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ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 1 05 DE AGOSTO DE 2021 UNICAMP Exasiu Exasiu Aula de Obras Literárias: Júlia Lopes de Almeida – A falência EXTENSIVO Análise de obra da leitura obrigatória: Júlia Lopes de Almeida – A falência. Resumo, análise, crítica, exercícios Professora Luana Signorelli ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 2 Professora Luana Signorelli Sumário APRESENTAÇÃO 3 1.0 CONTEXTUALIZAÇÃO 4 2.0 JÚLIA LOPES DE ALMEIDA 5 2.1. JÚLIA LOPES DE ALMEIDA NA UNICAMP 6 3.0 A FALÊNCIA 8 3.1. RESUMO ANALÍTICO 10 4.0 A FALÊNCIA E A INTERTEXTUALIDADE 32 5.0 QUADRO SINÓPTICO 34 6.0 QUESTÃO SEM COMENTÁRIOS 34 6.1. GABARITO 51 7.0 QUESTÕES COM COMENTÁRIOS 51 8.0 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 77 9.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS 77 Luana Signorelli @luanasignorelli1 @profa.luana.signorelli Professora Luana Signorelli /luana.signorelli ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 3 APRESENTAÇÃO Olá, alunos. O meu nome é Luana. Sou Mestra em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília (UnB) e Doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já qualificada. Tenho 12 anos de experiência com revisão e padronização textual e 11 anos em curso pré-vestibular, tendo passado por instituições conhecidas e renomadas. Lembrem-se sempre de nosso lema: “O segredo do sucesso é a constância no objetivo”. Hoje vamos ter uma aula de Obras Literárias para UNICAMP 2023. Segundo o nosso cronograma, eis o que vamos estudar hoje: AULA TÓPICOS ABORDADOS AULA ÚNICA Título da aula: Júlia de Almeida – A falência Descrição do conteúdo programático da aula: Análise de obra da leitura obrigatória: Júlia de Almeida – A falência. Resumo, análise, crítica, exercícios. Lembrando de alguns recados importantes: • O curso de Literatura é diferente do curso de Obras Literárias. No curso de Literatura, estudamos teoria e historiografia literária e no curso de Obras Literárias a lista obrigatória da instituição. • O curso contemplará TODAS as Obras Literárias! O curso de Obras Literárias costuma ser dividido entre a equipe e as obras são lançadas separadamente de acordo com cronogramas pessoais. • O curso de Obras Literárias do Extensivo e do Intensivo é IDÊNTICO, só muda o layout do PDF. • Como se trata de uma aula de análise de uma obra do repertório UNICAMP 2022, eu irei organizar a aula da seguinte maneira: ➢ Pré-aula: contextualização e informações sobre a autora, Júlia de Almeida; ➢ Análise: A falência (resumo e análise) e A falência e a intertextualidade; ➢ Pós-aula: quadro sinóptico, questões atualizadas, sem e com comentários. O quadro sinóptico (sinopse: resumo) é um material de apoio que irá poder ajudá-los pouco antes da prova, por se tratar de conteúdos grandes com muita informação. Então, vamos lá, não percamos tempo! ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 4 1.0 CONTEXTUALIZAÇÃO O romance A falência da escritora Júlia Lopes de Almeida foi publicado em 1901, coincidindo exatamente com a virada do século XIX e o início do século XX. Em termos de estilo, segue a tradição do le fin de siècle (o fim de século) e da la décadence (a decadência), movimentos originalmente franceses que pretendiam representar a onda de pessimismo, declínio e a atmosfera sufocante que havia justamente nesse período. Romances que são exemplos disso são Madame Bovary (1856) do francês Gustave Flaubert e Anna Kariênina (1877) do russo Tolstói (a tendência se propagou), obras que anteviram e anteciparam essa temática. E ainda Os Buddenbrooks (1901), do mesmo ano de A falência, do alemão Thomas Mann, traz temas semelhantes. A contextualização de A falência também gira em torno da imigração portuguesa para o Brasil em busca de novas oportunidades financeiras nessa nova terra. Esse é justamente o caso do protagonista, Francisco Theodoro. Várias obras, de mais de um movimento literário da transição do fim do século XIX para o início XX vão ter como temática a imigração. Por exemplo, o romance naturalista “O Cortiço” (1890) de Aluísio de Azevedo e o romance pré-modernista “Canaã” (1902) de Graça Aranha. A imigração se deu em vários níveis e envolveu várias nacionalidades, não só a portuguesa, mas outras, especialmente a italiana e a japonesa. Isso fica claro a partir do trecho no capítulo inicial do romance: “A não serem as africanas do café e uma ou outra italiana que se atrevia a sair de alguma fábrica de sacos com dúzias deles à cabeça, nenhuma outra mulher pisava aquelas pedras, só afeitas ao peso bruto” (ALMEIDA, 2018, p. 6). Aqui, também está presente a questão feminina, cara a uma escritora como Júlia da Almeida, que era mulher. Iremos nos aprofundar nisso depois. O comércio do café teve duas fases: primeiramente, a produção era alta e isso rendia muitos lucros para o Brasil e renda para a sua população; depois, aconteceu o seu declínio, o que gerava muita especulação e certa desvalorização do produto, que já não mais valia tudo aquilo que representara antigamente. Com a baixa do café, os mais prejudicados com a situação foram os grandes comerciantes: Francisco Theodoro se suicida. No romance, há menção por exemplo ao porto de Le Havre, cidade portuária francesa com ligação com a Normandia, com quem – após a baixa do café – diminuiu suas relações com o Brasil. Além disso, Francisco Theodoro era um conversador e um monarquista. Não se conformava com a chegada da República ao Brasil: “A maldita República acabaria de escangalhar o resto” (ALMEIDA, 2018, p. 11). No Rio de Janeiro, o movimento monarquista foi mais forte e só depois do governo Prudente de Morais a República se consolidou. Suas principais invectivas contra a República acontecem em um almoço no navio Netuno, quando há um debate sobre política. As mulheres não participam, pois não se interessam por isso. Na realidade, nunca foram levadas a se interessar por isso, porque nunca foram envolvidas. Plantação de café. Fonte: Pixabay. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 5 2.0 JÚLIA LOPES DE ALMEIDA Júlia Lopes de Almeida nasceu em 1862 e faleceu em 1934. Segundo a orelha do livro da edição de Via Leitura: Foi uma das principais escritoras de sua geração e uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras. Oriunda de um lar moderno, que estimulava a leitura, e casada com o poeta português Filinto de Almeida, encarou o ofício da escrita com diligência, alcançando uma obra prolífica e de inestimável qualidade. Começou sua carreira aos 19 anos, na Gazeta de Campinas, em uma época em que a participação da mulher na vida intelectual era muito rara. Por mais de trinta anos, colaborou com o jornal carioca O País. Apoiava o abolicionismo e a República. Ao longo de sua carreira, produziu contos, peças, romances, crônicas e livros infanto-juvenis. Acabou esquecida nas décadas de 30 e de 40, com o Modernismo, e teve seu nome excluído da lista da primeira reunião da Academia Brasileira de Letras. O motivo: a exclusão de mulheres da Academia, que só seria revogada em 1977, com a concessão de uma cadeira a Rachel de Queiroz. Seu marido ocupou a cadeira de número 3 da Academia Brasileira de Letras, entre os fundadores, sempre afirmando que sua esposa era a merecedora do posto. Em relação a seus romances, eis um breve esquema para a produção de destaque.1897 1899 1901 A viúva Simões A viúva Simões raras vezes saía de casa, administrando uma propriedade em que várias raças se encontravam, de ex-escravos a criados. A falência Francisco Theodoro veio de Portugal para tentar a vida no Brasil. Vive para o trabalho no seu armazém de café. Porém, reveses da vida irão atingi-lo, junto à sua família. Memórias de Marta Narrada em primeira pessoa e se passa num cortiço. Perdendo os pais, Marta passa a trabalhar como engomadeira. 1908 A intrusa O viúvo Argemiro contrata uma nova governanta, Alice, contra quem tenta resistir, mas por quem acaba por nutrir um sentimento. Será que os dois irão se envolver? O funil do diabo Trata-se de uma história sobre mistérios e roubos dentro de uma casa, num trama que une passado e futuro. 1914 1934 A Silveirinha Recém-casada, a protagonista tenta a todo curso converter o marido, que é ateu, ao Cristianismo. Infográfico: Showeet ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 6 2.1 JÚLIA DE ALMEIDA NA UNICAMP De 2007 a 2015, a Comvest publicava a lista de livros do repertório obrigatório em conjunto com a banca da FUVEST para o ingresso na Universidade de São Paulo (USP). Após 8 anos, a Comvest voltava a publicar uma lista de livros. Se observarmos os Manuais de Ingresso na UNICAMP, A falência de Júlia Lopes de Almeida não tem um grande histórico de recorrência de cobrança na Comvest. Por isso é que eu tive o prazer de organizar essas informações para vocês. É o seguinte: iremos treinar por meio da elaboração de questões autorais. Outra maneira de estudar é por meio da cobrança do gênero "romance" que a Comvest já realizou. MANUAL DE INGRESSO REPERTÓRIO DE ROMANCE COBRANÇA DE POESIA (1ª fase) COBRANÇA DE POESIA (2ª fase) 2016 Almeida Garret – Viagens na Minha Terra Aluísio Azevedo – O cortiço Jorge Amado, Capitães da Areia José de Alencar – Til Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas Mia Couto – Terra Sonâmbula Do repertório: Almeida Garret – Viagens na Minha Terra Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas Mia Couto – Terra Sonâmbula Do repertório: Almeida Garret – Viagens na Minha Terra 2017 Érico Veríssimo – Caminhos Cruzados Camilo Castelo Branco – Coração, cabeça e estômago Aluísio de Azevedo – O cortiço Mia Couto – Terra Sonâmbula José de Alencar – Til Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas Do repertório: Érico Veríssimo – Caminhos Cruzados Camilo Castelo Branco – Coração, cabeça e estômago --- 2018 Érico Veríssimo – Caminhos Cruzados Camilo Castelo Branco – Coração, cabeça e estômago Aluísio de Azevedo – O cortiço Do repertório: Aluísio de Azevedo – O cortiço Do repertório: Mia Couto – Terra Sonâmbula ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 7 Mia Couto – Terra Sonâmbula 2019 Érico Veríssimo – Caminhos Cruzados José Saramago – História do Cerco de Lisboa Camilo Castelo Branco – Coração, cabeça e estômago Do repertório: Camilo Castelo Branco – Coração, cabeça e estômago. Do repertório: José Saramago – História do Cerco de Lisboa 2020 Érico Veríssimo – Caminhos Cruzados Guimarães Rosa – Sagarana Júlia de Almeida – A falência José Saramago – História do Cerco de Lisboa José Saramago – História do Cerco de Lisboa Érico Veríssimo – Caminhos Cruzados (questão interdisciplinar com Artes Plásticas: Tarsila do Amaral – A negra) Júlia de Almeida – A falência 2021 Júlia de Almeida – A falência José Saramago – História do Cerco de Lisboa Raul Pompéia – O ateneu Júlia de Almeida – A falência (1ª aplicação) Júlia de Almeida – A falência (2ª aplicação) Júlia de Almeida – A falência 2022 Júlia de Almeida – A falência Raul Pompéia – O ateneu Paulina Chiziane: – Niketche: uma história de poligamia ? ? Em relação à Júlia de Almeida, ela caiu pela primeira vez em 2020 e continuará sendo cobrada até 2023. Foi a única cobrança de romance na 1ª fase em 2021, tanto na primeira aplicação quanto na segunda, e também na 2ª fase. Podemos perceber que desde 2016 a UNICAMP já tem um perfil de cobrança de literatura internacional, cobrando literaturas de língua portuguesa e africana em Língua Portuguesa. Além disso, diferentemente da cobrança de lírica, em relação aos romances apenas caiu o que foi cobrado no repertório obrigatório nesses anos triados. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 8 03. A FALÊNCIA Pré-leitura • ENQUADRAMENTO. A falência é um livro que foi escrito em um momento de transição: virada do século XIX e início do século XX. Por isso mesmo e por sua temática, Por isso mesmo e por sua temática, o seu enquadramento se torna incerto, uma vez que foi escrito no período correspondente ao movimento literário do Realismo – tendo o texto inclusive algumas de suas características como a denúncia social, o psicologismo e a verossimilhança –, mas foi publicado no período da segunda geração do movimento Pré-Modernista, movimento formal e objetivo com o qual ela não chega a se relacionar. Outro movimento presente nas características, como representação do torpe, grotesco e a animalização, é o Naturalismo. • RELAÇÕES DE GÊNERO. A falência é um livro que foi escrito por uma mulher, numa época em que mulheres raramente escreviam. Júlia de Almeida tinha talento, mas foi obscurecida pelo trabalho de seu marido. Logo, suas obras constantemente costumam problematizar relações entre homens e mulheres, seus comportamentos e seus respectivos tratamentos na sociedade. • DESIGUALDADE SOCIAL. Além da desigualdade entre os gêneros, há claramente desigualdade social, na diferença entre a vida que levam os patrões e os criados. Isso é resquício das práticas colonialistas no Brasil, e fator remanescente até os dias de hoje. A discriminação social perpassa também a de raça e a de classe. • METALINGUAGEM. A própria Camila lê romances fin de siècle, os quais fazem-na pensar na sua própria situação de adultério com doutor Gervásio. Ela não é uma personagem muito inteligente, mas ainda assim é capaz de identificar a desigualdade entre os gêneros e se sente injustiçada: os homens traem mais que as mulheres e são elas que são julgadas. Quadro de personagens Francisco Theodoro Português, ambicioso comerciante, já muito rico, mas cegado com exagerada ambição. Casado com Camila, mas já fora infiel a ela. Vive unicamente para odiar e tentar superar o seu arquirrival: Gama Torres. Ele é um workaholic (viciado em trabalho). Camila “As Gomes acharam-na muito bonita e, intimamente, espantavam-se de não verem nela o menor sinal de decadência. Aquela pele alva e macia, aqueles cabelos negros sem um fio branco, aqueles dentes perfeitos e brilhantes, sem um toque sequer de ouro que atestasse a passagem dos anos e das mãos dos dentistas, faziam-na parecer sempre a mesma Camila dos tempos da Lapa, em que d. Inácia a conhecera”. No início, não amava o marido, mas começou a amá-lo com o tempo. Tinha um relacionamento adúltero com o doutor Gervásio. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 9 Mário Primogênito, mimado, mantinha relações com uma francesa que o extorquia e era reprimido pelos pais e pela sociedade. Porém, extremamente astucioso, sabe virar as situações a seu favor e a manipular. Acaba por se casar com Paquita, com quem vai para a Europa e até o final vive influenciando as escolhas da mãe. Ruth Outra filha do casal Francisco e Camila. Ela é diferenciada,sonhadora, gosta de estrelas e de subir em árvores, hábito pelo que é criticada, por isso não ser “coisas de mulher”. Gosta de tocar o violino e tem talento para isso. Idealista, porém, ao final, vive com um pé na realidade e acaba por dar aulas de música. Raquel e Lia Irmãs gêmeas e com nomes bíblicos; vivem na barra da saia da mãe, procurando por ela, interrompendo-a no seu relacionamento com doutor Gervásio, não se sabe se intencionalmente, conscientemente ou não. Têm 6 anos e são muito apegadas à mãe. Têm nomes bíblicos: duas esposas do patriarca Jacó, sendo que Raquel é a esposa bonita, amada e privilegiada, ao passo que Lia é vesga e preterida. Nina Filha bastarda de Joca, irmão desviado de Camila. Era criada junto aos filhos, tinha 10 anos e já era como se fosse uma criada, uma copeira da família. Amava o primo Mário, com quem queria casada, mas era preterida e desprezada por ele e sofria por isso. Muito dedicada, mas também submissa – entendida que vivia para sofrer. Doutor Gervásio Médico de meia idade que frequentava a casa e mantinha um relacionamento adúltero com Camila. Não se sabe a procedência dele e o motivo pelo qual ele nunca se casara. Na realidade, ao fim se descobre que ele já era casado, mas, a mulher – ao descobrir sobre o adultério – não consentia que eles se divorciassem, mantendo-o preso. Capitão Rino Ele e a irmã Catarina comandam o navio Netuno e ele está apaixonado por Camila. No entanto, nunca chega a tomar nenhuma atitude, pois é muito tímido. Após uma viagem aos Estados Unidos, volta mais malicioso e acaba por perder o interesse por Camila. Noca e Dionísio Empregados da casa. “Noca tinha ascendência sobre a criadagem, que a tratava por dona. Mesmo entre os brancos a palavra da sua experiência era ouvida com acatamento. Ela era a mulher desembaraçada, a doceira dos grandes dias de festa, a única das engomadeiras capaz de satisfazer as impertinências do dono da casa; ninguém sabia como a Noca preparar um remédio, um suadouro, (...) nem tão bem escolher o peixe, preparar um pudim ou vestir uma criança” (LOPES, 2018, p. 75-76). Outras personagens • Tias Rodrigues: dona Joana e dona Itelvina, junto com a sua criada negra Sancha, “sempre de olhos inchados e a roupa em frangalhos” (ALMEIDA, 2018, p. 116). • João Ramos, Lemos, Negreiros e Inocêncio Braga: colegas de Francisco Theodoro. Inocêncio inclusive queria se tornar uma espécie de sócio, mas o responsável por levá-lo à falência. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 10 3.1 RESUMO ANALÍTICO O romance A falência começa com uma descrição da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX/início do século XX. No capítulo I, os aspectos marcantes eram a mecanização e a mistura de raças trabalhando no comércio de café: Uma mistura de pessoas, raças e cores desenham um projeto nacional: a identidade brasileira mestiça e uma força-tarefa em relação ao trabalho que erguerá a economia do Brasil. Mais um elemento que pode ser destacado é a adjetivação. Apenas nesse trecho, podemos destacar: “ameaçador”, “brutas”, “compacto e esbaforido”, “fantástica”, “cabeludos”, “sujo”, “reluzentes” e “esbugalhados”. O excesso de descrição aproxima o estilo da obra ao movimento literário do Naturalismo. Outra característica que contribui com essa aproximação é a animalização: “Os carregadores serpeavam por meio de tudo aquilo, como formigas em correição, com a cabeça vergada ao peso da saca, roçando o corpo latejante nas ancas lustrosas dos burros” (ALMEIDA, 2018, p. 5, grifo meu). A vida do trabalhador era mecânica, assim como os meios de transporte haviam se mecanizado: o movimento do bonde e o seu frenesi se equiparam ao ritmo alucinado de trabalho. Tudo funcionava como se fosse uma máquina. Pode ser mencionado igualmente como um fator marcante a ordem inversa das sentenças, como é o caso em “À porta do armazém de Francisco Teodoro era nesse dia grande o movimento”. Adjunto adverbial verbo adj. adv. predicativo sujeito Nesse sentido, o livro começa essencialmente descritivo, pois se trata de um capítulo sobre a descrição do armazém de Francisco Theodoro e do trabalho que se desenvolvia ali. A rua é personificada, nela há vida própria: “Tudo era feito numa urgência, obrigada a grande movimento” (ALMEIDA, 2018, p. 7). Há uma importante distinção entre as pessoas que se debatiam com o trabalho braçal e aquelas a quem era dedicado o trabalho silencioso. Isso era indicativo de uma diferença de classe. Entre o fragor das ferragens sacudidas, o giro ameaçador das rodas e os corcovos de animais contidos por mãos brutas, o povo negrejava suando, compacto e esbaforido. (...) E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa fantástica, atirar as sacas para o fundo do caminhão, levantando no baque nuvens de pó que os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabeludos mal cobertos pela camisa de meia enrugada de algodão sujo: outros negros, nus da cintura para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 11 (Questão Autoral – Professora Luana Signorelli – 2019) Em uma sala ampla, quadrada, de madeiras velhas e papel barato, o Senra, guarda-livros, escrevia em pé, junto à escrivaninha colocado ao centro. Em outra carteira trabalhavam mais dois ajudantes, um velho, o Mota, de sorriso amável e modos submissos; e o outro, um moço bilioso de barbinhas pretas, mal plantadas em um queixo quadrado. Nessa sala o trabalho era silencioso. As penas não paravam, mal dando tempo às mãos para folhearem os livros e as diversas papeladas. Diziam-se frases sem se levantar os olhos da escrita, e as perguntas eram apenas respondidas por monossílabos. Júlia Lopes de Almeida. A falência. O trecho acima integra uma descrição sobre a) os personagens que trabalham no armazém de Francisco Theodoro, nas suas atividades cotidianas, diferenciadas pela classe e pela desigualdade social. b) o protagonista Senra, o qual, embora rico proprietário de terras e administrador geral, fazia questão igualmente de realizar o trabalho braçal. c) a mulher do protagonista, Catarina, que representa uma mulher à frente de seu tempo, empoderada e trabalhadora, ajudando o marido no armazém. d) a experiência amorosa de Camila com o doutor Gervásio, referente ao relacionamento adúltero entre os dois. Comentários A inspiração para a elaboração dessa questão foi a cobrança de romance (no caso Coração, cabeça e estômago do romântico Camilo Castelo Branco) da prova UNICAMP-2019. Atenção: a prova da UNICAMP tem a tendência de cobrar verificação de leitura e essa questão é um típico caso dessa cobrança. Era preciso conhecer personagens e seus respectivos nomes, de modo a acertar na análise. Alternativa A: correta – gabarito. No caso, há uma descrição de tipos de trabalhos diferentes: o trabalho braçal fora descrito anteriormente e no trecho em questão se aborda o trabalho intelectual, de contadores e administradores, realizado em escritório e em silêncio. O trabalho silencioso era uma vantagem de classe, se comparado ao trabalho barulhento da rua. Alternativa B: incorreta. Senra é uma personagem apenas secundária, um dos exemplos dos tipos que trabalhavam no escritório. Porém, o protagonista do livro é Francisco Theodoro, dono do armazém, ambicioso e avaro que jamais se prestaria ao trabalho braçal por orgulho. Alternativa C: incorreta. Não há personagens femininas nesse trecho, embora elas sejam importantes no romance como um todo, por abordarem a problematização da representação da mulher. Catarina, é sim, uma mulher empoderada, leitora e defensorado voto feminino; porém, ela é irmã do capitão Rino. A esposa do protagonista é Camila. Além disso, Catarina não é trabalhadora no armazém – ela ajuda o irmão a cuidar da embarcação Netuno e cuida de um jardim. Alternativa D: incorreta. Cuidado: a informação está correta, mas ela não se aplica ao trecho em questão. Gabarito: A. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 12 Quando conhecemos o gabinete de Francisco Theodoro, conhecemos um homem metódico, preocupado com seu trabalho, cheio de suas manias, um escritório cheio dos seus detalhes e preocupado em transparecer a sua hierarquia. São essas as características de sua personalidade. Logo adentram no recinto seus colegas: João Ramos, Lemos, Negriros e Inocêncio Braga. Entre eles se trava uma conversa, tornam-se claros alguns valores da época, como o movimento monarquista – a defesa e a manifestação da preferência pela Monarquia em detrimento da República. Conversam sobre Gama Torres, personagem que não aparece no romance presencialmente, apenas por conversas, para atiçar o ódio, a raiva e o ciúmes de Francisco Theodoro. Esse sentimento – real ou apenas imaginário, virtual – é o que irá consumi-lo, o verdadeiro motivo por levá-lo à ruína. Sobre Gama Torres, conversam que ele leva jeito para negócios, que merece tudo o que conquistou. Há um debate atual sobre meritocracia. O fato é que ninguém ascende do nada. Francisco Theodoro está argumentando que Gama Torres só cresceu por causa da ajuda do sogro, naturalmente. Porém, os colegas insistem em elogiá-lo e a chamá- lo de “o nosso Rotschild”, isto é, o Rotschild brasileiro. Há aí uma alusão à família judia que se destacou no modo de produção do capitalismo. Naquele meio, predomina a fofoca, como meio de transmissão das informações e notícias de uma família a outra. Consiste na prática de falar dos outros pelas suas costas. Além disso, percebe-se em seus costumes o eurocentrismo – a preferência por coisas europeias: “– E uma inteligência superior! [em relação a Gama Torres] suspirou o Ramos, esticando com ambas as mãos o colete sobre a barriga arredondada. Depois, refestelando-se no sofazinho austríaco, teve uma ponta de censura para as coisas desta terra: o governo era fraco, o povo indisciplinado. a cidade infecta” (ALMEIDA, 2018, p. 10). Sobre os colegas reunidos ali, eram tipos preocupados com status, com prestígio social, que valorizavam tudo o que era exterior em relação ao que era brasileiro, a não ser que rendesse lucro, como o café. Aí, então de repente se tornavam nacionalistas. A desigualdade de classe/raça se verifica nos detalhes, como o ponto de vista: para Francisco Theodoro, observando seus empregados, a canção que cantavam era bonita: “Francisco Teodoro demorou-se um bocado na área vendo ensacar. Passou-lhe pela lembrança o tempo dos escravos, quando esse trabalho era exclusivamente feito pelos negros de nação, com a sua cantilena triste, de africanos. Era mais bonito” (ALMEIDA, 2018, p. 13). • Predomínio numa sociedade, organização, grupo, ocupação etc. daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem dotados intelectualmente etc.); classe ou grupo de líderes num sistema desse tipo; sistema de recompensa e/ou promoção (p.ex., num emprego) fundamentado no mérito pessoal (dicionário Houaiss). Meritocracia ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 13 No capítulo II, Francisco Theodoro passa por um trabalho de rememoração, que não deixa de ser um trabalho intelectual: ele relembra a sua infância, como viera superambicioso para o Brasil. Tudo o que ele pensa é no sentido de glorificar as suas ações: ele se sente muito digno do cargo que conquistou, julga- se merecedor. Sabemos que a sua história de fato foi dura e sofrida (na realidade, obcecada); ainda assim, só conhecemos o seu lado da história, o que nos faz desconfiar um pouco do exagero do seu relato. Precisamos ficar um pouco com a pulga atrás da orelha. Isso acontece porque o narrador se utiliza de um procedimento comum aos romances da época: o discurso indireto livre – isto é, um procedimento estilístico no qual é permitido entrar na cabeça do personagem e revelar seus pensamentos a partir daí. Discurso indireto livre “Além da variedade de discursos diretos e indiretos, a narrativa de ficção, a partir das últimas décadas do século XIX, utiliza um tipo de discurso que consiste na combinação dos já existentes, misturando valores estilísticos de um e de outro: é o discurso indireto livre, que recebeu denominações diversas dos autores que o estudaram (discurso velado, direto impropriamente dito, discurso vivido). (...) O discurso indireto livre, em muitos casos, não deixa claro quem está com a palavra, se o narrador ou a personagem. O que permite distinguir é estar sendo relatado o pensamento da personagem, o qual é dela e não do narrador; por mais que este com ela se identifique. Este tipo de discurso tem, portanto, um cunho acentuadamente psicológico, daí a sua voga no romance realista que pretendia apresentar com maior profundidade o mundo interior das suas criaturas: seus estados emotivos, devaneios, reflexões, perturbações alucinatórias, autoanálise etc. O narrador podia ficar por trás delas, em atitude neutra ou irônica”. Fonte: MARTINS, 2011, p. 251, grifos meus. Assim, Francisco Theodoro pensava em como a sua infância fora ruim e em como ele não ia querer aquilo para filho seu. Para ele, é muito importante a projeção: filho seu iria continuar a obra de seu trabalho, seria esse o grande legado de sua vida. Claro, se o seu filho fosse homem, porque o trabalho só é digno ou bom para os homens manterem as mulheres segundo a sua opinião. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 14 Isso é uma reflexão que ocorre quando o amigo Mattos o levara para conhecer uma moça, filha de dona Emília e irmã de Sofia. A moça se chama Camila e irá se tornar a futura esposa dele. Antes de se casarem, ela era uma moça pobre e cosia para ajudar a família. Inclusive, morava na favela: morro do Castelo. Foi nessa cena que ele a surpreende e logo se apaixona pela beleza dela. Depois de se casarem, a família dela parte para o Sergipe. Eles se mudam para a rua da Candelária, porém, um lugar onde Camila claramente não estava satisfeita: ela se queixava que não tinha vista para o mar. Se ela não estava satisfeita, ele tampouco: ele lhe era infiel com uma mulher que só conhecemos o nome: Sidônia. Então, há um salto temporal: já vemos o casal em sua nova casa, um palacete no Botafogo, com sua família completa: o primogênito privilegiado Mário, a filha idealista e violinista, Ruth, e as gêmeas com nome bíblico – Raquel e Lia. Há mais um elemento também: um irmão de Camila – Joca – era um boêmio que tivera uma filha bastarda, Nina, a qual morava no casarão também e não era bem tratada como se fosse da família, mas sim como se fosse uma criada. Nessa cena doméstica, conhecemos o amante de Camila – doutor Gervásio. Após de curar Ruth quando ela teve tifo na infância, a família se torna eternamente grata a ele, recebendo-o sempre em sua família. Camila torna-se grata até demais, e começa a manter com ele relacionamento adúltero, embora seu marido tenha a traído antes mesmo de ela o trair. Gervásio então é descrito assim: “Era um homem magro, nervoso, de quarenta e três anos, trigueiro, e apurado na toilette. Era ligeiramente calvo, tinha um olhar de que as lentes de míope não atenuavam a agudeza, e um sorrizinho irônico, que lhe mostrava os dentes claros e miúdos como os dos roedores” (ALMEIDA, 2018, p. 19). E as contradições são evidentes: no palacete,há o capitão Rino, um tipo rude e tímido que estava apaixonado por Camila, mas não era correspondente por ela. Ele se contrasta com o marido dela, porque ele se interessa por música e Francisco Theodoro não. Francisco Teodoro comoveu-se com a ideia de que aquela mulher, talhada para rainha, passasse os dias a picar os dedos na agulha ou a calejar as mãos com o uso da vassoura ou do ferro. Trabalhar! trabalhar é bom para os homens, de pele endurecida e alma feita de coragem. Olhou para a moça com veneração. Só o capitão Rino parecia escutar a música, olhando de esguelha para Camila. Abominava a confiança que ela dava ao outro, ao magro dr. Gervásio, ali tão agarrado às suas saias, dizendo-lhe coisas que a faziam sorrir. Tudo naquele homem o irritava: o seu luxo, o seu tipo escanifrado e o seu ar de ironia, às vezes perversa. outras insulsa* [insossa]. Francisco Teodoro, nunca interessado por coisas de arte, nem mesmo pela música, quebrava amiúde as reflexões do capitão Rino, interrogando-o sobre assuntos do Norte, de puro interesse comercial. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 15 O arsênio (elemento químico cuja sigla é As) é diferente do arsênico, um composto química cuja fórmula é As2O3. Este último era utilizado como veneno, proporcionando uma morte lenta. Era usado em assasssinatos, pois antigamente era difícil rastrear os seus vestígios. Porém, no caso, é ambíguo o seu uso: não sabemos se Sancha queria envenenar suas patroas ou se envenenar. Não só capitão Rino, mas também doutor Gervásio se interessava pelas artes e pela mitologia. O doutor Gervásio é aquele que acumula as funções de literato, filósofo e médico. Outra personagem interessante é Noca. Ela é uma criada mulata que manifesta muitas crenças populares: “Sonhar com morte é sinal de saúde.” (ALMEIDA, 2018, p. 25). Enquanto isso, o primogênito privilegiado Mário continuava sendo mimado. A ele são dispendidos luxos que as irmãs não tinham. Mesmo com 19 anos, todo mundo o desculpava, acreditava que ela ainda “se endireitaria” e enfim ocuparia o tão sonhado lugar destinado a ele na família. Porém, o fato é que ele não está nem aí para isso e frustra as opiniões gerais: ele se envolve com uma francesa que o extorque e consome o dinheiro da família. Ele dá desculpas, diz que vai ao teatro, não comparece às refeições de família e logo foge para estar com ela. No capítulo III, aparecem mais personagens: são as senhoras Rodrigues, uma muito religiosa e outra muito severa, que são obrigadas a viver juntas, porque não se casaram. São velhas avaras, mas são parentes da família, e de vez em quando são visitadas. Morrem de inveja de Camila e não perdem oportunidade para criticá-la, como por exemplo, dona Itelvina: “Tanta gente com fome e tanto dinheiro esperdiçado em vestidos de crianças! Mila teve sempre propensão para o desperdício... Bonitos aqueles vestidos! onde os compraram?” Ou seja, trata-se de uma riqueza que não causa só inveja, mas indignação. Mas o fato é que Camila também ascendera do nada, mas ela pôde contar com a sorte de um casamento, algo o que as velhas não tiveram. E, naturalmente, o destino e o sucesso da mulher daquela época dependiam diretamente de um bom casamento. As senhoras ainda criticam que Camila não vai na igreja. Em suma, que Camila não leve por vontade própria a vida que elas foram obrigadas a ter. Nesse meio termo, conhecemos Sancha, uma criada negra, muito mirrada, dessas velhas e muito maltratada. Ela pede para que Noca, uma criada que fora visitá-las, compre arsênico para ela. A UNICAMP pode cobrar questões interdisciplinares, pois é este o perfil da banca. Na primeira fase de 2019, foi cobrado um poema chamado “Lágrima de preta” do poeta português António Gedeão, relacionando Literatura e Química. Sobre personagens melindradas, Nina era uma agregada que vivia na casa quase que de favor, não fazendo parte diretamente da família, mas da vida boêmia de um irmão ausente de Camila, Joca. No entanto, ela é perspicaz e nota coisas na família que outros parecem não ver, como, por exemplo, o adultério de Camila com doutor Gervásio e que o primo Mário não quer se casar com ele. Esse fato, aliás, faz a moça sofrer muito e se sentir indigna. Narra-se como Camila começou o adultério com doutor Gervásio. Lógico que o envolvimento seria diferente entre homem e mulher. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 16 A discussão sobre o machismo faz parte de atualidades. Segundo o Houaiss, machismo é exagerado senso de orgulho masculino; virilidade agressiva; comportamento que tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem. Nota-se primeiramente ironia na pontuação: as reticências deixam no ar algo que não foi pronunciado, foi velado pelo adultério, omitem o que verdadeiramente houve na relação. Percebe-se também que este doutor Gervásio é um tanto quanto presunçoso; esnobava Camila no início para depois fazê-la sucumbir ele. Trata a mulher como se fosse obra dele, como se ele a houvesse criado e ela não pudesse se formar por si própria ou mudar de gostos por si própria. Os homens da vida de Camila tendem a ser machistas, isto é, conservadores e tradicionalistas. Isso se tornar claro por meio de suas falas e comportamentos. Camila parece tender a se atrair por homens assim. Essa é uma colocação de seu marido, Francisco Theodoro: “ Sei, sei... a vida foi feita para as mulheres. E ainda elas se queixam! Só se fala por aí em emancipação e outras patranhas... A mulher nasceu para mãe de família. O lar é o seu altar; deslocada dele não vale nada!” (ALMEIDA, 2018, p. 37). O tratamento das filhas é diferenciado em relação ao de Mário. Enquanto ele era irrefreável – fazia o que quisesse, mesmo que a família o reprovasse – as filhas deveriam ter uma educação pudica e formal. Ruth é educadas nas artes; porém, ela gosta de subir em árvores, pelo que é criticada (“isso não é coisa de mulher”). Ela gostaria de ser pirata, se fosse homem. E não tem medo de expor essas suas opiniões à família, ainda que riam dela e não a levem a sério. Ela é diferenciada e curiosa: mesmo jovem, constituiu um tipo de perfil de mulher diferente ao da época. A entrada fora vitoriosa; justificava o ascendente do médico na família... Nem fora no começo, que ele amara a Camila. Nesse tempo ela não sabia ataviar-se, nem fazer sentir a sua formosura. Tinha os modos de uma boa mãe tranquila, muito banal, com discursos longos e choradeiras sobre a morte muito recente de uma filhinha, que a tornavam fastidiosa. As gêmeas, então de meses, andavam sempre pendentes do paletó branco da mãe. Gervásio odiava aqueles casacos e aquelas queixumeiras insípidas. Mas esse tempo de prostração foi passando, e ela ascendeu pouco a pouco, vagarosamente, para a formosura e para a graça. A evolução não foi rápida, mas refletida e suave, como impelida por sopros delicados. Quando o médico percebeu quanto Camila mudava, e que essa transformação lenta e visível se fazia ao influxo dos seus gostos, da sua convivência e do seu espírito, começou a observá-la com redobrada atenção, cultivando o prazer de a tornar outra, como que uma obra sua. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 17 Outra obra do repertório obrigatório da UNICAMP 2022 que cobra a temática da favela (comunidade): Sobrevivendo no Inferno dos Racionais MC’s No capítulo IV, o doutor é Gervásio é chamado por Francisco Theodoro para tratar de uma enfermidade em seu colega, o velho Motta. Se Francisco Theodoro desconfia da traição,ao menos não aparenta. A relação entre eles se baseia basicamente na troca de favores. Um empregado, Ribas, é encarregado de acompanhar Gervásio até a casa do tal senhor doente. Há uma importante descrição do ambiente: a favela: uma cidade dentro da sua cidade, com suas leis, seu comércio, pois, afinal, ela também participa da economia. CENA DE LIVRO "Num banquinho de pau, e toda derreada sobre os joelhos, uma baiana de ombros roliços e dentes sãos vendia gergelim, mendubi, batata doce e tangerinas aos marinheiros chegados essa manhã do Norte. Pelo grande portão em arco, viam-se lá dentro das docas os caminhões seguirem pelos trilhos para o cais, e as galerias em cima, por cujas rampas as sacas, apenas impelidas, desciam vertiginosamente. (...) Aquela rua Funda, subindo estreita pela encosta do morro da Conceição, ladeada de casas de altura desigual, de onde em varais espetados pendiam roupas brancas recentemente lavadas, desenhando-se negra no fundo muito azul do céu, lembrava-lhe uma viela de Nápoles velha, onde o pitoresco não é por certo maior, e de que ele tinha uma aquarela em casa". (ALMEIDA, 2018, p. 46-47). ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 18 Como numa obra naturalista, há nivelamento sociológico: doutor Gervásio, considerando-se superior em relação àquele meio no qual está passando, o tempo inteiro olha e julga tudo a seu redor como baixo, grotesco, torpe e degradante. Logo, notamos a partir de suas colocações que ele não cursou Medicina por amor ou vocação, mas puramente por status, pois trata o Motta e sua família com descaso, desprezo e repugnância. E é quando acontece um baque na sua realidade: ele encontra com uma das senhoras Rodrigues, dona Joana, que o acusa de adultério, revela o seu segredo e o faz pensar em si mais do que no ambiente. Há o movimento do objetivo rumo ao subjetivo. (Questão Autoral – Professora Luana Signorelli – 2019) – Sim, vá falando e não me olhe com esses olhos de motejo. Pensa que eu não sei de tudo? O único cego ali é o pobre do marido, que não merecia que lhe fizessem isso. Eu estou cá no meu canto, mas sei do que se passa, e toda a gente sabe, infelizmente... Não é por falta de eu pedir a Nossa Senhora do Rosário, minha madrinha... mas os pecados vêem-se, saltam aos olhos até. Já me aconselhei com o padre Mendes, sem dizer de quem se tratava, está claro, e pedi-lhe que rezasse para que isso acabasse em bem... Ele é um sacerdote, deve ser atendido... enquanto que eu, pobre pecadora... – Mas a senhora está louca, d. Joana?! balbuciou o médico, mal disfarçando a sua ira; não a entendo! Júlia Lopes de Almeida. A falência. Essa crise, que transforma a relação da personagem com o mundo, a) nasce do colapso sofrido quando o marido de sua amante, o comerciante Francisco Theodoro, descobre a traição da mulher. b) revela o conflito vivido por dona Joana, a qual inveja Camila, uma vez que a senhora estava apaixonada por doutor Gervásio, mas sentia que a outra o roubava dela. c) constitui, para a personagem, um choque profundo com a realidade, que o faz direcionar a sua atenção do mundo exterior para o interior e revisar suas próprias ações. d) remete ao desequilíbrio experenciado entre homens e mulheres, já que um dos temas centrais desse romance é justamente o machismo. Comentários A inspiração para a elaboração do comando dessa questão, bem como de suas alternativas, foi a prova UNICAMP-2017. Consiste numa questão de verificação de leitura, mas na qual convém prestar atenção aos verbos da alternativa. Alternativa A: incorreta. Francisco Theodoro, se sabe da traição, não aparenta isso exteriormente. Ou acoberta as suas suspeitas muito bem ou parece não se importar. É um sujeito que vive para o trabalho e pouco se importa afetivamente com a própria família, até mesmo com a mulher. Parece verdadeiramente indiferente, apático, que não se importa. Alternativa B: incorreta. Dona Joana é uma senhora que inveja a riqueza de Camila, sua abundância e sua extravagância em contraste com a sua própria pobreza, e não os relacionamentos dela. Alternativa C: correta – gabarito. Gervásio caminhava na rua de uma comunidade (favela) junto com Ribas que lhe mostrava o caminho da casa de Motta, um enfermo que ele deveria tratar. Gervásio percorre o ambiente o julgando o tempo inteiro e se sentindo superior. A sua arrogância é abalada ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 19 com a chegada da personagem dona Joana, cuja presença o incomoda, pois ela o revela o seu segredo na sua cara – seu relacionamento adúltero com Camila. Isto é, se ela sabia, outros poderiam sabê-lo também. Dúvidas e questionamentos o consomem, de modo que ele se vê obrigado a repensar suas ações e seus comportamentos em público. Alternativa D: incorreta. Cuidado: o machismo é sim, um dos temas do romance, e ele é importante, mas a sua abordagem é sutil, periférica, não chegando a ser exatamente central. Ainda que haja uma alusão ao machismo nessa parte, ela não está presente nesse trecho explícita, mas sim um pouco depois dele. Doutor Gervásio medita que uma exposição de um adultério, desde que ele seja consumado com uma mulher linda e desejada, é favorável ao homem (seria sempre danoso à mulher). Em sua juventude, ele até gostaria de tal exposição; mas em sua idade isto o incomodava e o fazia refletir. Gabarito: C. No capítulo V, a criada Noca vai chamar a atenção de Mário, pois ele está dando sérios desgostos para a família. A mãe tenta chamar a atenção de Mário, mas em vão; ele sabe como dissuadi-la e manipulá-la. Sabe de seu adultério com doutor Gervásio e é com essa arma que ele joga. No fim, consiste numa família rica, mas envolvida em relacionamentos afetivos malogrados. Mário consegue machucar a mãe e Camila tem a sua consciência dilacerada: a de uma mulher que viveu para o filho e não para si. Então, seguem as suas lamentações, a sua vitimização (queria ser surda), porém o fato foi que ela mesma criara aquela situação, por meio de sua tendência de mimar Mário – primogênito, amado, querido, esperado, desculpado mesmo quando faz bobagem. Assim, ele cresceu com um comportamento insolente e arrogante, apesar do qual todo mundo continua o amando e admirando. Noca, criada também despeitada por Mário, gosta dele desde a infância e o acha muito bonito. A prima Nina alimenta sonhos de se casar com ele. Seu amor não é correspondido, pois Mário a despreza, inclusive a maltrata, desde criança, pois batia nela com chicote. A família acha tudo normal, natural e Mário recomeçou a passear, com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa. Camila, ainda na poltrona, com as costas para a janela, os cotovelos fincados nos joelhos e o queixo nas mãos, procurava uma palavra com que pudesse convencer o filho da sua inocência. Tudo lhe parecia preferível àquela humilhação. Daria a luz dos seus olhos, - ah, antes ela fosse cega! para que Mário a julgasse pura, muito digna de todo o respeito das filhas, muito honesta, toda de seu marido e das suas crianças... Compreendia bem que o sentimento e a imaginação nas mulheres só servem para a dor. Colhem rosas as insensíveis, que vivem eternamente na doce paz; para as outras há pedras, duras como aquelas palavras do seu filho adorado. Antes ela fora surda: não as teria ouvido! ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 20 sempre o desculpa, dizendo que “é a mocidade”. Como se a crueldade pudesse ser algo da juventude somente, e não do caráter. No capítulo VI, há uma cena importante: a família irá almoçar na embarcaçãoNetuno (seguem para lá na lancha Aurora). Trata-se do negócio que capitão Rino administra junto à sua irmã, Catarina, que acabam conhecendo nesse passeio. A conversa é acirrada: enquanto Francisco Theodoro se mostra eurocêntrico, capitão Rino defende que o brasileiro é bom. Há um momento de intertextualidade (diálogo com outras obras): doutor Gervásio nota na embarcação uma série de livros, uma verdadeira biblioteca: Virgílio, Homero, Dante, Camões, Gonçalves Dias, Shakespeare. Olha para tudo aquilo sem entender, pois sempre julgara Rino inferior, isto é, um bruto iletrado. É citado um verso de uma dessas obras El Cid, herói espanhol do século XI que lutou contra os árabes: “L’amour n’est q’um plaisir, l’honour est um devoir” (o amor é apenas um prazer, a honra é um dever). Catarina, a irmã do capitão Rino, é a única mulher na mesa que conversa, isto é, toma parte na conversa. Fala de sua origem, cuja bisavó era dinamarquesa, o que explica seus cabelos loiros e os de seu irmão. Porém, fala que se sente muito brasileira e aí há a problematização da identidade nacional, fruto de uma mestiçagem de imigrantes dos mais variados. Nesse episódio, o adultério de Camila torna-se claro aos olhos do capitão Rino e de sua irmã, por causa dos gestos e comportamentos – o médico se revela ciumento em relação à Camila, pois percebe que Rino está apaixonado por ela e tentando se aproximar dela. Nesse dia, a conversa também permeia a política. É claro que Francisco Theodoro irá defender um sistema de governo como o Monarquismo e atacar diretamente a República. Fora Catarina, nenhuma mulher participa do debate, como se a palavra fosse de exclusividade masculina. A conversa caminha até mesmo rumo aos direitos das mulheres – Catarina é a favor da emancipação das mulheres, acredita que elas devem votarem se quiserem. Francisco Theodoro se mostra um conservador, e sua mulher ainda concorda. Daí percebemos que a sua submissão tem um pé na ignorância e que toda aquela biblioteca – afinal – poderia ser na verdade de Catarina, mulher que vai se revelando extremamente inteligente. CENA DE LIVRO “A mesa, sentaram-se, ao acaso, à exceção de Camila e do marido, a quem o capitão designou lugares. O médico escolheu assento entre Catarina e Ruth (...) O criado ia e vinha do buffet para a mesa, com a serenidade sobranceira de um ente necessário. Na sala, longa e estreita, eles ocupavam uma das mesas compridas. a da esquerda, a mesma ocupada sempre em viagem pelo capitão; a outra, vazia e sem toalha, mostrando o verniz negro do oleado, dava um aspecto tristonho ao compartimento.” (ALMEIDA, 2018, p. 65). ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 21 Catarina tem consciência de que por muito tempo as mulheres viveram à sombra dos homens; Camila só comprova que ela ainda é uma dessas mulheres. Francisco Theodoro agride as mulheres: diz que elas são medrosas e fracas. Sua mulher, percebendo ou não, acaba concordando com ele. Apenas Catarina tem a coragem de rebatê-lo: “As mulheres são mal compreendidas. Vejam aquela gravura. Está ali um homem desafiando o perigo, avançando na treva com a espada em punho, e a mulher mal o alumia com a luz da vela, cosendo-se amedrontada às suas costas!” (ALMEIDA, 2018, p. 68). No entanto, Camila tem certa consciência sim da diferença de tratamento que homens e mulheres têm em relação um ao outro. Porém, ela só percebe quando isso lhe diz respeito, remete-se a seus relacionamentos. Ela chega a refletir: “Como os homens são orgulhosos e injustos!” (ALMEIDA, 2018, p. 69). Mesmo submissa e medíocre, ela ainda tem certa consciência, mas sem força de expressão. Permanece calada e constantemente é manipulada pelos outros (pelo filho Mário, por exemplo) e não consegue se impor, sequer argumentar, em uma discussão. No capítulo VII, Francisco Theodoro sente-se rico, olhando seus trabalhadores trabalharem por ele, ou seja, lutar, sacrificar-se, fazer o trabalho braçal, para que ele pudesse enriquecer. Em sua fala, há traços naturalistas: julga os trabalhadores negros (como forma de rebaixamento, animalização). Nota-se que além de machista ele é racista também. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 22 Mesmo ele, que se julga tão bem-sucedido, workaholic (pessoa que vive para o trabalho, viciado), lamenta a suas projeções frustradas e compreende que não pode simplesmente passar o seu legado para um filho como Mário, que ele próprio julga indecente. Naturalmente, como o resto das filhas são mulheres, ele nem chega a pensar na hipótese de passar o seu negócio para elas. Nesse episódio, percebendo a melancolia do colega de não ter a quem legar seu negócio, Inocêncio se aproveita da situação e começa a lançar propostas: “Inocêncio aconselhou-o a que acedesse. O cargo era de prestígio. Depois, o tempo efervescente do jogo tinha passado. As transações agora faziam-se com mais segurança. Também ele tinha em formação um grande projeto...” A pontuação indica ironia: o grande projeto de Inocêncio era roubar Francisco Theodoro, aproveitar-se de sua melancolia para lhe extorquir dinheiro e ganhar a vida fácil com o dinheiro alheio. Não se tratava de projeto, mas sim de armadilha, o que Francisco Theodoro não conseguiu prever, pois olhava sempre para o próprio umbigo, incapaz de perceber a malícia no exterior. O capítulo VIII começa com o complexo de inferioridade de Nina – gostar de quem te trata mal, uma empregada que se sente digna de ser maltratada pelo patrão Mário. O fato é que ela gosta do primo e alimentava desejo de se casar com ele: “A culpa era do sangue, da sua raça, que menos estima os superiores quanto mais estes a afagam. Por isso ela morria de amores por Mário, um rapazinho atrevido, de gênio autoritário e palavras duras” (ALMEIDA, 2018, p. 75). Personagens aparentemente menores e secundárias, como Nina e Noca, na realidade tomavam conta da casa inteira, isto é, ajudavam a mantê-la em pé e funcionando. Enquanto isso, Camila vivia cismando. Depois da refeição no Netuno, ao sair de lá, ela presencia uma cena: doutor Gervásio encontra uma mulher na rua, que parecia de luto, pois estava vestida de preto. Eles encaram-se, assustam-se e se evitam. Camila repara aquilo e acha tudo muito estranho: “A visão daquela. mulher de luto, da manhã do Netuno, não a deixava nunca; sentia-lhe, como um castigo, a formosura, o perfume, e aquele ar discreto de honestidade e de elegância. O que a punha doente, e que a atormentava ainda mais era a obstinação de Gervásio em negar-lhe uma explicação qualquer. Que haveria entre ambos?” (ALMEIDA, 2018, p. 77). Os questionamentos fazem parte do discurso indireto livre: suas dúvidas, seus pensamentos. Mesmo quando Gervásio continuava a visitá-la, o clima entre os dois mudou. Era dele todo o prestígio avistados trabalhadores boçais, das formigas do armazém que negrejavam por ali num movimento incessante. Francisco Teodoro descansava nele, deixava-o agir, "conhecia-lhe o pulso", dizia; não fizera ele o mesmo no princípio da sua carreira? Agora, bem assente na vida, aristocratizava-se, dava-se ares de grande personagem. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 23 Íc o n e fe it o p o r w w w .f la ti co n .c o m Ocorre aniversário de Francisco Theodoro, com um banquete descomunal. Doutor Gervásio não gosta de festas, evita-as e só vai visitar Camila depois delas. Além de ser cômodo para ele, ele evita com isso julgamentos públicos. Ele morava no Jardim Botânico e se recolhia lá nessas ocasiões, nas “festas pantagruélicas”, uma alusão à personagem do barroco francês Rabelais.Essa ocasião foi importante para o ciúme e o rancor de Camila contra Gervásio serem esquecidos e a antiga relação reatada. No capítulo IX, Mário continua dando suas desculpas furadas, e ainda tem mais: evita doutor Gervásio, porque o odeia: sabe do adultério da mãe. Francisco Theodoro reclama da mãe, culpa pelo filho mimado, mas como ela não teve fibra para educá-lo. “A família andava a passear pela chácara, na doce pasmaceira costumada, vendo regar as plantas e nascer as estrelas” (ALMEIDA, 2018, p. 82, grifo meu). O fin de siècle XIX era uma verdadeira pasmaceira, nada de novo acontecia no seio daquela família. A mais diferenciada era Ruth, que amava as estrelas e a música (tocar o seu violino). O máximo que Francisco Theodoro faz para demonstrar a sua “ira” contra Mário é impedir que ele entre em casa depois de uma determinada hora da noite. Ele é conversador e tradicionalista até mesmo em relação ao filho. Pede para que feche o casarão com trancas, o que nada adianta, pois Nina – apaixonada por ele – vai deixar que ele entre. Olhada em sua camisola, Mário chega a se interessar corporalmente por ela, mas nada ocorre. Nina relembra de sua história triste. Fora criada por dona Emília, com a família no Sergipe, até que Francisco Theodoro resolveu acolhê-la. Sua relação para com aquela família tem de ser a de gratidão. Depois de crescida, Nina perdoa a mãe, uma mulher de vida fácil, reconcilia-se com a sua história. Desde cedo, Nina estava “pronta a ceder às suas vontades absurdas” (ALMEIDA, 2018, p. 85). Mário chega a ver a prima na camisola e toca seu ombro nu. Porém, o pai Francisco Theodoro ronda a casa à espreita da chegada do filho. A cena se dissolve e Mário mantém a sua soberania garantida, ao passo que Nina sofria, sofria, sofria, (ênfase na repetição) pois viu ali a sua oportunidade perdida. No capítulo X, as tias do Castelo (senhoras Rodrigues) vão visitar o palacete. Vão lá para criticar Camila, invejar-lhe a fortuna e – claro – fofocar. São tias enxeridas e intrometida que querem que ela se interesse pelas mesmas coisas que ela. Gervásio se encontra lá nessa situação e se esquiva das invectivas das tias, aproveitando o ensejo para criticar e acusar os dois. Doutor Gervásio responde-as de uma forma literata, para despistá-las, uma vez que elas são ignorantes, não leem e não reconheceriam suas referências. Nem mesmo Augusto Comte, pai do positivismo – doutrina adepta dos bons costumes sociais e do progresso, o que parece que as tias defendem inconscientemente – as tias parecem conhecer, o que corrobora a hipótese do médico: elas não estariam aptas a debater qualquer coisa que fosse com ele, por falta de conhecimento/embasamento. Nesse episódio, também visita Camila o capitão Rino, à procura de uma oportunidade para achá-la sozinha, conversar com ela, demonstrar seu amor – encontra-a rodeada de consortes, de forma que vai embora frustrado. No capítulo XI, Francisco Theodoro está conversando com seus colegas, entre eles João Ferreira, Lemos, Negreiros e Inocêncio Braga. Capitão Rino está triste, caminha no Rio de Janeiro e olha o mar e os marinheiros: ele toma a decisão de fazer uma longa viagem, para fugir daquele lugar e de Camila. Ele se revela um filósofo (talvez fossem deles os livros mesmos), meditando sobre a contraposição entre o trabalho no mar e na terra. Sente-se insatisfeito, questiona as suas escolhas quanto à sua carreira. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 24 A repetição das ideias leva-o à livre associação de ideias: lembra de sua mãe e de Catarina, que morrera assassinada pelo pai por causa de um caso de adultério. Ele termina por encontrar a irmã em seu jardim/pomar. Conversam entre si e expõe suas inquietações: ambos notaram que Camila traía o marido com doutor Gervásio. Capitão Rino decide mesmo partir. No capítulo XII, vemos Francisco Theodoro numa situação atípica: sentado no seu escritório no palacete. Esse cômodo nunca era aberto, mas agora lá estava ele, lendo muito preocupado o Código Comercial de Orlando. Ele está preocupado com a sua vida financeira. Mostra toda a sua avareza: “E era só em negócio que Francisco Teodoro fazia caso do dinheiro. No mesmo dia em que assinava vinte ou trinta contos para um hospital ou uma igreja, numa penada rija e franca, recusava emprestar a qualquer pobre diabo cinco ou dez contos para um começo de vida” (ALMEIDA, 2018, p. 109). Inocêncio Braga vai lhe procurar com uma conversa fiada: estão pensando em criar um sindicato de café no Rio de Janeiro. Quem irá começá-lo seria Gama Torres. E agora ele veio pedir a ajuda de Francisco Theodoro. Chega cheio de dados, estatísticas, artigos de jornal. Embora pareça muito convincente, Francisco Theodoro desconfia de alguma coisa, seu instinto lhe diz que aquilo não cheira bem. Ele sempre fora conservador, negava ajuda nesses tipos de empresa, e agora ele estava ali considerando em ajudar esse cara com essa proposta ousada. Previa ele alguma coisa? Será que conscientemente estava invocando a sua ruína? O livro é sutil nas suas colocações e alguns questionamentos permanecem ser respondidos. No almoço, Francisco Theodoro se acha no auge de sua fortuna: no aniversário de Nina, ele a presenteia com uma casa inteira à parte para ela morar. Noca revela sua superstição: aquele presente bom era por causa de uma borboleta azul que ela viu, sinal de boa sorte. No capítulo XIII, um baile está sendo preparado no palacete Theodoro, que leva o sobrenome do dono por causa de seu orgulho. Nessa preparação, Ruth se escondia; alheia a tudo isso, ela só se preocupava com seu violino e sua arte. Doutor Gervásio surpreende-a admirando um quadro, mas a aconselha a focar apenas em uma das artes, no caso, a música. Na verdade, Ruth era a mais sensível e humana da família. Acontece um episódio importante: Ruth – para fugir daquela bagunça que não lhe interessa da família – pede para passar alguns dias na casa das tias Rodrigues – Joana e Itelvina – no Morro do Castelo. Talvez tivesse escolhido mal a sua profissão. A vida do homem era aquilo que ali estava: a agitação perene, o trabalho violento, o amor sem idealizações, o espetáculo renovado de tudo que a terra produz, mata e faz renascer para a fulguração do tempo, que é instantâneo e é eterno. O próprio mar, que escolhera e a que se lançara na fantasia da adolescência, não era à orla branca da Terra que vinha atirar a sua grande queixa, a sua fúria formidável ou a sua voluptuosidade infinita? ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 25 Seu pedido é atendido, mas ela se sente estranha naquele mundo das tias. Tia Joana, a religiosa, logo lhe põe a contar histórias bíblicas, mas das mais terríveis e moralizantes. Ruth está preocupada com a estética e atemorizada com aqueles casos. Ela está preocupada com a estética: ela não acredita que o céu possa ser feio, e pede histórias sem fogueiras e sangue. No capítulo XIV, a personagem de tia Joana passa a ser a narradora: ela irá narra uma história de uma freira que se apaixona pelo castelão, é seduzida por ele e foge com ele. A estátua de Nossa Senhora sorrindo tende dissuadi-la daquele pecado, mas ela decide fugir mesmo assim. No fundo, ela viu que o homem era um disfarce do diabo, arrepende-se e volta ao convento. Ela é atendida por uma freira que se revela Nossa Senhora ela mesma. No meio da noite, Ruth acorda com uma gritaria. A sua tia Joana, tão religiosa e contadora de histórias moralizantes, está batendo fria e cruamente na sua criadad negra – Sancha – dizendo que ela merecia. Ruth não se contenta com aquela situação: diz que Sancha irá morar com eles no palacete, que aquilo era uma injustiça e chega a interceder por ela nas suas ações. Chega, inclusive, a dizerpara a moça fugir – pedido que a moça acaba por acatar no dia seguinte. Percebemos que Júlia de Almeida é uma mulher preocupada não só com a questão de gênero, mas com a de raça. CENA DE LIVRO A negrinha tinha-se refugiado a um canto, perto do fogão, e exagerava as dores, torcendo-se toda, amparada pela compaixão da Ruth. D. Itelvina avançou os dedos magros, e, agarrando-a por um braço, puxou-a para si; a sobrinha então abraçou-se à negrinha, unindo a sua carne alva, quase nua, ao corpo preto e abjecto da Sancha. – Bata agora! tia Itelvina, bata agora! gritava ela, em um desafio nervoso, sacudindo a cabeleira sobre os ombros estreitos (ALMEIDA, 2018, p. 125). ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 26 O idealismo e a abstração na personalidade de Ruth não a impedem de ter consciência da realidade. Não é desculpa! Ela é em tudo diferente da família. Ruth tem consciência de classe, humanidade e dignidade. No dia seguinte, ao acordar de madrugada e acompanhar a tia Joana à igreja, ela não se conforma com aquela violência, aquela injustiça. Ela tem uma alma mais complicada, contestadora e cisma com a tia. Não vê mais sentido naquele falso moralismo, naquela hipocrisia de rezar de madrugada, ao passo que é incapaz de se compadecer de um ser humano. Sua tia Joana acha que a menina diz heresias. Sua atitude é diferente: desfaçatez de classe – acha que é muito o pouco que dá para Sancha, que dá esmola para ela e ela não faz mais do que a sua obrigação. A tia não se importa com a criada negra, tampouco com a sobrinha – que está com fome, mas ela está mais preocupada em rezar em um velório de alguém que nem conhece, para manter as aparências sociais de sua “benevolência”. Chegando em casa, Ruth se depara com um pai apático e alheio, pouco se importando com a chegada da filha. Há a questão do abandono familiar: Ruth não se sente acolhida por ninguém da família. Isso porque ela é especial e não condiz com aqueles valores. Ruth ainda tem esperança de que as tias a levem para o Observatório, realizar seu grande sonho de ver as estrelas. No capítulo XV, retorna-se ao palacete. Lá está outra personagem, Terezinha, que gosta de ir ali para distribuir suas receitas e fofocar. Quando tem um momento a sós com Nina, Ruth então denuncia os maus tratos com Sancha, diz o seu plano de trazerem-na para o palacete. Nina desconversa com uma falácia: que Sancha queria comprar arsênico para se matar: “era menos burra do que parece” (ALMEIDA, 2018, p. 134). Apenas Ruth consegue enxergar a alma de Sancha. Lá também está mais uma personagem: Lage. Fofocam sobre casamento por conveniência – que Mário não é bom partido para casar, porque não trabalha: “Aqui para nós: o rapaz não vale nada. Quem não trabalha, que garantia pode dar à família?” (ALMEIDA, 2018, p. 135). A fofoca também chega aos negócios, o que preocupa Francisco Theodoro: “Como diabo teria a Lage sabido daquele negócio com o Braga?” (idem). Algo que se repete, é significativo e preocupante para Theodoro é a inaptidão do filho de governar seus negócios. Vive de hipóteses: se isso acontecesse, ele não estaria preocupado. Ele tinha a pretensão de ser o criador natural e material do filho. E quando isso não acontece ele se entristecesse, dando mais motivos ainda à sua melancolia. Enquanto isso, Nina continua a dor, a mágoa e o ressentimento de querer viver uma vida que era a dela. Também vive de superstições: quando duas borboletas brancas passam, ela sabe que Mário irá se casar, mas não com ela. Aquela conversa ali travada no jardim era na realidade para decidir os acordos do casamento dele com Paquita. O capítulo XVI começa com uma imagem de pobreza: o empregado Motta, de Francisco Theodoro, continua doente e sua família pobre, sua filha resignada tem de ajudá-lo. No fundo, prevemos que ele irá morrer, mas isso não acontece nem será essa a ruína de Francisco Theodoro. No capítulo XVII, Mário se casa e todos se veem livres daquele estorvo dentro de casa: “E o casamento de Mário fora um alívio para ambos. Estavam livres daquela testemunha importuna, que tinham de respeitar” (ALMEIDA, 2018, p. 143). ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 27 Neste capítulo, Francisco Theodoro percebe que vai à falência e que Inocêncio Braga, de inocente, só tem o nome ironicamente: ele diz que tudo fora um jogo, incapaz de se sensibilizar com a preocupação do comerciante, que via o dinheiro lhe escorrer por suas mãos. Francisco Theodoro desenvolve comportamento obstinado, obsessivo: lê papeis, tenta descobrir em algum lugar uma solução. Não consegue enxergar a sua família na sua frente, pronta a ajudá-lo e inclusive nega a verdade a ela, não lhe informando de nada. Mergulha na escrita como forma de cura. Por algum motivo, o pai de Paquita – Meireles – ainda consente com aquele casamento, embora todos já soubessem indiretamente da ruína de Francisco Theodoro, mesmo que ele não comunicasse a ninguém. O fato é que todos vão assistir a partida do casal para a lua de mel na Europa, ocasião em que Paquita já mostra mandona em relação a Mário, impedindo-o de voltar a conviver pacificamente com a sua família. Logo Mário, tão autoritário, que fazia de Nina um cavalo para brincar na infância... Enquanto isso, Francisco Theodoro vai piorando em sua obsessão. Tudo na sua vida soa fracasso. Apesar da sua ambição e senso prático, ele percebe que a sua vida está fugindo do controle. Nem a doença do empregado Motta melhora. Irado, só pensa em si mesmo, incapaz de inferir a conjuntura internacional do problema: a queda internacional do café: “Que importavam a Francisco Teodoro as falências dos americanos! ele só tremia pela dele, era na sua fortuna que estavam condensados todos os bens do universo” (ALMEIDA, 2018, p. 148). No capítulo XVIII, há a importância da imprensa: Francisco Theodoro vai acompanhando a situação por meio de informações em jornais e telegramas, o que interfere diretamente nos seus sentimentos. Vai se sentindo cada vez mais derrotado, há todo um processo de declínio. Um sinal de sua decadência é uma ironia: Francisco Theodoro não enxerga mais a animalização como um rebaixamento. Há vários sinais de mal agouro na casa: um espelho quebrado, um pássaro morto. Camila é uma cega, adivinhando bem errado o sentimento do marido. Acha que ele está preocupado com o casamento e a ausência de Mário. Ela é incapaz de prestar-lhe ajuda eficaz por total ignorância; também lhe de conhecimento da situação. Francisco Theodoro reage a tudo com raiva, sem enxergar a sua própria culta no processo: culpa de uma classe que só se enxerga a si mesma e não se preocupa com os outros. Há um momento de fuga: ainda há visitas e canções na casa. Aqui existe um momento de mistura de gêneros, do romance com uma cantiga, cantada por Carlotinha: "No Brasil é doce de ovos, Chiquita! Um beijo dado em você." "Um beijo..." Vivem negando a realidade funesta. A ironia é que Mário é o único que está garantido em sua lua de mel na Europa. Enquanto isso, Francisco Theodoro continua detentor de um segredo que não quer compartilhar com a família, só o luxo e a bonança. No processo da falência, é importante o aumento de ironias trágicas na vida de Francisco Theodoro: agora, o palacete novo que estavam construindo em Petrópolis se tornou um elefante branco, uma reforma que só representava mais dívida para a família, e totalmente inútil, já que ninguém iria habitá-lo. Até Rino soa como um eco: o pássaro que morreu era uma cacatua que ele havia dado para Camila. Para Francisco Theodoro, tudo – inclusive aquela morte – era sinal de fracasso. Ele é incapaz de ver para as árvores, os flamboyants que floresciam. A vida não era bonita e a forçada lembrança para ele tinha efeito inverso, não mais significava a ambição de outrora. ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 28 Francisco Theodoro continua pensando conservadoramente, só não em termos de negócio. Essa foi sua ruína também: a sua forma de pensar. O seu desespero até o faz considerar pedir ajuda de mulheres. Lembra-se de que tem filhas! Mesmo que ele não fosse amigo de ninguém, prestavam ajuda a ele. O colega Negreiros lhe mostra solidariedade. Francisco Theodoro apenas respondia com palavras monossilábicas, sem força de expressão, como a mulher. Aliás, toda a família parece um organismo e apresenta comportamentos semelhantes. Por exemplo, reclamam que o filho Mário é gastão, mas toda a família é. Esta era a personalidade geral, motivo pelo qual a família inteira vai à ruína também. Esse fracasso não é apenas só de Francisco Theodoro, embora ele – no seu paternalismo – sente-se o único responsável pelo desastre. No capítulo XIX, Camila está cozinhando. A ironia é que Gervásio a acompanha, é mais da família do que o próprio marido e mais conhecedor dos acontecimentos. Francisco Theodoro lhe pedira para contar a falência à esposa, pois ele era um covarde incapaz de contá-lo. Após saber, fingem se preocupar com as crianças, embora tivessem privilegiado sempre só a Mário. Camila até que lamenta a sua falta de participação no processo. Descobrem que o buraco é mais embaixo é Francisco Theodoro podia ser preso. Com a ruína, Camila teme que o seu relacionamento com Gervásio também termine. Passa a pensar na sua própria vida e em seus afetos. Então, há o confisco do armazém. Para Francisco Theodoro, o símbolo da ruína era o ócio: a falta de atividade e as aranhas no teto. Chega a comparar a mesa vazia com o leito da mulher amada, tamanho era o seu amor e a sua dedicação para com o trabalho. Francisco Theodoro levou 30 anos para consolidar seu armazém – uma geração! – e somente agora desenvolvera humildade para cumprimentar seus empregados subalternos. Sentia-se substituído: seu arquirrival Gama Torres ocuparia o seu lugar. No capítulo XX, Francisco Theodoro se remedeia na escrita para ocupar-se, já que família para ele era sinônimo de dinheiro e o dinheiro tinha ido embora. O fato é que ele nunca foi corajoso e é nas horas graves que isso se revela. Sua lembrança da infância dura bem podia ser uma vitimização, como aquelas típicas de sua mulher. Parecem mais família do que na realidade são, ao menos, farinha do mesmo saco. Sentia-se como um fantasma. Começa a se sentir peça de um jogo, parte de uma conspiração. Fechada a carta, lembrou-se que poderia talvez ter recorrido à Lage, mas levantou logo os ombros; era uma mulher, que podia entender de negócios? De mais, as coisas iriam em declive rápido, e um novo empréstimo seria um compromisso irremissível... melhor fora não se ter lembrado dela. E as tias do Castelo? a essas pediria apoio para a família; ele já nada queria para si; poucos dias teria de vida: o golpe era muito forte para deixá-lo de pé. Mas a mulher?... e as filhas? E, afinal, acreditava ele na fortuna das velhas? onde a escondiam elas que ninguém a via? Riquezas, riquezas, vá a gente desencantá- las em cofres ávaros! ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 29 Agora desocupado, Francisco Theodoro se via obrigado a ter que lidar com o rio de águas caudalosas que eram os seus pensamentos. Ainda ambicioso, sentia-se digno de comparações bíblicas: como Jó! Ele se julgava, pensando em como ele também tinha falido. Conhecemos a história de seu avô e compreendemos que ele carrega o suicídio no sangue, como se fosse hereditário. Ao fim desse capítulo, Francisco Theodoro suicida-se dando um tiro na cabeça, observado pela esposa Camila que adentra no recinto antes do ato, mas não consegue impedi-lo. No capítulo XXI, Camila se mostra sincera no seu amor afinal. Ninguém acredita, mas ela lamenta o fato, além do que a cena vive se repetindo na sua cabeça, por ter sido ela a testemunha. Outra ironia: ele nunca tinha sido muito presente, mas agora sentiam sua falta. Francisco Theodoro foi sem deixar testamento. Em seu velório, surgem as irmãs Gomes, querendo impor sua vontade. Mais ironia: a morte dele fez cessar a chama do amor adúltero. Tudo vive numa paralisia: Camila não faz nada, não reage, é assim que vive seu luto. Parece avara, mesquinha e soberba, incapaz de viver com pouco, supérflua e previsível. Até que devem surgir personagens práticas e pragmáticas, como Nina. Ela sugere se mudarem para a casa que Francisco Theodoro havia dado para ela em seu aniversário (parece uma espécie de testamento, afinal). Mesmo com suas qualidades, ao arrumar a casa, Nina acha um chicote com o qual Mário lhe batia na infância e se recorda de seu complexo de inferioridade. No capítulo XX, mudam-se então para a nova casa. Nessa situação, Nina manifestava verdadeiro instinto materno: tirava de seu bife para dar de comer às gêmeas. As dívidas do marido continuavam a fazer as suas cobranças post mortem (após a morte). Camila continua apática: fraca e covarde, fugindo da realidade, quer voltar para o colo da mãe em Sergipe. Quer ir para qualquer lugar, menos trabalhar – aquilo seria o extremo. Mário era uma ponta solta, incapaz de ajudar a família e individualista. Como todos no passado, só pensava a si mesmo. Mário representa o passado: “Mário escreveu lamentando ter de demorar-se em Paris; retido por uma doença de Paquita, cujo nome repetia em todos os períodos. A verdade é que na família ninguém contava com ele, e que todos dissimulavam ressentimentos, fugindo de agravar tristezas” (ALMEIDA, 2018, p. 178). Tal comportamento só aumentava o ressentimento contra aquele filho ingrato. Nina é valorosa, mas tem uma noção muito baixo de si mesma. No fundo, foi quem mais ajudou a família naquela situação, pois ela veio de baixo e sabia como era se sentir assim. No capítulo XXIII, Ruth – com o pouco que tem – quer sair para dar as sobras de suas refeições como esmola, ao passo que a mãe não gosta de toda aquela caridade. O fato é que vão aprendendo a se E as forças? Onde estavam elas, que as não sentia? Ah! corpo miserável! corpo miserável. Afogueado, como se tivesse brasas na cabeça, Teodoro procurou a frescura do ar livre e foi encostar-se ao umbral da janela. Fora numa noite assim, de lua clara, que o avô se enforcara numa amendoeira, fugindo, no seu delírio de perseguição, a um inimigo que lhe ia no encalço. Era um camponês rude, o avô; havia muito meses antes desse ato que ele andava taciturno, agitado; depois, que tranquilidade! Francisco Teodoro olhou para a noite (...). ESTRATÉGIA VESTIBULARES – LITERATURA PARA UNICAMP 2023 AULA DE OBRAS LITERÁRIAS: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA – A FALÊNCIA 30 viver com o que tem e até o final parece se encadear para o cumprimento de um papel lógico: Camila se casar com o doutor Gervásio. Mário chega ao Rio, mas só vai procurar a família no fim do dia. E ainda assim se sentia útil, querendo mandar naquela família que ele sequer acompanhava de longe: “Vinha como uma espada, cortando todos os nós. Prevalecia-se da sua autoridade de homem” (ALMEIDA, 2018, p. 182). Fora dele a sugestão do casamento ironicamente: melhor continuar como estava. No capítulo XXIV, Camila sentia que triunfava, que se realizava, mas no fundo só estava cumprindo a vontade do filho. O modo como as personagens lidam com as mais variadas situações revelam seus pontos de vista e sua percepção da realidade. Camila, por exemplo, passava por uma crise de personalidade longe daquele luxo todo e de suas roupas da moda. Até que relembra de doutor Gervásio, que para ela foi mais do que