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todos os que o precederam serão passados, e todos os que estão por vir, futuros. Portanto, os cem anos não podem estar simultaneamente presentes. Vejamos agora se, pelo menos, o ano em curso é presente. Se estamos no primeiro mês, os outros são futuros. Como acima, se estamos no segundo, o primeiro será passado, e os demais, futuros. Assim o ano que corre não está todo presente; e como não está todo presente, não é portanto verdade dizer-se que o ano esteja presente. Um ano compõe-se de doze meses, e seja qual for o mês considerado, será o único em curso. Mas o mês em curso não é presente, mas somente o dia. Vale o que dissemos antes: se estamos no primeiro dia, todos os outros são futuros; se estamos no último, todos os outros são passados; se estamos entre um desses dois dias, esse dia está entre os dias passados e os futuros. Eis, portanto, esse tempo presente, o único que julgávamos poder chamar de longo, reduzido ao espaço de um só dia. Mas, examinemos esse único dia, porque nem mesmo ele é todo presente. Compõe-se de dia e noite, num total de vinte e quatro horas; relativamente à primeira hora, todas as outras são futuras; em relação à última hora, todas as outras são passadas; cada hora intermediaria tem atrás de si horas passadas e diante de si horas futuras. Mas também essa única hora é composta de fugitivos instantes; tudo o que dela correu é passado, e tudo o que ainda lhe resta é futuro. Se pudermos conceber um lapso de tempo que não possa ser subdividido em frações, por menores que sejam, só essa fração poderá ser chamada de presente, mas sua passagem do futuro para o passado seria tão rápida, que não teria nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro, mas o presente não em duração alguma. Qual seria pois, o tempo que podemos chamar de longo? Seria acaso o futuro? mas nós não dizemos que o futuro é longo, porque ainda não existe, e por isso não pode ser longo. Dizemos: “Será longo”. E quando se dará? Se atualmente ele ainda está no porvir, não pode ser longo: não existindo ainda, não pode ser longo. Mas somente poderá ser longo na hora em que emergir do futuro, que ainda não existe, em que começar a ser e a se tornar presente, de modo que possa ser longo. Nesse caso o presente nos clama, pelo que acima dissemos, que ele não pode ser longo. CAPÍTULO XVI A medida do presente E, contudo, Senhor, percebemos os intervalos de tempos, os comparamos entre si, e dizemos que uns são mais longos e outros mais breves. Medimos também o quanto uma duração é maior ou menor que outra, e respondemos que esta é o dobro ou o triplo de outra; que aquela é simples, ou que ambas são iguais. Mas é o tempo que passa que medimos quando o percebemos passar. Quanto ao passado, que não existe mais, e o futuro que não existe ainda, quem poderá medi-los, a menos que ouse afirmar que o nada pode ser medido? Assim, quando o tempo passa, pode ser percebido e medido. Porém quando já decorreu, ninguém o pode mentir ou sentir, porque já não existe. CAPÍTULO XVII O passado e o presente Pai, apenas pergunto, não estou afirmando; meu Deus, ajuda-me, dirige-me. Quem ousaria afirmar que não existe três tempos, como aprendemos na infância e como ensinamos às crianças, o passado, o presente e o futuro? será que só o presente existe, porque os demais, o passado e o futuro, não existem? Ou será que eles também existem, e então o presente provém de algum lugar oculto, quando de futuro se torna presente, e também se retira para outro esconderijo, quando de presente se torna passado? E os que predisseram o futuro, onde o viram, se ele ainda não existe? É impossível ver-se o que não existe. E os que narram o passado diriam mentiras se não vissem os acontecimentos com o espírito. Ora, se esse passado não tivesse existência alguma, seria absolutamente impossível vê-lo. Por conseguinte, o futuro e o passado também existem. CAPÍTULO XVIII As previsões Permite-me, Senhor, que eu leve adiante minhas investigações, tu que és minha esperança; faze que minha tentativa não seja perturbada. Se o futuro e o passado existem, quero saber onde estão. Se ainda não posso compreender, sei todavia que, onde quer que estejam, não existem nem como futuro, nem como passado, mas apenas como presente. Se também ali estiver enquanto futuro, então ainda não existirá; se o passado aí estiver como passado, já não estará lá. Portanto, no lugar e no modo que estiverem, só podem existir como presentes. Quando relatamos acontecimentos verídicos do passado, o que vêm à nossa memória não são os fatos em si, que já deixaram de existir, mas as palavras que exprimem as imagens dos fatos, que, através de nossos sentidos, gravaram em nosso espírito suas pegadas. Minha infância, por exemplo, que não existe mais, pertence a um passado que também desapareceu; mas quando eu a evoco e passo a relatá-la, vejo suas imagens no presente, imagens que ainda estão na minha memória. E a predição do futuro, meu Deus, seguiria um processo análogo? Os fatos que ainda não existem, serão representados antecipadamente em nosso espírito como imagens já existentes? Eu o ignoro. O que sei é que habitualmente premeditamos nossas ações futuras, e que essa premeditação pertence ao presente, enquanto esta começará a existir, pois então não será mais futura, mas presente. Seja qual for a natureza desse misterioso pressentimento do futuro, o certo é que apenas se pode ver aquilo que existe. Ora, o que já existe não é futuro, mas presente. Quando se diz que se vê o futuro, o que se vê não são os fatos futuros em si, que ainda não existem porque são futuros, mas suas causas ou talvez sinais prognósticos, causas e sinais que já existem. Estes não são pois futuros, mas presentes para os que as vêem, e é graças aos vaticínios que o futuro é concebido pelo espírito e profetizado. Esses conceitos já existem, e os que predizem o futuro vêem-nos presentes em si mesmos. Gostaria de apelar para um exemplo tomado entre os muitos possíveis. Vejo a aurora, e prognostico o nascimento do sol. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não o sol, que já existe, mas seu surgimento, que ainda não ocorreu. Contudo, se eu não tivesse uma imagem mental desse surgimento, como agora quando falo dele, ser-me-ia impossível a previsão. Mas essa aurora que vejo não é o nascimento do sol, embora o preceda; nem o é tampouco a imagem que trago em meu espírito. As duas coisas estão presentes, eu as vejo, e assim posso predizer o que vai acontecer. O futuro, portanto, ainda não existe; se ainda não existe, não existe no agora; e se não existe não pode ser visto de modo algum, mas pode ser prognosticado pelos sinais presentes, que já existem e podem ser vistos. CAPÍTULO XIX Oração Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu, para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas forças. Por mim mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando me concederes, ó doce Luz dos olhos de minha alma! CAPÍTULO XX Conclusão O que agora parece claro e evidente para mim é que nem o futuro, nem o passado existem, e é impróprio dizer que há três tempos: passado, presente e futuro. Talvez fosse mais correto dizer: há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. E essas três espécies de tempos existem em nossa mente, e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a percepção direta; o presente do futuro é a esperança. Se me é lícito falar assim, vejo e confesso que há três tempos. Diga-se também que são três os tempos: presente, passado e futuro, como abusivamente afirma o costume.Não me importo, nem me oponho, nem critico o modo de falar, desde que fique bem entendido o que se diz, e que não se acredite que o futuro já existe e que o passado ainda existe. Uma linguagem que expresse com termos exatos é incomum: com muita freqüência falamos com impropriedade, mas entende-se o que queremos dizer. CAPÍTULO XXI A medida do tempo Disse há pouco que medimos o tempo que passa; de modo que podemos afirmar que um lapso de tempo é o dobro de outro, ou igual, e apontar entre os intervalos de tempo outras relações, mediante esse processo comparativo. Portanto, como eu dizia, medimos o tempo no momento em que passa. E se me perguntarem: Como o sabes? – eu responderia: Sei porque o medimos, e porque é impossível medir o que não existe; ora, o passado e o futuro não existem. Quanto ao presente, como podemos medi-lo, se não tem duração? Portanto, só podemos medi-lo enquanto passa; e quando passou, não o medimos mais, porque não há mais nada a mentir. Mas de onde se origina, por onde passa, para onde vai o tempo quando o medimos? De onde vem senão do futuro? Por onde passa, senão pelo presente? Para onde vai senão para o passado? Nasce pois do que ainda não existe, atravessa o que não tem duração, e corre para o que não existe mais. No entanto, o que é que medimos, senão o tempo relacionado ao espaço? Quando dizemos de um tempo que é simples, duplo, ou triplo, ou igual, ou quando formulamos qualquer outra relação dessa espécie, nada mais fazemos do que medir espaços de tempo. Em que espaço medimos então o tempo no momento em que passa? No futuro, talvez, donde procede? Mas o que ainda não existe não pode ser medido. Será no presente, por onde ele passa? Mas, como medir o que não tem extensão? Será no passado, para onde caminha? Mas o que não existe mais escapa à qualquer medida. CAPÍTULO XXII O enigma Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado! Senhor, meu Deus, meu bom Pai, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que eu os penetre, e faze com que a luz de tua misericórdia os ilumine, Senhor! A quem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó Pai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me reveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos, que ninguém perturbe minha investigação. Acreditei, e por isso falo. Minha esperança, a esperança pela qual vivo, é contemplar as delícias do Senhor. Eis que tornaste velhos os meus dias, e eles passam, não sei como. Nós só falamos de tempo, e de tempo, e de tempos e de tempos. Quanto tempo esse homem falou? Quanto tempo demorou para fazê-lo? Há quanto tempo não vejo isto! A duração desta sílaba é o dobro daquela, que é breve. Assim nos expressamos e assim ouvimos, e todos nos compreendem, e nós compreendemos. São palavras claras e de uso corrente, mas encerram mistérios, e compreendê-las requer melhor análise. CAPÍTULO XXIII O tempo e o movimento Ouvi um homem instruído dizer que o tempo é nada mais do que o movimento do sol, da lua e dos astros. Não concordo. Por que não seria então o tempo o movimento de todos os corpos? Se os astros passassem, e a roda de um oleiro continuasse a rodar, deixaria acaso de existir tempo para medir suas voltas? Como poderíamos dizer que elas se davam a intervalos iguais, ou ora mais rápida, ora mais lentamente, e que umas demoravam mais e outras menos? E, dizendo isto, não estaríamos falando do tempo? Não haveria mais em nossas palavras sílabas longas e breves, porque umas ressoam por mais tempo e outras por menos tempo? E tu, Deus, concede aos homens que percebam, que reconheçam neste modesto exemplo, o que as coisas grandes e pequenas têm em comum. Há astros e luminares celestes que nos servem de sinais e marcam as estações, os dias e os anos. Isso é verdade; todavia, como eu jamais diria que a volta realizada por aquela roda de madeira representa o dia, nem o sábio cuja opinião transcrevo poderia afirmar que a volta da roda não representa o tempo. O meu desejo é conhecer a natureza e a essência do tempo, com que medimos os movimentos dos corpos, e nos autoriza a dizer, por exemplo, que um movimento dura duas vezes mais que outro. O que chamamos de dia não é apenas o tempo todo o percurso de oriente a oriente, e que nos faz dizer: “Passaram-se tantos dias” – entendendo por isso também as noites, que não são enumeradas separadamente. Portanto, já que o dia se completa pelo movimento do sol e o círculo que ele cumpre a partir do oriente, pergunto eu se o dia é o próprio movimento ou se é o tempo que dura esses movimentos, ou ambas as coisas. Na primeira hipótese, teríamos um dia mesmo se o sol fizesse seu percurso no intervalo de uma hora. Na hipótese da duração, não haveria dia se o sol fizesse seu percurso no breve espaço de uma hora; e o sol deveria cumprir vinte e quatro vezes seu percurso para formar um dia. Diremos então que o movimento do sol, e a duração desse movimento, é que fazem o dia? Mas então não se poderia chamar de dia se o sol efetuasse seu percurso no lapso de uma hora, mais do que se, parando o sol seu percurso, passasse o mesmo tempo que é necessário habitualmente ao sol para completar sua revolução de uma manhã a outra. Portanto, não mais buscarei conhecer em que consiste o dia, mas em que consiste o tempo, que usamos para medir o percurso do sol. Usando tal medida, diríamos que o sol gastara em seu giro a metade do tempo habitual , se o tivesse completado em um lapso de doze horas. E, comparando essas duas durações, diríamos que uma é o dobro da outra, mesmo que o sol demorasse umas vezes o tempo simples, outras o tempo duplo para ir de oriente para oriente. Ninguém, portanto, me diga que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando a oração de um homem fez parar o sol para concluir vitoriosamente a batalha, o sol estava imóvel, mas o tempo caminhava; e a batalha terminou no espaço de tempo que lhe era necessário. Veja, pois, que o tempo é uma espécie de extensão. Mas eu o vejo, ou apenas tenho a impressão de vê-lo? Só tu mo demonstrarás, ó Luz, ó Verdade! CAPÍTULO XXIV O tempo, medida do movimento Queres que eu aprove a quem diz que o tempo é o movimento de um corpo? Não, não aprovo. Sei que não há corpo que não se mova no tempo: tu mesmo o afirmas. Mas não acredito que o movimento de um corpo seja o tempo; isso nunca ouvi, e nem tu o dizes. Quando um corpo se move, sirvo-me do tempo para medir a duração de seu movimento do começo ao fim. Se não vejo o começo, e percebo seu movimento sem ver seu fim, só posso medi-lo do momento em que observo o corpo mover-se até o momento em que já não o vejo. Se o vejo por muito tempo, apenas posso afirmar que a duração de seu movimento é longa, mas não posso dizer quanto é longa, porque só determinamos o valor de uma duração comparando-a. Dizemos, por exemplo: “isso durou tanto quanto aquilo, ou essa duração é o dobro daquela”, semelhantes. Se podemos notar o ponto do espaço onde se inicia um movimento, e o ponto de chegada, ou suas partes, se ele se movesse em círculo, poderíamos dizer quanto tempo levou para ir de um ponto a outro o movimento do corpo ou dessas partes. Assim, o movimento de um corpo é diferente da medida de sua duração; que não vê, pois, a qual dessas coisas se deve chamar de tempo? Se um corpo se move de forma irregular, e outras vezes se detém, ora, é o tempo que nos permite medir, não apenas seu movimento, mas também seu repouso, e afirmar: “Ficou em repouso por tanto tempo quanto em movimento – ou qualquer outro intervalo quetenhamos calculado ou estimado aproximadamente”. O tempo não é pois a mesma coisa que o movimento. CAPÍTULO XXV Prece Confesso-te, Senhor, que ainda não sei o que é tempo. E torno a confessar, Senhor, eu o sei, que digo estas coisas no tempo, e que de há muito estou falando do tempo, e que esse muito também não seria o que é senão pela duração do tempo. Mas como posso saber isto, se desconheço o que é o tempo? Talvez eu ignore a arte de exprimir o que sei. Ai de mim, que não sei nem mesmo o que ignoro! Eis-me diante de ti, meu Deus, tu vês que não minto e que falo de coração. Acenderás minha candeia, Senhor meu Deus, e iluminarás minhas trevas. CAPÍTULO XXVI O tempo, distensão da alma Acaso minha alma não foi sincera confessando-te que posso medir o tempo? De fato, meu Deus, eu o meço, e não sei o que meço. Meço o movimento dos corpos com o auxílio do tempo, e não poderei medir o tempo do mesmo modo? E poderia eu medir o movimento de um corpo, sua duração, o tempo que gasta para ir de um lugar a outro, sem medir o tempo em que se move? Mas o tempo em si, com que o poderei medir? É com um tempo mais curto que medimos um mais longo, como medimos uma viga com o côvado? Do mesmo modo medimos a duração de uma sílaba longa com a duração de uma sílaba breve, dizendo que uma é o dobro da outra. Do mesmo modo medimos a extensão de um poema pelo número de versos, a extensão dos versos pelo número de pés, a extensão dos pés pelo número de sílabas, a duração das sílabas longas pela duração das breves. Não é pelas páginas dos livros que fazemos esse cálculo, o que seria medir o espaço e não o tempo. Conforme as palavras passam e as pronunciamos, dizemos: “Eis um poema longo, porque se compõe de tantos versos; esses versos são longos, porque são formados de tantos pés; esses pés são longos, porque se estendem por tantas sílabas; esta sílaba é longa, porque é o dobro de uma breve”. Todavia, não conseguimos uma medida exata do tempo; pode acontecer que um verso mais curto, se pronunciado mais lentamente, se estenda por mais tempo que um verso mais longo, recitado depressa. O mesmo acontece com um poema, um pé, uma sílaba. Por esse motivo é que o tempo me pareceu não ser nada mais que uma extensão. Mas extensão de que? Não saberia dize-lo ao certo; seria de admirar que não fosse extensão da própria alma. portanto, dize-me , meu Deus, que é o que meço quando digo um tanto vagamente: “Este tempo é mais longo do que aquele” – ou mais exatamente: “Este tempo é o dobro daquele? – Meço o tempo, eu o sei; mas não o futuro, que ainda não existe, nem o presente, porque não tem duração, nem o passado, porque não existe mais. Que meço eu então? Acaso o tempo que passa, e não o tempo passado, como disse acima? CAPÍTULO XXVII A medida do passado Insiste, ó minha alma, e presta grande atenção: Deus é nosso apoio. Ele é que nos criou, e não nós. Olha para lá, par o lado onde desponta a aurora da verdade. Eis, por exemplo, que uma voz corpórea começa a ressoar, e soa, e continua vibrando e deixar de soar; faz-se silencio, a voz calou-se, passou e deixa de existir. Antes de soar, era futura, e não podia ser medida, pois ainda não existia; e agora também não o pode, porque já não existe mais. Só poderíamos medi-la quando ressoava, porque então havia o que medir. Mas mesmo então não era estável, porque vinha e passava. E não seria isso que a tornava mensurável? Porque enquanto passava, estendia-se por um espaço de tempo que a tornava capaz de ser medida, porque o presente não tem duração alguma. Admitamos que foi possível medi-la; eis, suponhamos agora, uma outra voz que começa a se fazer ouvir; ela vibra de modo contínuo, sem nenhuma interrupção. Meçamo-la enquanto vibra, porque no momento em que deixar de vibrar será passada, e já não poderá ser medida. Meçamo- la, então, e avaliemos sua duração. Mas ela vibra ainda, e só pode ser medida depois do início do fenômeno, quando começa a vibrar, até seu fim, quando deixa de vibrar. Porque é precisamente o intervalo que separa um começo de um fim que nós medimos. Por isso, uma voz, que ainda não terminou de ressoar, escapa à medida: é impossível dizer se ela será longa ou breve, se é igual a outra, simples ou dupla, ou qual a relação que tem com essa outra. Mas quando terminar de soar, deixará de existir. Como, então, poderemos medi-la? De fato, medimos o tempo; mas não o tempo que ainda não existe, nem o que já não existe, nem o que não tem duração alguma, nem o que está passando. Não é, portanto, nem o futuro, nem o passado, nem o presente, nem o que não tem limites que medimos: e, contudo, medimos o tempo. Deus creator omnium (Deus, criador de tudo quanto existe): este verso é formado de oito sílabas, alternativamente breves e longas. As quatro breves, a primeira, a terceira, a quinta e a sétima – são simples em relação às quatro longas: a segunda, a quarta, a sexta e a oitava. Cada sílaba longa tem uma duração duas vezes maior que a breve. Eu pronuncio e percebo que é assim pelo testemunho claro de meus sentidos. E por esta testemunho que é fidedigno, meço uma longa por uma breve, e noto que ela a contém duas vezes. Mas como uma sílaba só se faz ouvir depois da outra, se a breve vem primeiro, e a longa a seguir, como poderei reter a breve, como aplicá-la à longa, para compará-las e ver que esta contém aquela duas vezes, uma vez que a longa só começa a soar quando a breve deixou de se ouvir? E a própria sílaba longa, não me é possível medi-la enquanto está soando, porque eu só poderia medi-la quando se calasse. Mas ela, ao terminar, passou. Que é pois que eu meço? Onde está a breve, que seria minha medida? Onde está a longa, que meço? Apenas vibraram, foram- se, passaram, e não existem mais. Não obstante, eu as meço e respondo com a segurança que me pode dar um sentido bem educado, que evidentemente uma é de duração simples e a outra dupla. Mas só poderei fazê-lo depois que ambas passaram e terminaram. Logo, eu não meço as sílabas, que não existem mais, mas algo que permanece gravado em minha memória. É em ti, meu espírito, que meço o tempo. Não me objetes nada, pois é assim. Não te perturbes com as ondas desordenadas de tuas emoções. É em ti, digo, que meço o tempo. A impressão que em ti gravam as coisas em sua passagem, perduram ainda depois que os fatos passam. O que eu meço é esta impressão presente, e não as vibrações que a produziram e se foram. É ela que meço quando meço o tempo. Portanto, ou essa impressão é o tempo, ou eu não meço o tempo. Mas quando medimos silêncios, e dizemos que o silêncio teve a mesma duração que certa palavra, não estamos dirigindo nossa atenção para a medida dessa palavra, como se ainda pudéssemos ouvi-la, para podermos avaliar no espaço de tempo, o intervalo do silêncio? Com efeito, por vezes, sem abrir a boca ou dizer palavra, fazemos mentalmente poemas, versos, discursos; avaliamos a extensão do seu movimento, sua duração, uns em relação aos outros, exatamente como se usássemos a voz. Se alguém quisesse pronunciar um som prolongado, e regular antecipadamente, em pensamento, sua duração, estima em silêncio a medida dessa duração e, confiando à memória, começa a emitir o som, que vibra até atingir o limite fixado. Ou melhor: esse som vibrou e vibrará, porque a parte que passou soou; a que ainda resta, soará e chegará a seu fim. A atenção presente vai lançando o futuro para o passado, e o passado cresce com a diminuição do futuro, até que, esgotado o futuro, não haja mais que passado. CAPÍTULO XXVIII A medida do futuro Mas o futuro, que ainda não existe, como pode diminuir ou consumir-se? E o passado, que já não existe, como pode aumentar, a não se por existirem no espírito, autor dessas três transformações: a espera, a atenção e a lembrança? O objeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança. De fato, quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Todavia,a espera do futuro já está no espírito. E quem poderá negar que o passado não mais existe? Contudo, a lembrança do passado ainda está no espírito. Enfim, haverá alguém que negue que o presente carece de duração, porque é um instante que passa? No entanto, perdura a atenção, diante da qual o seu objeto presente continuamente se retira. O futuro, portanto, não é longo, porque não existe. Um futuro longo seria apenas uma longa espera do futuro. nem pode ser longo o passado, que também não existe. Um passado longo é uma longa lembrança do passado. Digamos que eu queira cantar uma canção que conheço: antes de iniciar, minha expectativa se estende pela melodia como um todo. Quando começo, tudo o que vira passado é armazenada na memória. A atividade de meu espírito se divide em memória, onde guardo o que já disse, e em expectativa em relação ao que vou dizer. Contudo, a atenção está presente, e por seu intermédio o futuro se torna passado. Quanto mais se aproxima o fim da canção, tanto menos se torna a expectativa e tanto maior a memória, até que aquela se esgota e a ação cumprida passa inteiramente para a memória. E o que acontece com a canção tomada em seu conjunto, também ocorre com cada uma de suas partes, com cada sílaba; e também acontece com uma ação mais longa, da qual essa melodia talvez faça parte. O mesmo acontece com toda a vida do homem, da qual seus atos são partes. Sucede, enfim, com toda a história dos filhos do homem, da qual cada existência é apenas uma parte. CAPÍTULO XXIX A eternidade de Deus Mas porque tua misericórdia é superior a todas as vidas, e eis que minha vida não é mais que distensão, e tua destra me acolheu em meu Senhor, o Filho do homem, mediador entre ti, que és uno, e nós, que somos muitos e vivemos divididos por diversas paixões. Assim. Por ele me unirei àquele, que por ele se uniu a nós, e liberto dos antigos dias, recolherei meu ser seguindo tua Unidade. Esquecido do passado, sem me preocupar com as coisas futuras e transitórias, atento apenas àquilo que é eterno, não com dispersão mas com todas as minhas forças buscarei a palma da vocação celeste, onde ouvirei a voz de teu louvor, e onde contemplarei tua alegria, que não conhece futuro nem passado. Agora, porém, meus anos transcorrem em lamentos, e tu, meu consolo, ó Senhor, meu Pai, tu és eterno. Mas eu me dispersei no tempo, cuja ordem ignoro; tumultuosas vicissitudes despedaçam meus pensamentos, entranhas de minha alma, até o dia em que, purificado pelo fogo de teu amor, me una a ti. CAPÍTULO XXX Deus e o tempo E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. não mais tolerarei as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, tem mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” – ou ainda: “Como lhe veio a idéia de criar algo, se antes nunca fizera nada” – Concede- lhes, Senhor, que reflitam no que dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência da criação, e deixem de semelhantes falácias. Que também atentem para o que têm diante de si, para compreender que tu, antes de todos os tempos, és o Criador eterno de todos os tempos, e que nenhum tempo te é coeterno, nem criatura alguma, embora algumas estejam acima dos tempos (Agostinho se refere aqui, aos anjos e demônios). CAPÍTULO XXXI Conclusão Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles me levaram as conseqüências de meus pecados! Cura meus olhos, para que eu me alegre com tua luz! Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes para conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espírito nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim. Mas longe de mim a idéia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa. Porque aquele que canta ou escuta uma melodia conhecida, dividido entre a expectativa das notas por vir e a lembrança das notas passadas, passa por impressões diferentes. Mas contigo não se dá nada semelhante, tu que és imutável e eterno, Criador verdadeiramente eterno dos espíritos. Como no princípio, conheceste o céu e a terra, sem que teu espírito mudasse seu saber, assim criaste o céu e a terra, sem que tua ação passasse por etapas distintas. Que aquele que compreende isto te louve, assim como o que não compreende. Oh! Como és sublime! E os de coração humildes são tua morada! Levantas os que caíram, e os que graças a ti continuam eretos, não caem nunca. LIVRO DÉCIMO-SEGUNDO CAPÍTULO I Prece Inquieto está meu coração, Senhor, quando, na miséria de minha vida é atingido pelas palavras de tua Escritura Sagrada. Por isso, geralmente, a abundância de palavras é testemunho da pobreza da inteligência humana. A busca usa mais palavras que a descoberta; é maior o pedir que o obter; a mão que bate cansa-se mais do que a mão que recebe. Mas nós temos tua promessa: quem a destruirá? Se Deus está conosco, quem será contra nós? Pedi, e recebereis; procurai e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede recebe, todo o que procura encontra, e a todo o que bate se lhe abrirá. São promessas tuas. E quem temerá ser enganado, quando a promessa vem da Verdade? CAPÍTULO II O céu do céu Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e a terra; este céu que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que trago em mim. sim, criaste tudo isto. Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: “O céu do céu pertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos homens?” – Onde está esse céu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra? De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terra também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos homens. CAPÍTULO III As trevas sobre o abismo Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As trevas cobriam o abismo”. – Mas que são trevas, senão ausência da luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o abismo porque a luz não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som? Não ensinaste, Senhor, à alma que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor, que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada, nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Não era um nada absoluto, mas massa informe, sem figura alguma. CAPÍTULO IV A matéria informe Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua idéia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o abismo? Colocados no mais baixo grau da criação,eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para com ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aos homens pelos termos de terra invisível e informe? CAPÍTULO V Sua natureza Assim, quando o pensamento indaga o que nossos sentidos podem colher a respeito dessa matéria, responde a si mesmo: “Não é nem forma inteligível, como a vida, como a justiça, porque é a matéria corpórea, nem uma forma sensível, porque nada há que se possa ver ou perceber no que é invisível e sem forma”. – Quando o pensamento humano fala desse modo, procura conhecê-la ignorando-a, ou ignorá-la conhecendo-a? CAPÍTULO VI Em que consiste Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essa matéria, eu direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito desse nome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formas mais diversas, e não o consegui. Meu espírito revolvia confusamente formas feias e horríveis, mas enfim sempre formas. Chamava de informe essa matéria, não porque a imaginasse sem forma, mas por tê-las tão estranhas e bizarras que, se a visse, afastaria meus sentidos e confundiria minha fraqueza de homem. Por isso, o que eu concebia era informe, não por ausência de qualquer forma, mas por comparação com formas mais belas. A reta razão me persuadia; se eu quisesse conceber algo absolutamente informe, a suprimir nele todo resquício de forma, mas eu não conseguia; parecia- me bem mais fácil negar a existência do que estava privado de toda forma, do que conceber um ser a meio termo entre a forma e o nada, e que não fosse nem forma, nem nada, um ser informe, um quase nada. Então, minha inteligência deixou de inquirir minha imaginação, cheia de imagens de formas corpóreas, que ela variava e mudada a seu talante. Fixei a atenção nos próprios corpos, analisei mais profundamente essa mutabilidade pela qual eles cessam de ser o que eram e começam a ser o que não eram. Suspeitei que essa transição de uma forma para outra se fazia por meio de algo informe, e não do nada absoluto. Mas meu interesse era saber, e não apenas supor; e se minha voz e minha pena te confessassem em detalhes as soluções deste problema que me inspiraste, qual de meus leitores teria paciência para me entender? Contudo, meu coração não deixará de te honrar com cânticos de louvor por essas inspirações, por aquilo que não têm palavras capazes de exprimir. É a própria mutabilidade das coisas que é susceptível de assumir todas as formas em que se transfiguram as coisas mutáveis. E o que é essa mutabilidade? É espírito? Será talvez corpo? Seria uma espécie de espírito ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que é algo, ou o que é e não é, eu a chamaria assim. No entanto, era necessário que ela existisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas. CAPÍTULO VII A criação do nada Mas de onde essa matéria tirava seu ser, senão de ti, por quem existe toda e qualquer coisa? Quanto mais difere de ti uma coisa, mais longe de ti está – e não se trata de distância espacial. Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu,