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7 UNIDADE 1: Bilinguismo – as línguas na educação de surdos Introdução As línguas expressam a capacidade específica dos seres humanos para a linguagem. A raça humana privilegia a linguagem, isto é, a linguagem é tão essencial para o ser humano que, apesar de todos os empecilhos que possam surgir para o estabelecimento de relações através dela, os seres humanos buscam formas de expressá-la. As diferentes línguas existentes na face da terra expressam muito mais do que essa capacidade para a linguagem, expressam as culturas, os valores e os padrões sociais. Portanto, as línguas refletem uma multiplicidade de fatores que as tornam diferentes e apresentam características intrínsecas de um grupo social específico. Uma grande parte dos surdos brasileiros usam a língua brasileira de sinais (Libras), uma língua visual-espacial que apresenta todas as propriedades específicas das línguas humanas. É uma língua utilizada nos espaços criados pelos próprios surdos, como por exemplo, nas associações, nos pontos de encontros espalhados pelas grandes cidades, nos seus lares e, quando possível, nas escolas. Esta unidade apresentará discussões que envolvem o bilinguismo. Entre elas, estaremos apresentando definições do que é ser bilíngue, como os surdos se constituem bilíngues e alguns dos papéis atribuídos pelos surdos à língua de sinais e à língua portuguesa. As línguas faladas 6 , as línguas de sinais, a oralidade e a escrita apresentam diferentes estatutos sociais, políticos, culturais e educacionais. No contexto brasileiro, desde a proibição do uso da língua de sinais em sala de aula até a liberação da mesma, bem como as diferentes ênfases dadas à língua falada ao longo dos anos, 6 As línguas faladas são também conhecidas na literatura da área por linguais orais ou línguas oral-auditivas. O que vamos aprender nesta unidade? Aspectos que envolvem o bilinguismo. As variações implicadas no ser bilíngue. O status bilíngue da pessoa surda. 8 caracterizaram políticas linguísticas que se basearam na imposição da língua falada, objetivando a assimilação da língua portuguesa padrão como modelo de sucesso escolar. Do completo desconhecimento da importância da língua de sinais para o processo de aquisição da linguagem ao ensino clínico-terapêutico para a recuperação da fala, percebe-se a reprodução de valores filosóficos e políticos que marcam a educação de surdos no Brasil até os dias de hoje. Mudar esse processo não significa simplesmente determinar os espaços que as línguas passarão a ocupar nas escolas que educam surdos, mas sim passar por um processo muito maior de reflexão, de (des-)estruturação, de formação de profissionais e criação de novos espaços de trabalho. Será preciso reconhecer o que representam as línguas para os próprios surdos. Não basta simplesmente decidir se uma ou outra língua passará a fazer ou não parte do programa escolar, mas sim tornar possível a existência das línguas, reconhecendo-as de fato. Assim se constitui o bilinguismo entre os surdos. 1. O que significa ser bilíngue? Há várias discussões sobre o que significa ser bilíngue, com línguas faladas e com línguas de sinais. Há um mito de que ser bilíngue seja ser fluente como nativo em duas ou mais línguas. No entanto, as pesquisas mostram que isso não é bem assim. Bloomfield (1933, p. 56) introduz a noção de “controle” de duas línguas quando aborda a questão do ser bilíngue. No entanto, há certa idealização do bilinguismo compreendendo esse “controle” como controle nativo de duas línguas. Esse bilíngue idealizado é muito raro. Grosjean (1994) vai abordar o ser bilíngue considerando que, nesses casos, as línguas são usadas pela mesma pessoa em uma ou várias comunidades com diferentes funções. Há vários fatores importantes que devem ser considerados quando definimos bilinguismo, entre eles citamos os seguintes: a) Papel da idade na maturação bilíngue (aquisição e aprendizagem) – ser bilíngue adquirindo as línguas desde bebê, porque os pais são surdos é diferente de ser bilíngue tendo contato com a L2 na fase adulta. Ter contato com duas ou mais línguas durante o crescimento é diferente de aprender uma L2 ao longo da vida. Assim, a idade com a qual a pessoa tem contato com as línguas tem um papel importante na sua constituição bilíngue. Em vários países, crianças crescem falando várias línguas em diferentes 9 contextos e nem tem consciência sobre estarem usando mais de uma língua, embora o façam de forma natural e espontânea adequando-se a cada contexto. A aquisição precoce das línguas faz com que essas crianças tenham mais de uma L1, sendo bilíngues de mais de uma L1. Nesses casos, são bilíngues nativos. Algumas crianças vão ter a oportunidade de ir para outro país com sua família e passarão a ter contato com uma nova língua, uma L2, que será adquirida na interação com as pessoas daquele país. Neste caso, essas crianças estarão imersas em ambientes que usam outra língua, a sua L2, tendo a oportunidade de adquirir esta língua e tornarem-se falantes nativos desta língua. No entanto, dependendo da idade, percebe-se que a L2 por imersão pode ser adquirida, mas talvez, nunca será como a língua usada pelos falantes nativos dessa língua. A idade apresenta, portanto, um papel fundamental na constituição da pessoa bilíngue. No caso dos surdos, adquirir a língua de sinais precocemente e iniciar o contato com o português ao longo de sua vida terá impacto na sua constituição bilíngue. Esse bilinguismo, no entanto, é diferente daqueles que crescem com duas línguas, adquirindo-as de forma natural e espontânea, pois, para os surdos, a Libras pode ser adquirida na interação com os outros que usam essa língua, mas o português não. No caso do português, os surdos irão “aprender” esta língua. Então aqui, precisamos esclarecer a diferença entre aquisição e aprendizagem. A aquisição simplesmente acontece por meio da interação entre as pessoas, enquanto a aprendizagem precisa ser planejada por alguém que irá ensinar a língua. Os surdos vão aprender português por meio dos olhos; portanto, esta aprendizagem deve ser planejada pensando nesta forma bilíngue de ser. b) Quantidade e tipo de input de cada linguagem – a quantidade de input tem um papel essencial na constituição das pessoas bilíngues. Input significa acesso e oportunidade de interação na outra língua. A interação em uma língua deve acontecer por meio de input compartilhado, ou seja, deve haver acesso ao input. No caso dos surdos, apesar de eles crescerem em um país que fala o português, eles não tem um input compartilhado no português, uma vez que esse input é normalmente falado. Isso tem implicações no tipo de bilinguismo que os surdos vão se enquadrar. O português será compartilhado por meio do ensino desta língua, normalmente, por meio da escrita, que é visual. A experiência sensorial dos surdos via visão é muito saliente, tornando-os abertos para compartilhar uma língua visual-espacial, ou seja, a Libras. No entanto, a aquisição da Libras depende também da quantidade de input compartilhado nessa língua com a criança. As crianças surdas brasileiras, normalmente, são filhas de pais 10 ouvintes que desconhecem a Libras. É fundamental que essas famílias busquem espaços para que essas crianças tenham acesso à Libras com qualidade, ou seja, interagindo com diferentes sinalizantes e em quantidade significativa, isto é, tendo várias horas de contato diário com a Libras, sua L1. A L1 será fundante, por ser adquirida de forma natural e espontânea mediante a interação com pessoas surdas sinalizantes. Essa língua constituirá os alicerces para a aprendizagem do português. O português como L2 também depende de exposição com qualidade e quantidade suficientes para constituir o surdo bilíngue. c) Assimetria/domínioentre dois sistemas – os bilíngues podem ter diferentes níveis de fluência nas línguas que usa. A assimetria foi constatada como algo muito comum entre bilíngues. Dificilmente os bilíngues são fluentes exatamente da mesma forma nas línguas que fala/sinaliza. É comum identificar mais fluência em uma língua do que na outra, de acordo com os diferentes contextos nos quais estas línguas são usadas. Por exemplo, eu posso ser fluente na leitura e na escrita do português, mas não ser fluente na escrita da Libras. Por outro lado, eu posso ser muito fluente na produção em Libras quando converso com amigos, mas não ser fluente para conversar em português. Isso pode se aplicar à mesma pessoa. A assimetria das línguas é determinada pela fluência que o ser bilíngue tem para falar/sinalizar, ouvir/ver, ler e escrever uma língua. Outro exemplo, o ser bilíngue de Libras, português e inglês pode ser muito fluente em Libras quando está com seus amigos surdos, mas não muito bom para falar em Libras em público. Por outro lado, essa mesma pessoa, pode ser excelente na redação do português, mas não conseguir escrever em inglês, embora consiga ler textos em inglês. Há muitas variações entre a fluência dos bilíngues nas línguas que domina. Vamos agora ver uma história de uma pessoa bilíngue que cresceu na Índia. Essa pessoa cresceu falando indiano e inglês, mas sua família falava inglês somente durante os jantares. Quando essa pessoa foi para uma escola na Inglaterra, ela viu que as pessoas falavam como ela falava no jantar e achava estranho e difícil usar esta língua em outros contextos que não fossem no jantar. Ela teve que aprender a usar inglês em outros contextos. Os surdos, normalmente, usam a Libras como a língua de interação e língua de acesso aos conhecimentos de mundo. O português é usado para ler e escrever, como, por exemplo, enviar e receber mensagens no celular e interagir em redes sociais. Dessa forma, percebe-se uma assimetria entre as duas línguas dos surdos bilíngues brasileiros: Libras e português. 11 d) Interação e separação de dois sistemas linguísticos – os bilíngues têm as línguas que possui ativas, os dois sistemas estão disponíveis. No entanto, as pessoas bilíngues parecem ter um controle sobre essas línguas de acordo com os contextos sociolinguísticos que se apresentam. Por exemplo, nos estudos que desenvolvemos com crianças bilíngues, já percebemos que as crianças ouvintes bilíngues bimodais, em Libras e português, usam as duas línguas em vários contextos por estarem em ambientes essencialmente bilíngues bimodais, ou seja, seus pais surdos são bilíngues e elas convivem com familiares falantes de português. Como a criança percebe que é possível usar as duas línguas para garantir o entendimento, ela utiliza as duas ao mesmo tempo quando avalia ser pertinente. Por outro lado, em vários momentos elas usam apenas uma ou outra, dependendo do seu interlocutor. Isso mostra que as línguas estão disponíveis e ativas e podem interagir em diferentes níveis. A interação entre as línguas pode ocorrer envolvendo aspectos de ordem linguística, havendo uma síntese das gramáticas das duas línguas, dependendo da situação. O português dos surdos bilíngues apresenta esta interação com vários indícios de síntese gramatical da Libras com o português. Isso é muito comum entre falantes bilíngues. Por outro lado, vários estudos indicam que há separação entre as línguas de um falante bilíngue. De fato, claramente, o repertório lexical destas línguas está separado. Além disso, a gramática específica de cada uma das línguas também está separada. No entanto, elas podem sim interagir. Essa interação é analisada por vários indícios das produções de pessoas bilíngues. Um deles é a alternância de línguas (code-switching), em que os bilíngues em contextos específicos, normalmente quando interagem com outros bilíngues, alternam de uma língua para a outra. Essas alternâncias obedecem restrições linguísticas e são usadas de forma criativa para potencializar a comunicação. No caso dos bilíngues bimodais, incluindo os surdos bilíngues, é muito comum haver a sobreposição de uma língua sobre a outra (code-blending), que caracteriza a produção simultânea das duas línguas, o que é possível por essas línguas se apresentarem em modalidades distintas. e) Fatores socio-psicológicos: fenômeno da progressão e regressão – há também fatores sócio-psicológicos que apresentam um papel relevante na vida dos bilíngues. Temos vários relatos de pessoas bilíngues consideradas fluentes na sua L2 que “empacam” diante de certas situações. Por exemplo, pessoas bilíngues que tem uma L2 a mais de 15 anos usando essa língua em vários contextos podem travar na hora de ter 12 que apresentar uma palestra nessa língua. Há outros relatos de bilíngues que conseguem conversar fluentemente na L2 com vários falantes nativos, mas quando se deparam com alguns falantes nativos, se enrolam e não conseguem falar nesta L2. O que acontece nesses casos? Essa pessoa bilíngue claramente tem bom conhecimento de sua L2, mas outros fatores interferem no seu desempenho nessa língua. Muitos surdos, por exemplo, relatam que conseguem usar o português fluentemente para enviar mensagens no celular e interagir nas redes sociais, mas quando precisam escrever um texto na escola, empacam. Os diferentes contextos sociais e as diferentes pessoas com as quais os bilíngues vão interagir nas línguas que usam podem interferir e causar problemas e dificuldades no uso dessas línguas. Isso é muito comum entre bilíngues. Além disso, parece que há situações que os bilíngues tiram de letra em uma língua, mas não na outra língua, em função do contexto. O papel social das línguas é fundamental no desempenho dos bilíngues. Além disso, o fator psicológico pode imprimir consequências na produção e compreensão dos bilíngues. Há uma história de um bilíngue fluente em português e inglês que diante da polícia federal, no setor de imigração, não conseguia entender absolutamente nada do que o policial falava. A tensão do processo de imigração parece ter bloqueado a sua compreensão do inglês, mas, na verdade, essa pessoa tinha competência para compreender as perguntas do policial. Isso também acontece com vários surdos diante de processos de seleção e avaliação que utilizam o português. Vários surdos relatam que têm dificuldade com o português nesses contextos. Provavelmente, a tensão psicológica tem uma influência negativa na performance desses surdos bilíngues. Passemos agora a discutir em mais detalhes sobre algumas condições do input que atuam sobre a constituição do ser bilíngue, conforme segue: a) Condições naturais e não naturais Uma das questões a serem consideradas está relacionada com a questão sensorial. As experiências sensoriais das crianças surdas impõe o acesso à linguagem por meio da visão e restringem o acesso à linguagem por meio da audição. Os surdos têm experiências com sons que são diferentes das experiências vivenciadas por aqueles que ouvem. A língua falada não é processada auditivamente pelos surdos e, portanto, nessa modalidade, não está disponível, assim como acontece com as crianças ouvintes que crescem ouvindo uma ou mais línguas. Ouvir é uma condição natural de crianças 13 ouvintes, mas não é uma condição natural para crianças surdas. Por outro lado, ver é uma condição natural que está disponível para crianças surdas. Dessa forma, elas naturalmente acessam uma língua de sinais. O acesso natural a uma língua desencadeia a aquisição da linguagem. No caso das crianças surdas, quando elas são filhas de pais surdos, elas acessam naturalmente a língua de sinais, ou seja, essas crianças tem disponível um input acessível e natural. A aquisição natural e espontânea de uma língua é tratada como algo comum entre crianças que ouvem, pois elas crescem rodeadas por pessoas quefalam a(s) língua(s) a(s) qual/quais estão expostas. O simples fato de ela estar diante dessas pessoas e interagir com elas desencadeia o processo de aquisição da linguagem. O input natural é aquele que está disponível e acessível à criança. No caso das crianças surdas, filhas de pais ouvintes, se não houver uma preocupação dos pais em oportunizar um ambiente acessível na língua de sinais, elas podem não desencadear o processo de aquisição da linguagem, uma vez que elas não percebem os sons da língua falada de forma espontânea. Há tentativas de superar a falta da audição por meio de vários mecanismos de intervenção. No entanto, essa alternativa não será natural nem espontânea, mas sim um programa de tratamento que poderá ou não ser bem sucedido. A experiência da surdez implica na condição de poder ou não acessar uma língua de forma natural e espontânea. Dependendo da forma como isso for conduzido, a criança terá ou não a oportunidade de desencadear a sua linguagem de forma natural e espontânea. O ensino da língua portuguesa oral para surdos é um processo terapêutico que envolverá atividades específicas desenvolvidas por um profissional fonoaudiólogo. Não é, portanto, um processo natural nem espontâneo, como a aquisição da língua portuguesa falada por crianças ouvintes. Já o ensino da língua portuguesa escrita para surdos é um processo pedagógico que envolverá atividades desenvolvidas por um professor. Portanto, é um processo que envolverá intervenção por parte de um agente, o professor, na formação linguística do aluno. Tanto para as crianças surdas quanto para crianças ouvintes, o processo de aprendizagem da escrita não é natural nem tão espontâneo, pois dependerá dessa intervenção do professor e da aprendizagem dos aspectos ortográficos e discursivos da escrita. Porém, para as crianças surdas, esse processo é menos natural ainda, já que as crianças ouvintes tem acesso à modalidade oral da língua portuguesa escrita, mas as crianças surdas não. b) Condições formais: escola e mídias A escola é o espaço no qual a criança terá acesso às línguas. No caso das crianças 14 surdas, é um espaço fundante, pois é onde a criança surda terá acesso natural e espontâneo à língua de sinais na relação com colegas e professores sinalizantes, além de também caracterizar o espaço formal para aprender a língua de sinais, a língua portuguesa, outras línguas e outros conhecimentos escolares. No espaço escolar, a criança surda terá oportunidade de aprender sobre as línguas que usa. As mídias se juntam à escola para potencializar a relação com as línguas envolvidas no processo educacional das crianças surdas, uma vez que envolverão a produção e visualização de vídeos em Libras, bem como a possibilidade de interação síncrona na língua portuguesa (por meio de chats de conversação) e assíncrona (por meio do envio e recebimento de e-mails e mensagens de celular, por exemplo). c) Idade e tempo Quanto à idade e ao tempo, temos algumas pesquisas que mostram os seus efeitos (Quadros e Cruz, 2011; Quadros, 1997). Foi verificado que a aquisição de uma língua precoce é fundamental para o desencadeamento da linguagem, mas que também o tempo de exposição tem efeitos no desenvolvimento da linguagem. Crianças surdas com pais surdos adquirem a língua de sinais precocemente e parecem estabelecer uma base consolidada de linguagem que favorece a aquisição de outras línguas. Por outro lado, foram avaliados vários adolescentes e adultos surdos que não tiveram acesso à língua de sinais nos primeiros anos de vida e foram constatados diferentes níveis de efeitos na linguagem. Os níveis avaliados de linguagem compreendem a aquisição por volta dos 4-5 anos de idade, 6-7 anos de idade e 8-9 anos de idade, sendo esse último um nível final do processo de aquisição. Os adultos e adolescentes que tiveram contato com a língua de sinais tardiamente, ou seja, depois da fase da puberdade, demonstraram alguns problemas no desempenho das avaliações. Eles não conseguiram compreender níveis mais complexos de textos em Libras, que corresponderiam ao segundo e ao terceiro nível, evidenciando dificuldades na compreensão e na produção de estruturas envolvendo mais de um referente (uso de pontos no espaço) e complexidade no encadeamento das informações. Por outro lado, observamos que alguns, mesmo tendo acesso tardio à Libras, parecem ter superado algumas dessas dificuldades ao longo do tempo. Assim, parece haver um efeito do tempo de exposição à língua, além da idade dos primeiros contatos com essa língua. Por exemplo, foi verificado que um adulto de 32 anos que começou a aprender a Libras por volta dos 14 anos, já contava com 18 anos de exposição à Libras (mais do que uma criança de 9 anos de idade). Isso parece 15 ter ajudado na compreensão mais apurada, assim como na produção mais estruturada na Libras. No entanto, de modo geral, mesmo assim percebe-se alguns aspectos que esses adultos tiveram dificuldades em processar. Normalmente, os problemas identificados estão relacionados com o uso gramatical do espaço de forma consistente, tanto no nível da compreensão como no nível da produção. Assim, a idade e o tempo apresentam repercussão no processo de aquisição da linguagem e, portanto, também na constituição do ser bilíngue. Com relação ao português escrito, os fatores idade e tempo de exposição são extremamente relevantes. Eles devem ser levados em consideração tanto pelas famílias das crianças surdas quanto pelos seus professores de português. Expor a criança surda a diversas situações significativas que envolvam a presença do português escrito, como a interação com livros de histórias e jogos, desde cedo, com certeza ajudará essa criança a ter uma melhor consolidação da aprendizagem do português escrito, tanto em termos afetivos quanto linguísticos. d) Tipos de bilíngue Como já citamos no início deste material, os tipos de pessoas bilíngues que existem são inúmeros. Há bilíngues que crescem com várias línguas; há bilíngues que usam uma língua em casa e outra fora de casa; há bilíngues que usam uma língua, mas entendem outras línguas; há bilíngues que se tornam bilíngues ao longo da vida entre outros. De modo geral, teríamos bilíngues nativos (que crescem adquirindo mais de uma língua) e bilíngues não-nativos (que aprendem sua segunda língua em um determinado momento da vida, posteriormente à fase de aquisição da primeira língua). Podemos sintetizar, pois, três tipos de aquisição bilíngue: 1) Aquisição bilíngue simultânea (2L1) – se a criança adquire duas ou mais línguas durante os primeiros três ou quatro anos de idade. 2) Aquisição infantil de segunda língua (L2) – se o início da aquisição da segunda língua acontece entre as idades de cinco e dez anos. 3) Aquisição “adulta” de L2 – quando ocorre depois dos dez anos. Esses tipos de aquisição bilíngue vão também ser determinados por diferentes fatores ambientais. Há crianças entre cinco e dez anos, por exemplo, que vão iniciar aulas de uma segunda língua em uma escola de línguas (em seu próprio país) e outras que irão morar em 16 um país que utiliza a segunda língua, que será adquirida por meio de imersão – ou seja, por estar em contato com usuários daquela língua em período integral. Isso também pode acontecer com adultos que passam a ter contato com uma segunda língua por razões profissionais ou pessoais que determinam que estejam em outro país por um determinado período da vida. Há uma diferença significativa entre estar imerso na segunda língua ou estar aprendendo a segunda língua em um contexto de sala de aula. Além disso, há também fatores relacionados com o estatuto das línguas em si. Os pais que falam uma língua que não é reconhecida no país onde estejam, por exemplo, podem ter dificuldades em manter o uso de sua língua com o seu filho, em função do impacto social quea língua tem na vida da criança. Apesar disso, a criança entende a língua usada pelos pais, tornando-se bilíngue – embora não produza a língua, respondendo apenas na língua da ampla maioria dos falantes desse determinado país. Como vocês podem perceber, ser bilíngue apresenta inúmeras variedades. As crianças surdas são bilíngues? Van den Bogaerde e Baker (2005) fizeram um estudo comparando crianças ouvintes e crianças surdas filhas de pais surdos. Elas observaram que os pais surdos usam a língua de sinais holandesa e o holandês de forma simultânea em diferentes contextos, tanto com os seus filhos ouvintes, como com os seus filhos surdos. Eles usam muito mais o holandês simultaneamente com a língua de sinais holandesa com os seus filhos ouvintes, mas também foram observadas várias co-ocorrências dessas duas línguas com os filhos surdos. Isso acontece porque esses pais surdos são bilíngues e tomam proveito da sua condição bilíngue, potencializando a comunicação. Por sua vez, as crianças surdas crescem com a língua de sinais, mas já começam a aprender sobre o holandês e a sua existência. No caso das crianças surdas, filhas de pais ouvintes, que tenham contato com a língua de sinais desde pequenas por meio de programas de pais que utilizam a língua de sinais ou por contato com outros adultos surdos, a língua falada vai começar a adentrar a vida desta criança por meio visual. Kuntze (2008) menciona o uso de soletração de palavras em inglês por crianças surdas como algo que está presente na vida das crianças surdas que estão em programas educativos bilíngues. As crianças bem pequenas que ainda não leem nem escrevem, soletram várias palavras do inglês, embora não tenham consciência de que sejam letras formando palavras. Parece que inicialmente, elas analisam a soletração como sinais e, somente, ao serem 17 alfabetizadas mais tarde, se dão conta de sua composição formada por unidades menores, as letras. As crianças surdas em contato com a língua de sinais muito cedo, portanto, são bilíngues, pois significam formas que representam a língua falada na sua comunicação, por estarem em um ambiente em que a língua falada está presente por meio da escrita. De qualquer forma, o bebê surdo está tendo acesso a alguns elementos da língua falada, que servem como o início de uma aquisição bilíngue, mas o bebê não está adquirindo as duas línguas ao mesmo tempo. O acesso à língua falada é, portanto, parcial, restrito à visualização dessa língua (não à escuta da mesma), enquanto o acesso à língua de sinais é completo, quando a criança tem contato com adultos surdos sinalizantes. Existe uma variabilidade entre os pais surdos quanto ao tipo de input que oferecem aos seus filhos surdos. Há pais surdos que usam a língua de sinais associada à articulação de palavras do português por serem bilíngues e por terem sido oralizados por muitos anos. Por outro lado, há pais surdos que não articulam nenhuma palavra, mesmo tendo sido oralizados. Estamos dando dois exemplos para ilustrar a grande variabilidade entre as formas usadas pelos próprios surdos que vão servir de referência para os seus filhos. Essas diferenças podem estar representadas na mesma família, por exemplo, com uma mãe que faz questão de usar a articulação orofacial de forma sistemática associada à sua produção em sinais e um pai que não movimenta a boca, a não ser para representar expressões faciais associadas aos sinais. Essa variação entre os surdos que servem de referência para as crianças surdas pode ser observada também entre pais ouvintes que vão usar mais ou menos o português ao conversar usando a libras com o seu filho surdo. Essas diferenças estão relacionadas com a funcionalidade das duas línguas para esses pais surdos e ouvintes. Na medida em que eles usam mais ou menos as duas línguas em diferentes contextos, as crianças tomam mais proveito da condição de ser bilíngue. O bilíngue pode escolher usar uma e/ou outra língua. As pesquisas com bilíngues bimodais (Quadros et al, 2011) tem evidenciado que as línguas estão sempre disponíveis ao bilíngue. Ele pode optar em usar uma das línguas e reter a outra ou até usar as duas, dependendo do contexto sociolinguístico. Por exemplo, bilíngues de línguas faladas com outros bilíngues dessas mesmas línguas tendem a alternar as línguas (usar o code-switching). No caso dos bilíngues bimodais, língua falada e língua de sinais, é possível usar a sobreposição de línguas (code-blending), ou seja, usar as duas línguas simultaneamente. Isso é possível porque as 18 línguas usam canais articulatórios diferenciados. Os adultos surdos são bilíngues? Lucas e Valli (1992) analisaram surdos adultos americanos interagindo entre si e com ouvintes. Eles constataram que os surdos americanos que participaram da pesquisa são bilíngues, eles usam as línguas (falada e de sinais) em diferentes contextos e manifestam o uso das duas línguas simultaneamente por razões sociolinguísticas quando conversam entre si e quando conversam com outros surdos, embora de formas diferenciadas. 2. O bilíngue surdo: Libras e português Para os surdos, a língua de sinais é uma das formas mais expressivas de manifestar suas culturas. Quando usamos o artigo definido em “a língua” e “o meio”, referimo-nos à língua e ao meio por meio dos quais os surdos efetivamente interagem, ou seja, a língua de sinais. A língua de sinais brasileira é “a” língua em que a comunidade surda dos centros urbanos do Brasil expressa suas ideias, pensamentos e arte, “a” língua que é usada como meio de interação social, cultural e científica. Os falantes nativos dessa língua conversam, planejam, sonham, brigam, contam estórias explorando meios riquíssimos e complexos que são próprios de uma língua de sinais. A língua de sinais também representa, neste momento histórico, a língua que os surdos têm orgulho de usar. Isso significa dizer que as representações de não língua instituídas ao longo dos anos através de sua proibição, finalmente, cedem espaço para a sua valorização enquanto língua para os próprios surdos. Para muitos surdos, ainda, o português passa a ser o vilão da história, pois é representado como a língua de sacrifício, a língua de tortura. Sendo assim, percebe-se um movimento de negação da língua falada como uma forma de autoproteção, devido ao fato de, por muitos anos, o português ter sido imposto em detrimento da língua de sinais – pois se acreditava que ela era ruim, que impossibilitaria a aquisição do português. O reconhecimento da língua de sinais inverte a lógica instituída até então, assim o português passa a ser negado pelos surdos. O português nesta lógica representa, portanto, uma ameaça, é uma língua que pode servir para excluir os surdos. 19 Alguns surdos que já não veem a língua falada no país como uma ameaça à sua língua passam a utilizar o português como língua de poder. As políticas de assimilação, tanto de um lado como de outro, transformam-se em políticas “aditivas” (Cummins, 2000). Ter mais de uma língua não representa mais um problema com diferentes repercussões, mas sim mais poder, mais elasticidade cognitiva, mais flexibilidade social etc. Isto é, não se vê mais como desvantagem se apropriar da outra língua, mas como vantagem em vários sentidos (cognitivo, social, cultural, político e linguístico). Nos espaços educacionais, há muito ainda a acontecer para que uma política linguística aditiva seja de fato instaurada. A educação bilíngue para surdos convive com todas essas variáveis, o que torna o processo truncado. Os próprios surdos estão assumindo alguns espaços e transformando algumas realidades. As línguas passam a ter diferentes representações entre os professores e os intérpretes, que começam a se dar conta das complexidades intrínsecas à situação bilíngue com que também estão se deparando. No caso específicoda criança surda, o contexto em que esse processo de aquisição da primeira língua acontece é aquele em que as crianças têm a chance de encontrar o outro surdo, ou seja, além de ver os sinais, ela precisará ter “escutas” para sua produção em sinais (Souza, 2000), ou seja, elas precisam ter interlocutores em Libras. A escola torna-se, portanto, um espaço linguístico fundamental, pois será onde a criança surda terá a oportunidade de contato com a língua de sinais brasileira. O português será a língua significada através da escrita. A sua aquisição dependerá de sua representação enquanto língua, com funções relacionadas ao acesso às informações e comunicação entre os pares surdos e entre surdos e ouvintes, por meio da escrita. Entre os surdos fluentes em português, o uso da escrita faz parte do seu cotidiano através de diferentes tipos de produção textual, em especial, destaca-se a comunicação através de chats e e-mails. No entanto, atualmente, a aquisição do português escrito por crianças surdas ainda é baseada no ensino do português para crianças ouvintes que adquirem o português falado como primeira língua. A criança surda é colocada em contato com a escrita do português para ser alfabetizada seguindo os mesmos passos e materiais utilizados nas escolas com as crianças falantes de português. Várias tentativas de alfabetizar a criança surda através do português já 20 foram realizadas, desde a utilização de métodos artificiais de estruturação de linguagem até o uso do português sinalizado 7 8 . A partir dos vários estudos sobre o estatuto de diferentes línguas de sinais e seu processo de aquisição, muitos autores passaram a investigar o processo de aquisição por alunos surdos de uma língua escrita que representa a modalidade oral-auditiva (Andersson, 1994; Ahlgren, 1994; Ferreira-Brito, 1993; Berent, 1996; Quadros, 1997 entre outros). A aquisição do sueco, do inglês, do espanhol, do português por alunos surdos é analisada como a aquisição de uma segunda língua. Esses educadores e pesquisadores pressupõem a aquisição da língua de sinais como aquisição da primeira língua e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como aquisição de uma segunda língua. Sobre a aquisição da segunda língua por alunos surdos, apresentam-se alguns pressupostos fundamentais: (a) o processamento cognitivo espacial especializado dos surdos; (b) o potencial das relações visuais estabelecidas pelos surdos; (c) a possibilidade de transferência da língua de sinais para o português; (d) as diferenças nas modalidades das línguas no processo educacional; (e) as diferenças dos papéis sociais e acadêmicos cumpridos por cada língua; (f) as diferenças entre as relações que a comunidade surda estabelece com a escrita tendo em vista sua cultura; (g) um sistema de escrita alfabética diferente do sistema de escrita das línguas de sinais; e (h) a existência do alfabeto manual, que representa uma relação visual com as letras usadas na escrita do português. Os alunos são dependentes das habilidades da sua primeira língua, particularmente, daquelas relacionadas ao letramento na primeira língua. Na perspectiva do desenvolvimento cognitivo, a aquisição de uma segunda língua é similar ao processo de aquisição da primeira língua. No entanto, no caso dos surdos, deve ser considerada a inexistência de letramento escrito na primeira língua. Os surdos não são letrados na escrita de da Libras quando se deparam com o português escrito. A escrita passa a ter uma representação na língua portuguesa para os 7 No Brasil, os métodos artificiais de estruturação de linguagem mais difundidos são a Chave de Fitzgerald e o de Perdoncini. Português sinalizado é um sistema artificial adotado por escolas especiais para surdos. Tal sistema toma sinais da língua de sinais e os usa na estrutura do português. Há vários problemas com esse sistema no processo educacional de surdos, pois, além de desconsiderar a complexidade linguística da língua de sinais brasileira, é utilizado como um meio de ensino do português. Para mais detalhes, ver Quadros (1997). 8 Para mais detalhes sobre a produção escrita do português de alunos surdos, ver a unidade 2. 21 surdos se mediada através de uma língua que possua significação para eles. As palavras não são ouvidas pelos surdos, eles não discutem sobre as coisas e seus significados no português; por outro lado, isso acontece na língua de sinais. Assim, a escrita do português é significada a partir da língua de sinais. Existe a escrita da língua de sinais (Sign Writing), um sistema não alfabético que representa as unidades espaciais-visuais dessa língua. No entanto, ela não é difundida o suficiente ainda. Caso o fosse, os surdos poderiam ser letrados na sua própria língua, o que favoreceria, provavelmente, a aquisição da escrita do português. O português enquanto segunda língua apresenta características de aquisição observadas em processos de aquisição de outras línguas: observa-se variação individual tanto no nível do êxito como no processo, nas estratégias e nos objetivos; há fossilização, ou seja, estabilização de certos estágios; há também a indeterminação das intuições (em relação ao que é e o que não é permitido na gramática da língua-alvo) e pode haver influência de fatores afetivos. A segunda língua apresentará vários estágios de interlíngua, isto é, no processo de aquisição do português, os surdos apresentarão um sistema que não mais representa a primeira língua, mas que ainda não representa a língua alvo. Apesar disso, esses estágios da interlíngua apresentam características de um sistema linguístico com regras próprias e que vai em direção à segunda língua. Isto é, a interlíngua não é caótica e desorganizada, mas apresenta hipóteses e regras que começam a delinear outra língua que já não é mais a primeira língua daquele que está no processo de aquisição da segunda língua. Na produção textual dos alunos surdos, observa-se esse processo (Brochado, 2002). A criança surda pode ter acesso à representação gráfica da língua portuguesa – processo psicolinguístico da alfabetização – e à explicitação e construção das referências culturais da comunidade letrada. A tarefa tornar-se-á possível se o processo for de alfabetização de segunda língua, sendo a língua de sinais reconhecida e efetivamente a primeira língua. Nesse processo, há vários momentos em que se faz necessária a análise implícita e explícita das diferenças e semelhanças entre a língua de sinais brasileira e o português. Nesse sentido, há processos de tradução em que ocorre a tradução dos conhecimentos adquiridos através da 22 língua de sinais, dos conceitos, dos pensamentos e das ideias para o português. Como diz Karnopp (2002), “as pessoas não constroem significados em vácuo”. O ensino do português pressupõe, portanto, a aquisição da língua de sinais brasileira – “a” língua da criança surda. A língua de sinais também apresenta um papel fundamental no processo de ensino-aprendizagem do português. A ideia não é simplesmente uma transferência de conhecimentos da primeira língua para a segunda língua, mas sim um processo paralelo de aquisição e aprendizagem em que cada língua apresenta seus papéis e valores sociais representados. Reflexões finais desta unidade As políticas linguísticas atuais ainda enfatizam o caráter instrumental da língua de sinais brasileira na educação de surdos. As línguas que fazem parte da vida dos surdos na sociedade apresentam papéis e representações diferenciadas caracterizando uma forma bilíngue de ser. O fato de os surdos adquirirem a língua de sinais como uma língua nativa fora do berço familiar demanda à escola um papel que outrora fora desconhecido. A escola passa a ser o ambiente de aquisição da linguagem, mesmo quando os paisaprendem a língua de sinais e participam desse processo. Além disso, a aquisição do português não se dará por meio de um ensino de português como língua materna, como é previsto nos currículos. No caso dos surdos, esse processo exige uma abordagem com base no ensino de segunda língua. As variáveis que entram em cena nesse contexto particular devem ser consideradas, pois, o português, apesar de ser uma segunda língua, não é uma língua estrangeira para os surdos brasileiros. Além disso, essa língua passará a fazer parte da vida dos surdos pelos olhos e não pelo ouvido, ou seja, o ensino se aterá à língua escrita. É tempo de reconhecer de fato a Libras como primeira língua dos surdos, a língua portuguesa enquanto sua segunda língua e a riqueza cultural que a comunidade surda traz com suas experiências sociais, culturais e científicas. As políticas linguísticas brasileiras devem considerar esse contexto. A educação de surdos não pode mais continuar refém da falta de conhecimento dos profissionais que estão envolvidos na educação desses sujeitos. Neste momento histórico, a situação bilíngue dos surdos está posta.
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