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Principio da insignificância ou da bagatela Sendo o crime uma ofensa a um interesse dirigido a um bem jurídico relevante, preocupa-se a doutrina em estabelecer um princípio para excluir do direito penal certas lesões insignificantes. Claus Roxin propôs o chamado princípio da insignificância, que permite na maioria dos tipos excluir, em princípio, os danos de pouca importância. 64 Não há crime de dano ou furto quando a coisa alheia não tem qualquer significação para o proprietário da coisa; (27) 65 não existe descaminho na posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, que não cause uma lesão de certa expressão para o fisco; não há peculato quando o servidor público se apropria de ninharias do Estado (folhas de papel, caneta esferográfica etc.); não há crime contra a honra quando não se afeta significativamente a dignidade, a reputação, a honra de outrem; 66 não há lesão corporal em pequenos danos à integridade física; (28) não há maus-tratos quando não se ocasiona prejuízo considerável ao bem-estar corporal; 67 não há dano no estrago ao patrimônio público de pequena monta; (29) não há estelionato quando o agente se utiliza de fraude para não pagar passagem de ônibus; (30) não há furto quando a res subtraída é economicamente insignificante; não há corrupção passiva quando o funcionário aceita um “mimo” de pequena expressão econômica etc. É preciso, porém, que estejam comprovados o desvalor do dano, o da ação e o da culpabilidade. (31) Nos casos de ínfima afetação do bem jurídico, o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste nenhuma razão para o pathos ético da pena. É indispensável que o fato tenha acarretado uma ofensa de certa magnitude ao bem jurídico protegido para que se possa concluir por um juízo positivo de tipicidade. Com base em um enfoque de modernização da Justiça Criminal, não mais se discute que os responsáveis por lesões aos bens jurídicos só devem ser submetidos à sanção criminal quando esta se torna indispensável à adequação da justiça e à segurança dos valores da sociedade. Ainda a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato. 68 A excludente da tipicidade (do injusto) pelo princípio da insignificância (ou da bagatela), que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, não está inserta na lei brasileira, (32) mas é aceita por analogia, ou interpretação interativa, desde que não contra legem. Não há como confundir, por exemplo, pequeno valor da coisa subtraída com valor insignificante ou ínfimo; no primeiro caso há somente um abrandamento da pena, no segundo há exclusão da tipicidade. (33) Somente uma quantidade de maconha totalmente inexpressiva, incapaz inclusive de permitir “o prazer de fumar”, poderá ter o condão de tornar atípica a ação de seu portador. (34) No Estado do Rio Grande do Sul, já se absolveu réu acusado pelo crime de posse de entorpecente, por ser mínima (1 grama) a quantidade do tóxico, (35) mas o Tribunal de Justiça acabou não aceitando tal orientação, mantendo aquela dos tribunais superiores. (36) Para os adeptos da teoria social da ação também não haveria nessas hipóteses uma conduta típica. A ação socialmente adequada não é necessariamente modelar, de um ponto de vista ético, dela se exigindo apenas que se situe dentro da moldura do comportamento socialmente permitido e não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto. 69 Para alguns, entretanto, o princípio da insignificância é uma espécie do gênero “ausência de perigosidade social e, embora o fato seja típico e antijurídico, a conduta pode deixar de ser considerada criminosa”. 70 Na jurisprudência, tem-se aceito que são quatro os aspectos essenciais do fato a serem considerados: 1) a mínima ofensividade da conduta; 2) a ausência de periculosidade social da ação; 3) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento do agente; e 4) a inexpressividade da lesão jurídica causada. (37) Acentua-se que na aplicação do princípio da insignificância devem ser considerados somente os aspectos objetivos do fato, excluindo-se outros de caráter subjetivo (antecedentes, personalidade, motivação etc.), os quais estariam vinculados à culpabilidade. Ou o fato praticado pelo agente, objetivamente e em si mesmo considerado, é contrário ao Ordenamento Penal ou não é. Parte da jurisprudência, porém, inclina-se para a consideração também de critérios subjetivos. A controvérsia tem se evidenciado, sobretudo, nos casos de maus antecedentes, reincidência, habitualidade ou prática reiterada de delitos que individualmente seriam considerados de bagatela, mas em seu conjunto apontam para um maior grau de reprovabilidade ou de periculosidade social. Consistindo a culpabilidade na reprovabilidade da conduta típica e antijurídica, é certo que não se devem invocar critérios de medida de culpabilidade atinentes à pessoa do agente para afastar a insignificância onde esta deve ser reconhecida. A insignificância há de ser aferida de forma objetiva, porque a antijuridicidade é uma medida objetiva, diante do caráter de validade geral da norma e porque a verificação da contrariedade ou não de um fato ao Ordenamento independe de quem o praticou. Não se pode perder de vista, porém, que o princípio da insignificância veio a ser acolhido como um corretivo da tipicidade geral e que a sua aplicação, portanto, não deixa de ter o caráter da excepcionalidade. Deve-se lembrar, também, que a sua aplicação pressupõe um juízo valorativo sobre o grau de afetação do bem jurídico que, embora principie pela apreciação da lesão ou do perigo suportado pelo titular do bem atingido pelo comportamento do agente, dirige-se à aferição da ofensa por ela provocada ao ordenamento penal e do risco criado à integridade da ordem social. Impõe-se, assim, elevada dose de cautela na aplicação do princípio da insignificância para se evitar a impunidade de comportamentos que, embora provoquem danos de menor monta, sejam significativamente reprováveis ou revelem alguma periculosidade social, bem como para não se incentivar, pela antevisão da possibilidade de afastamento da sanção penal, a habitualidade ou a proliferação de ataques aos bens tutelados pelo ordenamento jurídico. Tem-se admitido a aplicação do princípio de insignificância em diversos delitos como os de dano, (38) furto, (39) estelionato, descaminho, (40) lesão corporal, (41) crimes contra o meio ambiente (42) etc. Não se tem reconhecido a sua incidência em delitos relacionados com drogas ilícitas, por se tratar de crimes de perigo abstrato, (43) e no roubo, que é praticado com violência ou grave ameaça a pessoa. (44) A não incidência do princípio nos casos de violência doméstica contra a mulher cristalizou-se no STJ nos termos da Súmula 589: “É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.” Tratando-se de crime contra a administração pública tem-se decidido pela inaplicabilidade do princípio da insignificância, por não se tutelar na norma somente o patrimônio público, mas também a moralidade administrativa e a fé pública, devendo prevalecer, assim, o interesse do Estado na repressão de ilícitos dessa espécie. (45) Essa orientação também se consolidou no STJ e é objeto da Súmula 599: “O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública”. Com as cautelas necessárias, reconhecendo caber induvidosamente na hipótese examinada o princípio da insignificância, não deve o delegado instaurar o inquérito policial, o promotor de justiça oferecer denúncia, o juiz recebê-la ou, após a instrução, condenar o acusado. Há no caso exclusão da tipicidade do fato e, portanto, não há crime a ser apurado.