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OS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS 2 A denominação “índios” foi dada pelos primeiros europeus que, ao chegarem à América, pensavam estar Índias. Mesmo depois de terem percebido que não se encontravam nas terras das cobiçadas especiarias, os europeus mantiveram a palavra “índio” para designar os habitantes do Novo Mundo. Por muito tempo, essa identidade genérica e imposta criou imensas dificuldades para a compreensão da diversidade étnica e cultural preexistente no continente. Com esse termo, povos de línguas, costumes e graus de desenvolvimento tecnológico completamente distintos foram colocados na mesma categoria. Os astecas, por exemplo, tinham pouquíssima semelhança com os tupinambás que habita- vam o litoral brasileiro. Eles viviam em cidades, construíam estradas e dominavam diversos povos, formando um império. Já os tupinambás eram seminômades e não tinham uma sociedade muito hierarquizada. Essa imensa diversidade cultural não é constatável apenas entre os povos indígenas que viviam distantes, pois, numa mesma região, aldeias podiam ser bastante diferentes. Esse é o caso de aimorés e tupiniquins, que habitavam o sul da Bahia. Embora vivessem na mesma região, falavam línguas completamente distintas e travavam contínuas guerras. A diversidade dos povos dificulta a obtenção de informações confiáveis sobre os grupos huma- nos que habitavam o Brasil às vésperas da conquista portuguesa iniciada com Pedro Álvares Cabral em 1500. Para se ter ideia, nos dias atuais, mesmo com a destruição de centenas de comunidades, ainda existem no país 180 línguas indígenas diferentes. Em suas pesquisas sobre o período, historiadores e arqueólogos fazem uso de vestígios arqueo- lógicos e das descrições altamente parciais e frequentemente preconceituosas dos viajantes e missionários europeus. Esses dados, porém, não permitem saber com exatidão quantos indígenas viviam aqui quando os primeiros lusos aportaram. Os principais estudiosos sobre o assunto chegaram a números bastante divergentes, que vão de 1 milhão a 4 milhões de habitantes. O único consenso parece ser a superioridade da população local em relação à de Portugal, que girava em torno de 1 milhão de habitantes no ano de 1500. As descrições deixadas por Pero Vaz de Caminha, escrivão de Pedro Álvares Cabral, indicam que os primeiros povos com quem eles tiveram contato, ainda na Bahia, foram os tupiniquins. Bastante receptivos aos portugueses, os tupiniquins faziam parte do tronco linguístico conhecido como tupi-guarani. Os povos tupis-guaranis haviam chegado recente- mente à costa do Brasil, Argentina e Uruguai. Migravam com frequência, mas isso não impediu que desenvolvessem a agricultura. Entre os povos desse tronco linguístico, destacam-se os guaranis, os carijós, os tupinambás, os potiguaras, os caetés, os tapes, os tabajaras, entre outros. Não se pode dizer, porém, que havia uma nação ou império tupi-guarani. A identidade cul- tural indígena estava relacionada principalmente à aldeia, não à língua. Dialetos semelhantes não impediam disputas. Mesmo com costumes, crenças e línguas semelhantes, tupinambás e temiminós viviam lutando por territórios. Assim, não havia um imperador tupi-guarani ou qualquer coisa que lembrasse isso. A inexistência de um Estado centralizado não impediu que os povos de fala tupi- -guarani se rivalizassem com aqueles que tinham língua e costumes diferentes dos seus. A esses povos, eles chamavam pejorativamente de tapuias, que significa “bárbaros” ou “inimigos”. O bom relacionamento que, de modo geral, predominou entre povos tupis-guaranis e portugueses criou vários problemas para os tapuias, que eram vistos como violentos e infiéis. Também nesse ponto, é difícil fazer generalizações, pois alguns povos que não eram tupis-guaranis também fizeram alianças com os portugueses. Os tapuias pertenciam a troncos linguísticos diferentes dos troncos dos tupis-guaranis, como o macro-jê, ou a algumas famílias linguísticas como a aruaque, caribe, araruá, ianomami, tucano, pano e outras. Sob o termo tapuia, foram colocados povos bastante diferentes como os charruas, goitacás, aimorés, guaianás, cariris e Tremembés. De acordo com os relatos europeus, esses povos viviam no interior do continente, especialmente nos cerrados. É bastante difícil, no entanto, reconstituir em um mapa a ocupação dos indígenas antes da chegada de Cabral. Se hoje o levantamento de povos indígenas existentes no Brasil ainda não está completo, fazer o mapeamento de uma época tão remota era uma tarefa quase impossível. Para piorar, a partir daí, muitos grupos migraram diante 3 do avanço dos homens brancos, das doenças e da destruição das matas. Com base nos relatos e na terminologia utilizada pelos portugueses, é possível fazer ao menos o mapeamento dos povos que eles encontraram ao dominar algumas partes do litoral brasileiro no século XVI. É importante notar que a maioria dessas nações indígenas não existe mais; foram exterminadas ou incorporadas à dominação europeia. O COTIDIANO DAS SOCIEDADES INDÍGENAS Os primeiros indígenas brasileiros eram nômades e viviam da caça e da coleta. Muitos grupos desenvolveram a agricultura, mas esse processo foi lento e não ocorreu de maneira uniforme. Ves- tígios arqueológicos indicam que povos ao longo do rio Amazonas realizavam plantações alguns milênios antes do nascimento de Cristo. Já os povos que viviam no litoral das regiões Sul e Sudeste desenvolveram a agricultura bem mais recentemente, há menos de 2 mil anos. As plantações se restringiam a vegetais existente apenas na América, como a mandioca, o milho, a abóbora e a batata-doce. Havia a domesticação de pequenos animais de estimação, especialmente araras e papagaios dos quais retiravam-se as penas para os adereços. Não se praticava, porém, a criação de animais de grande porte, os quais eram obtidos principalmente pela caça. Pero Vaz de Caminha notou a inexistência do pastoreio e de alguns animais comuns aos europeus. Na maioria das aldeias, a agricultura não era o trabalho principal, sendo apenas uma ativi- dade de subsistência e complementar. Isso explica por que muitos povos indígenas eram seminô- mades. Era comum buscarem outros locais quanto os recursos naturais de uma região não eram mais suficientes para alimentar o grupo todo. Essas frequentes migrações geravam conflitos com outros grupos também indígenas. As guerras eram constantes e fundamentais em quase todas as sociedades indígenas brasileiras. Elas eram realizadas pelos homens e entre suas motivações estava a vingança, ou seja, a necessidade de honrar um antepassado morto em conflito com outra aldeia. Existiam ainda outros fatores muito importantes. As guerras promoviam a coesão social, reforçavam a autoridade dos chefes e estreitavam laços de solidariedade entre os membros do grupo. Alguns grupos, como os tupinambás, realizavam rituais de antropofagia, ou seja, matavam e comiam a carne dos seus inimigos. Os conflitos entre indígenas, apesar de violentos, não tinham como objetivo a escravização ou aniquilação dos povos derrotados. Lutava-se por territórios e por questões culturais, mas não com o objetivo de exterminar totalmente os rivais. Tampouco era comum a prática da escravidão, mesmo em pequena escala. Em caso de captura de prisioneiros, eles eram assimilados pela aldeia, em particular no caso das mulheres, ou sacri- ficados. A propósito, as mulheres desempenhavam papéis importantes nas aldeias. Havia divisão do trabalho de acordo com o sexo. Elas, na maioria das vezes, eram responsáveis pela agricultura, pela culinária e pelo cuidado com as crianças. Os homens ficavam principalmente com a caça e a guerra. A coleta de alimentos com frequência era feita por ambos. Pode-se pensar que os homens trabalhavam menos do que as mulheres, mas isso não é verdade. Tarefas como a caça, a derrubada da mata para o plantio, a construção de canoas e a confecção de instrumentos diversos eram feitas por eles. Com exceção dessa divisão sexual de tarefas,não há até hoje entre os indígenas profunda especialização do trabalho. O que uma mulher sabe fazer, todas sabem. O que um homem faz, todos conseguem fazer. Diante da ausência de especialização, a percepção inicial dos portugueses era a de que inexistia hierarquia entre os índios. É famoso o episódio dos indígenas que, ao entrarem na caravela de Pedro Álvares Cabral, não notaram a existência de um capitão. Mesmo com roupa diferente e sentado em uma cadeira, Cabral não foi reconhecido como líder e foi tratado pelos índios da mesma forma que os outros marinheiros. Pode-se entender melhor essa situação por meio da compreensão da ideia de liderança entre os indígenas. Os chefes eram, com frequência, homens das principais famílias que, de alguma forma, conquistaram a confiança da aldeia. Eles eram res- ponsáveis pelas atribuições cotidianas e pela liderança nas guerras, no entanto não costumavam ter 4 cargo vitalício e tampouco hereditário. Faziam todas as atividades realizadas pelos outros homens, não usavam roupas diferentes e não possuíam mais bens do que qualquer outro membro da aldeia. Os chefes não agiam como líderes autoritários. Suas decisões e a própria liderança dependiam da aceitação dos moradores. Além disso, diversos povos possuíam conselhos formados pelos líderes das principais famílias e pelos homens mais experientes. Sem a aprovação do conselho, nenhuma decisão importante era tomada. As principais decisões das aldeias cabiam aos homens. Eram raras a existência de chefes mulheres e a participação delas nos conselhos das aldeias. De modo geral, embora não participassem dessas instâncias de poder, as mulheres muitas vezes eram ouvidas e tinham suas reivindicações atendidas. OS RITUAIS DE ANTROPOFAGIA Era costume tupi fazer cativos e, em um ritual, devorar sua carne em um banquete com os aliados. Esse ritual firmava alianças entre tribos que tinham interesses em comum, motivadas, acima de tudo, por vingança. O costume era de grande importância para a manutenção da coesão social. É famoso o relato de Hans Staden, um germânico que permaneceu por nove meses cativo dos tupinambás na região de Bertioga, litoral de São Paulo. Depois de escapar de ser morto, ele escreveu Duas viagens ao Brasil (1557). O livro, repleto de ilustrações, fez bastante sucesso à época. Entre outros episódios, Staden relata que conseguiu adiar sua morte diversas vezes. Embora o alemão tenha creditado isso às suas orações, alguns antropólogos defendem que o choroso prisioneiro foi poupado por parecer covarde aos índios. Como os tupinambás acreditavam que, ao comer a carne do executado, recebiam suas características, eles provavelmente considera- ram o medroso alemão indigno de ser ingerido. Vale ressaltar que, para um tupinambá, não havia morte mais gloriosa do que a realizada nesse ritual. O relato de Staden possibilitou que antropólogos pudessem posteriormente reinterpretar o que antes era simplesmente visto com ato de selvageria. Indiretamente, o ex-prisioneiro deu uma grande contribuição à compreensão de algumas sociedades indígenas do Brasil colonial. Home: Página 2: Página 4:
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