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Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 |17 Lídia Andrade Lourinho1 Ana Maria Fontenelle Catrib2 Aline Veras Morais Brilhante2 Claudio Moreira3 Maria Salete Bessa Jorge4 1Faculdade Ratio. Fortaleza/CE, Brasil. 2Universidade de Fortaleza. Fortaleza/CE, Brasil 3University of Massachusetts Amherst. Amherst/MA, Estados Unidos da América. 4Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza/CE, Brasil. | A formação do fonoaudiólogo e a sua interlocução com a Saúde Coletiva: percepções dos docentes e discentes Qualification of speech therapists and their connection with Collective Health: perceptions of teachers and students RESUMO| Introdução: A formação com ênfase nos marcos conceituais da promoção da saúde e da integralidade permite a reflexão sobre a atuação dos profissionais da saúde no exercício de uma prática integral, humanizada e interdisciplinar, com o objetivo de superar o modelo tecnicista da assistência. Objetivo: Apreender o significado da formação com ênfase na saúde coletiva para os docentes e discentes dos cursos de graduação em fonoaudiologia. Métodos: a concepção metodológica se insere na abordagem qualitativa, alinhando-se ao enfoque crítico-interpretativo. Foi realizada entre os meses de fevereiro e setembro de 2014, por intermédio de entrevistas em profundidade com professores e coordenadores e grupos focais com os alunos. O tratamento do material empírico foi conduzido pelos pressupostos da hermenêutica dialética. Resultados: A fonoaudiologia ainda insiste numa formação conteudista e fragmentada, centrada no tecnicismo. Os que ensinam repassam os modelos aprendidos na sua formação, e os que aprendem repetem tais modelos na sua atuação. Houve uma mudança no quadro discente provocada pela expansão do ensino superior no brasil e que o enfoque concedido à atuação prática do fonoaudiólogo continua sendo basicamente clínico. Conclusão: Os princípios e diretrizes do sistema único de saúde precisam ser operacionalizados em um novo modelo assistencial com base na promoção da saúde e na integralidade, para tanto, solicitam-se novos perfis profissionais. É necessário provocar e provar novos arranjos formativos na formação em saúde para que se possa formar e vivenciar novos arranjos interventivos nas práticas de saúde. Estudantes, professores, profissionais e usuários, todos podem se tornar protagonistas nessa produção de novos modelos de ser, aprender e ensinar saúde. Palavras-chave| Fonoaudiologia; Formação em saúde; Saúde Coletiva; Promoção da Saúde. ABSTRACT| Introduction: Qualification with emphasis on conceptual Health Promotion frameworks and completeness triggers reflections about professional practices and about Health actions focused on integral, humanized and interdisciplinary practices; moreover, it aims at overcoming the technical caregiving model. Objective: Grasping the significance of qualification with emphasis on public health based on the perception of Speech Therapy professors and undergraduate students. Methods: Methodological design included a qualitative approach lined-up to the critical-interpretive approach. Data were collected between February and September 2014, through in-depth interviews with professors and department coordinators, as well as through focus groups with the students. The empirical material was treated based on assumptions of the hermeneutics dialectic. Results: Speech, Language and Hearing Sciences insists on content-based and fragmented qualification focused on technicality. The ones who teach only address the previously learnt models and students learn to repeat these same models in their professional practices. There was a change in students’ framework to the greater availability of higher education institutions in Brazil, although the focus given to practices performed by speech therapists lies on clinical procedures. Conclusion: The principles and guidelines of the Unified Health System (SUS) can be made operational based on a new model focused on Assistance in Health Promotion and Completeness; however, this new model demands a new professional profile. It is necessary promoting and trying new training arrangements, the so-called ‘Training in Health’ so that students can be trained in, and experience, new interventional arrangements in Health Practices. Students, professors, professionals and users; everyone, can become a protagonist in the production of this new models based on being healthy and on learning and teaching about health. Keywords| Speech, Language and Hearing Sciences; Health Formation; Public Health; Health promotion. 18| Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 A formação do fonoaudiólogo e a sua interlocução com a Saúde Coletiva | Lourinho et al. INTRODUÇÃO| Discutir a formação com ênfase nos marcos conceituais da Promoção da Saúde e da integralidade permite a reflexão sobre a atuação dos profissionais da saúde no exercício de uma prática integral, humanizada e interdisciplinar, com o objetivo de superar o modelo tecnicista da assistência. Ao conceber a saúde integral como direito de todos e dever do Estado, a intervenção fonoaudiológica, que anteriormente apenas oferecia um atendimento clínico e individual, gradativamente foi ampliando sua inserção nos serviços públicos de saúde1. Desde o seu início, a Fonoaudiologia incorporou em sua atuação os principais fundamentos da Medicina Preventiva, definida como “a ciência e a arte de evitar doenças, prolongar a vida, promover a saúde física e mental e a eficiência”2. Nos anos de 1980, os cursos de graduação em Fonoaudiologia no Brasil começaram a incluir disciplinas relacionadas à prevenção dos distúrbios da comunicação. A seara da prevenção e da Promoção da Saúde, no entanto, surgia de forma incipiente nesse período. Ao conceber a Promoção da Saúde como proteção específica de determinadas doenças, o modelo da fonoaudiologia preventiva continuava tendo a doença como foco e objeto de ação3. A aproximação entre a Fonoaudiologia e o campo da Saúde Coletiva aconteceu mediante um processo discreto, se considerarmos o contexto túrbido da rede de saúde e das políticas públicas no País4,5. A inserção do fonoaudiólogo na saúde pública aconteceu nos anos de 1970 e 1980, no entanto o acesso a um atendimento fonoaudiológico era difícil. Só com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), no final dos anos 1980, houve aumento na contratação desse profissional para o trabalho no setor e houve um investimento maior na pesquisa, com esse enfoque6. Nos últimos tempos enfrentamos desafios e procuramos novas perspectivas de transformação do Ensino Superior em saúde no Brasil. Buscamos reconstituir os processos formativos, tornando-os mais significativos para os alunos, professores e comunidade. Leis, normas e resoluções (Diretrizes Curriculares) ou portarias são editadas sob os auspícios dos Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde (MS), com o intuito de promover e acelerar mudanças na Educação Superior7. Para refletir e redimensionar a prática do fonoaudiólogo, com o intuito de mudanças na sua atuação na saúde coletiva, faz-se necessário discutir os conceitos de Prevenção e Promoção no campo da saúde. Verifica-se que o foco era na pessoa e nas ações a ele direcionadas. As ações educativas baseadas no modelo preventista acontecem de forma unidirecional, descontextualizadas, quase sempre não compartilhadas e por vezes planejadas com autoritarismo característico da não participação, com o objetivo de produzir mudanças de hábitos e estilos de vida insalubres8. Quando falamos em Promoção da Saúde, reportamo-nos a novas formas de olhar o sujeito, de conceber a doença e de entender a saúde; referimo-nos a novas perspectivas de atuação com objetivos de maximizar a saúde e dinamizar os recursos da comunidade. A Promoção tem como base a identificação das necessidades e condições de vida das pessoas9.O conceito de Promoção da Saúde é direcionado não apenas a grupos específicos, mas também à população em geral, grupos, comunidades e também a processos sociais, culturais e políticos que influenciam direta ou indiretamente a qualidade de vida das pessoas. As ações de Promoção da Saúde são canalizadas para sujeitos, ambientes, grupos, comunidades, pessoas e coletividades com necessidades específicas. Seu foco de atenção está na participação de todos os setores da sociedade na busca da transformação dos determinantes das condições de vida e saúde, mediante a constituição de políticas públicas saudáveis10. A Fonoaudiologia, discutida na perspectiva da Promoção da Saúde, é algo relativamente novo. Desde sua inclusão na Atenção Básica, e com a criação, em 2001, do Comitê de Saúde Pública da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, há um aprofundamento na discussão sobre os limites e possibilidades de atuação nesse nível de atenção11. Podemos constatar, entretanto, que ainda não se verifica nos trabalhos fonoaudiológicos a concepção ampla, dinâmica e complexa do processo saúde-doença, e também não se percebe a importância do fato de que a linguagem e a comunicação estabelecem uma diferença na saúde e na vida das pessoas, por possibilitar ao ser humano a sua interação Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 |19 com o mundo, tornando mais dinâmica a sua aprendizagem e, por consequência, o seu desenvolvimento. Verifica-se que a atuação do fonoaudiólogo pode ser voltada para ampliar os conhecimentos da população sobre os determinantes dos problemas da comunicação humana, promover a superação destes e realizar atendimento integral sob fundamento dos princípios do SUS, e isso pode ser traduzido nas ações de Educação em Saúde nos espaços coletivos12. É importante nos aproximarmos e dialogarmos com as Ciências Sociais para fundamentarmos nossas discussões e estudos nos pressupostos sociológicos, buscando compreender melhor o sujeito social, onde o homem é tanto produto como produtor da história e da cultura. Precisamos investigar as percepções, as significações, as representações dos contextos sociais de vida e trabalho para podermos identificar os possíveis determinantes culturais e sociais dos processos saúde-doença13. O avanço da Fonoaudiologia em saúde pública solicita a revisão de paradigmas e a busca de uma práxis com enfoque na Promoção da Saúde, mas, para que isso aconteça, precisamos de revisões nas grades curriculares dos cursos que formam esse profissional11,14. Desde sua origem, a Fonoaudiologia dialoga com diversas disciplinas, procurando nelas conhecimentos para ancorar sua prática. É com essa visão que devemos (re)pensar mudanças na e para a produção do conhecimento, da concepção de saúde e da formação do profissional, inicial e continuada. É preciso rever conceitos e práticas, visto que trabalhos realizados nos anos de 1990, que analisaram a prática fonoaudiológica, demonstraram que existe um distanciamento entre o fazer fonoaudiológico e a realidade da constituição do processo saúde-doença na população e seus determinantes e, portanto, ainda são pautados por ações marcadamente definidas por critérios clínicos os quais enfatizam a atenção individual e, com isso, é ensejada a dificuldade de acesso do usuário aos serviços públicos fonoaudiológicos14. O que acontecia, e inaceitavelmente ainda ocorre, é o repasse da prática clínico/hospitalar para os espaços públicos/ coletivos, ainda numa visão reabilitadora/terapêutica dos distúrbios da comunicação, e uma ineficiência em trabalhar com e nos grupos; vazios deixados pela formação desvinculada da demanda e da realidade. Essa prática, com as características do modelo clínico preventista, tende a separar a doença do contexto no qual ela está inserida e provavelmente no qual ela foi produzida. As práticas de Fonoaudiologia com objetivo de prevenção, orientadas por essa visão (limitada), fragmentam o sujeito e sua linguagem (função social), reforçando a ideia de saúde compreendida como algo individual, isolado15. Em decorrência dos constantes avanços das Ciências da Saúde na busca do reconhecimento da formulação social do estado de saúde e adoecimento com a intenção de capacitar os cidadãos como agentes corresponsáveis pela sua saúde, busca-se estabelecer uma práxis na Fonoaudiologia, sustentada na perspectiva do paradigma da Promoção da Saúde e da integralidade. Confirmando a necessidade de mudanças nas práticas e na formação, percebendo que são duas faces do mesmo movimento de produção da atenção integral à saúde, amplia-se a importância da discussão sobre o novo modelo de atenção à saúde e da formação dos trabalhadores16. Busca-se a formação de um profissional com perfil generalista, que seja capaz de identificar as questões fonoaudiológicas de maior importância para a comunidade de abrangência, bem como de adotar medidas preventivas e de Promoção da Saúde possíveis para prestar um atendimento de qualidade à população 4,5,1. Os pressupostos deste estudo são de que a formação do fonoaudiólogo se orienta pela perspectiva clínica, a qual não responde às demandas da saúde coletiva uma vez que a medida da formação continua cartesiana e privatista do ponto de vista ideológico. Nesse sentido, propomos, nesta pesquisa, as seguintes questões norteadoras: Como os futuros fonoaudiólogos estão aderindo ou não às atuais tendências da formação? Como essa adesão acontece? Como se constrói o sentido da integralidade e da promoção da saúde na construção de saberes e práticas dos docentes de Fonoaudiologia? Quais são seus conhecimentos acerca do trabalho no SUS? O processo formativo em Fonoaudiologia atende às demandas de um modelo de saúde que se pretende resolutivo? MÉTODOS| 20| Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 A formação do fonoaudiólogo e a sua interlocução com a Saúde Coletiva | Lourinho et al. O local da pesquisa deste estudo compreendeu as duas instituições de Ensino Superior que oferecem o curso de graduação em Fonoaudiologia no estado do Ceará, em função da necessidade de debater para compreender a formação dos fonoaudiólogos e a sua interlocução com a Saúde Coletiva. A concepção metodológica dessa investigação se insere na abordagem qualitativa, alinhando- se ao enfoque crítico-interpretativo, visto que concebe a intercessão da subjetividade com a objetividade de forma dialética. Para a coleta dos dados, foram realizadas entrevistas em profundidade e grupos focais. O tratamento do material empírico foi conduzido pelos pressupostos da Hermenêutica Dialética por meio de três fases sequenciadas - ordenação, classificação e análise final 17. No que diz respeito à perspectiva aos moldes, ante a variedade de vertentes que caracterizam a tradição qualitativa, este projeto se coaduna com um enfoque crítico- interpretativo, visto que tem a subjetividade na interface com a materialidade a que se vincula, dialeticamente. Nessa circunstância, há a possibilidade de refletir criticamente sobre o objeto, no intuito de subsidiar ações de intervenção, compreendendo a pesquisa como processo transformador no sentido de ampliar os horizontes de entendimento dos agentes envolvidos. Os participantes deste estudo foram dois coordenadores, sete professores e quinze alunos dos cursos de graduação em Fonoaudiologia das duas instituições. No total, participaram 24 pessoas implicadas com o objeto de estudo. Para a seleção dos usuários informantes chave, no caso dos discentes, foram consideradas as seguintes características: estar cursando o último ano do curso de graduação em Fonoaudiologia, e no caso dos docentes, que estejam atuando há pelo menos um ano na instituição pesquisada. Antes da etapa do início do trabalho de campo, conversou- se com as coordenações dos cursos, para autorizar a nossa inserção no campo. Inicialmente, entramos em contato com os coordenadores das duas instituiçõespara explicar os objetivos da pesquisa e solicitar autorização para a sua realização. Posteriormente, os alunos foram convidados a participar por intermédio de carta convite. Os participantes do estudo tiveram prévio acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram devidamente orientados em relação às questões éticas e de procedimentos antes da assinatura do TCLE, o participar da pesquisa, atendendo aos princípios éticos conforme Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. A amostra, numa pesquisa qualitativa, é constituída por pessoas tomadas ao acaso e deve ser representativa; um modelo reduzido do total de uma determinada população. Um pequeno número é interrogado, constituído a partir de critérios de diversificação, em virtude das variáveis estratégicas para a obtenção de maior diversidade possível de informações sobre o fenômeno investigado, as que desempenham um papel importante no campo do problema estudado17,18,19,20. Para a apreensão das narrativas dos informantes discentes, foram realizados dois grupos focais, com a gravação de seu conteúdo após o consentimento do informante. Posteriormente, essas entrevistas foram transcritas. O instrumento utilizado para a obtenção do material foi um roteiro com questões norteadoras sobre o desafio de formar profissionais para trabalhar na Saúde Coletiva, compreendendo algumas perguntas abertas que oportunamente poderão ser desdobradas em novas, com base nos conteúdos que poderão emergir das falas dos entrevistados. A opção pelo grupo focal possibilitou o conhecimento aprofundado da realidade abordada, já que os entrevistados falaram sobre tópicos relacionados a temas específicos, tendo maior flexibilidade em suas respostas, buscando também enriquecer mais os tópicos18. Para a apreensão das narrativas dos docentes e dos coordenadores de curso, foi utilizada a entrevista semiestruturada, que é uma técnica a qual busca abordar questões subjetivas e objetivas e seu pano de fundo está localizado, até certo ponto, no Interacionismo Simbólico19. A entrevista foi moderada por questões norteadoras refletindo os aspectos relacionados ao projeto17. Os instrumentos de análise dos dados foram determinados pelo material coletado e pela teoria que nos embasa, ou seja, numa perspectiva crítica. Assim, por ocorrerem falas, a análise dos dados sucedeu por meio da Análise de Conteúdo e da Hermenêutica-Dialética. A associação entre a Hermenêutica e a Dialética advém de três aspectos importantes: 1) as duas partes do homem na compreensão da realidade; 2) ambas têm o mesmo objeto Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 |21 de análise, que é a práxis social; 3) buscam a afirmação ético-política do pensamento17. Minayo17 acredita que a importância da Análise de Conteúdo, visto que pretende ultrapassar o nível do senso comum e do subjetivismo na interpretação, é alcançar uma vigilância crítica em relação à comunicação de documentos, textos literários, biografias, entrevistas ou observação”. O processo analítico é resultante do confronto entre as sínteses horizontais dos diferentes grupos representativos, e pela contínua revisão dos conteúdos emergirão as categorias temáticas empíricas do estudo. O início do processo aconteceu com a compilação das informações ou categorias, por temas, tendo o cuidado para que todas as manifestações sobre os temas encontrados fossem incluídas. Esse estágio inicial possui caráter mais descritivo. Em seguida, analisamos as interconexões dos temas e dimensões. Após essa etapa, teve início a interpretação dos sentidos dos discursos, ou seja, a fase hermenêutica da pesquisa, na qual se realiza a construção da “rede de sentidos” do material discursivo apreendido durante o trabalho de campo. A análise dos discursos justifica-se nos processos compreensivo e interpretativo que se fundamentam na Hermenêutica Dialética. A configuração das etapas da investigação adquiriu sentido na aproximação com os contextos pesquisados, com os seus cotidianos e nas relações entre os sujeitos e seus contextos, considerando também suas crenças e valores, bem como suas vivências e as significações advindas das singularidades e das coletividades. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza e aprovado sob o parecer número 745.679/2014. RESULTADOS| Como resultados da pesquisa, verifica-se que a Fonoaudiologia ainda insiste numa formação conteudista e fragmentada, centrada no tecnicismo. Os que ensinam repassam os modelos aprendidos na sua formação, e os que aprendem repetem tais modelos na sua atuação. Que houve uma mudança no quadro discente provocada pela expansão do ensino superior no Brasil - um sistema de elite para um de sistema de massa que reflete diretamente na formação. E que o enfoque concedido à atuação prática do fonoaudiólogo continua sendo basicamente clínico. Nas últimas décadas, o tema da formação em saúde coletiva tornou-se por demais relevante. Pesquisar como acontece a expansão da formação em Fonoaudiologia no contexto da Saúde Coletiva possibilita identificar os caminhos percorridos e projetar outros, visando cada vez mais ao reconhecimento técnico-científico e social da área. Importante é lembrar que essa expansão aconteceu em resposta à agenda do Banco Mundial e das demais agências de países desenvolvidos, que tinham como objetivo viabilizar a formação tecnológica nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, em especial, relativamente à capacitação profissional direcionada para as indústrias. Tal expansão fez resultar um fenômeno diretamente relacionado aos efeitos do neoliberalismo, e, portanto, não se inseria em uma agenda política que visava ao desenvolvimento de cidadãos em um sentido mais pleno20, 21, 22. São políticas que têm como proposta a oligopolização da educação superior no Brasil. Esse processo transcende as fronteiras nacionais mediante a internacionalização. Infelizmente, ela acontece por meio de uma atuação confusa e sem muitos critérios do governo brasileiro, que possibilita um crescimento desordenado de expansão da matrícula no ensino superior23; uma expansão atrelada à “mercadorização” da educação decorrente do Processo de Bolonha, que tem como intuito fazer uma zona comum de formação em ensino superior envolvendo países da América Latina, Caribe e União Europeia23. O Brasil criou leis para atender ao processo supracitado, como a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394/96), que veio para reforçar a relação entre regulação e avaliação. No seu art. 46, ficam condicionados os processos de autori zação e reconhecimento de curso, bem como o credenciamento de Instituições de Ensino Superior (IES) a instrumentos regulares de avaliação. Nessa conjuntura, em 1996, iniciou- se um dos mais importantes instrumentos de avaliação, o Exame Nacional de Cursos (ENC), popularmente denominado como “Provão”, de acordo com Stromquist24, ocasionalmente produz benefícios às práticas de ensino no contexto da sala de aula. 22| Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 A formação do fonoaudiólogo e a sua interlocução com a Saúde Coletiva | Lourinho et al. A privatização iniciada no governo do Fernando Henrique Cardoso continuou, mesmo que forma desacelerada, no governo Lula, só que com a concessão de bolsas pelo Ministério da Educação (MEC). O autor ressalta que a expansão, mantida no governo da Dilma Rousseff, ensejou dilemas relevantes como o evento de que jovens de classes menos privilegiadas econômica e culturalmente sofrem mais com a evasão e a discriminação, e que a falta de preparo das instituições no que se refere à formação didático-pedagógica dos professores para trabalhar com essas diferenças, o currículo improvisado e a precária estrutura física operam consequências impensáveis na qualidade do ensino superior25. O autor salienta que é profícuo o caso desses jovens, que, mesmoludibriando a história pessoal, lograram sucesso no acesso ao ensino superior e se beneficiaram com melhorias nos ganhos salariais e na qualidade de vida, visto que um diploma superior pode proporcionar um aumento da renda em até 150%25. Nos cursos pesquisados, percebe-se claramente essa realidade. A maioria dos estudantes que agora estão nas salas de aula nos cursos de Fonoaudiologia no estado do Ceará são provenientes das escolas públicas, fato que até há pouco tempo era improvável, por conta dos custos dos cursos nas IES privadas. O nosso curso era muito elitizado e tinha que se envolver com isso e depois quando eu saí de lá eu comecei a ver que a gente podia agir de uma outra forma (F2). Até pouco tempo a maioria dos que procuram a fono eram egressos das escolas particulares e utilizavam a fono como ponte para outros cursos. Hoje não!! E isso ajuda a mudar o olhar sobre as terapias e sobre a profissão (C1). Analisando a expansão do ensino superior no Brasil, houve mudança de um sistema de elite para um de sistema de massa. Temos um sistema de ensino massificado, no entanto de baixa qualidade e que não privilegia o acesso universal e a melhoria de qualidade de ensino superior no País26. Convém ressaltar que o foco inicial da formação era e ainda é na reabilitação da linguagem. De acordo com Crestani et al 20, “a reabilitação da linguagem é, ainda hoje, o principal foco da formação e, consequentemente, a maior fonte de emprego para o fonoaudiólogo”. Ainda segundo os autores, o caráter reabilitador da atuação fonoaudiológica é peculiar à área, tanto no Brasil como no Chile. Numa pesquisa realizada em ambos os países sobre a inserção do fonoaudiólogo nos sistemas público e privado de atenção à saúde, demonstra-se que a reabilitação é o foco principal da atuação fonoaudiológica27. Tal achado justifica o cuidado com a formação para o Sistema Único de Saúde (SUS), alvo de estudo e discussão em outras pesquisas1,5,24 e comungam com os achados deste estudo, ora sob relatório. Ainda sobre os achados da pesquisa de Crestani et al 20, no que se refere à inserção do fonoaudiólogo no campo da Saúde, infelizmente não temos dados atualizados sobre a relação entre o número de habitantes e total de profissionais na Atenção Básica/Atenção Primária e na Secundária à Saúde. Encontramos a justificativa da ausência de dados atualizados nos relatos dos professores: A nossa entrada na saúde coletiva é bem mais recente do que as outras áreas, e esse fator histórico tem que ser considerado. A fono durante muito tempo ficou no limbo, ficou sem ser vista por ninguém, porque ela mesmo[sic] não se valorizava. A formação vai contribuir quando eu chegar lá minha clinica eu vou ver o paciente como um ser integral, que tem sua autonomia, a sua história (U1). O que há é somente uma previsão de um estudo realizado em 2005, o qual apontava a conveniência de 1/10.000 habitantes na Atenção Básica/Atenção Primária e de 1/50.000 habitantes na Atenção Secundária/Atenção Especializada28. Portanto, não há ensaios que demonstrem a relação entre a oferta de vagas, o número de matriculados e de egressos dos cursos de Fonoaudiologia com a demanda social da profissão. Sabe-se apenas que o acesso ao serviço terapêutico fonoaudiológico no contexto da Saúde Coletiva ainda é muito incipiente. A formação do fonoaudiólogo deve privilegiar o sistema de saúde vigente no País. A preocupação com a saúde fonoaudiológica da população é o eixo estruturante para as reflexões que permitam redimensionar a atuação do fonoaudiólogo, considerando que, sem a compreensão do processo saúde-doença, é impossível estabelecer teorias e práticas as quais permitam ao profissional ser um agente de transformação28. Na atualidade, no entanto, o enfoque concedido à atuação prática do fonoaudiólogo continua sendo basicamente clínico, sendo absurdo constatar que as práticas ainda Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 |23 estão completamente envolvidas com o fazer técnico e o atendimento individualizado, não se percebendo que a práxis fonoaudiológica na saúde coletiva solicita atuações mais profundas e pensadas. A formação ainda está especializada, fragmentada, porque a gente não sabia nada disso. A gente não falava em saúde coletiva, em SUS. Hoje já se fala, e a visão continua a mesma. Os profissionais que dão aula hoje, a não ser os mais jovens, que não sejam fonossaura como eu, talvez, mas só talvez, tenham sido formados com o viés da saúde coletiva e consiga ter essa visão generalista (F1). Historicamente, a formação profissional em saúde é permeada por um sistema educacional com foco no professor, apoiado nas metodologias tradicionais e tecnicistas e com o currículo baseado em disciplinas o que evidencia a fragmentação e a especialização do conhecimento. Portanto, essas características apontam para a perspectiva educacional classificada por Saviani29 como “pedagogia tradicional”. Encontramos a reprodução desses modelos com base nas metodologias tradicionais nas falas dos professores pesquisados e podemos perceber a dificuldade que eles têm de “sair da caixinha” da reprodução de modelos aprendidos. Essa dificuldade é justificada pela ausência de uma formação pedagógica que sustente a sua práxis em sala de aula. Como é que eu vou reproduzir um modelo que eu não vivenciei, ninguém me ensinou a ser professora, ninguém me disso isso. Vou reproduzir o que eu vivenciei como aluno e eu vivenciei como aluna um modelo unicamente tradicional e mesmo o que hoje se propõe a fazer diferente estão enraizados no tradicional (F1). O modelo pedagógico hegemônico utilizado na formação dos profissionais em saúde é conteudista e organizado de forma fragmentada e isolada, dividindo a pessoa em partes desassociadas. Desvincula os conhecimentos das áreas básicas dos saberes da área clínica, concentra as oportunidades de aprendizagem da clínica apenas no âmbito do hospital ou ambulatório, assume a avaliação cognitiva de suas intervenções apenas por acumulação de informação técnico-científica padronizada, modelos repassados na formação, imortalizando os padrões tradicionais de prática em saúde, que mal dão conta do aspecto individual30. A resistência em mudar o modelo pedagógico hegemônico pode ser verificada nos seguintes relatos: Esses professores têm muita resistência. Numa equipe de professores eu tenho um trabalho grande de adaptação, para mudança desse olhar tecnicista. Mesmo eu na entrevista, eles consigam fazer todo o jogo de cintura; quando eles vão para sala de aula eles passam a filosofia deles, e ai os modelos que se reproduzem (C1). As instituições de ensino, porém, ao formarem, configuram muitos modelos disciplinares, o que permite colocar uma ordem em uma determinada multiplicidade, e também produzir o automático. Essas falas refletem a ideia de que a formação, apesar das tentativas de mudança, ainda está ancorada num modelo tradicional de ensino, e sair desse “modelo” é muito difícil. A formação continua a mesma!!! Não sei por que não aprendi, não aprendi por não me ensinaram e não me ensinaram porque não sabiam!!! Isso é a mais pura verdade, pois nossos professores, os que nos formaram, não sabiam nada sobre Saúde Coletiva, Promoção da Saúde, SUS, essas coisas (F3). Por intermédio do movimento da Reforma Sanitária brasileira, ao longo dos anos de 1980, a formulação do SUS na Constituição de 1988 e sua implantação nas três últimas décadas, o sistema de saúde no Brasil aportou ao século XXI organizado por via de atenção, promoção e vigilância à saúde. Nesse âmbito, profissionais de saúde e população passam a ser vistos como sujeitos ativos do processo, e a doença não é mais o foco de observação e atuação, voltando-se para o modo de vida das pessoas e suas condições de trabalho, bem como de grupos sociais, e suas repercussões no processo saúde-doença28. Alguns autores relatam que a aproximação entre a Fonoaudiologiae o campo da Saúde Coletiva aconteceu por intermédio de uma circunstância discente se considerarmos o contexto túrbido da rede de saúde e das políticas públicas no Brasil, que é ainda muito incipiente. A Fono é incipiente na área da saúde. A gente está buscando um ideal, mas o real é que estamos muito longe desse ideal, e olha que o O SUS é o maior empregador desse povo (F1). E se há realmente a pretensão de que os princípios e diretrizes do SUS possam ser operacionalizados em um novo modelo assistencial com base na Promoção da Saúde, solicitam-se novos perfis profissionais. Diversas propostas de mudanças na formação em saúde no Brasil são discutidas desde o final dos anos de 1980, com a afirmação do Sistema 24| Rev. Bras. Pesq. Saúde, Vitória, 20(3): 17-25, jul-set, 2018 A formação do fonoaudiólogo e a sua interlocução com a Saúde Coletiva | Lourinho et al. Único de Saúde (SUS). Essa discussão conferiu relevância especial quando o Ministério da Saúde (MS) chamou para si a responsabilidade de (re)orientar a formação dos profissionais da saúde a fim de responder às necessidades do SUS30. Ainda sobre a prática docente, alguns estudos revelam que boa parte dos professores do ensino superior não teve em sua formação o adequado preparo para a docência. Estão mais preocupados com o “domínio de conteúdo” do que com os “aspectos pedagógicos”, o que exige condições de qualificação e desenvolvimento para que ensino- aprendizagem seja mais efetivo. CONCLUSÃO| Então, podemos chegar à conclusão de que mudanças profundas, resistentes e duradouras apenas serão produzidas de forma efetiva se houver políticas públicas saudáveis atuando com esse intuito, justificando assim a reivindicação de políticas públicas de saúde e de educação, que contribuam e estimulem os processos de transformação das práticas utilizadas na formação em saúde no sentido da adesão dos referenciais amplos da Promoção da Saúde (PS) e da Integralidade. É necessário provocar e provar novos arranjos formativos na formação em saúde para que se possam formar e vivenciar novos arranjos interventivos nas práticas de saúde. Estudantes, professores, profissionais e usuários, todos podem se tornar protagonistas nessa produção de novos modelos de ser, aprender e ensinar saúde. REFERÊNCIAS| 1. Casanova IA, Moraes AAA, Ruiz-Moreno L. O ensino da promoção da saúde na graduação de fonoaudiologia na cidade de São Paulo. Pro-Posições. 2010; 21(3):219-34. 2. Leavell HR, Clark G. 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