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Unidade I A FENOMENOLOGIA DA MORTE NÓS TODOS NOS CONFRONTAMOS COM A REALIDADE DA MORTE 1 A ATITUDE DO INDIVÍDUO DIANTE DA MORTE 1.1. As pessoas estão fugindo da morte Das colunas da revista Manchete e dos outdoors que vemos nas ruas, rostos jovens riem e sorriem para nós. O programa de televisão “Fantástico” quase não apresenta reportagens sobre asilos de velhos. O Brasil é nação jovem. O que os nossos contemporâneos sabem sobre a morte reduz-se a um conhecimento geral que, aliás, é muitas vezes reprimido. Não se fala da morte. Não existe morte O que lemos sobre pessoas acidentadas e vítimas fatais só se refere aos outros, nunca a nós mesmos. A morte está confinada ao outro lado dos muros dos hospitais e das UTIs, ou, então, presta-se ao sensacionalismo para os que assistem às notícias de telejornais ou para os que leem os jornais. Esta situação básica não foi alterada sequer em decorrência do interesse despertado pelas chamadas “reportagens sobre a vida após a morte”. O famoso livro Vida depois da vida¹, de Raymund A. Moody, alcançou recorde de vendas no mundo inteiro, vindo a ser o precursor de uma infinidade de reportagens e publicações recentes sobre o assunto. Mas, apesar de tudo isso, no dia a dia do homem comum, o tabu da morte ainda não foi quebrado. De nada adiantou à Igreja pôr os seus fiéis, todos os anos, em confronto com as questões sobre a morte e a ressurreição, de acordo com o seu ciclo litúrgico. As pessoas não gostam de falar da morte, mesmo em caso de falecimento de familiares mais ou menos chegados. E, apesar disso, encontramos na morte o grande mistério do ser humano, talvez até um dos maiores. Se questionarmos o que vem a ser o homem, então a resposta a essa pergunta dependerá sempre, de algum modo, da maneira como nos posicionamos ante a morte de determinado homem. Não ante a morte do homem como indivíduo, mas, sim, ante a própria morte como fato. FUGIR DA REFLEXÃO SOBRE A MORTE SIGNIFICA FUGIR DA REFLEXÃO SOBRE O HOMEM. Assim, pois, a rejeição da reflexão sobre a morte se revela como sendo a rejeição da reflexão sobre o ser humano. O ser humano com toda a sua grandeza e a sua fraqueza, com a sua procura do infinito e a lembrança constante das limitações que lhe são impostas pela sua “condição humana”. Talvez seja isso que nos impede de tratarmos, frente a frente, da questão da morte. É que a indagação sobre a morte está forçosamente associada à questão do fim e também à questão se após o fim haverá ainda alguma outra coisa, ou não. Se a morte significa o fim propriamente dito, então é certo dedicar-se à vida e esquecer a morte: assim, não há morte porque eu a reprimo, e com razão. Assim, a morte não existe porque é apagada do meu consciente para que eu possa viver. O que conta, então, é a vida e nada mais. E à medida que a vida se mostra sem sentido, apesar de toda insinuação da propaganda, a morte também se torna fato absurdo que, de repente, surpreende o ser humano. Ou, como formulou Fritz Leist: “A falta de sentido da vida e o absurdo da morte fazem um pacto”.² A REFLEXÃO SOBRE A MORTE ESTÁ LIGADA À REFLEXÃO SOBRE O SENTIDO DA VIDA. Dessa forma, o ser humano se defronta com o paradoxo do significado da morte ou, por outras palavras, o paradoxo consiste em não se poder pensar na morte nem vivenciá-la, independentemente da maneira como se vive. E mais, a interpretação da morte não atingirá o seu pleno significado nem terá a seriedade devida, se a morte for dissociada da vida. Toda interpretação desta questão deve ser feita em estrito relacionamento com a vida passada e futura. OCUPAR-SE DA MORTE TORNA-SE UM OCUPAR-SE COM A VIDA. Quem se esquivar da discussão sobre a morte se esquivará da discussão sobre o que chamamos vida. Elisabeth Kübler-Ross, famosa pesquisadora da questão da morte, afirma o mesmo, do ponto de vista médico: “Morrer é parte integrante da vida, tão natural e previsível quanto nascer”.³ E continua: “Mas, enquanto o nascimento é motivo de comemoração, a morte transforma-se em terrível e inexprimível assunto, a ser evitado de todas as maneiras na sociedade moderna. Talvez porque nos relembra a nossa vulnerabilidade humana, apesar de todos os avanços tecnológicos”.⁴ Nesta argumentação, o ser humano é reduzido à forma genérica da existência de todos os seres vivos. Sendo assim, também a sua morte, na sua essência, não ultrapassa o significado da morte desses seres vivos. Contudo, parece-me que esta visão não toma suficientemente em consideração a seriedade existencial da morte humana. É verdade que também para o homem a morte é inevitável. É verdade que o ser humano se revela impotente perante esse fato. Trata-se de fatos que reforçam no homem a tendência à fuga, à repressão, acentuando a contradição existencial da vida humana em face da morte. Revela-se, portanto, verdadeiro o que Bernard Duburque afirma em seu artigo “La Disparition de la Camarde et l’avenir de l’homme”: “A morte, ou mais exatamente, o pensamento da morte, aniquilará aquilo que constitui a minha mais profunda realidade”.⁵ PROLONGAR A VIDA PARA FUGIR DA MORTE. Portanto, para esquivar-se dessa aniquilação, é simplesmente lógico aspirar ao prolongamento da vida. Eis por que o autor citado chega, com toda a razão, à afirmação de que “o prolongamento da esperança de vida, e, num futuro muito próximo, o prolongamento da certeza de viver é uma das condições essenciais para que o homem (…) possa assumir-se a si mesmo. Assumir-se total e livremente perante o universo, o absoluto, o seu Deus, seja qual for o significado que se atribua a esta palavra, contanto que seja suficiente para dar sentido à sua vida”. Apresenta-se aqui outra vez a questão do sentido. O sentido da vida humana não pode ser deduzido a partir da própria duração da vida. Muito pelo contrário, o prolongamento da vida, por sua vez, nos leva de volta à pergunta sobre o sentido deste prolongamento. A problemática inicial permanece inalterada: QUAL É O SIGNIFICADO DA VIDA HUMANA? Toda tentativa de responder a essa pergunta no plano de um humanismo voltado exclusivamente para este mundo torna-se círculo vicioso. Para podermos escapar à malha desse mecanismo, devemos tratar da questão da vida e da morte do homem a partir de um horizonte mais aberto, a partir de uma visão libertadora que inclui também as dimensões religiosas.⁷ 1.2. Até os cristãos estão reprimindo a reflexão sobre o fim da vida No plano fenomenológico, constatamos uma tendência nítida do ser humano a fugir da morte. Poder-se-ia indagar se atrás dessa tendência não se esconde algo mais do que a simples recusa de se ocupar das formas aparentes do fim e da decomposição. Podemos perguntar se o temor arcaico do ser humano perante a morte não tem causas mais profundas. ATÉ HOJE, A MORTE É ENCARADA FUNDAMENTALMENTE COMO UM FIM, COMO O FIM DA VIDA. Será que o homem, inconsciente e instintivamente, estaria recusando aceitar tal fim? Na evidência da morte e na falta de solução mais conveniente, ele reprime o pensamento da morte como tal. E isso, apesar de a religião cristã apresentar, há 2.000 anos, uma alternativa melhor. Acontece, porém, que muitos de nossos contemporâneos não veem aí alternativa nenhuma. Ou, então, veem aí uma alternativa demasiadamente presa aos conceitos amedrontadores do juízo e do fogo do inferno. Inferno ou condenação nada mais são do que um fim radical, um não-ser ou um não-ser-mais. Se, no entanto, até na esfera das mensagens cristãs se impôs a ameaça de um fim absoluto, o dilema que se nos apresenta é profundo: ou encaramos a situação heroicamente, ou sucumbimos de novo à fuga e à repressão. Hoje em dia, parece que muitos cristãos escolheram o segundo caminho… Por outra parte, nos últimos anos verificamos um interesse crescente pelas questões relacionadas com a morte. Ainda que para muitos não passe de interesse superficial, isto é, apesar de tudo, um sinal. No interesse pelas questões da morte manifesta-se a tentativa do homem de descobrir algo mais sobre um fenômeno de sua existência que conservou o seucaráter de mistério. E atrás de todo o interesse despertado esconde-se talvez uma esperança muito profunda, a esperança de que este mistério não se revele como “mysterium tremendum”, a esperança de que a morte não existe como fim e perecimento da vida. 1.3. A esperança na vida após a morte elimina o medo ou não? De todas as pesquisas sobre o assunto, deduzimos, de forma bastante clara, um fato básico: a contradição fundamental, diante da qual o homem se encontra. De um lado, ele deve aceitar a própria morte; de outro, tem uma vontade imanente de viver. Percebe-se, claramente, que esta contradição só pode ser eliminada mediante uma atitude que proporcione a esperança num “depois da vida”. Contudo, nem mesmo aceitando uma vida após a morte desaparece a indagação. Bem pelo contrário, ela se estende também ao campo religioso e teológico, tendo-se tornado, antes, um problema da Teodiceia: “Que divindade é esta, que, tendo criado o ser humano, deixa-o, depois, tornar-se comida para os vermes?” Assim formulou o problema o famoso filósofo Kierkegaard. Entretanto, um refletir sincero sobre a morte é um desafio não só para a filosofia, mas também, e com mais razão, para a teologia e a fé. A fé transmite uma imagem de Deus aos fiéis, e estes serão sustentados por ela no momento do morrer. Esta mesma imagem, contudo, poderá tornar-se mais um motivo de medo e angústia.⁸ Com relação a esse problema, descobrimos já nos estudos feitos por Solange Rodrigues, em São Paulo , um quadro bastante sério: “Embora os religiosos que responderam ao questionário da psicóloga tenham dito que as pessoas que têm fé enfrentam melhor a situação, Solange não chegou a constatar esta verdade”.¹ Pelo contrário, ela caracteriza como marcado pelo medo o estado psíquico das pessoas entrevistadas. Em nossa própria pesquisa, sobre a atitude das pessoas diante da morte, realizada em 1991/93, chegamos a esse mesmo resultado. Uma pesquisa psicológica sobre a atitude de crianças, diante de Deus, publicada em 1997, revela o seguinte fato: “Medo de Deus é o que mais estressa crianças”.¹¹ Não dá para negar que, em geral, as pessoas têm medo da morte, e, em muitos casos, este medo não está sendo diminuído pela sua crença religiosa em Deus, mas aumentado.¹² Nós deparamos assim com o grave fato de que a fé, em muitos casos, não tira a angústia das pessoas diante da morte nem diante do que vem depois. A problemática desta constatação deve preocupar-nos ainda nos capítulos a seguir. A partir dos resultados das pesquisas respectivas, verificamos que, ainda hoje, estamos colhendo os frutos de uma catequese que, durante séculos, trabalhou demais com uma pedagogia centrada na ameaça religiosa, ao invés de acentuar o amor. A consequência deste fato é um medo, muitas vezes reprimido e inconsciente, diante de tudo aquilo que vem depois da morte. Esse medo encontra as suas razões basicamente nos seguintes conteúdos religiosos: — Uma falsa imagem de Deus (Deus vingador). — Ameaças metafísicas indiretas. — Ameaças apocalípticas de um Deus punidor. — Ameaças de ser seduzido pelo diabo. — Ameaças de acabar no inferno.¹³ 1 R. A. Moody, Vida depois da vida. 2 Fritz Leist, Gesundheit und Krankheit der Seele, p. 34. 3 E. Kübler-Ross, Morte, estágio final da evolução, p. 30. 4 Op. cit., p. 30. 5 Ibid., in Etudes, Paris, août-septembre, 1982, p. 188. 6 Op. cit., p. 189. 7 Cf. John Bowkler, Os sentidos da morte. 8 Cf. sobre este assunto o livro específico do autor, sobre o medo religioso dos cristãos e sua superação: Renold J. Blank, Esperança que vence o temor, 1995. 9 Cf. Folha de São Paulo, 1º de julho de 1983, p. 14. 10 Cf. Folha de São Paulo, ibid. 11 Folha de São Paulo, 27 de abril de 1997, cad. 3, p. 1; também: O Estado de São Paulo, 28 de fevereiro de 1997, cad. A, p. 19. 12 Cf. Renold J. Blank, op. cit., pp. 15-32; 49-82; 145-161. 13 Cf. Idem, op. cit. 2 A ATITUDE PSICOSSOCIAL DIANTE DA MORTE 2.1. O século XX, marcado pela privatização progressiva do morrer Uma pessoa que morre quebra a rotina daqueles que a rodeiam. Pelo menos isso acontecia até o começo deste século, quando o morrer se dava junto à família. Como se dizia antigamente, depois de ter posto em ordem seus assuntos terrenos, o moribundo se deitava para morrer, rodeado de amigos, familiares e empregados da casa. O falecimento era ato público que, com toda a sua dignidade e solenidade, expressava a seriedade do que acontecia ali. Philippe Ariès, em seu livro O homem diante da morte, relata que “os médicos higienistas do fim do século XVIII começaram a se queixar da multidão que invadia o quarto dos moribundos. Sem grande êxito, já que no início do século XX, quando se levava o viático a um doente, qualquer pessoa, até os desconhecidos da família, podiam entrar na casa e no quarto do moribundo”.¹ Em seu livro Os cadernos de Malte Laurids Brigge, o poeta Rainer Maria Rilke descreve, através de imagens bastante expressivas, a consternação causada pela morte de uma pessoa naqueles que a rodeiam: “A morte do camareiro Christoph Detlev Brigge, em Ulsgaard. Ele jazia no meio do piso, transbordando imenso do uniforme azul-marinho, e não se movia. Em seu grande e estranho rosto, já desconhecido por todos, os olhos estavam cerrados: não viam mais o que acontecia. (…) Mas havia algo mais. Era uma voz, a voz que há sete semanas ninguém conhecia, pois não era a voz do camareiro. Essa voz não pertencia a Christoph Detlev, mas à morte de Christoph Detlev. Há muitos, muitos dias, a morte de Christoph Detlev habitava Ulsgaard e falava com todos, e exigia coisas. (…) Exigia e gritava. Depois, quando a noite baixava, e aqueles entre os criados exaustos que não precisavam vigiar tentavam dormir, a morte de Christoph Detlev berrava, e gemia, e urrava tanto, sem parar, que os cães, uivando juntos no início, agora emudeciam, não ousando deitar-se, e tinham medo, sobre as longas pernas esguias e trêmulas. Quando as pessoas da aldeia ouviam aqueles urros perpassando a ampla e prateada noite de verão dinamarquesa, erguiam-se como nas noites de tempestade, vestiam-se, ficavam sentadas ao redor do lampião, silenciosas, até tudo acabar. As mulheres prestes a dar à luz eram postas nos aposentos mais afastados, nas alcovas mais espessas; ainda assim ouviam tudo como se estivesse acontecendo dentro de seus próprios ventres. E suplicavam que as deixassem levantar; e vinham, brancas e volumosas, sentar-se junto aos demais com seus rostos diluídos. (…) A morte de Christoph Detlev, morando agora em Ulsgaard, não se deixava pressionar. Chegara para ficar dez semanas, e foi o que fez. (…) Aquela não era a morte de hidrópico qualquer, era a morte perversa e principesca que o camareiro carregara em si a vida toda, e alimentara consigo mesmo. Todo o excesso de soberba, poder e autoridade que não conseguira gastar nos dias calmos, entrara na sua morte, e era essa morte que agora se alojava em Ulsgaard, e se esbanjava”.² O que é descrito aqui, de forma poética única, é a inevitabilidade do morrer, que não leva em conta nenhuma convenção humana. Com ênfase rara, o texto de Rilke faz observar a relação indissolúvel existente entre o morrer e a vida anteriormente vivida. “…a morte perversa e principesca que o camareiro carregara em si a vida toda, e alimentara consigo mesmo.” Esta morte é vivida e vivenciada como acontecimento de caráter totalmente público e, justamente por não ser ocultada, torna-se ainda mais comovente. O autor citado anteriormente, Philippe Ariès, chama nossa atenção repetidas vezes para o fato de não se ocultar a morte, que caracterizava a vivência do morrer até o início do século XX. No segundo volume de sua obra O homem diante da morte, encontramos o seguinte comentário sobre o assunto: “Ainda no início do século XX, digamos até a guerra de 1914, em todo o Ocidente de cultura católica ou protestante, a morte de um homem modificava solenemente o espaço e o tempo de um grupo social, podendo estender-se a uma comunidade inteira, como, por exemplo, a aldeia.Fechavam-se as venezianas do quarto do agonizante, acendiam-se as velas, punha-se água benta: a casa enchia- se de vizinhos, de parentes, de amigos murmurantes e sérios. O sino dobrava a finados na igreja de onde saía a pequena procissão que levava o Corpus Christi…”³ A cerimônia religiosa tinha seu lugar incontestável em todo o decurso dos acontecimentos, e todos sabiam que ali alguém se preparava para encontrar-se com seu Criador e Senhor. 2.2. A privatização do morrer significa alienação do morrer Com a instituição da assistência médico-hospitalar, com a transformação das condições habitacionais, do ambiente social e das convenções da sociedade, sobretudo no contexto das cidades grandes e das aglomerações industriais, tudo mudou. A morte perdeu o seu caráter de cerimônia pública e tornou-se ato de caráter cada vez mais privado. E à medida que o internamento de doentes incuráveis acompanhou o aperfeiçoamento da assistência médica, assim o hospital também se tornou o lugar normal para se morrer. Isso não significa só a privatização do morrer, mas, na maioria dos casos, a alienação do morrer. Alienação esta que pode alcançar até a exclusão dos próprios familiares. Desta maneira, o morrer fica desprovido de seu sentido e assim não estamos mais conscientes do fato de a morte ser parte integrante da vida. O falecimento de um ser humano se transforma, deste modo, em caso clínico, e a morte em falência da arte da medicina. O morrer perdeu sua dimensão humana, ou esta dimensão foi reprimida. E, justamente com esta repressão, extinguiu-se também do consciente de muitas pessoas a dimensão religiosa do falecimento. O MORRER PERDEU SUA DIMENSÃO HUMANA E RELIGIOSA. Mais e mais vozes têm-se manifestado, nos últimos anos, contra a coisificação do ser humano nas UTIs de clínicas especializadas em atendimento de casos fatais. As pesquisas de Elisabeth Kübler-Ross e de muitos outros contribuíram para que hoje se pense e estude seriamente uma reumanização do morrer. 2.3. Onde, nesta situação, há lugar para a religião? Devemos perguntar-nos, porém, onde há lugar para a religião em tudo isso. Onde estão as respostas que uma teologia moderna, libertadora e orientada pela boa nova do evangelho pode dar à questão dos moribundos? Que resposta dar às perguntas sobre o sentido da morte? Para número cada vez maior, ela parece absurda, indigna da pessoa humana, ou, simplesmente, fato amedrontador e horrível, acontecimento que deve ser reprimido na consciência, na medida do possível. “A maneira pela qual a nossa sociedade nega a morte”, diz Elisabeth Kübler- Ross, “não traz nem esperança nem empresta nenhum sentido a este fato, somente aumenta nosso medo e nossa vontade de destruir.”⁴ O problema básico da negação ou da repressão da morte, aqui formulado, em sua essência também vale para a realidade latino-americana. Temos a impressão de que o interesse despertado ultimamente pela questão da morte ainda é muito limitado. A fuga domina abertamente. Não gostamos de falar da morte. Em consequência desta atitude fundamental, frequentemente falta em nossos hospitais a preparação do moribundo para a morte. É assim que muitas vezes se esconde, pelo mais longo tempo possível, o estado do moribundo, não só dele mesmo, mas também de seus familiares. Neste contexto, parece-nos apropriado chamar a atenção para uma pesquisa realizada em São Paulo. A psicóloga Solange Rodrigues tenta esclarecer o significado dos valores que a morte tem no processo de morrer. Em artigo do jornal Folha de São Paulo, de 1º de julho de 1983, ela sintetiza os seus resultados da seguinte maneira: “Cria-se uma espécie de redoma junto dos pacientes, onde as palavras doença, câncer e morte são cuidadosamente evitadas. A família recusa-se a tocar no assunto, temendo que o estado clínico da pessoa venha a piorar e com receio de magoá-la. Os médicos preferem não dizer exatamente aos doentes o que eles têm, transmitindo a notícia aos parentes próximos”. Esse texto reflete uma vez mais a convicção, não externada, de que o morrer e a morte são interpretados como falência da arte da medicina. Parece que, para muitos, a morte alcança o significado de humilhação para todos aqueles que se esforçam por salvar vidas. A este fato acrescenta-se, de um lado, a angústia latente que largas camadas de nossa população sentem em relação à morte e, de outro lado, observamos, ao mesmo tempo, uma apatia pronunciada sobretudo nas áreas dos grandes centros urbanos. 2.4. Morrer e as situações da morte como vivência cotidiana dos povos do Terceiro Mundo A banalização e anonimidade do morrer adquirem maior gravidade ainda quando, além de constatadas na vivência de indivíduos isolados, tornam-se a experiência cotidiana de grande parte de uma população. Isso é o que acontece de maneira generalizada entre os povos do Terceiro Mundo. A privatização da morte no século XX:⁵ A morte deles já começa como a “morte social” muito antes do próprio fato de a vida acabar. E, ao acontecer finalmente a morte física, o indivíduo submerge na imensa massa daqueles que não têm voz nem nome. A morte do filho de lavrador analfabeto e a do marginal ou do mendigo nos subúrbios dos grandes centros urbanos não é interpretada como sendo falência da medicina, porque aí não entram em jogo os cuidados médicos. Mortes como essas só podem ser interpretadas muitas vezes como sendo o resultado de estruturas marcadas pelo desprezo da vida em si, ou especialmente da vida do pobre. CONTRADIÇÃO ENTRE AS SITUAÇÕES DE MORTE SOCIAL E A MENSAGEM DO DEUS QUE QUER A VIDA. O desprezo da vida, porém, nos põe em oposição àquele que se definiu como não sendo “Deus de mortos, mas sim de vivos” (Mc 12,27). Este Deus que quer a vida revelou-se nas ações de Jesus de Nazaré. Ele lutou para que os homens “tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Esta vida, porém, começa aqui e agora, na história concreta, desde que Jesus debelou as forças de desumanização do homem. Nas palavras dele, os cristãos vêm-se apoiando há dois milênios, mas, apesar de tudo, a experiência da morte social não acabou — muito pelo contrário: “Nas nações pobres do mundo — o Sul — a expectativa média de vida é… inferior a 50 anos. Nos países mais pobres do Sul, uma criança entre quatro morre antes dos 5 anos de idade e mais de 50% estão condenadas ao analfabetismo vitalício. No Sul vivem hoje 800 milhões de pessoas em condição de pobreza ou miséria absoluta com cerca de 500 milhões sofrendo de subnutrição de proteínas em alto grau”.⁷ No quadro mundial, são cerca de 110.000 pessoas que morrem de fome por dia. “Segundo a FAO, 50 milhões de pessoas morrem de fome no mundo anualmente, dezessete milhões das quais são crianças menores de 5 anos.”⁸ “Hoje ninguém pode ignorar que, em continentes inteiros, são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome, inumeráveis as crianças subalimentadas, a ponto de morrer grande parte delas em tenra idade e o crescimento físico e o desenvolvimento mental de muitas outras correrem perigo”. Na sua encíclica Populorum progressio, o papa Paulo VI denuncia esta situação com palavras muito claras: Devido ao agravamento da crise econômica, este quadro de mortandade se agrava cada vez mais. É esta dança macabra que se apresenta com as mesmas características na esmagadora maioria dos países do hemisfério sul. A isto se acrescenta a ameaça da morte causada pelas guerras ou perseguições ideológicas.¹ Por trás dos números de milhares e dezenas de milhares de mortos, escondem-se as tragédias mortais de povos inteiros. Esconde-se também a dura realidade, e a experiência de muitos desses nossos povos marcados por perseguições de cristãos, só comparáveis às que foram desencadeadas no Império Romano pagão. Juan Hernández Pico resume esse fato com as seguintes palavras muito claras: “Na AL hoje são assassinados cristãos inocentes, crianças ainda dependentes do seio materno e adultos pertencentes ao laicato, à vida religiosa e à hierarquia”.¹¹ Os mártires reaparecem. É, pois, absolutamenteverdadeiro o que Florisvaldo Saurin Orlando escreve: “A experiência da morte é uma das mais generalizadas e múltiplas em nosso continente: morte física e moral, individual e coletiva, como acontecimento inevitável e fruto da limitação humana…”¹² Encarando todos esses fatos, é tarefa urgente de uma teologia libertadora despertar a consciência para o significado humano e sacramental daquele acontecimento que chamamos “o fim da vida”. Através de uma teologia da morte, devemos redescobrir a força que se esconde atrás da mensagem cristã sobre a morte; mas devemos conscientizar-nos também de que essa força, na consciência de nosso povo, foi enterrada por muito tempo, devido a uma visão exageradamente ameaçadora. DEVEMOS REDESCOBRIR O DEUS DA VIDA. Devemos redescobrir o Deus da vida, para que assim a morte se transforme em vida; em vida real que se realiza na história concreta, transformando esta história naquele reino da vida que Jesus Cristo denominou o Reino de Deus. 1 Philippe Ariès, O homem diante da morte, p. 21. 2 Rainer Maria Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Brigge, pp. 10-12. 3 Op. cit., vol. II, p. 612. 4 Elisabeth Kübler-Ross, Interviews mit Sterbenden, p. 21. 5 Cf. Robert Kastenbaum e Ruth Aisenberg, Psicologia da morte, pp. 149-214. 6 Idem, op. cit., p. 185. 7 Roger Riddell, in Concilium, 160 — 1980/10, p. 42 8 Felix Moracho, Na escola da fé, p. 77. 9 Paulo VI, O desenvolvimento dos povos, n. 45. 10 Orientierung 14/15 (46), aug, 1982, p. 154. 11 Concilium, 183 — 1983/3, p. 57. 12 F. S. Orlando, “As oportunidades da espiritualidade da cruz na América latina”, em VV. AA., A cruz, teologia e espiritualidade, p. 83. 3 A COMPREENSÃO CLÍNICO-TANATOLÓGICA DO MORRER Mediante pesquisas atuais sobre a morte, ficou claro mais uma vez que o fenômeno do morrer está estreitamente relacionado com todos os planos da existência humana. Às questões médicas e psicológicas devem ser acrescentados os aspectos de caráter jurídico e sociológico, além das contribuições da filosofia e da teologia. Mencionaremos a seguir, de forma sucinta, alguns dos aspectos mais importantes deste extenso problema. Para estudo mais aprofundado sobre o tema, recomendamos a literatura específica.¹ 3.1. O termo “morrer”, encarado do ponto de vista médico O fim do morrer, considerado aqui como fenômeno existencial, é alcançado na morte. As opiniões sobre o momento preciso, em que a morte se consuma, têm divergido muito nos últimos anos, principalmente por causa da influência do aprimoramento cada vez maior da técnica no campo da medicina. Foi constatado que era pouco preciso o que até há pouco tempo era visto como a situação final, isto é, a parada cardíaca e respiratória. Hoje em dia, diferencia-se a morte de cada órgão em separado — a chamada morte orgânica. A morte de uma pessoa estará consumada quando não forem mais registradas ondas elétricas cerebrais. Klaus Thomas diz, porém, que a “morte do homem”, no sentido de morte integral do organismo humano, “não deve ser equiparada ao conceito médico de morte cerebral”.² Isto porque as experiências clínicas dos anos passados demonstram claramente que quase cada órgão humano tem a sua própria morte por si mesmo. Apesar de ser o cérebro uma parte essencial do ser humano, nem a sua morte pode ser interpretada como a morte de tudo o que chamamos de “corpo”. Hans Küng aponta o fato de que, apesar de uma pessoa já ter sido considerada morta por diagnóstico feito com base em eletroencefalograma, “ela pode ser reanimada, por exemplo, em casos de resfriamento passivo ou de envenenamento por doses excessivas de sedativos”.³ A partir destes dados, concluímos ser necessário distinguir claramente entre o momento da morte clínica e o da morte vital propriamente dita. Esta última é caracterizada “pela perda irreversível das funções vitais”,⁴ ou, ainda, como “o estado do corpo, do qual é impossível voltar à vida”.⁵ Entre o momento da morte clínica e o da morte vital há, via de regra, um espaço de tempo de aproximadamente cinco minutos, e em casos extremos este período pode ser de até trinta minutos. Do ponto de vista da medicina, o morrer acontece da seguinte forma: 3.2. Quadro psicossocial do morrer Partindo-se de uma perspectiva orientada antes pelo ponto de vista psicossocial, deveríamos diferenciar esse esquema ainda mais, fazendo a distribuição entre viver conscientemente o morrer e o que vem depois, isto é, o que a seguir chamaremos de morrer clínico. Na qualidade de fenômeno existencial e psicossomático, o morrer inicia-se muito antes da morte clínica. Para Martin Heidegger, a totalidade da existência humana é um ser-para-a-morte. E ele entende, com isso, “um ser que não caminha simplesmente para o acontecimento futuro, isto é, para a morte; ao contrário, o homem é um ser que, mal nasceu, já começa a morrer. O morrer está intimamente ligado à existência humana… Morrer é uma forma de ser que o homem assume com sua existência”.⁷ Assim, então, o morrer inicia-se de fato com o nascimento da pessoa. Curiosamente, este ponto de vista que era ainda aceito incondicionalmente no período barroco, traz sérios problemas à maioria dos contemporâneos do grande filósofo existencial. A interligação entre os problemas citados acima e a problemática da repressão do pensamento da morte já foi comentada anteriormente. Do ponto de vista vigente hoje em dia, o morrer é tido por aquele período de vida, mais ou menos longo, com o qual o ser humano tem de se conformar, uma vez por todas e muitas vezes a contragosto, de que sua vida findará em breve. Desse modo, podemos ampliar da seguinte maneira o esquema apresentado anteriormente: 3.3. Experiências e relatos de pessoas clinicamente mortas, mas reanimadas pela medicina Nos últimos anos, grande número de pesquisas, sérias em sua maioria, tem-se ocupado de vivências relatadas por pacientes mortos do ponto de vista clínico que, mediante esforços médicos, foram trazidos de volta à vida. Os depoimentos mais conhecidos sobre o assunto, ao lado dos estudos de Elisabeth Kübler-Ross, são os relatos de 150 pessoas que estiveram por algum tempo clinicamente mortas, e que R. A. Moody reuniu no seu livro Vida depois da vida. No prefácio, E. Kübler-Ross explica o seguinte: “A pesquisa, como a que o Dr. Moody nos apresenta no seu livro, é que nos esclarecerá muitas questões e confirmará o que tem sido ensinado há 2.000 anos: que há vida depois da morte”.⁸ Esta proposição admite, de antemão, que, a partir dos estudos mencionados, é possível deduzir-se indícios claros do que acontece com o ser humano depois da morte e que realmente acontece algo. Partindo do ponto de vista imparcial e científico, devemos manter em mente o fato de que todos esses relatos de pessoas clinicamente mortas, que são conhecidos até hoje, tratam do que se passa aquém daquela fronteira que foi denominada aqui de morte vital. Eles todos provêm daquela zona limítrofe da vida humana existente entre a morte clínica e a morte vital. Alfred Läpple a denomina “terra de ninguém entre este e o outro mundo”. Por conseguinte, todas estas experiências também não podem esclarecer o que ocorre com o ser humano depois da morte vital. Mas, por outro lado, deve-se aceitar que, com base na semelhança da maioria dos relatos conhecidos até o presente momento, esses relatos podem, pelo menos, nos dar indicações sobre determinadas experiências vividas durante a morte clínica, indícios estes que, dentro do contexto de nossa indagação, talvez possam ser reunidos sob a palavra-chave “vivência na morte”, mas não após a morte. Se examinarmos os principais elementos dos relatos sobre o morrer, reunidos por diversos pesquisadores,¹ notaremos sobretudo quatro experiências básicas que se repetem frequentemente: — “O homem encontra-se fora de seu corpo”. — “Aparece diante dele um caloroso espírito de uma espécie que nunca encontrou antes — um espírito de luz”. — “Este ser pede-lhe, sem usar palavras, que reexamine sua vida, e o ajuda, mostrando uma recapitulação panorâmicae instantânea dos principais acontecimentos de sua vida”.¹¹ — “Uma ampliação do horizonte do eu humano, geralmente, ligado a um estado de felicidade”.¹² Sem nos aprofundarmos muito na questão quase insolúvel sobre até que ponto é que se trata aqui de vivências e que já se encontram além da nossa experiência humana de vida, podemos constatar que as revelações dos relatos sobre o morrer não contradizem absolutamente o que pode ser afirmado sobre a morte com base na revelação cristã. Pelo contrário, é extremamente interessante observar que os relatos sobre o panorama da vida ressaltam que não se trata de ser julgado ou não. O panorama da vida está antes ligado à visão de um ser de luz. R. A. Moody afirma a esse respeito: “O que é, talvez, o mais incrível elemento comum dos relatos que estudei, certamente o elemento que exerce o mais profundo efeito sobre o indivíduo, é o encontro com uma luz muito brilhante… Apesar da manifestação inusitada da luz, ninguém expressou qualquer dúvida de que se tratasse de um ser, um ser de luz… um ser pessoal… O ser quase imediatamente dirige certo pensamento à pessoa… como se fosse uma pergunta. Entre as traduções que ouvi, estão as seguintes: ‘Você está pronto para morrer?’. ‘O que é que você fez de sua vida que possa mostrar?’, e ‘O que você fez com sua vida já é suficiente?’… Inicialmente, devo insistir que a questão, profunda e final como parece ser no seu impacto emocional, não é feita como uma condenação. Todos parecem concordar que o ser de luz não faz a pergunta para acusar ou para ameaçar, pois sentem todos o total amor e aceitação vindos da luz, qualquer que seja a resposta”.¹³ Diante de tais pesquisas sobre a experiência de moribundos reanimados, podemos nos perguntar se estas experiências confirmam de certa maneira, no plano científico, aquilo que a teologia sempre dizia. É grande a tentação de buscar nestes resultados de pesquisas apoio ao discurso teológico. Devemos, porém, ter consciência de que, do ponto de vista científico, uma equação “ser de luz = Cristo” não pode ser aceita. O que se pode dizer é apenas isto: os resultados das pesquisas mencionadas não contradizem aquilo que a teologia e a fé cristã sempre formulavam. E se as experiências recentes da ciência revelaram que o moribundo vivencia depois da morte clínica um “panorama de vida”, então também este resultado não é contraditório a uma visão teológica. Na morte, diz a teologia, será impossível para o ser humano ignorar a sua própria vida. 1 Cf., por exemplo, Klaus Thomas, Warum Angst vor dem Sterben, pp. 11-26. 2 Klaus Thomas, op. cit., p. 27. 3 Hans Küng, Ewiges Leben?, p. 34. 4 R. A. Moody, Vida depois da vida, p. 142. 5 Ibid. 6 Hans Küng, op. cit., p. 35. 7 Joseph Moeller, Zum Thema Menschsein, p. 36. 8 R. A. Moody, op. cit., p. 9. 9 Alfred Läpple, Der Glaube an das Jenseits, p. 89. 10 Além dos relatos de Moody, são também de grande interesse as fontes e relatos sobre estudos que Hans Küng e Klaus Thomas citam. Sobre os resultados mais recentes das pesquisas tanatológicas respectivas, vide também: Renold J. Blank, A morte em questão. 11 Cf. R. A. Moody, op. cit., pp. 27-28. 12 Veja Hans Küng, Ewiges Leben?, p. 26, e também Klaus Thomas, Warum Angst vor dem Sterben, pp. 47-73. 13 R. A. Moody, op. cit., pp. 62-65. 4 CONSIDERAÇÕES PSICOLÓGICAS: AS PESSOAS NO CONFRONTO DIRETO COM A MORTE 4.1. Comportamento do moribundo em face do morrer Em tempos normais, agimos “sem realmente jamais acreditar em nossa própria morte; como se acreditássemos piamente em nossa (…) imortalidade física. Tencionamos dominar a morte”.¹ Na época em que estamos para morrer, isto não é mais possível. E assim o ser humano se encontra perante o conflito fundamental entre aceitar este fato e a sua vontade imanente de autoconservação. Para Kierkegaard esta é a problemática existencial por excelência: “Saber que o homem é comida para os vermes. Este é o terror: ter emergido do nada, ter um nome, consciência do próprio eu, sentimentos íntimos profundos, um cruciante anelo interior pela vida e pela autoexpressão e, apesar de tudo isso, morrer. Parece uma burla, pela qual um tipo de homem cultural se rebela ostensivamente contra a ideia de Deus. Que espécie de divindade criaria tão complexa e extravagante comida para vermes?”² O protesto de Bernard Duburque, de que “la mort est injustifiable”,³ visto a partir da perspectiva de Kierkegaard, apresenta-se com toda a sua grandeza. Ocupar-se dela é a exigência inevitável, que se apresenta ao moribundo. E daí surgirá forçosamente também a pergunta sobre seu relacionamento com Deus. Contudo, este é problema relacionado, por um lado, com a vida anteriormente vivida e, por outro lado, com o fato de se aceitar ou não uma vida depois da morte. No que se refere à influência das convicções religiosas sobre o comportamento dos moribundos, Elisabeth Kübler-Ross se manifesta antes com reservas. Ela observou, no decorrer de suas pesquisas, que o morrer do homem normalmente se dá em cinco fases, de duração bastante variada.⁴ 1. Choque e incredibilidade. Não querer aceitar o fato como verdadeiro e isolamento. 2. Ira, rancor, raiva, inveja. (Por que logo eu?) Brigas com Deus e com o mundo. 3. Negociação (tentativa de prorrogar o inevitável). 4. Depressão (sentimento de perda irreparável). 5. Aprovação (o ser humano consente a morte). Segundo estudos da pesquisadora Kübler-Ross, em tais situações o comportamento de doentes devotos “quase não difere do dos pacientes sem fé”.⁵ Ela admite ter “deparado somente com poucos fiéis realmente crentes”, durante suas investigações, e continua: “A fé, porém, ajudou estes poucos. Eles se comportavam de forma semelhante aos ateístas convictos. A grande maioria dos pacientes encontravam-se, por sua vez, em algum ponto entre estes dois grupos e manifestavam uma fé que, por causa de suas angústias e seus conflitos, não era suficiente para libertá-los, de fato, interiormente”. A correlação aqui esboçada apenas por alto, entre a fé pessoal e a angústia em face da morte, pode ser vista mais claramente no estudo feito por J. Wittowsky. Em suas pesquisas, ele entrevistou, segundo a escala americana “Death Anxiety Scale”, pessoas de idade entre 67 e 91 anos, que vivem em asilos de velhos. Deste estudo resultou uma relação significativa entre o grau de angústia perante a morte e as atitudes religiosas fundamentais dos entrevistados. “Quanto mais firme a convicção religiosa, tanto menor era a angústia em face da morte.”⁷ Chegou-se a esses resultados após ter-se aplicado, em um hospital norte- americano, um programa de pesquisas, no qual foram observados durante oito meses oitenta e quatro moribundos, seguindo-se acurados métodos psicológicos. No resumo dos resultados lá obtidos, Raymond C. Carey escreve o seguinte: “O aspecto mais importante da variável religiosa era a qualidade da orientação religiosa — mais do que mera filiação ou aceitação verbal de crenças religiosas. Pessoas intrinsecamente religiosas (aquelas que tentavam integrar suas crenças em seu estilo de vida) tinham maior ajustamento emocional que os não cristãos”.⁸ (Ver quadro das pp. 35-36). 4.2. Comportamento do ministro religioso em face do morrer O morrer do homem tem ou não tem um sentido? A morte humana nada mais é que o inexplicável escândalo de uma vida que termina? Ou será que esta morte deve ser encarada como novo começo? “Os homens morrem e não são felizes”, grita Calígula, na obra de Camus, e o grito dele se junta ao brado de Jesus crucificado que também morreu gritando. No seu clamor, diz Jürgen Moltmann, não era apenas “a divindade de seu Deus e Pai que estava em jogo”,¹ mas também o sentido de tudo aquilo que é vida humana. No morrer de Jesus, assim como no de qualquer outro ser humano, surge o paradoxo insolúvel de que ali se finda algo que nunca mais e de modo nenhum podemos reencontrar nesta nossa vida aqui. Diante deste fato inegável, chega ao fim tudo aquilo que as pesquisas da Psicologia e da Tanatologia ou da Medicinatêm para oferecer. O único discurso que ainda pode agir, agora, é o da fé. É o representante desse discurso que está sendo desafiado. Como é que ele reage? Qual a sua atitude? Qual a sua resposta? O já citado livro de R. Kastenbaum e R. Aisenberg, Psicologia da morte,¹¹ apresenta vasto material a respeito do papel e do comportamento do ministro religioso diante do moribundo. O quadro seguinte mostra as conclusões mais importantes dos dois autores. (Ver quadro das pp. 38-39) 4.3. O discurso religioso corre o perigo de não corresponder aos anseios das pessoas O morrer coisificado em hospital já representa luxo inacessível para milhões de pessoas neste continente. A experiência dessas pessoas é marcada por outra forma de coisificação que vivem dia após dia: a fome, a doença, a miséria social e a marginalização em situação de pobreza desumana “e que se exprime, por exemplo, em mortalidade infantil, em falta de moradia adequada, em problemas de saúde, salários de fome, desemprego e subemprego, desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças forçadas e sem proteção”.¹² Além dessas experiências, escrevem os bispos em Puebla, existem ainda os outros sofrimentos causados por guerras; existem “angústias provocadas pela violência da guerrilha, do terrorismo e dos sequestros, efetuados por extremistas de sinais diversos”.¹³ Assim, a vivência do morrer inicia-se muitas vezes como a vivência de “morte social”, muito antes da constatação da morte clínica. Na experiência cotidiana de milhões de pessoas, a vida toma significado negativo, transformando-se em verdadeiro “viver-para-a-morte”. Em uma realidade destas, uma teologia da morte vê-se várias vezes ameaçada. a) Tentação de formular mensagem de consolo Por um lado, essa teologia é exposta ao perigo de tornar-se apenas simples consolo pelo anseio de vida melhor depois da morte, contribuindo assim de maneira culposa para o estabelecimento e a fixação das estruturas injustas. b) Perigo de se perder a dimensão transcendente da mensagem Por outro lado, a teologia, confrontada com as angústias e os anseios concretos dos homens, é exposta também a outro perigo. É o perigo de perder de vista sua relação transcendente. Isto poderia ir até o ponto em que essa teologia ficaria voltada apenas para a existência terrena, tornando-se assim uma espécie de sociologia religiosa ou de sociopsicologia. c) Perigo de se habituar à morte E, por último, temos um terceiro perigo que, contudo, não deve ser negligenciado: o elemento do hábito. Estamos na situação em que o morrer degenera em acontecimento cotidiano, banal e sem sentido: uma situação, em compensação, em que esse mesmo morrer atingiu importância cada vez mais comercial como estímulo para a tensão de telespectadores. Numa situação dessas, a teologia corre o extremo perigo de também se habituar à morte. d) Perigo de se contentar com as respostas e fórmulas habituais O hábito, porém, impede a elaboração de nova linguagem sobre o morrer. Contenta-se com as respostas tradicionais estabelecidas no decorrer de uma história milenar. No entanto, as perguntas de hoje não podem mais ser aclaradas com fórmulas do passado. Isso é válido, principalmente, para a matéria tratada neste livro. Sob a pressão desse múltiplo dilema, não é fácil reformular e proclamar o caráter sacramental, isto é, significativo, do morrer do ser humano. Mas é justamente aí que se situa a tarefa e o dever de uma teologia que se considera libertadora. De um lado, esta teologia deve, de maneira muito sincera, tomar a sério o fato indiscutível de que com a morte desaparece um ser humano. Do outro lado, esta mesma teologia é chamada a despertar aquela esperança que forma o núcleo da boa nova sobre Jesus Cristo. 1 G. Zilboorg, Fear of Death, cit. em Ernst Becker, A negação da morte, p. 35. 2 Ernst Becker, op. cit., p. 111. 3 B. Duburque, “La disparition de la camarde et l’avenir de l’homme”, em Etudes, août-set., p. 188. 4 E. Kübler-Ross, Interviews mit Sterbenden, pp. 41-119. 5 Op. cit., p. 220. 6 Ibid. 7 Vide J. Wittowsky, Tod und Sterben, Ergebnisse der Thanatopsychologie, Heidelberg, 1978. 8 Carey, R. C., cit. em Elisabeth Kübler-Ross, Morte, estágio final da evolução, p. 115. 9 Albert Camus, Caligula, p. 27. 10 Jürgen Moltmann, Der gekreuzigte Gott, p. 144. 11 R. Kastenbaum e R. Aisenberg, op. cit., pp. 96-98; 189-198. 12 Conclusões da Conferência de Puebla, n. 29. 13 Ibid., n. 43. Unidade II PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS DE UMA NOVA TEOLOGIA DA MORTE PARA O HOMEM DE HOJE 1 A TEOLOGIA DEVE SER CAPAZ DE DESPERTAR A ESPERANÇA DA VIDA Hoje em dia, acumulam-se as situações e as experiências da morte. Não se trata apenas da morte individual, mas, sim, de muitas outras situações da morte. A morte pela condição de miséria, a morte pelo desespero, a ameaça da morte pelas estruturas injustas, pela destruição do meio ambiente, pela droga. Mas todas estas situações culminam sempre na destruição do ser humano, na sua morte individual. O DEUS DA VIDA ESTÁ CONTRA AS SITUAÇÕES DE MORTE. Numa situação destas, uma teologia baseada na boa nova de Jesus Cristo é chamada a dar novo testemunho. Deve essa teologia testemunhar que o nosso Deus é o Deus da vida, denunciando as situações de morte. E, ao mesmo tempo, deve dar testemunho de que o sentido do morrer se relaciona inevitavelmente com o sentido da vida. Baseada nesta convicção, a fé em Jesus Cristo pode libertar do terror, em face da morte. O DEUS DA VIDA LIBERTA DO TERROR EM FACE da MORTE. A mensagem do Deus da vida pode libertar também da banalidade que hoje reduz a morte e a vida de tantas pessoas a existência insignificante, escondida em algum lugar no meio da massa, seja atrás das máquinas, seja de escrivaninhas de uma sociedade industrializada, que visa exclusivamente ao lucro; seja ainda na marginalização devida a uma pobreza encarada como vergonha. “A existência da maioria”, escreve Max Frisch em seu romance Die Schwierigen, “é existência de escravos que se alegram por já haver transcorrido mais um mês de sua vida”.¹ De fato, parece ser cada vez mais verdadeiro o que Fritz Leist já tinha afirmado em 1968: “Vivemos um esvaziar de sentido nunca antes observado”.² Esta perda de significado não poupa sequer a questão da morte do ser humano; pelo contrário, a consequência de vida sem sentido é morte também sem sentido. O DEUS DA VIDA DÁ SENTIDO ATÉ À MORTE. Em tal situação, as mensagens cristãs são exortadas mais do que nunca a ser uma boa nova para o homem de hoje, boa nova que lhe proporcione novo sentido de viver. O DEUS DA VIDA DÁ SENTIDO TAMBÉM À VIDA VIVIDA. A MENSAGEM DO DEUS DA VIDA DEVE SER TRANSMITIDA EM LINGUAGEM DE HOJE. O homem de hoje não fala mais a mesma linguagem como se falou no início do século. Sua compreensão do mundo difere totalmente da das pessoas da época do Concílio de Trento. Os símbolos que os nossos pais ainda compreendiam se tornaram enigmas para os filhos. Eles estão acostumados com a linguagem dos meios de comunicação e o pensamento de uma época marcada pela tecnologia e pelo consumo. Perante tal situação, uma das tarefas mais importantes da teologia atual da morte é encorajar e formar uma linguagem que o homem de hoje compreenda. Esta linguagem não se pode omitir de entrar no pensamento científico- tecnológico do homem contemporâneo. Mas também não pode distanciar-se dos fatos socioeconômicos, pelos quais é marcada a realidade latino-americana. Além do problema da banalização da vida, deve-se tomar em consideração o pressentimento muito difundido da insignificância desta vida. Pressentimento este que tem suas raízes na crescente marginalização de grandes camadas da população. São elas, em primeiro lugar, que esperam do teólogo um discurso que responda às suas experiências concretas e existenciais. 1.1. Apoiar-se nas experiências existenciais Os modelos teóricos de interpretação filosófica mostraram-se inadequados para responder aos anseios dos homens confrontados com a morte. O resultado dos estudos médico-psicológicossobre a questão do morrer também não são suficientes para nos proporcionar um ponto de partida satisfatório. Em tais circunstâncias, é oportuno buscarmos outros caminhos, apoiando-nos nas experiências existenciais do ser humano. Estas experiências existenciais, porém, devem ser integradas naquilo que a teologia tem a dizer sobre o morrer e a morte. E, ao mesmo tempo, temos de comparar o discurso teológico com os resultados mais atuais das pesquisas científicas. A partir desse ponto poderemos tentar transpor o abismo que detém e separa o homem do século XX (orientado pelas ciências exatas) das verdades da teologia, que se apresentam de forma simbólica e mitológica. Distinguem-se três grupos de perguntas, cujos objetivos podem ser formulados da seguinte maneira: 1. O que revelam as atuais pesquisas sobre o morrer e a morte do homem? 2. Que afirmações sobre o morrer e a morte podem ser obtidas a partir de uma reconsideração da essência das mensagens cristãs? 3. Podemos encontrar razões para que o homem possa superar o terror da morte, não como fuga, e sim como atitude de vida responsabilizada e responsável? Os resultados dessa série de pesquisas devem ser formulados pela teologia em linguagem que o homem de hoje reconheça e compreenda como “a sua”. Isso não significa, de modo algum, vulgarização ou até falsificação das verdades teológicas fundamentais. É antes a consequência de uma exigência que deve ser feita a toda teologia considerada séria. Ela deve ser servidora da palavra de Deus e, em consequência, servidora dos homens, cuja linguagem deve falar, a fim de ser entendida. 1 Cit. em Fritz Leist, op. cit., p. 27. 2 Id., ibid 2 A BÍBLIA FUNDAMENTA UM DISCURSO DE ESPERANÇA 2.1. Deus é um Deus que optou pela vida A tradição bíblica nos apresenta o Deus que é todo amor, e essa tradição nos mostra como ele provou ser o Deus vivo, desde sua entrada na história. O Deus que dá vida ao ser humano e, para o qual, aliar-se a ele sempre tem este significado: optar pela vida, e não pela morte. Não obstante a evolução da compreensão da morte, esta convicção se estende por todas as camadas da história da revelação. Esta convicção se evidencia, com clareza plástica, nos relatos do Gênesis¹ e apresenta-se com brevidade programática na literatura sapiencial dos Provérbios. E podemos ver nitidamente aqui que os conceitos de vida e morte não se esgotam no domínio da biologia, mas, pelo contrário, lemos em Pr 8,35-36 o seguinte: “Pois, quem me acha, encontra a vida e alcança o favor de Javé. Mas quem me ofende, prejudica-se a si mesmo; os que me odeiam amam a morte”. O que aqui está fundamentado torna-se, por fim, realidade na imagem de Deus, revelada em Jesus. Deus “não é Deus de mortos, mas sim de vivos” (Mc 12,27). Este é, pois, o ponto de partida para se superar a morte, sem, contudo, desesperar: à antinomia entre o ser humano e a morte corresponde ainda outra antinomia entre Deus e a morte. Mas esse Deus não aboliu a antinomia em Jesus Cristo. Ele padeceu-a, suprimindo-a, desta maneira, em favor da vida. A morte continua sendo o termo, mas, depois do fim, surge novo começo. Esta é a esperança daqueles que creem. A partir dela é que a pessoa terá condições para enfrentar a morte e seu odioso evento. Só a esperança é que vence, por fim, o absurdo da morte. 2.2. Jesus Cristo, base e fundamento de nossa esperança A nossa esperança não está perdida no espaço. Mas baseia-se na confiança depositada na lealdade de um Deus, “o qual faz viver os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4,17). Deus deu provas de sua lealdade na ressurreição daquele que não abandonou a confiança nele depositada, nem mesmo quando estava preso na cruz, naquela forca abominável da Antiguidade. Em Jesus Cristo, o próprio Deus morreu “a morte violenta dos criminosos na cruz, a morte do abandono total por Deus”.² “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Mas ao grito horrível e absolutamente incompreensível de tal abandono total por Deus não seguem o nada e o silêncio, mas, sim, a ressurreição, três dias depois. E “o Deus humano de todos os homens ímpios e abandonados por Deus”³ reaparece. Um sinal de esperança para todos aqueles que, do contrário, não poderiam mais ter nenhuma esperança. A consequência disto é evidente e foi formulada com precisão: “Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus Deus há de levá- los em sua companhia”. (1Ts 4,13-14). O que se diz aqui sobre os cristãos estende-se em 1Cor 15,12-18.20-22 a toda a humanidade. As frases do apóstolo a este respeito foram formuladas de maneira tão expressiva como nenhuma publicação posterior jamais o fez. Elas contêm todo o mistério da esperança humana e da lealdade de Deus. “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e também é vã a vossa fé. Além disso, seríamos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não o ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vã é a vossa fé, e, portanto, continuais nos vossos pecados, estando perdidos, também, aqueles que adormeceram em Cristo… Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida.” (1Cor 15,12-18.20-22) Nestas frases está fundamentado o que, como novo constitutivo, deve determinar a vida e a morte das pessoas: a fé em que aquele Deus da vida também é leal e conserva esta lealdade para com o homem para além da morte. O DEUS DA VIDA É FIEL AOS HOMENS. Esta fé, porém, não está perdida no espaço; ela é sustentada e assegurada pelo testemunho da ressurreição de Jesus. O que antecipou em Jesus Deus fará também conosco; esta é a convicção de fé em que São Paulo se baseia. Com isso, a ressurreição de Jesus torna-se sinal de esperança para todos os homens que, marcados pelas disputas e lutas desta vida, desesperadamente indagam, em face da morte, qual o sentido de todos os seus esforços. “Pela ressurreição”, afirma Benedito Ferraro, “Deus aceita a luta de Jesus e ao mesmo tempo abre aos homens uma perspectiva de futuro, onde as barreiras que impedem a integral libertação do homem já não terão a última palavra”.⁴ A mensagem de esperança, formulada pela Revelação: Na ressurreição de Jesus, Deus revela-se de maneira que vai muito além de todas as afirmações anteriormente feitas sobre ele. Deus define a si próprio como o Deus QUE RESSUSCITA OS MORTOS. 2.3. Deus é o Deus que ressuscita os mortos O que Deus manifestou em Jesus como sacramento e sinal de sua presença que dá vida e liberta da morte prova ser, de fato, nova definição de si mesmo. Aquele que afirmou ser ele próprio a vida; aquele que, no decurso da história do homem, demonstrou ser ativo e redentor, esse mesmo Deus prova agora ser também aquele que ressuscita dos mortos e que não admite a morte. Ele se mostra como aquele que, fiel à sua natureza, opta pela vida e contra a morte, sempre e em todos os lugares. E esta atividade de Deus que proporciona vida é, aqui e agora como sempre, ação histórica e concreta que conduz à liberdade. Por ocasião do êxodo do Egito, Deus libertou “o povo de um tirano histórico (…) e aqui Jesus é libertado da tirania da morte para a liberdade”.⁵ O que aconteceu com Jesus, porém, é a essência e o âmago da boa nova da páscoa e ao mesmo tempo antecipação daquilo que sucederá a cada pessoa: Deus ressuscita dos mortos! Se ele assim procede, podemos então deduzir que isso não acontece apenas paratornar a impelir o homem ressuscitado para o nada, condenando-o. Para tanto, não seria preciso que Deus primeiro o salvasse da morte. Assim sendo, conclui-se ser possível vencer a angústia ante a condenação e o julgamento com ousada confiança básica naquele que faz reviver para a vida, e não para a morte; com ousada atitude de fé naquele Deus que só tem boas intenções para com o homem. O Deus anunciado por Jesus é o Deus amoroso, “o qual faz viver os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4,17). Na dialética deste amor divino “a morte de Jesus Cristo revela, assim, a verdade do ato de salvação de Deus”. 2.4. O homem é salvo, porque Deus o adotou como filho em Jesus Cristo A partir desta perspectiva, desenvolveu-se, nas primeiras gerações cristãs, aquela certeza de salvação esperada e esperançosa, que fazia da mensagem sobre a morte e a ressurreição de Jesus uma feliz, venturosa e boa notícia, um “eu- angelion”. Aquele que tem fé sabe estar seguro na certeza de nova vida, transmitida por Jesus ressuscitado, vida que já se inicia muito antes da morte, vida na qual a morte já perdeu o seu aspecto assustador, porque não vai dar no nada, mas, sim, em nova existência em Deus… Consequentemente, à luz da ressurreição, o fim da vida transforma-se em algo completamente novo para o pensamento secularizado e revela-se como segundo nascimento: renascimento. E assim como todo nascimento abre para o homem caminhos que o conduzem a novos e alargados horizontes de vida, assim também a morte arranca o ser humano do isolamento e do enclausuramento, a fim de lhe proporcionar formas de ser totalmente novas e imprevisíveis. A partir desta perspectiva, parece decorrência natural chamar Jesus Cristo de “primogênito de toda criatura” (Cl 1,15). “Ele é o primeiro de uma multidão de irmãos, da multidão dos filhos adotivos de Deus (Hb 2,12), mas nascido de Deus de maneira única como o próprio Filho único de Deus, pois é em Jesus Cristo que Deus nos reconhece como seus filhos.”⁷ Na epístola aos Romanos, São Paulo reforça ainda mais este pensamento, fazendo referência ao envio do Espírito: “Não recebestes o espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus” (Rm 8,15-17). Joseph Moingt frisa este novo e imponente aspecto da autorrevelação de Deus; revelação que serve para eliminar o último vestígio de angústia ante o Deus terrível e condenador. “Assim a morte de Cristo nos ensina que… a nossa salvação consiste em tornar- nos filhos de Deus a título de herdeiros de Cristo… Deus nos salva, revelando ser Pai cheio de amor, revelando o seu amor a nós, seu amor ferido; isto é revelação que possibilita a nossa fé, pois ela provoca o nosso amor.”⁸ 1 Gn 2,7: “Então Javé, Deus, modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida, e o homem se tornou um ser vivente”. 2 Jürgen Moltmann, Der gekreuzigte Gott, p. 265. 3 Id., ibid., p. 181. 4 Benedito Ferraro, A significação política e teológica da morte de Jesus, p. 230. 5 Jürgen Moltmann, Der gekreuzigte Gott, p. 176. 6 Joseph Moingt, “La révélation du salut dans la mort du Christ”, em Mort pour nos péchés, p. 158. 7 Cit. em J. Moingt, op. cit., p. 160. 8 Ibid. 3 O PROBLEMA: A CONFIANÇA NA SALVAÇÃO ENFRAQUECEU NO DECORRER DA HISTÓRIA Para a fé baseada na esperança, é extremamente trágico o deslocamento da ênfase, ocasionado pelas perseguições sofridas pelos cristãos nos séculos II e III. Nestes séculos desviou-se cada vez mais a atenção daquela certeza de salvação que proporciona felicidade. O que então se transformava no centro das atenções era a indagação sobre o que sucederia, na morte, àqueles que não creem, aos perseguidores, aos ímpios. Dentro deste contexto, quanto mais o interesse se voltava para a literatura apocalíptica, originalmente gentio-judaica, e para suas terríveis e horripilantes imagens do juízo e do castigo, tanto mais o otimismo da certeza fundamental de salvação era encoberto outra vez pelo medo. O que a princípio fora escrito com intenções pedagógicas, visando à intimidação e à conversão dos perseguidores de cristãos, não alcançou seu objetivo de modo algum. Os perseguidores não se converteram. Entretanto, diante das visões ameaçadoras, os cristãos, por sua vez, perderam de vista o aspecto mais importante de sua boa nova. Pois, com o passar dos séculos, as perseguições acabaram, mas as terríveis imagens apocalípticas ficaram. Segundo Herbert Vorgrimler, elas são “o motivo principal que faz com que, sob o efeito do pensamento moderno, emancipatório, a morte se torne tabu também para os cristãos”.¹ Para fazer frente a esta evolução negativa é que hoje somos exortados a aclamar a mensagem original de Jesus Cristo, a mensagem do Deus fiel, que ama os pecadores e os segue até na experiência terrível e assustadora de sua própria desunião, onde Deus é abandonado por Deus, a fim de que nenhum homem jamais seja abandonado novamente por ele. E por isso é verdadeira a afirmação teológica de que o Deus estrangulado em Jesus foi o último ser que teve de morrer gritando de dor e de desespero. Pois ele, em seu grito de abandonado total de Deus, extrapolou e venceu todo e qualquer abandono deste Deus. DEUS NOS AMA À MANEIRA DE DEUS: SEM LIMITES. E tudo isto porque Deus amou o ser humano como somente ele poderia amar, ou seja, infinitamente. E quem ama quer a comunhão com o ser amado. Que outro argumento mais convincente do que este poderíamos encontrar para a certeza de salvação do ser humano, para a salvação do homem perdido, errante e carregado de culpa, que no fim da sua vida se encontra diante dos escombros de tantas e tantas ocasiões perdidas? A única coisa que lhe resta é a convicção da fé de ser aceito e amado, apesar de sua culpa. O HOMEM É ACEITO E AMADO, APESAR DE SUA CULPA. Essa convicção requer coragem, exige a coragem de se confiar totalmente em Deus, de deixar “Deus estar aí para mim”. Isto foi o que Jesus fez, e sem se decepcionar. Quando o homem também permitir que Deus esteja aí para ele, uma vez que é nisto que consiste o otimismo daquele que crê, ele não sofrerá decepção, tampouco como o primeiro homem não a sofreu, com cuja morte Deus se identificou por completo. DEIXAR DEUS ESTAR AÍ PARA MIM. Com Jesus Cristo, o Deus da vida se identificou não somente na morte, mas também na ressurreição. E esta identificação ocorreu como sinal e antecipação do que acontecerá com todas as pessoas: Não há nem haverá fim com a morte! Tampouco haverá na morte tirano vingativo, e sim o Deus que ama e perdoa. Não haverá choro apocalíptico nem ranger de dentes, e sim a feliz união com aquele que desde o início me amou. Nesta verdade consiste a verdadeira boa nova que Jesus nos trouxe. 1 Herbert Vorgrimler, Der Tod im Denken und Leben des Christen, p. 68. 4 O DESAFIO PARA A TEOLOGIA DO SÉCULO XXI: SUPERAR O MEDO, APESAR DE NOSSA CULPABILIDADE Com base na confiança fundamentada nos capítulos anteriores, o homem se torna capaz de enfrentar com esperança aquele momento em que sua vida se torna definitiva. Em que nada mais pode ser alterado ou modificado. Este momento, como vimos, em nada é fim. A vida continua depois da morte. E, sendo assim, não é possível fechar os olhos perante a vida vivida até agora, nem fugir para outras atividades. Uma vida que continua depois da morte me confronta, indispensavelmente e sem a mínima possibilidade de poder fugir, com tudo o que fiz na minha vida e da minha vida. A CRENÇA NA VIDA PÓS-MORTAL ME CONFRONTA TAMBÉM COM AS MINHAS CULPAS. É justamente uma teologia bem-intencionada que até hoje, talvez, não chegou a considerar suficientemente o fato de que a crença na vida após a morte pode aumentar o temor perante a morte. Efetivamente, para a grande massa dos que creem na vida eterna sem, contudo, tirar dessa crença a força para uma vida cristã, a hipótese de uma vida eterna equivale a uma terrívelconsequência: “A morte é a visualização da culpa”,¹ afirma Karl Rahner, e Eberhard Jüngel leva adiante este pensamento ao afirmar que “a morte cobre com sua sombra não só a vida humana. Essa sombra é, antes, o aumento assustador de uma sombra mais original que brota da nossa vida e recai sobre o nosso fim. As sombras da morte recaem unicamente sobre a nossa vida sempre cheia de culpas”.² No entanto, a culpa inextinguível significa inferno e, ante tal alternativa, a reação do homem só pode ser de desespero ou, então, de fé. Esta fé, desde o princípio, deve enfrentar uma pergunta crítica, ou seja, deve indagar se está em condições de guiar o ser humano rumo à verdadeira libertação da angústia da morte, libertação que, na dialética da morte e da vida, se manifeste na existência do ser humano, vivida concretamente aqui e agora. 1 Cit. em Paul Ansgar (org.): Grenzerfahrung Tod, p. 25. 2 Eberhard Jüngel, “Der Tod als Geheimnis des Lebens”, em Grenzerfahrung Tod, p. 25. 5 UMA FÉ CONFIANTE NA SALVAÇÃO DEVE SE TRANSFORMAR EM PRÁTICA DE VIDA Desde o momento em que os fiéis podem sentir-se amparados, apesar de suas culpas, pelo Deus que os ama e que os quer salvar a todo o preço, a fé destes cristãos pode voltar àquela certeza feliz de ser salvos, que marcou o pensamento dos primeiros cristãos. Não há mais lugar para o medo, e em vez de cada um cuidar de maneira até egoísta de salvar a sua própria alma, sobrará energia para se preocupar com o mundo e com o que é a própria tarefa do cristão. A PRIMEIRA TAREFA DO CRISTÃO NÃO É CUIDAR DE SUA PRÓPRIA SALVAÇÃO. A PRIMEIRA TAREFA DO CRISTÃO É TRABALHAR PARA QUE O REINO DE DEUS SE REALIZE. Libertado do medo e das preocupações angustiadas com a “salvação de sua alma”, a fé pode tornar-se prática de vida transformadora. Práxis que se atualizará no contexto da realidade social, cultural e econômica de cada indivíduo. Quando isto não acontece, há fundamento para suspeitar de que a fé, como base ideológica de fuga, assume a função única de suprimir a ameaça da eternidade amedrontadora. Essa tentativa, porém, está desde já fadada ao insucesso, devido à contradição que lhe é inerente. 5.1. Problemática da mensagem religiosa opressiva O medo da morte e do inferno, ainda hoje tão frequente entre os cristãos, manifesta que, neste contexto, o discurso teológico não atingiu mudança significativa de consciência em vastas camadas da população. Mas convém notar que já passou o tempo em que “as supostas mensagens cristãs puderam usar a morte como instrumento para a manipulação do ser humano, pintando a morte dos ateus com cores horripilantes”.¹ As consequências daquela época ainda não foram, de modo algum, superadas. Contudo, não são mais os ateus que têm medo. Este medo encontra-se no coração daqueles muitos cristãos que não praticam sua fé como convicção vivida na prática. Conforme afirma Elisabeth Kübler-Ross, o medo se encontra no coração daqueles que, estando em algum ponto entre os dois polos, professam uma fé “que, em conflitos e angústias, não foi suficiente para alcançar a verdadeira salvação interior”.² Não podemos nos esquivar da afirmação de que para muitos cristãos ainda hoje a mensagem cristã parece ser basicamente uma coerção, no sentido de se ter uma práxis de vida sob a constante pressão da imagem de inferno e julgamento nada libertadora. Esta visão poderia ser também um dos motivos pelos quais grande número de fiéis, sobretudo de jovens, se distancia sempre mais da Igreja. UMA MENSAGEM RELIGIOSA OPRESSIVA PODE, PELA VIA DA PROJEÇÃO, CRIAR SITUAÇÕES OPRESSIVAS. Além disso, poderia ser tarefa bastante compensadora para uma futura pesquisa religioso-psicológica definir até que ponto determinadas situações de opressão social e espiritual encontram sua causa última também na chamada “opressão metafísica”; numa opressão que sob a forma de projeção coletiva tem-se manifestado, por sua vez, em situações opressivas da práxis social. A relação existente entre agressão e repressão da angústia da morte, apontada por Sigmund Freud, deveria ser incluída nesta reflexão. Em face desta problemática, a teologia que se diz libertadora é exortada a examinar de forma crítica suas mensagens. Não pode ser suficiente trazer de volta à consciência o fato de que a libertação do homem por Deus sempre contém uma dimensão sociopolítica. Não basta mostrar que muitas vezes esta dimensão foi completamente esquecida. Tudo isso será um tanto teórico, enquanto permanecerem, tanto no consciente como no subconsciente dos destinatários desta mensagem, as imagens opressivas e atemorizadoras do Deus que exige satisfação. É verdade que, na maioria dos casos, essas imagens são reprimidas, mas nem por isso deixam de ser atuais. Basta um rápido lance de olhos para as experiências da práxis pastoral para confirmar esta constatação. Se é que no decorrer da proclamação libertadora do evangelho, a morte do ateu, descrita com cores assustadoras, apenas é substituída pela morte de representantes de determinadas classes, pintadas também com cores assustadoras, então, na verdade, a antiga ameaça do julgamento, longe de ser vencida, simplesmente mudou de destinatário. Quem pode garantir, indaga o nosso povo com razão, que o destinatário não mudará outra vez? De fato, o inferno e o julgamento continuarão sendo ameaça, ainda que digam respeito somente aos outros. É de suma importância que o leitor entenda corretamente esta exposição. Não se trata de negar a seriedade do que a Bíblia, pelas imagens de julgamento e inferno, mostra ser a possibilidade de perda completa do sentido existencial da vida. Trata-se, antes de mais nada, da exigência de refletir novamente sobre o que constitui a verdadeira esperança da fé cristã. Trata-se da conscientização de que o “morrer entregando-se a Deus… é ato de aperfeiçoamento purificador, iluminador e salvador”,³ marcado por julgamento misericordioso. Não é o momento da condenação ameaçadora. A meu ver, essa esperança representa começo convincente para a proclamação da práxis libertadora, baseada no evangelho. 5.2. A supressão da força opressiva do inferno liberta para a superação dos infernos do mundo Se a partir da visão do Cristo ressuscitado, o inferno e sua força opressiva perdem seu significado, é este fato então que libertará o homem, que poderá assim dedicar-se à superação dos infernos deste mundo. Jürgen Moltmann formulou de modo extraordinariamente claro este significativo marco inicial da proclamação libertadora. Chamando nossa atenção para 1Cor 15,55, mostra a correlação existente entre superar o inferno por intermédio de Cristo e uma práxis de vida daí decorrente, que busca a libertação a partir do evangelho.⁴ “O inferno está aberto; podemos caminhar livremente por ele, o que não é válido somente para o inferno de Cristo, mas para todos os infernos deste mundo. Deus deixou despontar o seu futuro no crucificado. Desta maneira, surge um vislumbre de aurora também sobre os cemitérios da história e sobre os locais de execução, bem como sobre os pequenos infernos do nosso dia a dia… Caso Cristo tenha realmente ressuscitado, isto levaria então à rebelião da consciência contra os infernos na terra e contra todos aqueles que os aquecem. Pois a res- surreição deste condenado é atestada pelo homem, na rebelião contra a con- denação do ser humano, e assim também posto em prática. Quanto mais a esperança acreditar realmente no inferno sucumbido, tanto mais ela será militante e política no sucumbir dos infernos brancos, pretos e verdes dos barulhentos e silenciosos.”⁵ Com base nesta perspectiva, a reconsideração do que constitui a verdadeira esperança da fé cristã prova ser exigência primordial. Por fim, a esperança também constitui o fundamento que rege todos os compromissos ligados à exigência de melhorar todas as situações de pecado social e injustiça. “Ajudar o homem a passar de situações menos humanas a situações mais humanas”⁷ faz supor que “se destina” a estas pessoas “algo mais do que aquilo que a vida pode lhe dar, isto é, vida depoisda morte.”⁸ Mas a experiência existencial dessa esperança origina-se, como Herbert Vorgrimler escreve com bastante propriedade, “das experiências positivas e das experiências de que existe sentido, vivenciadas durante esta vida”, ou seja, “na práxis concreta da liberdade, da justiça, da reconciliação… Por isso é que a esperança cristã, que extrapola a morte, não pode desviar sua atenção dos problemas deste mundo e tampouco pode levar à atitude de passividade e indiferença em relação aos movimentos de libertação. Se os cristãos não erradicarem a servidão e as injustiças, eles impedirão assim que as promessas de Deus sejam ouvidas e não darão lugar às experiências de que há sentido na vida. Estas experiências levam à esperança, que extrapola a morte. Deste modo, torna- se claro quão despojado de esperança é o egoísmo de salvação, voltado somente para a sua salvação individual numa vida após a morte”. A ESPERANÇA CRISTÃ QUE EXTRAPOLA A MORTE NÃO PODE DESVIAR SUA ATENÇÃO DOS PROBLEMAS DESTE MUNDO. 1 Herbert Vorgrimler, Der Tod im Denken und Leben des Christen, p. 37. 2 Elisabeth Kübler-Ross, Interview mit Sterbenden, p. 220. 3 Hans Küng, op. cit., p. 79. 4 “A morte foi absorvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?” 5 Jürgen Moltmann, Unkehr zur Zukunft, p. 84 6 .Conclusões da Conferência de Puebla, n. 28. 7 Ibid., n. 90. 8 Herbert Vorgrimler, Der Tod im Denken und Leben des Christen, p. 44. 9 Id., ibid. p. 45. 6 Resumo: A FORMAÇÃO DE CONCEITOS POSITIVOS SOBRE A VIDA APÓS A MORTE 6.1. Situação na época de Israel 6.2. Evolução da concepção de vida para uma vida pós-morte 6.3. Influência do pensamento grego 6.4. Surgimento da ideia sobre a ressurreição dos mortos 6.5. Tarefa para a pastoral de hoje Unidade III A EXPERIÊNCIA DO SER HUMANO NA MORTE I O QUE SIGNIFICA “ESTAR NA MORTE”? Quando a vida do ser humano termina, ele entra numa situação, chamada de “na morte”. É essencial termos consciência daquilo que esta expressão significa: Não implica, de maneira nenhuma, o processo de morrer. Ninguém pode acreditar que, naquele processo muitas vezes penoso e doloroso, o homem seja capaz de experimentar mais do que o fenômeno do morrer em si. A expressão “na morte” quer, pelo contrário, acentuar a distinção entre o processo do termo da vida que normalmente chamamos de “morrer” e aquilo que acontecerá quando aquele processo, no plano fenomenológico, chegou ao seu fim. Na primeira parte deste livro, foi usada para este fim a noção de “a morte vital”. Uma vez consumada esta “morte vital”, então estamos naquela situação que podemos chamar “na morte”. “Na morte” significa então a situação do ser humano exatamente naquele momento, onde, no plano fenomenológico, situamos a morte vital. O sofrimento do morrer passou, a possibilidade de ser reanimado depois da morte clínica passou; agora, o homem se encontra “na morte”. Naquela situação consciente de incapacidade total, da qual se falou na primeira parte deste livro. A noção de tempo não existe mais, a noção de espaço não existe mais, uma nova dimensão se abre, à qual damos o nome de “eternidade”. É neste limite, “na morte”, que o homem se encontra pela primeira vez com Deus. O HOMEM NA MORTE II NA MORTE, A ALMA NÃO SE SEPARA DO CORPO 1 O modelo tradicional daquilo que acontece na morte Nós todos interiorizamos desde criança o modelo resumido em seguida. Em todos os livros de catequese é essa a informação, e ela está sendo transmitida assim pela maioria das catequistas às crianças de uma nova geração cristã: Na morte, a alma se separa do corpo e entra numa nova dimensão, chamada ETERNIDADE. Nesta nova dimensão, a alma da pessoa está sendo julgada por Deus no assim chamado JUÍZO PARTICULAR. Conforme o resultado deste Juízo, a alma ou entra diretamente no inferno, ou, depois de ter passado talvez certo tempo no PURGATÓRIO, entra no céu. Ela aguarda, numa situação de felicidade ou de tormento, a chegada do JUÍZO FINAL. Quando o momento deste segundo juízo chegar, acontecerá também a RESSURREIÇÃO DO CORPO e, de novo conforme o resultado dos dois julgamentos, a alma humana, agora reunida com o seu corpo, passará para toda a eternidade numa situação de felicidade total, chamada CÉU, ou de tormento inimaginável, chamado INFERNO. São estas, em poucas palavras, as expectativas religiosas ensinadas por séculos e interiorizadas por gerações de cristãos até os dias de hoje. Podemos resumir esta perspectiva tradicional, fazendo uso de um esquema gráfico, onde o destino da pessoa humana, na morte, aparece da seguinte maneira: O que acontece com a pessoa humana na morte? O desenho mostra, de maneira bastante clara, aquilo que no fundo é, até hoje, a crença da maioria dos cristãos sobre os acontecimentos na morte. Esta morte só atinge o corpo. O corpo morre, nós assistimos à sua morte; depois da morte consumada, falamos deste corpo em termos de cadáver. Este cadáver podemos tocar e ver e é ele que enterramos. Desta forma, acaba aquilo que podemos testemunhar com os nossos sentidos. Mas será que isso é tudo? A nossa religião diz que não! Ela diz que a vida, depois da morte, continua. No entanto, como é possível compreender esta verdade com a nossa razão, quando estamos diante da verdade inegável do cadáver? Eis a grande pergunta a que a religião tinha de responder. No passado, ela o tentou, recorrendo ao modelo dualista de uma alma que, na morte, se separa do corpo. 2 O MODELO ANTROPOLÓGICO DUALISTA DE UMA ALMA QUE, NA MORTE, SE SEPARA DO CORPO PARECE EXPLICAR, DE MANEIRA FÁCIL, A FÉ NUMA VIDA APÓS A MORTE Para manter viva a fé numa vida depois da morte, apesar da evidência de um cadáver sem vida, o modelo tradicionalmente usado na religião cristã recorre à ideia de que o homem seria composto de corpo e alma. O corpo, nesta união, é a parte mortal, enquanto a alma é a parte imortal. Na morte, diz o modelo, a alma se separa do corpo, e entra em nova dimensão, chamada Eternidade. Nessa eternidade, ela vive como ser espiritual, até que, num futuro muito distante, chegue o FINAL DOS TEMPOS. Neste Final dos Tempos acontecerá a Ressurreição do corpo e o Juízo Final. Este modelo foi capaz de explicar de maneira satisfatória o fato inegável da existência de um cadáver, de um corpo sem vida e, apesar disso, permitir manter a fé de que a vida depois da morte continua. A base que possibilita manter esta fé é formada por um modelo antropológico antigamente chamado dualista; hoje se fala mais do modelo binário. Conforme tal modelo, a essência do homem é a alma espiritual. Esta alma é imortal e, na morte, se separa do corpo para continuar sua existência sem vínculo material. 2.1. Origem e história do modelo antropológico binário (dualista) A origem deste modelo nada tem que ver com a revelação bíblica, mas, sim, com uma religião pagã do século VII a.C., a assim chamada “Religião Órfica da Trácia”, na Grécia antiga. A partir desta origem, a concepção binária ou dualista do homem passou por toda uma história de evolução e adaptação, até finalmente se fixar também no cristianismo. Desde os primeiros séculos da era cristã, essa concepção se tornou o modelo dominante no cristianismo, sustentado pela filosofia do neoplatonismo e pela ideologia religiosa da gnose e de seu dualismo cosmológico. As várias etapas desta história de absorção de concepções dualistas estão representadas no esquema da página seguinte. É importante frisar que, a partir do século IV d.C., sobretudo depois de Agostinho, a compreensão cristã do destino humano após a morte baseia-se, cada vez mais, no modelo dualista helênico.¹ Este modelo antropológico já era o dominante dentro do império greco-romano antes da era cristã e, depois do desaparecimento deste império, continuou dentro do pensamento cristão e permanece até os dias de hoje. Ele se fixou de tal maneira, que muitos cristãos estão convencidos de que estamos diante de um fato de revelação divina. Pensam que a base do modelo
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