma in- direta. Já o sistema de escape e abandono tem o objetivo direto de proteger as pessoas estando, assim, diretamente alinhado com o princípio 1 de fatores humanos: centralização de ob- jetivos nas pessoas. Mais adiante, no Capítulo 7, trataremos da definição conceitual de cenários nos quais o assunto será abordado de forma detalhada. 109Gerenciamento de riscos 5.2 ACIDENTES EM INSTALAÇÕES OFFSHORE E SOBREVIVÊNCIA Os conceitos deste trabalho se aplicam a qualquer tipo de em- preendimento tecnológico em que a interação homem × sistema seja importante, e isso torna essa aplicação bastante geral. Portanto, mesmo havendo particularidades técnicas no estudo de caso de escape e abandono de instalação offshore, os conceitos desenvol- vidos têm aplicação geral para empreendimentos tecnológicos. O acidente em instalação offshore com o maior registro de vítimas fatais foi a explosão, seguida de incêndio e, consequente destruição com perda total da plataforma fixa Piper Alpha em 6 de julho de 1988 no Mar do Norte. Foram 167 mortes e 62 sobreviventes. A maior parte das vítimas fatais estava no casario aguardando um resgate que jamais chegou. Esse comportamento era o previsto em normas, e os operadores haviam sido treinados para agir assim. Por outro lado, os 62 sobreviventes não seguiram os procedimentos porque conseguiram, no momento do acidente, identificar fatores que levariam a um provável insucesso, se assim o fizessem. Grande parte dos sobreviventes saltou diretamente para o mar indo frontalmente contra o treinamento e as normas. O relato dos sobreviventes inclui a importância da atitude do primeiro a saltar para o mar, que ao assumir esse risco levou outros também a ter a mesma atitude certa no tempo certo e por esse meio extremo conseguiram abandonar a instalação num cenário de incêndio e degradação extrema, passando para um cenário de sobrevivência no mar, também de alto risco, mas cuja aceitação fez a diferença entre a vida e a morte. Enquanto aguardavam o resgate no casario seguindo os procedimentos estabelecidos, os sistemas de combate a incên- dio estavam operantes, mas mesmo assim não tinham como fazer frente a um incêndio de tal proporção. Os sistemas de combate a incêndio de uma unidade offshore são tecnicamente dimensionados para mitigar “princípios” de incêndio, sendo eficientes nos primeiros segundos, ou por alguns minutos, com o objetivo de evitar o escalonamento imediato do acidente da categoria de princípio de incêndio para um cenário de incêndio de grandes proporções. Devido aos tamanhos de inventários de hidrocarboneto existentes nas instalações offshore de exploração e produção de óleo e gás, o combate a um incêndio de grandes proporções é tecnicamente limitado. É muito grande a diferença de energia que o inventário de hidrocarboneto disponibiliza 110 CAPÍTULO 5 Escape de perigos e abandono para alimentar o incêndio em relação à energia possível de ser removida por resfriamento e abafamento através dos sistemas de combate a incêndio, seja por água, espuma, gases ou quaisquer outros disponíveis no mercado offshore. Em instalações offshore, o escalonamento de um princípio de incêndio para um incêndio propriamente dito pode ser muito rápido. Nessas circunstâncias, o sistema que tem maior influência direta em salvar vidas é o de escape e abandono. Os demais sistemas são importantíssimos para fornecer mais tempo para as pessoas saírem antes de um possível escalonamento ocorrer, aumentando assim a eficiência do sistema de escape e abandono. Isso se aplica também aos demais cenários de acidente, mesmo sem incêndio, como no caso de danos estruturais e de estabilidade que podem conduzir a instalação a uma avaria estrutural grave e, consequentemente, ao afundamento. Nesses casos, também o sistema mais diretamente associado ao salvamento de vidas é o de escape e abandono, sendo os demais também responsáveis para fornecer tempo extra, caso seja inevitável o escalonamento de um cenário inicial de acidente de avaria naval para um cenário crítico e irreversível com perda da estabilidade e flutuabilidade. 5.3 INTERAÇÃO HOMEM × SISTEMA DURANTE O ESCAPE E ABANDONO Considerando o princípio 3 de abordagem de projeto por fatores humanos, a interação homem × sistema deve ser con- trolada de modo a limitar as consequências dos erros humanos para que estes não venham a desencadear um cenário de acidente catastrófico. Se há uma emergência em uma instalação offshore e, em tempo hábil, as pessoas escapam e abandonam a instalação sem danos, isso pode ser considerado uma vitória de eficiência técnica da segurança da unidade como um todo, além de reduzir significativamente o impacto negativo do acidente na imagem da empresa, o que representa custos. A operação de escape e abandono propriamente dita ma- ximiza a interatividade homem × sistema em todos os níveis. Assim que o processo é deflagrado, os sistemas de automação através de seus intertravamentos de segurança intensificam a comunicação com os operadores da sala de controle, e ambos, homem e máquina, passam a trabalhar na tentativa de obter a mais completa identificação do cenário do acidente para que este 111Gerenciamento deriscos seja corretamente avaliado e tenha a resposta operacional certa no tempo certo conforme os princípios de cultura de segurança. Além da interação de maior percentual de carga cognitiva que acontece na sala de controle, por toda a unidade as pessoas irão interagir com a máquina (plataforma) desde a percepção pela sonorização e alarme, preparações imediatas para escape e abandono, além de intensa interação física ao tentar identificar a melhor rota de escape e abandono, considerando o impacto das consequências do acidente e a interação com as demais pessoas envolvidas, que, embora possam estar com os mesmos objetivos, podem ter atitudes e decisões individuais completamente dife- rentes, em alguns casos compatíveis entre si e em outros não. A operação de escape e abandono justifica que sejam criadas ferramentas de estudo capazes de considerar a complexidade de centenas de interações homem × sistema simultâneas, motivadas pela sobrevivência, e que ocorrem sob um cenário crítico, com particularidades para cada projeto, e que exige presteza de atitu- de. Uma análise do sistema de escape e abandono baseada apenas no cálculo de tempo de deslocamento para o homem mais dis- tante do ponto de abandono, considerando sua velocidade média esperada, não retrata a realidade complexa do que ocorre no escape e abandono de uma unidade offshore, tanto tecnicamente como comportamentalmente. 5.4 SIMULAÇÕES COMPUTACIONAIS DE ESCAPE E ABANDONO Para o projeto de sistemas de escape e abandono realísticos e eficientes, a quantidade de informações requerida é elevada. É preciso considerar que no momento da emergência, há pos- sibilidade de haver pessoas em cada local acessível da unidade, bem como cada pessoa pode ter uma reação inicial diferente, uns com resposta mais rápida, outros mais lenta. Dependendo da lo- calização e da função técnica de cada pessoa, poderá haver tarefas a realizar antes do início do escape e abandono propriamente dito. A posição provável de cada pessoa também pode ser alterada conforme o horário do acidente, se durante o dia ou noite. Tam- bém não podemos deixar de reconhecer que o tempo de reação para responder aos alarmes e iniciar a ação de escape e abandono também sofre influências diferentes do horário diurno e noturno, e isso depende de cada indivíduo. 112 CAPÍTULO 5 Escape de perigos e abandono As velocidades das pessoas também podem ser diferentes entre si. Seja por conta do grau de conhecimento técnico sobre a unidade, experiência operacional ou mesmo por idade, gênero, características antropométricas ou simplesmente pelo comporta- mento psicológico. Também haverá variações de velocidade até mesmo para uma mesma pessoa, uma vez que existem escadas, portas e em acidentes com danos navais a unidade poderá sofrer adernamento, inclinando-se, o que reduziria a velocidade, assim como também no caso de possíveis alagamentos. Fumaça e temperatura elevada podem afetar as pessoas duran- te o escape e abandono e, lamentavelmente, levar a fatalidades, principalmente se tais elementos estiverem presentes em locais com congestionamentos. Os procedimentos operacionais previa- mente estabelecidos e o treinamento das pessoas podem requerer, por exemplo, o deslocamento para cabinas em busca de coletes, gerando mais congestionamento e retardo. Como podemos observar, somente uma simulação computa- cional poderia fazer a gestão simultânea destes e muitos outros fatores que existem numa operação de escape e abandono real. Através de uma simulação computacional é possível incluir as características de cada pessoa e distribuí-las nas mais variadas configurações num modelo 3D da instalação, considerando to- dos os parâmetros citados além de outros mais, como os efeitos de propagação de incêndio e os movimentos do mar quando isso for requerido. Mais ainda, é necessário ser possível repetir as simulações em bateladas, cobrindo o maior número possível de variação na distribuição das pessoas, tratar estatisticamente os resultados gerados e oferecer respostas fundamentais para a priorização da segurança conforme os princípios de cultura de segurança, de tal forma que o projeto dos sistemas de escape de perigos e abandono de cenários possa prover a atenção certa no tempo certo, maximizando as chances de sobrevivência em cenários de acidentes em instalações offshore. 5.5 SIMULAÇÕES COMPUTACIONAIS DE ESCAPE E ABANDONO EM INSTALAÇÕES OFFSHORE O uso de simulações computacionais de escape e abandono em instalações offshore possibilita reproduzir o que acontecerá duran- te a emergência em termos de sobrevivência de pessoas, para tantos cenários acidentais quantos sejam necessários. É possível estudar 113Gerenciamento de riscos o deslocamento de pessoas durante a emergência e também as consequências de seus respectivos comportamentos. Tais simulações podem ser usadas na fase de projeto para sugerir mudanças que reduzam os congestionamentos e proble- mas das rotas de escape. Podem ser usadas também em unidades em operação para estudos de melhoria e até mesmo em tempo real, paralelamente ao andamento de tarefas críticas e especiais. Além de aspectos de segurança, o deslocamento de pessoas pode ser estudado sob o ponto de vista de eficiência operacional, verificando-se, por exemplo, o grau de perturbação que um grupo de trabalho atuando numa área específica pode trazer à unidade como um todo. É possível também agregar, através da importação de dados para um único modelo 3D da instalação, os resultados de ou- tros tipos de análises como estudos de propagação de incêndio, explosão e dispersão de gases, sejam esses estudos em fluido- dinâmica computacional ou, em inglês, computational fluid dynamics (CFD), ou baseados em outras técnicas, sempre com o diferencial inovador de permitir a interação das ferramentas tradicionais da segurança com as pessoas, uma vez que esse tipo de simulação inclui explicitamente pessoas interagindo com a instalação durante a emergência. A simulação computacional de escape e abandono também serve como ferramenta ideal para introdução da abordagem da segurança offshore através dos conhecimentos de fatores huma- nos e cultura de segurança, que representam o que há de mais atualizado em termos de gerenciamento de riscos e segurança. Esse é o principal motivo da sua escolha como estudo de caso. Como pode ser observado, o potencial de uma ferramenta computacional capaz de prover soluções desse tipo representa uma enorme evolução tecnológica em termos de segurança off- shore. Mais que isso, pode ser vista como um ponto de ruptura tecnológica levando a uma abordagem da segurança offshore fundamentada em princípios de fatores humanos e cultura de segurança. Não apenas em projetos offshore, mas em todos os empreen- dimentos tecnológicos os técnicos devem buscar a identificação, adequação e desenvolvimento de ferramentas inovadoras capazes de prover evolução tecnológica introduzindo a abordagem ba- seada em princípios de fatores humanos e cultura de segurança. Nem todas as ferramentas computacionais são homologadas para a realização de simulações computacionais com confiabilidade. 114 CAPÍTULO 5 Escape de perigos e abandono Um software utilizado em segurança marítima para navios de passageiros, homologado pela IMO, pode ser adaptado para apli- cação em instalações offshore de exploração & produção de óleo e gás, mas é necessária experiência para fazer esse uso adaptado. Nos capítulos subsequentes, iremos descrever tecnicamente, passo a passo, a metodologia que conduziu a identificação, ade- quação e desenvolvimento de simulação de escape e abandono, em 3D, de uma instalação offshore do mercado de gás e petróleo. CAPÍTULO 6Aplicação prática em instalações offshore SUMÁRIO DO CAPÍTULO 6.1 Características do software de simulação .........................118 6.2 Características da unidade offshore em estudo .................120 6.3 Importação de documentos originais de projeto ................1216.4 Construção do modelo 3D ................................................122 6.4.1 Adaptação da área de processo..........................123 6.4.2 Adaptação da área do casco ..............................124 6.4.3 Adaptação da área da superestrutura .................125 6.5 Definição de agentes a bordo e seus parâmetros comportamentais .............................................................125 6.5.1 Dimensionamento da tripulação e características gerais dos agentes a bordo ........126 6.5.2 Experiência operacional dos agentes a bordo ......126 6.5.3 Gênero dos agentes a bordo ..............................127 6.5.4 Idade dos agentes a bordo ................................128 6.5.5 Velocidades de deslocamento dos agentes a bordo ..........................................128 6.5.6 Tempos de reação dos agentes a bordo ...............129 6.5.7 Posicionamento físico dos agentes na unidade ....130 6.5.8 Tarefas especiais para agentes específicos durante a emergência ........................................131 6.5.9 Medição dos efeitos da emergência sobre a integridade das pessoas .................................132 117Gerenciamento de riscos Não é nosso objetivo a criação de softwares de simulação computacional, nem o estudo específico das programações in- ternas e modelagens matemáticas empregadas nos mesmos. O escopo deste trabalho é a abordagem dos assuntos de geren- ciamento de riscos e segurança fundamentada nos princípios de fatores humanos e cultura de segurança, e a investigação dos resultados obtidos com a aplicação desses fundamentos na melhoria, por exemplo, dos sistemas de escape de perigos e abandono de cenários de emergência em instalações offshore. São vários os tipos de estudos, análises de risco, softwares, simu- ladores utilizados no gerenciamento de riscos dos empreendimentos tecnológicos desde a fase de projeto até o fim da vida útil de cada empreendimento. Esses estudos e análises são normalmente dis- persos, não se conectando diretamente entre si, principalmente no que se refere a interação do elemento humano com os cenários estudados. Um novo conceito, o qual denominamos Full Safety Analysis (Análise Completa de Segurança) permite agregar numa só ferramenta de análise, nuvens de pontos relativas aos estudos de dispersão de gases, propagação de incêndio, explosão num único modelo 3D que permite incluir a parte mais importante a ser pro- tegida: a interação com o elemento humano. Um estudo realizado dentro desse conceito permite avaliar, ainda que limitadamente, a interação homem × sistema e o comportamento tanto dos agentes individualmente como em grupo, frente a um cenário de emergência. Existem vários softwares no mercado que simulam escape e abandono em edifícios, hospitais, regiões urbanas, aviões e navios. Um dos mais completos é o software Exodus, criado pelo School of Computing & Mathematical Sciences (University of Greenwich, UK). A Siemens, empresa de tecnologia multina- cional de origem alemã, apresentou em 2012 um protótipo de ferramenta de simulação computacional de escape e abandono que inclui elementos do comportamento humano. Essas ferra- mentas são utilizadas para melhorar os projetos de segurança de empreendimentos tecnológicos e são capazes de simular cenários que incluem incêndio, explosão, fumaça, temperatura, alagamento, comportamento humano e a influência de catás- trofes naturais, como enchentes e terremotos, e até situações de emergência decorrentes de ataques terroristas. A maioria desses softwares estabelece um considerável grau de complexidade de programação para a elaboração de cenários, para a confecção de modelos, bem como significativo treina- mento para a sua utilização por engenheiros. Alguns exigem 118 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... também considerável tempo de processamento computacional para conseguir resultados objetivos. Não identificamos ainda um software criado especificamente para instalações offshore de exploração e produção de óleo e gás. Qualquer software a ser utilizado para esse fim requer o trabalho de adaptação de suas funcionalidades às características específicas das instalações offshore. Os softwares mais indicados para esse trabalho de adaptação são os que simulam as operações de escape e abandono em navios de passageiros nos cenários de emergência e de embarque e desembarque regulares. Identificamos um software capaz de incluir nas simulações de cenários de incêndio efeitos do calor e fumaça sobre as pes- soas, a inclinação do flutuante, os aspectos comportamentais e os movimentos da unidade, seja em condição de avaria ou não. Consideramos esse software aplicável ao estudo de caso de uma instalação offshore desde que suas funcionalidades sejam adaptadas pelo usuário. Uma adaptação tecnicamente correta permite a abordagem do tema escape e abandono baseada nos princípios de fatores humanos e cultura de segurança. 6.1 CARACTERÍSTICAS DO SOFTWARE DE SIMULAÇÃO O software utilizado em nosso estudo denomina-se EvE/ Evi (2008) e foi criado pela empresa Safety at Sea Ltd (especia- lizada em análise de segurança marítima) em conjunto com o Departamento de Arquitetura Naval da University of Strathclyde, Glasgow, UK. Evi (módulo de simulação do software) é uma ferramenta usada para simular o movimento de pessoas em qualquer tipo de ambien- te, mesmo onshore. Esse software tem sido usado para modelar a circulação e o abandono de pessoas em navios, estruturas offshore de produção de energia eólica e edifícios. O programa trabalha com uma interface 3D, a qual permite ao usuário preparar uma apresen- tação realista de cenários e fazer modificações em tempo real. As pessoas são modeladas como agentes individuais e intera- gem entre si e com o ambiente da instalação no qual se inserem. Não há limitações para o número de pessoas nem do tamanho do ambiente a ser modelado. Variáveis demográficas e antropomé- tricas que podem impactar o comportamento das pessoas, como, por exemplo, idade e gênero, bem como as velocidades das pes- soas, podem ser atribuídas aos agentes probabilisticamente. 119Gerenciamento de riscos Programações realizadas no Evi podem incluir nos cenários simulados a atribuição de tarefas a serem executadas e atribuídas a pessoas específicas. Assim é possível criar uma circulação de pessoas bastante complexa, e definir previamente regras de in- teração e as influências dos procedimentos adotados na instalação (por exemplo, os procedimentos operacionais de uma unidade em operação, ou os procedimentos de construção e montagem de um navio ainda não finalizado). Uma gama de resultados pode ser obtida através da reprodu- ção dos filmes das simulações conjugada com a utilização das facilidades de medição dos parâmetros técnicos envolvidos. A visualização 3D permite a observação do evento a partir de qual- quer ponto de vista, sendo possível a gravação das simulações e a repetição das mesmas em bateladas para tratamento estatís- tico. Um conjunto de funções de análise é capaz de fornecer gráficos, estatísticas e a identificação de congestionamentos além da verificação da eficiência dos meios de escape e abandono. O software subdivide-se em dois componentes indepen- dentes: um denominado EvE – Evacuation Editor, que é um software para fazer especificamente a edição do modelo 3D do ambiente a ser simulado; e um componente principal deno- minado Evi – Evacuation Analysis Of IMO Ship, que é um soft- ware que importa o modelo 3D do EvE (módulo de modelagem do software) e permite a inserção das variáveis relacionadas com a população e de todos os parâmetros característicos do cenário em estudo, criando assim a simulação propriamente dita. As Figu- ras 6.1 e 6.2 mostram as principais telas de interface dos softwares. FIGURA 6.1 Tela de interface do software Evi (simulador). Cortesia Safety-at-Sea, Glasgow UK, http://www.safety-at-sea.co.uk/ 120 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... 6.2 CARACTERÍSTICAS DA UNIDADEOFFSHORE EM ESTUDO Para este trabalho foi escolhido um FPSO (Floating Pro duction Storage and Offloading) (Figura 6.3) que é uma unidade offshore de exploração & produção de óleo e gás resultante da conversão de um petroleiro VLCC (Very Large Crude Carrier). FIGURA 6.2 Tela de interface do software EvE (editor do modelo 3D). Cortesia Safety-at-Sea, Glasgow UK, http://www.safety-at-sea.co.uk/ FIGURA 6.3 Modelo 3D do FPSO estudado. 121Gerenciamento de riscos O FPSO escolhido para estudo é suposto ter uma capacidade ins- talada para processar e tratar 180 mil barris de petróleo dia (bpd) de óleo, 6 milhões de m3/d de gás e injetar 42 m3/d de água des- sulfatada. A unidade é suposta ser instalada em lâmina d’água de 1600 m. O POB (People on Board) da unidade é previsto em projeto para 110 pessoas. O sistema de escape de perigos e abandono de cenários do FPSO em estudo foi projetado em conformidade com as seguin- tes normas: j ISO 13702 Control and Mitigation of Fires and Explosions on Offshore Production Installations j IMO SOLAS: Safety of Life at Sea j IMO MODU CODE: Mobile Offshore Drilling Units j NORMAN 01 Norma da Autoridade Marítima Brasileira para Embarcações Empregadas na Navegação de Mar Aberto j REQUISITOS DE SOCIEDADES CLASSIFICADORAS (American Bureau of Shipping (ABS), Stiftelsen Det Norske Veritas (DNV), Bureau Veritas S.A.(BV), Lloyd's Register Group (LLOYD’S) j API RP 14J American Petroleum Institute – Design and Hazards Analysis for Offshore Production Facilities. j OPERADORA Especificações Técnicas e Normas Aplicáveis à Segurança Offshore de cada Operadora. 6.3 IMPORTAÇÃO DE DOCUMENTOS ORIGINAIS DE PROJETO O projeto do FPSO em estudo (ver o arranjo na Figura 6.4) é recente, e os documentos originais do projeto básico foram dis- ponibilizados em MicroStation (.dgn). O software de edição do modelo 3D requer que os documentos originais em MicroStation (.dgn) sejam convertidos para o formato Data Exchange Format (.dxf) a fim de que sejam importados sem perdas significativas de informações. Foram convertidos desenhos das disciplinas de ar- ranjo físico, naval, arquitetura e segurança formando um conjunto de cerca de 90 desenhos como fonte para a edição do modelo 3D do FPSO em estudo. Além dos desenhos originais, foram utilizadas as especificações técnicas e os relatórios de análises de segurança de modo a compor o conjunto de informações necessárias para a confecção do modelo 3D. 122 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... 6.4 CONSTRUÇÃO DO MODELO 3D Após a importação dos documentos originais de projeto para o software os mesmos são organizados pelo software, por nível, em relação à quilha do FPSO. Os documentos são também re- ferenciados através da definição de um ponto (0,0,0) em cada desenho para fins de posicionamento tridimensional. Cada documento é associado a um nível de deck do FPSO. O modelo 3D, para ser construído, requer uma precisão de detalhes maior do que a disponibilizada pelos documentos de projeto, o que implica na necessidade de criação de decks intermediários, como, por exemplo, os pisos intermediários de escadarias. Esse grau de detalhamento é muito importante para que o modelo 3D funcione perfeitamente, uma vez que todos os locais acessíveis da unidade precisam estar devidamente interligados. Qualquer falha ou inconsistência técnica impede automaticamente o funciona- mento do modelo e, consequentemente, de todas as simulações. Após a importação dos documentos, os ajustes necessários e a criação dos decks intermediários, o modelo 3D do FPSO em estudo foi construído com um total de 45 decks. Durante a edição do modelo 3D, são estabelecidas as posições das muster stations (pontos de reunião) com base nas definições do projeto original. Observa-se que os modelos 3D utilizados pa- ra as simulações de escape não possuem as mesmas definições de FIGURA 6.4 Arranjo geral final do FPSO estudado. 123Gerenciamento de riscos localização de muster stations que os modelos 3D utilizados para simulações de abandono, pois os procedimentos operacionais supostos serem adotados no FPSO em estudo estabelecem que após o escape as pessoas irão se concentrar em salas específicas no casario, enquanto a concentração de pessoas na simulação de abandono está prevista para a área de embarque nos lifeboats (embarcações de salvamento). Analogamente, a decisão pelo abandono pelos lifeboats de bombordo ou de estibordo também irão requerer posições diferenciadas das muster stations. Portanto, foram necessários três modelos 3D para atender às diferentes categorias de simu- lações de escape, de abandono por bombordo e de abandono por estibordo. 6.4.1 Adaptação da área de processo A área de processamento de óleo e gás da instalação offshore é a área que gera maior dificuldade de adaptação técnica durante a edição dos modelos 3D. O software utilizado foi desenvolvido para navios de passageiros, e a área de processo é totalmente estranha ao programa de edição dos modelos 3D. Não que os recursos técnicos disponíveis no software não sejam suficientes para representar a área de processo, mas o entendimento sobre as rotas, os equipamentos e a circulação de pessoas em unidades offshore não tem corres- pondência com as interfaces de edição do software. É necessária grande vivência de campo, conhecimento operacional e de projetos de instalações offshore para se conseguir fazer as devidas correspon- dências entre os módulos, vasos, tanques e inúmeros equipamentos da indústria offshore com as funcionalidades disponíveis no software para a construção do modelo 3D. Alguns módulos possuem níveis e mezaninos onde frequen- temente pode haver pessoas, outros por questões de segurança são raramente frequentados. Escadas verticais, não previstas pelo software, precisaram ser criadas por adaptação, pois esse tipo de acesso é característico nos módulos de processo. Rotas de circulação que exigem o desvio de inúmeras interferências normais no campo não são ordinariamente criadas pelo software. Em alguns casos, foi necessário criar rotas equivalentes para manter a máxima representatividade entre a plataforma real e o modelo 3D criado virtualmente. A adaptação da área de processo foi feita com grau de representatividade técnica aceitável para compor um modelo 124 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... 3D da unidade, incluindo todos os módulos e todos os níveis es- tabelecidos no projeto do FPSO em estudo. A Figura 6.5 mostra o exemplo esquemático de arranjo interno do módulo 10 (injeção de água), incluindo escadas e acessos. 6.4.2 Adaptação da área do casco As áreas sob o main deck no interior do casco do FPSO em estudo podem ser divididas em um conjunto de áreas de ocupação menor na proa e um conjunto de áreas densamente ocupadas da popa. O conjunto de áreas da popa é subdividido em vários decks, mezaninos sendo significativamente compartimentado. A maior parte do volume no interior do casco contém áreas consideradas não habitadas para fins de operação do FPSO. Nessa região, encontram-se os grandes tanques de serviço da unidade considerados nesse trabalho como locais desabitados. Embora mantenham certa reciprocidade com a região equi- valente existente em navios de passageiros, os decks da popa no interior do casco possuem muitas diferenças na distribuição de salas e equipamentos. Para exemplificar, o FPSO em estudo não possui mais o motor principal depois da conversão de VLCC para FPSO. Muitos equipamentos e salas operacionais típicas de ins- talações offshore fazem parte dessa região da unidade e exigiram adaptações das funcionalidades do software estudado para serem modeladas. É indispensável conhecimento técnico específico FIGURA 6.5 Detalhe de módulo offshore e suas rotas de fuga. 125Gerenciamento de riscos da área offshore, vivência presencial em unidades desse tipo e conhecimento de projeto para que a edição do modelo em 3D mantenha representatividade técnica com o FPSO real. As es-cadas verticais também são bastante utilizadas nas áreas internas ao casco e vários mezaninos e passarelas são de piso gradeado exigindo conhecimento específico de projeto offshore para uma interpretação precisa dos desenhos dessa região, especialmente as interligações indispensáveis para a edição do modelo 3D, uma vez que estas nem sempre estão explícitas nos desenhos originais, mas apenas indicadas para posterior interpretação realizada por especialista em projetos offshore. A adaptação das áreas no interior do casco foi realizada com sucesso mantendo nível tecnicamente aceitável de correspondên- cia com o projeto original do FPSO possibilitando a edição do modelo 3D da unidade com elevado grau de representatividade. 6.4.3 Adaptação da área da superestrutura As áreas da superestrutura (também conhecidas como casario) são as que mantêm maior correspondência com as funcionalida- des do software, já que são bastante similares quando comparadas com os arranjos de navios de passageiros. Embora sejam mais fáceis de ser editadas, são também as mais trabalhosas pela quantidade de compartimentos e detalhes. As áreas de recreação, dormitório e trabalho podem ser editadas com relativa facilidade, utilizando-se os recursos já disponíveis no software. Especial atenção é necessária na identificação das muster stations, aces- sos ao helideck e ao refeitório, pois tais compartimentos são os mais críticos em termos de circulação de pessoas durante as simulações, e exigem precisão de ajustes nas conexões com corredores, portas e escadas de acesso. A adaptação das áreas de superestrutura foi realizada com grau de correspondência aceitável, suficiente para a edição do modelo 3D alcançar a representatividade técnica necessária para as simulações. 6.5 DEFINIÇÃO DE AGENTES A BORDO E SEUS PARÂMETROS COMPORTAMENTAIS Concluída a edição do modelo 3D do FPSO em estudo, es- tá pronto para ser depurado e exportado para o programa de simulação (Evi), o software que é diretamente responsável pela 126 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... definição dos cenários e execução das simulações propriamente ditas. A definição de agentes a bordo (pessoas) pode ser feita pelo software de diversas formas, bem como a atribuição de caracterís- ticas comportamentais aos agentes. A seguir, apresentamos as adaptações realizadas na utilização do Evi para a criação de cenários representativos de operações de escape e abandono em emergências no FPSO em estudo. 6.5.1 Dimensionamento da tripulação e características gerais dos agentes a bordo O POB (People on Board) de projeto da unidade foi definido em 110 pessoas. O Evi é uma ferramenta criada para navios de passageiros com até 7000 pessoas a bordo. Por outro lado, o nível de complexidade de tarefas das pessoas num FPSO é superior ao de pessoas em navios de passageiros. Portanto, foi necessário adaptar a utilização do programa de simulação para que um número rela- tivamente pequeno de agentes em atividades mais complexas não interferisse na qualidade dos resultados das simulações. Essa adaptação foi feita através da utilização normal dos comandos de programação do software, conduzido por deci- sões baseadas na vivência presencial em unidades offshore e na experiência de projetos de FPSO, o que permitiu que o pro- grama funcionasse perfeitamente para um POB de 110 pes- soas considerando as tarefas operacionais e suas influências no comportamento do POB. 6.5.2 Experiência operacional dos agentes a bordo O software basicamente divide a população a bordo em dois grandes grupos: tripulação e passageiros. Essa divisão não é compatível com unidades offshore de exploração & produção de óleo e gás. Por isso substituímos esses por outros dois grupos: o primeiro composto de agentes com grande experiência offshore e o segundo composto de agentes menos experientes. Para fins de execução da simulação foram criados os seguintes critérios de avaliação da experiência offshore: j Sobre o conhecimento específico da unidade em estudo: Agentes com menos de três anos de trabalho na unidade – sem experiência Agentes com mais de três anos de trabalho na unidade e menos de 10 anos de experiência offshore – com experiência média 127Gerenciamento de riscos Agentes com mais de três anos de trabalho na unidade e mais de 10 anos de experiência offshore – com grande experiência Como o FPSO em estudo é uma unidade ainda em construção, todos os agentes foram enquadrados como sem experiência pelo critério anterior, pois ninguém tem experiência específica nessa unidade. Por esse motivo, passamos para o segundo critério (aplicável em unidades novas) descrito a seguir: j Sobre a experiência offshore: Agentes com menos de 3 anos de experiência offshore – sem experiência Agentes entre 3 e 10 anos de experiência offshore – média experiência Agentes com mais de 10 anos de experiência offshore – grande experiência No caso do FPSO em estudo, por ainda estar em construção, apenas o segundo critério é válido e por isso foram considerados como pertencentes ao grupo de agentes com grande experiência offshore, apenas as pessoas com mais de 10 anos de trabalho em quaisquer unidades offshore de exploração & produção de óleo e gás. Para fins de simulação, foi estimado um total de 25 pes- soas com grande experiência offshore (23% do POB). Esse valor foi estimado com base na experiência operacional e de projeto, uma vez que o FPSO em estudo ainda não está em operação, o que impede a coleta de dados reais ainda no período de realiza- ção desse trabalho, o que poderá ser ajustado a qualquer tempo se necessário for, assim que os dados estiverem disponíveis. Procedimento similar foi adotado também em todas as demais estimativas de dados relativos aos agentes, os quais serão des- critos a seguir. 6.5.3 Gênero dos agentes a bordo O Maritime Safety Committee através da circular MSC.1/ Circ.1238 (2007) fornece parâmetros estatísticos relacionados aos agentes incluídos em simulações, como as realizadas pelo software. Essa é uma norma específica para navios de passageiros e estabelece uma divisão de 50% de homens e 50% de mulheres. Essa premissa não é compatível com instalações offshore e, para fins de execução de simulações, a distribuição geral de agentes por gênero foi adaptada através de uma estimativa de 86% de 128 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... homens e 14% de mulheres, totalizando 95 homens e 15 mulheres a bordo. Esse dado foi projetado com base nas observações obtidas em 10 embarques em instalações offshore, e pode ser ajustada conforme se obtenham dados mais precisos ao longo da vida operacional da instalação. Complementarmente, consideramos também que o grupo de agentes com grande experiência offshore é composto por 96% de homens e 4% de mulheres, ou seja: das 25 pessoas consideradas com grande experiência offshore, conforme os critérios da Seção 6.5.2, uma delas é mulher. 6.5.4 Idade dos agentes a bordo O software atribui idades aos agentes conforme requerido pelo Maritime Safety Committee circular MSC.1/Circ.1238 (2007). Portanto, trata-se de uma atribuição de idade prevista para navios de passageiros que precisa ser adaptada para instalações offshore de exploração & produção de óleo e gás. O Maritime Safety Committee circular MSC.1/Circ.1238 (2007) estabelece distribuição de idade uniforme para três faixas etárias respectivamente com médias de idade de 20, 40 e 60 anos e desvio padrão de 10 anos. Além disso, são atribuídos percen- tuais relativos ao POB para cada uma das faixas, subdividindo-as por gênero e agilidade pessoal chegando a um total de 10 faixas para os passageiros e duas faixas para a tripulação. O ajuste dessa distribuição de idades para aplicação no FPSO em estudo resultou em três faixas etárias, respectivamente com médias de idade 30, 40 e 50 anos com desvio padrão de 10 anos. A subdivisão por gênero e agilidade pessoal foi reduzida para apenas seis faixas (de agentes menos experientes) e duas faixas(de agentes mais experientes), devido à maior homogeneidade do POB de uma unidade offshore do que o POB de um navio de passageiros. A atribuição de percentuais concentrou a maior parte do POB nas faixas masculinas com médias de 30 e 40 anos de idade, conforme estimado com base na experiência operacional e de projeto de FPSOs. 6.5.5 Velocidades de deslocamento dos agentes a bordo O software também atribui velocidades de deslocamento aos agentes conforme requerido pelo Maritime Safety Committee cir- cular MSC.1/Circ.1238. Esses parâmetros precisam ser ajustados 129Gerenciamento de riscos para compatibilizá-los com unidades offshore de exploração e produção de óleo e gás. Para cada faixa de pessoas com as mesmas características de idade, gênero e tempo de reação, o software atribui três veloci- dades conforme MSC.1/Circ.1238: velocidade de deslocamento no plano, velocidade ao subir escada e velocidade ao descer escada. Valores específicos para cada pessoa são atribuídos es- tatisticamente considerando um desvio padrão de 0,25 m/s. Dessa forma, pessoas com as mesmas características de idade, gênero e tempo de reação podem assumir diferentes valores de velocidade considerando a média e o desvio padrão considerados, o que torna a simulação bastante realista. A adaptação dos parâmetros de velocidade para valores com- patíveis com unidades offshore de exploração e produção de óleo e gás foi feita através do ajuste dessas três velocidades para cada uma das faixas com as mesmas características de idade, gênero e tempo de reação. As velocidades definidas pela Maritime Safety Committee – circular MSC.1/Circ.1238 – foram preservadas, porém apenas para as faixas de idade, gênero e tempo de reação compatíveis com o POB do FPSO em estudo. 6.5.6 Tempos de reação dos agentes a bordo Os tempos de reação são atribuídos pelo software com base na Maritime Safety Committee – circular MSC.1/Circ.1238 – com valores diferenciados para o dia e para a noite. Essa atri- buição de tempo de reação é feita através de função Log normal para reproduzir o efeito de deflagração de processo conhecido popularmente pelo termo estouro de boiada (quando há uma primeira iniciativa por parte de um agente os demais tendem a reagir também). O software permite o ajuste dos parâmetros de média, desvio padrão e deslocamento (tempo adicional). Foram mantidos os valores de média e desvio padrão adotados pela Maritime Safety Committee – circular MSC.1/Circ.1238 –, mas os deslocamentos foram ajustados de modo a considerar que o tempo de reação durante o período da noite, apesar de ser em geral maior do que durante o dia, no caso de unidades offshore, não é tão prolongado, uma vez que nesse tipo de unidade mesmo durante a noite há um estado de preparação, fruto de treinamento profissional offshore. Outro ajuste em relação aos parâmetros de navios de pas- sageiros definidos pela Maritime Safety Committee foi a inclusão 130 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... de deslocamento (tempo adicional) maior que zero mesmo em tarefas diurnas, uma vez que os operadores offshore nem sempre podem abandonar o seu posto de trabalho imediatamente, tendo de executar, em alguns casos, tarefas mínimas para viabilizar o início da operação de escape e abandono. A Figura 6.6 mostra a janela de interface do software utilizada para a atribuição de valores e fun- ções estatísticas associadas aos agentes e que exercem influência sobre o comportamento dos mesmos durante as simulações. 6.5.7 Posicionamento físico dos agentes na unidade O Evi permite a distribuição de pessoas tanto do modo um por um (a critério do usuário), como distribuição randômica. No primeiro caso, o usuário pode posicionar cada uma das pessoas em postos específicos, considerando idade, gênero, experiência de trabalho, tempo de reação e características de velocidades específicas individuais. No segundo caso, o software distribui o POB aleatoriamente por todas as áreas da unidade. Com o trabalho de análise da ferramenta identificamos vul- nerabilidades na distribuição randômica de agentes, pois como o software foi criado originalmente para navios de passageiros, normalmente com o POB dezenas de vezes maior do que o POB de unidades offshore do tipo FPSO, o software cria algumas distorções para POB relativamente pequenos. Por esse motivo, adotamos uma forma mista de distribuição de pessoas na unidade. Baseado na experiência operacional e de projetos de FPSO, bem como pela experiência vivencial a bordo de unidades off- shore, criamos várias configurações de distribuição de agentes FIGURA 6.6 Exemplo de janela de interface para atribuição de fatores humanos ao POB (People On Board). Cortesia Safety-at-Sea, Glasgow UK, http://www.safety-at-sea.co.uk/ 131Gerenciamento de riscos possíveis. Algumas totalmente manuais, em que cada pessoa é colocada em um ponto específico do FPSO através do modelo 3D. Outras randômicas, limitadas por região, ou seja, para uma determinada área do FPSO, foi estabelecido um número de pes- soas e suas respectivas características, porém tais agentes foram distribuídos randomicamente dentro dessa área, que pode ser, por exemplo, um deck. Também foram feitas configurações mistas, nas quais determinados agentes de características e tarefas es- pecíficas são posicionados previamente em pontos estratégicos do FPSO e os demais são distribuídos aleatoriamente por região. A Figura 6.7 mostra o posicionamento dos agentes na região da superestrutura antes do início de uma simulação. Os agentes com coletes amarelos são os que possuem maior experiência e preparo, os coletes azuis são para agentes do sexo masculino e os coletes verdes representam agentes do sexo feminino. 6.5.8 Tarefas especiais para agentes específicos durante a emergência O software de simulação permite que sejam criadas tarefas a serem executadas em meio à operação de escape e abandono. Isso significa que, embora o POB esteja executando os procedimentos de escape e abandono, alguns agentes podem se deslocar em contrafluxos com objetivos diferentes do restante do POB para a execução de tarefas associadas à mitigação da emergência. O software permite praticamente a programação de qualquer tarefa, e essa funcionalidade habilita também o uso do software FIGURA 6.7 Exemplo de posicionamento dos agentes no FPSO. Cortesia Safety-at-Sea, Glasgow UK, http://www.safety-at-sea.co.uk/ 132 CAPÍTULO 6 Aplicação prática ... para fins de melhoria da eficiência operacional fora de emergên- cias, em operação normal envolvendo tarefas com movimentação de pessoas. Essa funcionalidade do software foi explorada, por exemplo, para programar a atuação de dois operadores de instalação off- shore. Durante um cenário de incêndio, eles foram programados para se deslocar, em contrafluxo, da área segura do FPSO para a área de processo com o objetivo de identificar e abrir manual- mente uma válvula dilúvio que, por alguma falha, não tenha sido aberta automaticamente pelos sistemas de segurança do FPSO. Também pode ser atribuído um tempo extra para a execução da tarefa após a chegada do agente no destino onde se encontram as válvulas. 6.5.9 Medição dos efeitos da emergência sobre a integridade das pessoas Cada agente simulado ao longo da emergência tem os efeitos de temperatura, visibilidade e intoxicação por fumaça acumu- lados ao longo da simulação, e o programa registra esses pa- râmetros em tempo real. Desse modo, é possível identificar as pessoas afetadas ao final da simulação através dos resultados e mesmo durante a simulação, quando, por exemplo, um agente é afetado de forma letal, sendo isso indicado pela mudança da cor do agente. Para que essa funcionalidade seja disponibilizada, é necessário fazer a importação dos dados em fluidodinâmica computacional ou, em inglês, computational fluid dynamics (CFD) relativos aos cenários de acidentes em estudo, num formato compatível com as simulações que consideram os efeitos sobreas pessoas. Durante a execução deste trabalho, foram feitas tentativas de aproveitamento dos estudos de CFD realizados para cenários de acidentes no FPSO em estudo, porém eles apresentaram pouca representatividade por analisarem somente cenários extremos, de emergências muito específicas e com resultados fornecidos em formatos de dados incompatíveis com o software. Entretanto, através de uma adaptação, foi inserida uma nuvem de pontos para propagação de incêndio e fumaça na região do casario (que é a que guarda maior similaridade entre FPSO e navios de pas- sageiros) para fins de demonstração desse recurso de simulação. A Figura 6.8 mostra em ampliação o grid de temperatura na região de um incêndio (cozinha). As cores variam conforme a 133Gerenciamento de riscos temperatura, e qualquer agente ao ser selecionado com o mouse assume a cor branca, enquanto uma janela mostra as caracterís- ticas e o percentual de comprometimento do agente devido ao efeito da temperatura, fumaça e visibilidade. FIGURA 6.8 Apresentação das propriedades e dos efeitos sobre o agente e grid de propagação de incêndio. Cortesia Safety-at-Sea, Glasgow UK, http://www.safety-at-sea.co.uk/ CAPÍTULO 7Definição conceitual de cenários SUMÁRIO DO CAPÍTULO 7.1 Cenários padrão e de vazamento de gás ...........................138 7.2 Cenários de incêndio .......................................................138 7.3 Cenários de avaria naval ..................................................141 7.4 Cenários teóricos e comparativos .....................................141 7.5 Simulações representativas para instalações offshore .......142 137Gerenciamento de riscos A definição conceitual de cenários é a parte mais importante de análises de riscos por simulações computacionais. Os softwa- res e ferramentas apenas processam as informações, premissas e parâmetros estabelecidos pela definição do cenário conceitual da emergência a ser simulada. Toda definição conceitual de cenário tem limitações. É im- possível prever todas as possibilidades de acidentes, influências naturais, comportamentos humanos e a complexidade de meios de interação entre eles. Quando definimos conceitualmente um cenário a ser estudado ou simulado, na realidade estamos estabelecendo os limites de nosso estudo e simulação. Na vida prática, esses limites não existem, e qualquer cenário não previsto pode acontecer, o que justifica (como dito no Capítulo 4) a utilização mais adequada do termo gerenciamento de risco do que simplesmente segurança. Quanto maior a quantidade de cenários avaliados, e de in- fluências consideradas em sua definição, menores as limitações no gerenciamento dos riscos associados. Evidentemente que o aumento de parâmetros em estudo, variáveis e cenários torna o trabalho cada vez mais complexo e, justamente por isso, as ferramentas computacionais, a partir de um certo ponto de com- plexidade, são as únicas opções que viabilizam a análise e geren- ciamento de riscos, porque permitem o processamento de uma elevada quantidade de informações, lógicas e intertravamentos. Considerando uma unidade de exploração e produção de óleo e gás, com um POB de 110 pessoas, os riscos devido ao grande inventário de hidrocarboneto, o comportamento humano, a complexidade operacional das atividades offshore, os riscos marítimos e muitas outras fontes de influência, podemos con- cluir que o gerenciamento de riscos e segurança do sistema de escape e abandono sem ferramentas de simulação computacional é extremamente limitado. Mas, mesmo utilizando simulações computacionais, é funda- mental uma definição de cenários baseada principalmente na ex- periência operacional, histórico de acidentes e com a priorização de inclusão dos casos mais gerais e prováveis. A frequência de ocorrência de um cenário nunca pode ser calculada com precisão absoluta. Apesar do grande esforço nesse sentido, ainda é muito mais confiável e realista a escolha com base no histórico e expe- riência operacional. Os valores calculados com bases em bancos de dados e levantamentos estatísticos podem ser justificados através de cálculos matemáticos, mas isso não significa garantia alguma de que esses números mantenham correspondência com 138 CAPÍTULO 7 Definição conceitual de cenários a realidade operacional. Nada substitui a vivência operacional e o conhecimento técnico operacional para definir os melhores cenários para o gerenciamento de riscos e segurança. Neste estudo de caso, foram definidos os cenários princi- pais de acidentes postulados no projeto do FPSO em estudo, e desenvolvidos meios para adaptar a utilização do software de simulação, de modo que as simulações possam reproduzir tais cenários com uma representatividade tecnicamente aceitável. 7.1 CENÁRIOS PADRÃO E DE VAZAMENTO DE GÁS Estes cenários consideram o vazamento de gás sem a ocorrên- cia da ignição dos volumes liberados. Consideram também que os danos físicos nas instalações não são significativos para im- pactar a eficiência dos meios de abandono previstos em projeto, e ainda que não há concentrações de gases capazes de intoxicar os agentes simulados. Basicamente, é suposto um vazamento de gás devido a um dano ou uma operação errada, justificando, dessa maneira, a ordem de escape e, posteriormente, se necessário, o abandono. Portanto, nesse cenário, foi considerado que todas as rotas de escape e abandono estão disponíveis e não há ignição de gás durante o acidente, tampouco a intoxicação das pessoas. Por esses motivos, o cenário também corresponde à ordem de escape e abandono durante treinamentos (padrão) ou por qualquer outro motivo que não seja decorrente de danos significativos ao FPSO, o qual é considerado neste cenário com todos os seus sistemas de segurança disponíveis e operacionais. Além dos cenários de vazamento de gás considerados neste trabalho, o simulador tem condições técnicas também de con- siderar o vazamento de gás tóxico, como, por exemplo, H2S, e avaliar o impacto deste ou qualquer outro gás nas pessoas durante a simulação. Para tal, é necessário importar uma nuvem de pontos em fluidodinâmica computacional e que seja representativa do vazamento que se queira simular. 7.2 CENÁRIOS DE INCÊNDIO Após a importação da nuvem de pontos, o programa si- mula a movimentação de pessoas e o impacto recebido por elas em decorrência da temperatura, toxidade e visibilidade, 139Gerenciamento de riscos conforme informações contidas na nuvem de pontos em CFD importada. Dessa forma, os agentes ao se deslocarem – ou mesmo quando parados por alguma razão no FPSO – possuem um contador que acumula e calcula as taxas de absorção de gases tóxicos e a visi- bilidade no ponto em que se encontram no modelo da simulação. O mesmo acontece para a temperatura. Na medida em que os agentes são afetados de forma letal, sua coloração é alterada, a fim de indicar a condição de perda do agente. Ao final, é pos- sível obter os dados de absorção de calor, gás e dificuldade de visibilidade para cada agente, em cada ponto e a cada momento do evento simulado. A documentação do projeto do FPSO em estudo inclui aná- lises em fluidodinâmica e estudos de propagação de incêndio, explosão e dispersão de gás. Porém, a metodologia estabelecida pelas especificações técnicas de projeto conduziram esse tipo de análise para casos muito específicos, e com frequência de ocor- rência relativamente baixa. Os estudos em CFD realizados no projeto do FPSO não apresentam nuvens de pontos abrangentes do FPSO, mas apenas em regiões muito próximas aos eventos postulados nestes estudos, com o objetivo de verificação do impacto desses acidentes na estrutura e nos equipamentos das instalações. Os estudos clássicos de CFD não são adequados sob o ponto de vista de fatores humanos, que estabelece a centraliza- ção dos objetivos nas pessoas (princípio 1 de fatores humanos). Isso requer um ajuste na abordagem de cenários adotada nos estudos de CFD. Embora com qualidadetécnica satisfatória, os estudos em fluidodinâmica computacional realizados no projeto do FPSO em estudo não apresentam a representatividade desejável para a simulação computacional de escape e abandono. Entretanto, há uma conclusão de grande valor técnico nos relatórios do projeto, que foi considerada na estratégia de definição de cenários deste trabalho. Os relatórios dos estudos de propagação de incêndio, explosão e dispersão de gases (documentos de projeto básico e com informações estratégicas de acesso limitado) concluíram que mesmo nos cenários extremos estudados nas análises de projeto, sempre pelo menos uma rota de escape principal estará disponível e operacional. Considerando essa conclusão dos relatórios de projeto, a pouca representatividade dos cenários dos estudos em CFD de projeto por não terem gerado nuvens completas do FPSO, além 140 CAPÍTULO 7 Definição conceitual de cenários disso, o fato de os formatos dos arquivos não terem sido gerados de forma compatível com a importação para o software, foi possível considerar a opção de não utilizá-los nesse tipo de simulação. Optou-se por utilizar uma nuvem de propagação de incêndio e dispersão de gases utilizada pelo Kelvin Hydrodynamics La- boratory (University of Strathclyde UK) para simular os efeitos de um incêndio no interior do casario. O objetivo da substituição é demonstrar a viabilidade de uso da ferramenta a partir de um estudo de fluidodinâmica adequadamente realizado. Paralelamente ao recurso, acrescentou-se outra estratégia fundamental na simulação de escape e abandono em emer- gências de incêndio. O projeto do FPSO em estudo considera que em nenhum momento e em nenhum ponto do FPSO, uma pessoa precisará andar mais de 7 metros para acessar uma rota de escape. Também considera, em linhas gerais, que sempre haverá duas opções de escape para qualquer agente a bordo do FPSO em estudo. Em termos estratégicos, consideramos que se um evento de incêndio se inicia em um ponto do FPSO, sempre haverá um acesso disponível para uma rota de escape e outra bloqueada pelo próprio sinistro, seja por fumaça, calor ou qualquer outra consequência decorrente do incêndio. Assim, estrategicamente, reduziram-se para 50% as opções de acesso para a rota de fuga para cada agente situado no bordo do sinistro. Por exemplo, se um incêndio se inicia a bombordo, 50% dos acessos às rotas de escape de bombordo são bloqueadas. Semelhantemente, se o incêndio se inicia a estibordo, 50% dos acessos às rotas de escape de estibordo são bloqueadas. Dessa forma, simulamos as dificuldades dos agentes durante o incêndio, considerando que cada agente encontrará um acesso para a rota de escape bloqueado por causa do incêndio e o outro disponível. Evidentemente, por não dispormos de estudos de projeto em fluidodinâmica computacional com representatividade adequa- da, não poderemos contabilizar os efeitos do calor, toxidade e visibilidade para cada agente. Mas, por outro lado, os estudos disponibilizados pelo projeto original foram realizados para os cenários mais extremos, com danos mais severos e mesmo assim concluíram que não haveria indisponibilidade de acesso às rotas de escape. Mas, se futuramente os estudos de CFD nos novos projetos forem realizados para produzir nuvens de pontos representativas e abrangentes da unidade, em formato adequado para exportação, os dados sobre os danos físicos aos agentes na operação de escape 141Gerenciamento de riscos e abandono durante o incêndio serão gerados pelo simulador, da mesma forma como demonstrado pelo uso da nuvem de pontos do casario, produzida pelo Kelvin Hydrodynamics Laboratory – University of Strathclyde UK. 7.3 CENÁRIOS DE AVARIA NAVAL Os cenários de avaria naval foram definidos com base na condição de avaria naval de projeto que estabelece um ângulo de inclinação de 16 graus até o qual todos os sistemas de segurança do FPSO em estudo têm de necessariamente estar operacionais e disponíveis. O valor de 16 graus foi determina- do na fase de projeto, pelos engenheiros navais, como ângulo até o qual todos os sistemas de segurança, incluindo os de combate a incêndio e os meios de escape e abandono, precisam estar disponíveis e operacionais para viabilizar a mitigação do acidente e o escape e abandono seguro da instalação offshore. O cálculo desse ângulo permite conservativamente concluir que, a 16 graus, esta instalação estudada (FPSO P-62) já deverá ser considerada em estado de acidente além de projeto, ou seja, deverá ser abandonada. A partir do projeto original do FPSO em estudo, foram utili- zados os relatórios de movimentos e acelerações, estabilidade e danos navais, trim e estabilidade, para gerar os efeitos da condi- ção máxima de avaria naval prevista no projeto, para o qual os sistemas de segurança (inclusive de escape e abandono) precisam estar operacionais e disponíveis. O Hydrodynamics Laboratory preparou a simulação dos movimentos do FPSO em estudo com base na documentação de seu projeto original. Através dessas informações, o Evi in- cluiu nos cenários de condição de avaria naval os efeitos dos movimentos do navio e a interferência destes na operação de escape e abandono (Figura 7.1). 7.4 CENÁRIOS TEÓRICOS E COMPARATIVOS Cenários especiais foram criados para situações improváveis, cuja simulação fornece resultados de interesse para o geren- ciamento de riscos e segurança. Um exemplo foi a criação de cenários de concentração de 100% do POB na proa e na popa, situação bastante improvável operacionalmente. 142 CAPÍTULO 7 Definição conceitual de cenários Nesse tipo de cenário, as pessoas foram concentradas nos locais de mais difícil acesso do FPSO em estudo. Os desloca- mentos até os pontos de encontro foram estudados. O objetivo é a obtenção de resultados conservativos como referência. Por se tratar de situações extremamente desfavoráveis e imprová- veis, seus resultados podem ser usados em comparações e para identificar possíveis distorções nas demais simulações a fim de que sejam corrigidas. 7.5 SIMULAÇÕES REPRESENTATIVAS PARA INSTALAÇÕES OFFSHORE Em gerenciamento de riscos e segurança offshore, não é pos- tulado que dois cenários acidentais independentes ocorram ao mesmo tempo num exato momento. É possível considerar em análises de segurança offshore o escalonamento de um cenário para outro, à medida que o primeiro cenário venha a elevar o grau de degradação do FPSO progressivamente até a ocorrência do segundo. Ou seja, um cenário pode degradar e gerar outros, mas não é postulado que, a partir de uma situação de operação normal, dois cenários acidentais independentes ocorram simultaneamente num mesmo instante estudado. Por essa razão, cada cenário postulado será estudado sepa- radamente. O software possui uma funcionalidade que permite a repetição de simulações em bateladas. Isso significa que uma mesma simulação ou um conjunto de simulações pode ser repe- FIGURA 7.1 Avaria naval, com angulação instantânea de 16 graus. Cortesia Safety-at-Sea, Glasgow UK, http://www.safety-at-sea.co.uk/ 143Gerenciamento de riscos tido tantas vezes quanto se queira, gerando resultados específicos para cada uma das repetições. Os diferentes resultados para cada repetição de uma mesma simulação são possíveis devido às variáveis aleatórias estabelecidas em cada cenário, como idade, tempo de reação, velocidade etc. Foram realizadas 1.000 simulações de diferentes cenários de escape, 1.000 simulações de diferentes cenários de abandono e 2.000 simulações comparativas entre cenários. Para cada batelada (conjunto de simulações para um mesmo cenário), foram calcula- das as médias dos resultados e os desvios padrão. Considerou-se que o tempo de duração máximo de cada cenário era o valor do tempo médio mais três desvios padrão, o que, pela distribuição Gaussiana, significa um erro máximo de 0,03%. A quantidade de repetições de cada cenário foi definida pela relevância de sua influência em termos deapuração do tempo máximo de escape e de abandono. Durante o processo de repetição em bateladas de simulações, se a percepção inicial da relevância de um dado cenário se mostra equivocada, o número de repetições é ajustado para um valor compatível com os resultados máximos obtidos na batelada, ou seja, se os resultados de um cenário mostram-se mais relevantes do que o esperado, amplia-se a quantidade de repetições. CAPÍTULO 8Resultados das simulações computacionais SUMÁRIO DO CAPÍTULO 8.1 Modelo de matriz de tempos de referência ........................147 147Gerenciamento de riscos Os resultados para os valores de tempo máximo de escape e tempo máximo de abandono foram consolidados neste capítulo. Foram considerados os tipos de cenários acidentais e as influên- cias de diferentes procedimentos, incluindo ou não o retorno para as cabinas e a ida ou não ao ponto de encontro. Também foram obtidas as avaliações quanto à eficiência do funcionamento das rotas de escape e fuga, eficiência dos diferentes procedi- mentos de retirada de coletes, da localização escolhida para os pontos de encontro e, finalmente, quanto à eficiência do compor- tamento dos agentes durante a emergência. 8.1 MODELO DE MATRIZ DE TEMPOS DE REFERÊNCIA A partir da consolidação desses resultados foi possível es- tabelecer um modelo de matriz de tempos de referência como suporte para tomada de decisão de abandono por parte da autori- dade maior do FPSO e da equipe de gestão de crise (Figura 8.1). A matriz informa para autoridade maior do FPSO a duração máxima estimada para as operações de escape e de abandono em cada tipo de cenário acidental, considerando a possibilida- de de reduções de tempo por alteração dos procedimentos de FIGURA 8.1 Modelo de tabela de enquadramento de evento acidental. 148 CAPÍTULO 8 Resultados das simulações ... retirada de coletes e alteração dos procedimentos de ida ou não ao ponto de encontro. Em instalações offshore, durante o gerenciamento de crise, as decisões relacionadas à ordem de escape e abandono são de res- ponsabilidade da autoridade maior da instalação. Ela contará com os recursos de automação da unidade e com a equipe técnica para obter informações necessárias que permitam a correta identifica- ção do cenário em andamento e assim tomar as melhores decisões. Os resultados obtidos com análises baseadas em simulações computacionais possibilitam a preparação de um conjunto de valores de referência para dar suporte à tomada de decisão de escape e abandono durante o gerenciamento de crise. Esses valores de referência podem ser resumidos em uma tabela (exem- plo da Figura 8.1), dispostos através de uma coluna que define, de forma geral, quatro possibilidades de acidentes para a tentati- va de enquadramento do cenário em andamento. Para cada uma dessas quatro possibilidades de enquadramento, o conjunto de valores de referência oferece, como suporte para a decisão da autoridade maior do FPSO, as seguintes informações (sempre com valores conservativos, em minutos): j A duração máxima do escape. j A duração máxima do abandono compatível. j A duração do embarque nas embarcações de salvamento, acrescida do tempo estimado até o lançamento ao mar e liberação dos cabos para afastamento do FPSO. Esse tempo depende das características de cada embarcação de salvamento. É esperado que o tempo para embarque não exceda a três minutos, com base na regulamentação aplicável, porém a experiência de projetos e vivência operacional em segurança offshore conduzem a uma estimativa mais conservativa de 10 minutos entre o início do embarque e a liberação total da embarcação de salvamento para afastamento do FPSO sinistrado. j O somatório do tempo do escape, mais o tempo do abandono, mais o tempo de embarque e lançamento de embarcações de salvamento, enfatizando que não está incluído o tempo gasto pela própria autoridade maior do FPSO até a tomada de decisão e declaração de escape e de abandono. j As reduções no tempo total, possíveis nos casos de ordem extraordinária que determine a eliminação do retorno dos agentes para as cabinas e de ordem que também determine 149Gerenciamento de riscos a eliminação da ida aos pontos de encontro. Ou seja, neste último caso, a autoridade maior do FPSO ordena a ida dos agentes diretamente para as posições de embarque dos conjuntos de embarcações de salvamento. O primeiro tipo de acidente é o pior vazamento de gás e concentração de pessoas (Acidentes Gerais). Essa descrição significa que os valores de tempo foram os maiores registrados nos resultados consolidados das simulações para vazamentos de gás, considerando ainda que possa haver concentrações em grupos de agentes em serviços em locais específicos. Apesar de ser identificado como acidente de vazamento de gás, como descrito nos capítulos anteriores, esse cenário considera que não haja ignição da nuvem liberada nem danos aos sistemas de segurança do FPSO. Isso significa que o cenário é genérico, indicado para enquadrar acidentes que não se enquadrem nos demais. Podemos observar que os valores de tempo de duração mais elevados são atribuídos a esse cenário uma vez que dentre os quatro que compõem a tabela, este é o que possui a maior incerteza. O segundo tipo de acidente é a pior condição de avaria naval. Isso significa que dentre todas as simulações e possibilidades de conjugação de escape e abandono compatíveis, os valores de tempo listados na tabela são os maiores previstos com base nos resultados consolidados das simulações, para o caso de estabe- lecimento da condição de avaria naval de projeto. O terceiro tipo de acidente é o pior incêndio na área de proces- so. Isso significa que dentre todas as simulações e possibilidades de conjugação de escape e abandono compatíveis, os valores listados são os maiores previstos, com base nos resultados con- solidados das simulações, para o caso de incêndio na área de processo. O quarto e último tipo de acidente é o pior incêndio na área segura (casario). Nesse caso específico, não é suposto ser mantido o procedimento de ida para camarotes e subsequente ida ao ponto de encontro específico, já que, sendo o sinistro localizado no casario, é suposto que tais camarotes e cabinas estejam com acessos indisponíveis. Com os dados da tabela modelo (Figura 8.1), a autoridade maior do FPSO pode analisar o cenário de crise e obter, nessas informações, suporte para decidir qual o procedimento deverá ser adotado de modo a minimizar as consequências para as pessoas a bordo do FPSO. CAPÍTULO 9Conclusão SUMÁRIO DO CAPÍTULO 9.1 Visão atualizada de gerenciamento de riscos e segurança ....................................................................153 9.2 Cultura de segurança e fatores humanos ...........................155 9.3 Visão estratégica de gerenciamento de riscos e segurança ....................................................................159 9.4 Importância do escape e abandono no gerenciamento de riscos e segurança ......................................................161 9.5 Melhorias nos sistemas de escape e abandono em instalações offshore ...................................................164 9.6 Aplicabilidade para a segurança de instalações onshore ...........................................................................170 153Gerenciamento de riscos O trabalho identificou e testou um conjunto de conceitos, ferramentas e estratégias que permite a elevação da qualidade do gerenciamento de riscos e segurança de empreendimentos tecnológicos. A base desses conceitos, ferramentas e estratégias é constituída de conhecimentos de fatores humanos e cultura de segurança pesquisados e desenvolvidos. A cultura de segurança e os fatores humanos exercem grande influência na interação homem × sistema e no ambiente de indu- ção ao erro. Consequentemente influenciam também na frequên- cia e severidade de acidentes. Entretanto existem dificuldadesem associar a subjetividade desses conceitos com as ferramentas práticas utilizadas em empreendimentos tecnológicos. Para com- provar a viabilidade de aplicação dos conceitos, ferramentas e estratégias identificadas, um estudo de caso de escape e abandono de instalação offshore (FPSO) foi desenvolvido. Os resultados alcançados permitiram a identificação de oportunidades de me- lhorias para o projeto estudado. Estas também podem ser apli- cadas em outros empreendimentos tecnológicos. Nos itens a seguir, há um resumo dos conceitos desenvolvi- dos e dos resultados consolidados pelo trabalho. Os itens que compõem a conclusão resumem desde a parte conceitual e es- tratégica até as recomendações objetivas, quanto às melhorias identificadas para a elevação da qualidade do gerenciamento de riscos e segurança do empreendimento tecnológico (FPSO) estudado. 9.1 VISÃO ATUALIZADA DE GERENCIAMENTO DE RISCOS E SEGURANÇA O termo segurança é utilizado para identificar as atividades de prevenção e mitigação de acidentes. Entretanto, o termo que define de forma mais precisa o que a engenharia pode fazer para evitar e mitigar acidentes é gerenciamento de riscos e segurança. Segurança absoluta não existe, e mesmo com o emprego de toda a tecnologia possível, sempre há riscos a serem assumidos e geren- ciados. O que a engenharia oferece é o gerenciamento desses riscos de modo a serem mantidos em níveis aceitáveis, sem inviabilizar o empreendimento tecnológico. É possível sentir-se absolutamente seguro sob altos riscos, bem como sentir-se completamente in- seguro sob baixos riscos. Isso denota o aspecto de subjetividade inseparável do termo segurança, o qual carece de ser associado ao 154 CAPÍTULO 9 Conclusão termo gerenciamento de riscos para adquirir a precisão adequada e necessária aos instrumentos de engenharia disponíveis. Todo acidente inclui algum aspecto de imprevisibilidade. Mesmo com procedimentos cuidadosamente elaborados, treina- mento e experiência operacional, manutenção criteriosa, mesmo assim os elementos da natureza, o erro humano e o empreendi- mento tecnológico propriamente dito alternam-se como fontes de imprevisibilidades de origens e abrangências multidisciplina- res. Isso exige que os temas gerenciamento de riscos e segurança sejam estudados de forma multidisciplinar, contemplando os aspectos subjetivos, como comportamento humano e cultura de segurança. As ferramentas e tecnologias empregadas nos estudos de engenharia precisam ter conexões com esses temas multidis- ciplinares e subjetivos, sob pena de tornarem-se modelos mate- máticos perfeitos, porém pobres quanto aos demais aspectos que influenciam na ocorrência de acidentes, por isso absolutamente distantes da realidade complexa em que eles acontecem. Basicamente, o gerenciamento de risco obedece a duas etapas fundamentais. Primeiramente, a avaliação preliminar da real necessidade em se aceitar um determinado risco. Depois, caso o risco seja necessário, então serão utilizados os instrumentos e as tecnologias disponíveis para avaliar seu tamanho e após isso novamente repetir a pergunta sobre a real necessidade em se acei- tar esse risco, agora mais tecnicamente avaliado. Essa avaliação envolve ferramentas estatísticas, bancos de dados históricos, expe- riência vivencial, simulações computacionais e também uma dose indispensável de subjetividade, pois mesmo com todos os recursos técnicos o elemento imprevisibilidade sempre irá requerer uma decisão final que inclui uma parcela de subjetividade. Essa subjetividade requerida se reduz à medida que o ciclo de avaliação do risco se repete. A pergunta sobre a real neces- sidade em se aceitar o risco não só pode, como deve sempre ser repetida, gerando também novas e mais refinadas avaliações a cada ciclo. Mesmo com um histórico de informações disponível, a cada vez que a decisão pelo risco precisa ser tomada, uma par- cela complementar de subjetividade é requerida para fazer frente ao componente imprevisibilidade. Essa. subjetividade está presen- te em toda decisão de aceitação ou não de um risco. Ou seja, quan- do um risco é aceito, significa uma decisão sempre fundamentada em algum componente subjetivo, complementar às informações estritamente técnicas de avaliação do risco. Em alguns casos, pode até não haver avaliação técnica disponível, seja por falta 155Gerenciamento de riscos de tempo hábil para isso, ou falta de conhecimento. Em outros casos, a avaliação técnica pode estar errada, e seja por um motivo ou por outro, tais possibilidades tornam ainda mais importante o componente subjetivo da decisão em se assumir ou não um risco. Quem assume o risco? O nome ou a função de quem assume o risco é o que menos importa. Importante é que a pessoa que assume o risco naquele momento torna-se o seu gerenciador e, por esse motivo, gerenciamento de riscos e segurança são temas muito próximos da gestão tecnológica e não podem ser estudados sem se fazer o paralelismo adequado com a evolução da gestão tecnológica e com a cultura de segurança do grupo diretamente en- volvido com o empreendimento tecnológico. Também é relevante a cultura de segurança da sociedade em que esse grupo se insere. Para boas decisões sobre a aceitação ou não de riscos, é pre- ciso conjugar subjetividade com ferramentas tecnológicas de avaliação qualitativa e quantitativa. É preciso conjugar multidis- ciplinaridade com precisão técnica. O desejo de ser seguro é natural, mas as ações requeridas para um bom gerenciamento de risco não são naturais e necessitam de conhecimento técnico profundo, conhecimento multidisciplinar, capacidade de análise subjetiva e, finalmente, até de instinto. Gerenciamento de riscos e segurança não é uma simples questão de bom senso. Essa expectativa existe para alguns porque a decisão pela aceitação ou não de um risco está presente em todas as atividades durante toda a vida. Parece natural e fruto de bom senso decidir aceitar determinado risco ou não. Talvez porque a própria vida das pes- soas possa ser descrita como constantes e sucessivas tomadas de decisões de aceitação ou não de riscos em variados níveis, o que faz esse processo parecer ser um processo natural. Isso demonstra a abrangência do tema que extrapola os limites das questões relativas exclusivamente à segurança. Boas decisões de aceitação ou não de riscos exigem a associação complexa de conhecimentos técnicos multidisciplinares com a subjetividade necessária para o gerenciamento possível das imprevisibilidades. 9.2 CULTURA DE SEGURANÇA E FATORES HUMANOS Dois conceitos são importantes para permitir a associação de conhecimentos técnicos multidisciplinares com a subjetividade complementar requerida para o melhor gerenciamento possível das imprevisibilidades que influenciam as decisões de aceitação 156 CAPÍTULO 9 Conclusão ou não de riscos: o conceito de cultura de segurança e o conceito de fatores humanos. Cultura de segurança é a combinação de compromissos e atitudes, nas organizações e indivíduos, que estabelecem co- mo prioridade absoluta que os assuntos relacionados com a segurança recebam atenção certa no tempo certo. Elaborar e seguir normas, estabelecer controles precisos, fazer inspe- ções sistemáticas e treinar continuamente as pessoas não sig- nifica necessariamente que no cenário do acidente a atenção certa no tempo certo irá evitar o acidente. Esses elementos con- tribuem, mas não significam nenhuma garantia de que a atitude na medida exata para evitar o acidente será adotada. Em alguns casos, o componente de imprevisibilidade, sempre presente em todo cenário de acidente, requer atitudes incompatíveis com os procedimentos estabelecidos. Nesse sentido podemos fazer a comparação com o tráfego de automóveis, observando que nem sempre parar no sinal vermelho é atitude na medida exata para evitar o acidente. Se um veículo sem freio aproxima-se perigo- samente da traseira de outro veículo parado no sinal vermelho, resta aomotorista ameaçado avaliar o cenário e concluir que para evitar a colisão é preciso passar o sinal vermelho e ainda tentar evitar colisões piores com os demais veículos que ultrapas- sam o outro sinal verde e não esperam o avanço do sinal verme- lho por parte do outro. Nessas circunstâncias, seguir quando o sinal está verde não é suficiente para evitar a colisão com um veículo que avança o sinal vermelho no mesmo cruzamento. Ou seja, ser seguro não é simplesmente parar no sinal vermelho, mas avançar o sinal verde com os mesmos cuidados com que se avança o sinal vermelho, pois apesar de as regras estarem es- tabelecidas, em alguns cenários somente o desprendimento das limitações do procedimento pode permitir uma avaliação realista e, consequentemente, a atitude certa para evitar o acidente. Isso ocorre porque todas as técnicas, procedimentos e máquinas fa- lham e justamente nessas falhas estão as maiores possibilidades de acidentes, sendo necessário muito mais do que cumprir proce- dimentos para tomar a decisão certa, no tempo certo a fim de evitar o acidente. O aspecto mais importante para evitar o acidente é o entendimento do cenário em curso, a observação dos fatos em andamento independentemente dos fatos esperados e prees- tabelecidos em regras. Em outras palavras, estar consciente e inteligente talvez seja a melhor regra, em vez de simplesmente seguir normas e procedimentos sem consciência. 157Gerenciamento de riscos Fatores humanos são todos aqueles que influenciam a ocor- rência do erro humano. Como nada pode ser feito em relação ao fato de que errar faz parte da natureza humana, a solução de engenharia possível é tentar minimizar as consequências do erro humano através da análise e melhoria dos fatores huma- nos (que ampliam as consequências dos erros humanos) agre- gados ao empreendimento tecnológico em que ocorre a interação homem × sistema. A abordagem do tema fatores humanos em empreendimentos tecnológicos pode ser iniciada através de sete princípios de fato- res humanos para o gerenciamento de risco e segurança: 1. Centralização de Objetivos nas Pessoas: O objetivo de qualquer empreendimento tecnológico deve ser centralizado no benefício ao ser humano, enquanto indivíduo e como sociedade, incluindo a segurança necessária para proteção em relação à maior extensão possível de consequências que possam afetar indivíduos e a sociedade. 2. Adaptação do Projeto ao Homem: O empreendimento tecnológico deve ser projetado para interagir em segurança com a maior diversidade possível de seres humanos, independentemente de características antropométricas, comportamentais ou culturais. Sempre que possível, o trabalho deve ser projetado para ser adaptado ao maior número de pessoas possível, em vez de as pessoas se adaptarem ao trabalho. 3. Controle da Interação homem sistema: Todo empreendimento tecnológico gera, conscientemente ou não, um projeto de fatores humanos que define a forma de interação com as pessoas e exerce influência direta na ocorrência de falhas, erros e acidentes. O projeto de fatores humanos deve controlar a interação homem × sistema limitando as consequências dos erros humanos para que estes não venham a ocasionar acidentes catastróficos. 4. Proteção Contra o Erro Humano: O erro humano é influenciado pelas vulnerabilidades naturais (imprevisíveis), pelas limitações humanas (inevitáveis) e pelo ambiente de indução ao erro (projetado). O controle das consequências do erro humano para níveis aceitáveis só é possível através do projeto de fatores humanos que atua limitando o ambiente de indução ao erro, uma vez que as vulnerabilidades naturais e as limitações humanas não estão ao alcance da engenharia. 158 CAPÍTULO 9 Conclusão Proteger contra erro humano é reconhecer que os erros humanos são inevitáveis, cabendo ao projeto de fatores humanos criar as soluções de engenharia que limitem as consequências dos erros humanos a níveis de risco aceitáveis. 5. Superioridade da Decisão Humana: Nenhum tipo de automação, intertravamento ou computador de processo oferece melhor decisão do que o profissional técnico devidamente capacitado para a condução das medidas de mitigação de uma emergência. Os acidentes sempre incluem aspectos imprevisíveis ou inesperados, seja por falha de equipamento, procedimentos, pessoas ou por ação da natureza. A conjugação de todos esses fatores mais a percepção do impacto do escalonamento do acidente tanto em seus efeitos técnicos como socioambientais gera um grau de complexidade acrescido de aspectos subjetivos que tornam a automação limitada para prover a melhor decisão, havendo maior chance de resultados positivos através da tomada de decisão por um profissional devidamente capacitado à frente do gerenciamento da crise. 6. Não Mecanização do Trabalho Humano: O empreendimento tecnológico deve prover soluções de engenharia que impeçam a mecanização do trabalho humano em todos os níveis, através de um abrangente projeto de fatores humanos. A mecanização de qualquer atividade humana aumenta os riscos de acidentes catastróficos por conduzir a uma redução, ainda que momentânea, da capacidade de analisar e de prover soluções em cenários acidentais em que os elementos imprevisíveis e inesperados sempre estão presentes. Atividades que incluam rotinas que conduzam a uma necessidade de mecanização para obtenção de eficiência devem, tanto quanto possível, ser transferidas para as máquinas. Mas caso isso não seja possível, o planejamento da tarefa deve incluir compensações para que o nível de consciência sobre a atividade em curso não venha a ser prejudicado criando ambiente de indução ao erro. Incluem-se como mecanização do trabalho humano sistemas de interação homem × sistema que limitam essa interação ao cumprimento de normas, regras e procedimentos sem margem para que os agentes sejam a qualquer momento questionados, avaliados e, se necessário, descumpridos como meio de evitar um acidente. Normas e 159Gerenciamento de riscos procedimentos, mesmo que especificamente de segurança, devem ser adotados enfaticamente como uma mera referência, considerando que teoricamente guardam em seu conteúdo o melhor da experiência e das boas práticas de engenharia aplicáveis à atividade em curso. Isso não significa que não possam conter erros ou avaliações inapropriadas para o cenário acidental real, que é único e pode nunca antes ter sido previsto, mesmo em teoria. Por isso, para evitar e enfrentar acidentes, deve ser eliminado o vício do legalismo, bem como o comportamento mecânico de engenheiros e técnicos, sendo, portanto, indispensável uma atuação com liberdade inteligente, rica de habilidade técnica e experiência operacional. 7. Inclusão de Projeto Antropométrico e Psicológico: Os projetos de engenharia, para alcançarem maior nível de segurança, devem incluir abordagem antropométrica e psicológica, a fim de estabelecer um projeto de fatores humanos adequado. A partir de dados antropométricos devem ser consideradas análises de riscos biomecânicos, riscos de trabalhos estáticos e repetitivos, riscos de trabalhos manuais bem como devem ser avaliadas as influências de temperatura, ambiente visual, audição, vibração, entre outros. Com relação à psicologia, devem ser consideradas questões como estresse e fadiga individual, estresse ambiental, sobrecarga de demanda, processamento humano de informação e carga de trabalho mental. 9.3 VISÃO ESTRATÉGICA DE GERENCIAMENTO DE RISCOS E SEGURANÇA Seja em instalações offshore, ou não, o gerenciamento de riscos e segurança são temas intimamente ligados à gestão tec- nológica. Gerenciar riscos pode ser resumido em decidir por aceitar ou recusar riscos, e quem acumula as decisões importan- tes sobre os riscos que envolvem os empreendimentos são em geral os gestores. Uma parcela significativa dessa decisão inclui componentes subjetivos mesmo que, como suporte, sejam feitas as mais criteriosas análisesde riscos com as mais sofisticadas ferramentas tecnológicas, pois mesmo assim a imprevisibilidade 160 CAPÍTULO 9 Conclusão sempre será um fator presente em toda a expectativa sobre a possibilidade de acidentes. No momento da decisão por aceitar ou não um risco, apesar de todas as informações técnicas dis- poníveis, haverá sempre uma parcela de informações indisponí- veis relacionadas à interação homem × sistema que acontecerá no futuro, durante a vida útil do empreendimento tecnológico. Gerenciar riscos requer a inclusão desse componente de subje- tividade harmonizado ao conhecimento técnico de modo a gerar decisões não apenas matematicamente corretas, mas decisões o mais realistas possível. Os empreendimentos tecnológicos na área de exploração e produção de óleo e gás convivem com a constante necessidade de gerenciamento dos consideráveis riscos envolvidos, desde o projeto até a venda do produto final. Tais riscos envolvem questões relacionadas a grandes inventários de hidrocarboneto, concentração de energia, impacto ambiental, vidas humanas, im- pacto econômico e social. O gerenciamento de risco e segurança nessa área não pode se limitar apenas a ferramentas, simulações e modelos matemáticos teoricamente perfeitos, mas carentes de informações subjetivas sobre o comportamento humano, social, cultural indispensáveis para haver correspondência e realismo com as atividades operacionais e organizacionais. Não que ferramentas, simulações e modelos matemáticos tenham per- dido seu valor. Pelo contrário, são indispensáveis, assim como toda uma gama multidisciplinar de conhecimentos que também precisam ser contemplados pelos gestores para a tomada da melhor decisão. A melhor forma de alcançar as melhores decisões é cada vez mais criar meios de interação entre modelos tecnológicos clás- sicos de análise e avaliação de riscos, com aspectos subjetivos e realísticos sobre o comportamento humano e sobre as ativi- dades corporativas. É necessário desenvolver ferramentas que se aproximem mais do homem, como, por exemplo: softwares, máquinas, instalações, plantas, equipamentos, plataformas off- shore ou quaisquer empreendimentos tecnológicos. Tais em- preendimentos precisam se tornar cada vez mais parecidos com o homem, em vez de os homens se tornarem parecidos com as máquinas. Nesse contexto, buscamos exemplificar a aplicação desses conhecimentos descritos através da identificação de uma ferramenta que já possui essas características de aproximação com o comportamento humano, ainda que de forma rudimentar, mas tecnicamente correta e irrepreensível. 161Gerenciamento de riscos 9.4 IMPORTÂNCIA DO ESCAPE E ABANDONO NO GERENCIAMENTO DE RISCOS E SEGURANÇA Em termos de gerenciamento de risco e segurança offshore, muita ênfase tem sido dedicada aos sistemas de detecção e combate a incêndio e vazamentos de gás. Os acidentes pos- tulados pelas análises enfatizam também os cenários de in- cêndio e explosão. A estruturação das atividades de gerencia- mento de risco e segurança offshore estabelece um conjunto de medidas preventivas de segurança para cada disciplina do projeto da instalação offshore. Assim são criadas barreiras preventivas para evitar a ocorrência dos acidentes, mas isso não garante que as possíveis falhas nessas medidas possam gerar vulnerabilidades nas barreiras de segurança de cada dis- ciplina de projeto. Em geral, o acidente acontece quando as vulnerabilidades de cada barreira preventiva de segurança se alinham entre si permitindo uma sequência infeliz de eventos até chegar ao acidente. Caso isso ocorra, os projetos offshore possuem sistemas de segurança que atuam para mitigar o escalonamento do acidente propriamente dito. São sistemas como o de detecção e combate a incêndio, salvatagem e também o sistema de escape e abandono da instalação offshore. Como dissemos, tem sido dada grande e merecida ênfase aos sistemas de detecção e combate a incêndio, uma vez que tais sistemas possibilitam aumentar o tempo dis- ponível para o escape e abandono da unidade na medida em que reduzem a velocidade de propagação dos incêndios ou simples- mente o evitam através de sua extinção no princípio. Os sistemas de detecção e combate a incêndio são eficientes para mitigar princípios de incêndio, quando as chamas, cargas térmicas e o cenário como um todo ainda são compatíveis com o poder de resposta desses sistemas. Um princípio de incêndio, por exemplo, na planta de processo, que supere e se mantenha após os primeiros 60 segundos dificilmente conseguirá ser extinto pelos sistemas próprios da unidade, uma vez que os inventários de hi- drocarboneto em instalações offshore são em geral extremamente elevados. Uma comparação simples, para fins didáticos, permite afirmar que se o inventário de hidrocarbonetos de uma instalação offshore coubesse em uma garrafa de 1 litro de combustível, a vazão das maiores bombas de água de combate a incêndio dis- poníveis no mercado offshore, proporcionalmente, seria capaz de prover 16 gotas de água num intervalo de 5 minutos para combater 162 CAPÍTULO 9 Conclusão o incêndio. Portanto, combater incêndio em unidades offshore é muito mais uma questão de estratégia do que de força bruta. Assim, mesmo aumentando o grau de redundância, a disparidade entre o inventário de energia química e a capacidade de remoção de energia dos sistemas de combate a incêndio continuaria a ser muito grande. Em termos de segurança offshsore, em caso de acidentes com incêndios e explosões, a solução mais eficiente é centralizar os objetivos em reduzir as chances de perdas humanas através de um sistema de escape e abandono eficiente capaz de permitir o rápido e seguro deslocamento do POB para fora do cenário de acidente. Fortes aliados neste processo são os sis- temas de detecção e combate a incêndio, pois conseguem reduzir a velocidade de propagação do princípio de incêndio gerando tempo extra para escape e abandono, isso quando não consegue extinguir o evento ainda na fase inicial. Considerando o princípio 1 de fatores humanos – centrali- zação de objetivos nas pessoas −, o sistema de segurança off- shore mais importante e que mais contribui para salvar vidas é o sistema de escape e abandono. Prover rotas de fugas adequadas e estratégias de movimentação de pessoas eficientes é o que mais salva vidas e o que mais reduz o impacto do acidente para a organização e para a sociedade. Um incêndio de grandes pro- porções em uma instalação offshore que não gere vítimas será um motivo de reconhecimento da eficiência dos sistemas de segurança, ainda que parcialmente, pois, apesar dos danos e até eventual perda da instalação, considerando-se a criticalidade dos cenários acidentais de instalações offshore a inexistência de vítimas humanas é uma demonstração de eficiência técnica dos sistemas de proteção à vida. Também é importante perceber que no momento em que a operação de escape e abandono é deflagrada, um processo de intensa interação homem × sistema se inicia, na qual todo o POB passa a interagir com a instalação offshore em busca de mitigar o acidente, escapar do perigo e abandonar o cenário acidental. Uma unidade offshore com 110 pessoas a bordo como a que foi estudada neste trabalho precisa estar preparada desde o projeto para essa interação homem × sistema extrema que se estabelece numa emergência, especialmente quando fatores relacionados com a flutuabilidade, estabilidade e visibilidade estejam também agravando o cenário e influenciando no deslocamento e compor- tamento das pessoas que poderão ter de enfrentar escadas, pisos inclinados, corredores congestionados e fumaça. 163Gerenciamento de riscos Teoricamente é possível medir a distância entre o posto de trabalho mais distante e aplicar uma velocidade estimada para se determinar o tempo de deslocamento durante uma emergência. Mas essa análise simplória pode fazer frente ao cenário real de uma emergência offshore? E os efeitos de uma possívelinclina- ção da unidade? Os efeitos da falta de visibilidade pela fumaça, temperatura, toxidade? Não seria indispensável antever os pontos de congestionamentos pelas rotas de fuga? Não é importante iden- tificar os pontos de contrafluxos quando operadores precisam se deslocar contra o sentido de deslocamento de escape e abandono para operar, por exemplo, manualmente, válvulas dilúvio que falharam? Também não é indispensável considerar se o acidente ocorre durante a noite ou durante o dia, já que os comportamen- tos humanos são diferentes nesses períodos? As diferenças de velocidades para subir, descer escadas, se deslocar no plano ou sob inclinação não deveriam ser consideradas? As diferenças de comportamento de operadores experientes e novatos, homens e mulheres, jovens ou maduros também não deveriam ser incluídas nos estudos? A influência das diferentes possibilidades de dis- tribuição de pessoas nas diversas salas e áreas ao longo de toda a vida da unidade offshore também não deveria ser verificada? A movimentação de pessoas é um assunto extremamente complexo, principalmente quando são consideradas as condições comportamentais que caracterizam as emergências que exercem forte impacto emocional e físico sobre os operadores. Reduzir isso a uma análise simplória de medição de distância e aplicação de velocidade é desprover os gestores de informações indis- pensáveis para que as melhores decisões pela aceitação ou não de riscos sejam tomadas. O sistema de segurança mais eficaz para salvar vidas é o de escape e abandono. Estudá-lo com as melhores ferramentas possíveis, que conjuguem o conhecimento técnico clássico, com fatores humanos, cultura de segurança e toda a subjetividade associada à gestão das imprevisibilidades é uma contribuição essencial para minimizar os riscos de perdas humanas ao longo da vida útil das instalações. Utilizar ferramentas adequadas de análise que explicitem a interação homem × sistema permite a redução das chances de perdas humanas através de um geren- ciamento de riscos baseado nas melhores decisões possíveis, suportadas por análises realistas e mais bem identificadas com a complexidade que na prática se estabelece durante a ocorrência dos cenários acidentais em empreendimentos tecnológicos. 164 CAPÍTULO 9 Conclusão 9.5 MELHORIAS NOS SISTEMAS DE ESCAPE E ABANDONO EM INSTALAÇÕES OFFSHORE Este trabalho identificou o software EvE/Evi da Universidade de Strathclyde, Glasgow UK, como ferramenta capaz de simular a movimentação de pessoas em navios de passageiros, incluindo efeitos comportamentais de pessoas, fatores humanos, aspectos da cultura de segurança, ações estabelecidas por procedimentos operacionais, efeitos de propagação de incêndio, efeitos de dis- persão de gases e efeitos de avaria naval. Através de pesquisa sobre a utilização do software foi pos- sível desenvolver uma metodologia de adaptação do mesmo para análises de instalações offshore a partir do estudo de caso de um FPSO. Essa adaptação resultou em mais de 4.000 simulações de cenários de emergência offshore cujos resultados nos per- mitiram identificar oportunidades de melhorias para os sistemas de segurança desse tipo de instalação. A seguir iremos apresentar essas oportunidades de melhoria e também conclusões técnicas obtidas a partir dos resultados das simulações. A criação de um modelo 3D através do software para uso em simulações de escape e abandono foi tecnicamente bem-sucedida. Os documentos originais puderam ser convertidos para formatos compatíveis com o software e a partir desses documentos foi criado um modelo 3D representativo do FPSO em estudo. O modelo 3D gerado, além de servir para análises de segurança, serve também para quaisquer tipos de estudos, nos quais a visualização 3D seja relevante, como, por exemplo, para projeto do arranjo da instalação, programação de manutenções, programação de paradas, mudanças de layout, simulações de movimentação de pessoas em tarefas. Foi possível gerar simulações que definiram um POB específi- co para interagir com o FPSO em estudo. Esse POB pode possuir exatamente os mesmos dados comportamentais e biométricos de cada pessoa que exerce o trabalho real na instalação. O FPSO em estudo ainda não está em operação e, por isso, foi criado um perfil para cada agente com características pessoais específicas, de modo que o POB simulado se aproxime ao máximo do suposto grupo que irá operar o FPSO quando em operação. A adaptação do número de pessoas a bordo, bem como a es- tratificação do POB em categorias foram realizadas com sucesso. Foram geradas simulações incluindo diferentes configurações de POBs sempre correspondentes aos perfis do POB esperado para o FPSO em estudo. 165Gerenciamento de riscos Características comportamentais esperadas para o POB do FPSO em estudo foram simuladas com sucesso, considerando faixas etárias, gênero, experiência operacional, tempo de reação, velocidades de deslocamento, localização física na unidade, atribuição de tarefas específicas e o cumprimento de procedi- mentos. O refinamento do comportamento simulado inclui a diferenciação do comportamento durante o dia e a noite. Foram simulados com sucesso a obediência a diferentes tipos de procedimentos operacionais possíveis de serem seguidos em emergências offshore. É possível fazer a comparação de tempo entre os diferentes procedimentos de escape e abandono adotados e comparar a eficiência dos mesmos. Cenários de acidentes de vazamento de gás e acidentes com avaria naval foram simulados com sucesso. Foi possível analisar a movimentação de pessoas na instalação offshore avariada, considerando-se os efeitos do ângulo de adernamento e as limi- tações de lançamento das embarcações de salvamento. Dados do projeto naval e das condições marítimas podem ser importados e incorporados às simulações. Cenários de acidentes de incêndio na área do casario foram simulados com sucesso. Foi possível analisar a movimentação de pessoas na instalação offshore avariada considerando dados dos estudos de propagação de incêndio, dispersão de gases e explosão. Os dados precisam ser importados do modelo original (CFD) em formatos previamente estabelecidos para esse fim. Foi simulado com sucesso um incêndio na área do casario do FPSO através da importação de uma nuvem de pontos típica de propagação de incêndio e de dispersão de fumaça na área sinis- trada no cenário postulado. Foi possível identificar os efeitos cumulativos de temperatura, intoxicação e visibilidade sobre cada um dos agentes a bordo da unidade e inclusive analisar a gravidade dos efeitos sobre os agentes e a identificação dos casos de fatalidades. Cenários de acidentes de incêndio na área de processo foram simulados com sucesso. É possível analisar a movimentação de pessoas na instalação offshore avariada considerando dados dos estudos de propagação de incêndio, dispersão de gases e explosão desde que eles estejam disponíveis em formatos e com organização compatíveis com o requerido para importação pelo software de simulação. Uma estratégia alternativa pode ser uti- lizada quando os arquivos originais de projeto, contendo nuvens em CFD com as análises de propagação de incêndio, dispersão 166 CAPÍTULO 9 Conclusão de fumaça e explosão não fornecem dados representativos para uso em simulações que consideram os efeitos sobre as pessoas a bordo. Trata-se da estratégia de fechamento e bloqueio parcial de rotas para simulação de incêndios a bombordo e a estibordo do FPSO. Porém, o software utilizado permite fazer simulações a partir de nuvens de pontos em CFD, desde que os estudos de propagação de incêndio, dispersão de gases e explosão sejam desenvolvidos para alcançar a representatividade mínima reque- rida para obtenção de resultados válidos através das simulações. Foi possível distribuir o POB em diversas formas de configu- ração operacional pelos diferentes postos de ocupação do FPSO e verificar quais as configurações dedistribuição funcionam melhor na operação do FPSO. As simulações permitem retroceder e parar no tempo do evento acidental em curso, podendo-se identificar os agentes e os locais com problemas e estudá-los. É possível, por exemplo, identificar quais as características do agente que chega por último ao ponto de encontro, ou qual agente inicia o processo de conges- tionamento de uma determinada rota. As simulações fornecem ao seu final e também durante o andamento resultados sobre o desempenho dos agentes, das rotas de fuga e pontos de encontro. É possível também gerar o rastro dos movimentos de cada um dos agentes e assim visualizar no modelo 3D as rotas de fuga mais congestionadas, as portas que mais influenciam no congestionamento e os caminhos alternati- vos utilizados pelos agentes. Cenários especiais podem ser simulados através de comandos de fechamento de portas, atribuição de tarefas específicas para determinados agentes e através de comportamentos diferenciados como atribuir a um agente a função de ficar perdido e desorienta- do. Através desses recursos é possível incluir tarefas operacionais e identificar a interferência destas com outras em paralelo ou com a operação de escape e abandono. Foi possível a inserção de atributos comportamentais para cada agente do POB através de funções estatísticas associadas aos atributos de cada indivíduo. Assim, tais variáveis puderam ser consideradas como variáveis aleatórias. O posicionamento dos agentes, bem como a distribuição dos atributos puderam ser realizadas para cada agente individualmente ou randomicamente pelo software. Outra opção foi uma solução híbrida, na qual, em determinadas salas e funções específicas, os agentes foram posicionados manualmente enquanto em outras áreas isso foi 167Gerenciamento de riscos feito randomicamente. Foi possível também atribuir comporta- mentos através de funções estatísticas previamente validadas pela IMO – International Maritime Organization. Tais tabelas servem como referências para instalações offshore desde que ajustadas para atender o perfil comportamental e demográfico do POB que supostamente irá trabalhar no FPSO, o que foi realizado para o estudo de caso deste trabalho. Antes, durante e depois de a simulação ser realizada é possível usar diversos modos de visualização do modelo 3D, incluindo as influências dos movimentos navais, grid de propagação de incêndio, posicionamento dos agentes, nível do mar. Assim é possível realizar passeios virtuais no interior do FPSO modelado em 3D para ajustes e estudos de problemas durante os eventos em estudo, projetos e planejamentos de paradas. Também é possível fazer o desmembramento do modelo 3D em plantas baixas de todos os decks, em tempo real, antes, durante e depois da simu- lação, o que permite uma visualização detalhada do andamento da operação por deck, por sala, corredor, porta, escada e em qualquer compartimento do FPSO. As simulações podem ser realizadas em bateladas, ou seja: é possível estabelecer um conjunto de simulações de diferentes cenários e estabelecer uma rotina de repetições específica para cada cenário. Ao final, os resultados são registrados para uma posterior análise estatística. Assim, através das simulações em bateladas é possível criar estimativas de frequência de ocorrên- cia dos cenários de sinistro e avaliar se elas se enquadram nos níveis de risco aceitáveis para o empreendimento tecnológico em estudo. Após cada simulação é gerado um conjunto de resultados em gráficos e números permitindo análises variadas sobre o cum- primento dos objetivos dos agentes, a movimentação, número de fatalidades, tempos de deslocamento e de congestionamento, distâncias percorridas, históricos de principais pontos de conges- tionamento, densidade demográfica, ocupação de pontos de encontro, histórico de chegadas de pessoas, ocupação de pessoas por deck, entre outros. As simulações permitem resultados suficientes para a con- fecção de uma tabela de referência (modelo na Figura 8.1) para tempos de operação de escape e abandono aplicável ao FPSO. Essa tabela fornece o tempo máximo requerido para escape e abandono conforme o tipo de sinistro. Os valores podem ser utilizados pelo responsável pela ordem de escape e abandono 168 CAPÍTULO 9 Conclusão do FPSO, durante a fase de tomada de decisão, já que, com os valores tabelados e as informações sobre o cenário acidental em curso, o responsável pela decisão pode avaliar melhor se ainda é possível postergar ou não a decisão pelo escape e abandono. As simulações permitem concluir que em determinados ce- nários acidentais os agentes poderão dar preferência às rotas alternativas em lugar das rotas de fuga definidas no projeto. Em especial, no estudo de caso, foi observado que a área de chegada de risers, a bombordo do FPSO, foi a opção preferencial dos agentes localizados na proa da instalação em alguns cenários acidentais simulados. Como razões para esse comportamento es- tão: a redução do trajeto no caso de haver uma passagem desobs- truída e protegida dos efeitos do sinistro através da passarela da área de chegada de risers; o corredor fica abaixo do main deck e assim fica abrigado pelo costado do FPSO, o que poderia fornecer proteção adicional caso o evento, por exemplo, de incêndio, es- tiver gerando calor e fumaça nas rotas preferenciais durante a operação de escape e abandono. O estudo dos cenários de incêndio no casario mostrou que incêndios desse tipo exigem reação rápida por parte dos agentes que estejam nesta área do FPSO. Considerando-se um incêndio na cozinha, as simulações mostraram que após 4,4 minutos de iniciado o evento, de 1 a 2 fatalidades podem ocorrer depen- dendo dos comportamentos e posicionamentos dos agentes. Portanto, para reduzir os riscos de fatalidades no casario, os agentes precisam ser treinados para ter tempos de reação es- pecialmente reduzidos. Deve ser proposto como alvo o tempo de aproximadamente 2 minutos para sair do casario em direção aos postos de abandono e assim reduzir o risco de fatalidades. Nessas condições torna-se altamente recomendável a eliminação do procedimento de ida ao ponto de encontro para os casos de incêndio no casario. Através dos experimentos realizados no Kelvin Hydrodyna- mics Laboratory da University of Strathclyde em conjunto com a COPPE/UFRJ, as definições de cenários para as análises de propagação de incêndio, dispersão de gases e explosão, que atual- mente são realizadas na fase de projeto de um FPSO, precisam ser reavaliadas para que os resultados desses estudos possam alcançar a representatividade mínima requerida para serem usadas em simulações de acidentes que considerem as consequências e os efeitos do sinistro sobre as pessoas. Os estudos tradicionais consi- deram cenários extremos e geram nuvens de pontos concentradas 169Gerenciamento de riscos numa região muito limitada do FPSO. Para serem representativos, os resultados dos estudos em CFD devem fornecer nuvens de pontos para todo o FPSO e também considerar cenários de maior frequência de ocorrência, mesmo que menos críticos do que os que atualmente são avaliados nos estudos de segurança de projeto. Embora sejam menos críticos, os cenários de maior probabilidade de ocorrência possuem maior representatividade em relação aos acidentes que o FPSO de fato terá mais chance de enfrentar du- rante sua vida útil. É muito importante para esse tipo de análise que os estudos de CFD sejam realizados seguindo o princípio 1 de fatores humanos – centralização de objetivos nas pessoas. Ou seja, os estudos de CFD tradicionais apresentam definições de cenários e resultados com o objetivo maior de identificar os efeitos dos acidentes na instalação, mas seria melhor a centralização dos objetivos dos estudos nos efeitos dos acidentes sobre as pessoas. Se as pessoas estiverem protegidas, a probabilidade de a instala- ção também estar é maior, observando-se que a recíproca, nesse caso, nãoé verdadeira como muitas vezes pode parecer. Análises tradicionais em CFD para propagação de incêndio, dispersão de gases e explosão apresentam resultados que demonstram a integridade das estruturas, ou a necessidade de proteção passiva para isso. Porém, não demonstram em seus resultados os efeitos diretos sobre as pessoas em relação às temperaturas geradas, nem quanto ao impacto da toxidade dos gases, nem quanto à redução da visibilidade nas rotas de fuga e muito menos sobre risco de fatalidades decorrentes da evolução do evento. Ou seja, a metodologia usada tradicionalmente nos relatórios de análise de projeto em CFD fornece resultados que justificam a aceitação ou não do risco com base nos efeitos sobre a estrutura do FPSO, a partir de simulações que podem ou não indicar a ocorrência do colapso das estruturas da instalação. Mas esses resultados da metodologia atual não oferecem qualquer informação sobre o número de fatalidades e o grau de impacto sobre pessoas durante esse mesmo acidente, o que é tratado subjetivamente. É possível observar que os resultados de estudos em CFD de cenários mais realistas (como incêndios em poças e vazamentos) em geral não resultam em impacto signifi- cativo sobre a estrutura da instalação. Isso influencia os técnicos em CFD no sentido de desenvolverem simulações para cenários extremamente mais severos, já que os cenários mais realistas não trariam resultados importantes em termos de relatório de estudo em CFD. 170 CAPÍTULO 9 Conclusão Mas tais cenários severos significam maiores chances de fatalidades, as quais não são diretamente mensuráveis pelas análises realizadas em CFD dentro da metodologia atual. Os cenários atualmente escolhidos são extremamente severos, pouco prováveis e não apresentam resultados diretos quanto ao impacto sobre a segurança das pessoas. Os piores efeitos desses cenários severos não estão sendo considerados (fatalidades). Os possíveis danos estruturais ou necessidades de proteção passiva, por exem- plo, são os pontos mais importantes dos relatórios atuais. Mas como não há meios técnicos de analisar diretamente os efeitos do acidente sobre as pessoas dentro da metodologia atual, isso não aparece nos relatórios como suporte para decisões de aceitação de risco por parte dos gestores. A inclusão de estudos em CFD que produzam nuvens de pontos com objetivos centralizados em proteger pessoas é o que consideramos ser uma das maio- res oportunidades de melhoria a ser considerada para os novos projetos de instalações offshore. Uma oportunidade de melhoria muito importante, dada a importância que os resultados dessa nova metodologia podem gerar, é a redução de probabilidade de fatalidades em decorrência de acidentes em instalações offshore. 9.6 APLICABILIDADE PARA A SEGURANÇA DE INSTALAÇÕES ONSHORE Apesar de este trabalho ter sido desenvolvido através do estudo de caso de uma instalação offshore do tipo FPSO, os conceitos, resultados, conclusões e o software de simulação têm um campo de aplicação muito mais amplo. Os conceitos de cultura de segurança e fatores humanos são aplicáveis a qualquer empreendimento tecnológico, desde in- dústrias, projetos, pesquisas, desenvolvimentos, metodologias de treinamentos, tanto no âmbito profissional como também no dia a dia das pessoas que formam a sociedade e sua cultura pró- pria de segurança. O entendimento dos conceitos de cultura de segurança e fatores humanos e sua efetiva aplicação nos em- preendimentos tecnológicos de toda ordem permitem a gestão tecnológica eficaz dos riscos com o intuito de reduzir acidentes, vítimas e fatalidades. São temas que não se limitam apenas às atividades técnicas propriamente ditas, mas interessa a toda ges- tão tecnológica. Os conceitos de cultura de segurança e fatores humanos estão intensamente associados aos atos de gestão, que 171Gerenciamento de riscos em linhas gerais decidem sobre a aceitação ou não de riscos. Aplicar os princípios de cultura de segurança e fatores humanos é gerar compromissos e atitudes, mas também mudanças técnicas em projetos de modo a elevar o nível de recursos para tomadas de decisões relacionadas com os riscos à vida, ao meio ambiente e ao patrimônio reduzindo acidentes. A ferramenta EvE/Evi, ou outra similar que reúna as mesmas características, permite a conexão entre subjetividade e obje- tividade na aplicação dos princípios de cultura de segurança e fatores humanos. Através de simulações computacionais é pos- sível alcançar resultados objetivos, estatisticamente avaliados e com evidências de impacto na qualidade de gestão de riscos de empreendimentos tecnológicos. O fato de ter sido utilizado o es- tudo de caso de uma instalação offshore do tipo FPSO não descre- dencia este tipo de análise e simulação para aplicação nos demais tipos de instalações. Na realidade, o grau de complexidade das instalações offshore em geral cobre as necessidades requeridas para simulações e análises dos demais tipos de empreendimentos tecnológicos. Além da capacidade de melhoria dos elementos para a decisão de aceitação ou não de riscos em empreendimentos tecnológicos, os conceitos, ferramentas e análises que estão propostos tam- bém se aplicam à melhoria operacional dos empreendimentos em tecnologia, especialmente no que se refere à influência da movimentação de pessoas. Com os conceitos desenvolvidos, é possível analisar e oti- mizar a movimentação de pessoas em paradas programadas de unidades industriais, ou mesmo nas atividades da rotina opera- cional. Isso possibilita a verificação das opções de layouts tanto provisórios como definitivos, de modo a prover o melhor projeto e planejamento em termos de eficiência na movimentação de pes- soas. Tais vantagens se aplicam tanto ao aspecto da segurança quanto à otimização do tempo gasto em parada ou em novas atividades que objetivem a eficiência global da unidade. Especialmente em casos de paradas com prazos extremamente críticos, é possível simular passo a passo os eventos e detectar possíveis pontos de congestionamento, riscos acidentais entre ou- tros aspectos. Isso significa um ensaio virtual da parada que pode ser repetido tantas vezes quanto forem necessárias para elimina- ção de dúvidas e reavaliação de decisões. Tais simulações podem ser feitas em tempo real, ou em velocidade acelerada ou ainda em velocidade lenta. Também é possível, durante o andamento 172 CAPÍTULO 9 Conclusão da parada, acompanhar através de um modelo 3D toda a dis- tribuição de pessoas no ambiente simulado, com a inclusão das tarefas individuais mais importantes. Estas podem ser acompa- nhadas em tempo real, permitindo que a simulação funcione em paralelo com as atividades reais de campo e provendo condições de acompanhamento e análise comparativa excepcionais. Também é possível aplicar conceitos, análises e ferramen- tas desenvolvidos neste trabalho para empreendimentos tecno- lógicos de construção e montagem, os quais possuem arranjos e locações de pessoas bastante dinâmicos, que podem ser testados previamente ou alterados virtualmente em modelo 3D antes e durante o evento real, tanto para fins de melhoria da segurança, como em termos de otimização e eficiência operacional, da mes- ma forma como descrito anteriormente para paradas programadas de unidades industriais. Considerando um campo de aplicação mais amplo, tais con- ceitos, análises e ferramentas também podem ser aplicados a quaisquer conglomerados de pessoas, sejam nos eventos pú- blicos, sociais e esportivos em estádios ou ao ar livre. Esse tipo de ferramenta de simulação computacional também pode ser adaptada para uso em análises de movimentação de veículos, considerando o comportamento humano do motorista em subs- tituição aos agentes, e as estradas em substituição a rotas e corredores. São apenas alguns exemplos das múltiplas possibilidades que se abrem ao se incluírem os princípios de cultura de segurança e fatores humanos em simulações computacionaistanto para análises relativas ao gerenciamento de risco e segurança, como para análises que tenham como objetivo a otimização e melhoria da eficiência operacional. CAPÍTULO 10Síntese 175Gerenciamento de riscos Este trabalho desenvolveu sete princípios para a implantação inicial de conceitos de fatores humanos, sete princípios para implantação inicial de cultura de segurança, e sete princípios de eficiência no gerenciamento de riscos em empreendimentos tecnológicos. A aplicação prática dos conceitos de cultura de segurança e fatores humanos no gerenciamento de riscos e segurança foi alcançada através do estudo de caso do sistema de escape e abandono em unidades offshore de exploração e produção de óleo e gás do tipo FPSO (Floating, Production, Storage and Offloading). O escape e abandono foi estudado em ambiente 3D representativo do projeto original, através de simulações compu tacionais que contemplam características comportamentais dos agentes em cenários de emergência, bem como a influência de normas, procedimentos e práticas operacionais. Os resultados obtidos com as análises das simulações com putacionais baseadas nos conceitos de fatores humanos e cultura de segurança identificaram oportunidades de melhorias para o aumento da eficiência dos sistemas de escape e abandono. Mais de 30 cenários de emergência associados a vazamento de gás, incêndio e avaria naval foram estudados. Os resultados foram tratados estatisticamente e permitiram estabelecer valores de tempos para suporte na tomada de decisão durante emergências, planejamento de paradas de manutenção, estudo de arranjo na fase de projeto, planejamento e estudo de movimentação de pes soas em tarefas específicas. Os resultados deste livro não se aplicam somente às insta lações offshore, mas também a qualquer tipo de empreendimento tecnológico que priorize o benefício das pessoas e da sociedade no gerenciamento de risco e segurança. Referências API RP 14J. Recommended Practice for Design and Hazards Analysis for Offshore Production Facilities. Washington USA, 2007. BRIDGER, R. S. Introduction to Ergonomics. 3 ed Boca Raton FL USA, CRC Press Taylor & Francis Group, 2009. CAPRA, F. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 25 ed. São Paulo: Cultrix, 1982. CHADWELL, G. B.; LEVERENZ, F. L.; ROSE, S. E. Contribution Of Human Factors To Incidents In The Petroleum Refining Industry. 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