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UNITAS – Revista Eletrônica de Teologia e Ciências das Religiões, Vitória-ES, v. 3, jan.-jun., 2015 
 
 
UM SALTO PARA O AMOR DO CRIADOR: A CONVERSÃO 
RELIGIOSA SEGUNDO SØREN KIERKEGAARD E HANNAH 
ARENDT 
 
 
Elissa Gabriela Fernandes Sanches
1
 
 
RESUMO 
 Søren Kierkegaard, teólogo e filósofo, profundamente envolvido com a narrativa 
de Abraão – que foi chamado por Deus para oferecer seu filho Isaac em holocausto a 
Ele –, formulou o “salto da fé”, movimento este em que o ser humano deixa o ser ético e 
segue em direção ao ser religioso. Fundado na própria ambiguidade presente no 
paradoxo de Abraão, uma vez religioso, a existência deixa de ser finita e se torna finita e 
infinita. Hannah Arendt, leitora e simpatizante de Kierkegaard, escreveu sua tese de 
doutorado intitulada "O Conceito de Amor em Agostinho", na qual elaborou uma 
análise aprofundada acerca do momento em que o ser humano, como criatura, se 
reconhece como tal face a Deus. Ao encontrar a si mesmo, o mundo se torna um lugar 
de uso e o céu um local de fruição, onde o verdadeiro amor se excede. Este trabalho 
pretende analisar a relação entre a ideia agostiniana de amor estudada por Arendt e 
relacioná-la com o movimento de fé estabelecido por Kierkegaard, criando assim uma 
conexão entre os dois autores utilizando o próprio processo de conversão religiosa como 
elo. 
Palavras-chave: Hannah Arendt, Søren Kierkegaard, Amor, Fé, Conversão Religiosa 
 
 
INTRODUÇÃO 
 O processo de assimilação e aceitação da fé de tal forma a torná-la superior a 
razão, sendo um tipo de condutora da vida humana, foi visto por Kierkegaard como 
 
1
 Graduanda – FNB e UNISUL 
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paradoxal, e por Hannah Arendt como contraditório. O primeiro, considerado o pai do 
existencialismo filosófico, ao se deparar com a cena em que Abraão é chamado a 
entregar seu próprio filho, Isaac, em holocausto a Deus, adentra em um profundo 
questionamento descrito em uma de suas obras “Temor e Tremor” sob o pseudônimo de 
Johannes de Silentio. O conflito ético no qual Abraão se depara suscita as seguintes 
perguntas: “Existe uma suspensão teleológica da moralidade? Existe um dever absoluto 
para com Deus? ”, as quais, não por acaso, se caracterizam como o nome dos tópicos da 
obra anteriormente citada. 
 Para compreender a conversão religiosa é inevitável perpassar pelo campo ético 
que a principia, uma vez que a fé, ao ser inteiramente racionalizada, em muitos aspectos 
não terá um sentido moral. A ética é o departamento da razão que regula as ações, que 
abrange o que é certo e o que é errado. Para Silentio, a ética se apresenta nas respectivas 
características: 
 
(I) No geral, tendo a sua finalidade em si mesma; (II) No divino, e por 
isso não podemos afirmar que haja deveres absolutos para com Deus, 
uma vez que todo dever é dever para com o universal; (III) No 
manifesto, censurando o silêncio e exigindo a manifestação.(SILVA, 
2014, p. 31) 
 
 O dilema que se apresenta aos olhos do leitor quando este se depara com o 
momento do sacrifício de Isaac se resume em uma in-compreensão diante da concepção 
comum do que seria moralmente correto nesta situação, como o próprio Kierkegaard 
observa: 
 
Quando, em verdade, suprime-se a fé, reduzindo-a a zero, resta apenas 
o fato brutal de Abraão ter desejado matar o filho, procedimento bem 
fácil de imitar por qualquer um que não tenha fé – compreendendo eu 
por fé aquilo que torna difícil o sacrifício. (KIERKEGAARD, 2012, p. 
36) 
 
O paradoxo então se torna visível à medida que o leitor tenciona compreender o 
que levou Abraão a cometer tal ato. Que tipo de fé é esta que suspende a moral, se 
fazendo superior a ela? Que tipo de fé é esta que faz um simples homem cometer um 
delito terrível que, porém, sob a ótica da experiência religiosa nada mais é que o 
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cumprimento de um dever absoluto para com Deus? Mais compreensível seria o 
questionamento: como alguém desenvolve tal relacionamento com Deus ao ponto do 
chamado fazer sentido somente para o indivíduo, excluindo-se o universal? 
 Hannah Arendt, filósofa e teóloga alemã e simpatizante de Kierkegaard, 
sobretudo pela sua proposta existencialista, aprofundou-se no estudo da ética de 
Agostinho de Hipona. Para Agostinho, o bem e o mal estão intrisecamente presentes no 
tipo de relacionamento que o indivíduo desenvolve com o mundo, com o outro e com 
Deus. Como autor da nulidade ontológica do mal, – em que o mal como existência não 
existe, mas apenas como ato – Agostinho compreende existirem dois tipos principais de 
amor, sob os quais se originam todas as outras paixões: a caridade e a cobiça. O 
primeiro se volta para Deus, o segundo, para o mundo. O amor na forma de caridade só 
poderá ser praticado após um processo que Arendt denomina “estranhamento” do 
indivíduo, como ela mesmo explica: 
 
O seu próprio ser está antes dele e só lhe é acessível sob a forma de 
um passado tornado presente na memória. Toda a procura de si [...], 
toda a descoberta de si [...] residem no facto de, enquanto está, por 
princípio, antes [...]; o ente é o que é a partir desse ser e procura-se na 
procura deste antes. Ser do mundo precede, pois, todo o amor 
explícito do mundo [...] e afirma a pertença ao reino da Criação. Em 
relação ao mundo, o facto de ser criado significa, pois, duas coisas 
para a criatura: ela é desde logo criada e introduzida no mundo, e, 
portanto, depois do mundo [...]. É nesse depois que se funda a sua 
dependência do mundo, a possibilidade de tornar-se 
mundano.(ARENDT, 1997, p. 82) 
 
 O “isolar-se” do mundo é condição sine qua non para o “tornar-se cristão” na 
visão agostiniana interpretada por Hannah Arendt. E este processo implica em um 
movimento de retorno a um passado absoluto, à origem do mundo e do ser como 
existência. Somente assim será possível reconhecer o Criador e identificar-se como 
criatura, aquele (a) que foi criado (a) ex nihilo. Assim como Kierkegaard observou, o 
retorno se configura como um momento entre o ser e Deus, único, individual, complexo 
demais para a ótica puramente racional, em que o singular substitui o universal, pois o 
que importa é a efetivação do salto de fé, em direção ao amor do Criador. 
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 A autora ressalta que existe uma contradição presente neste pensamento 
agostiniano sobre o amor. O “estranhar” o mundo se expressa como uma exteriorização, 
em que, a Cidade dos Homens, comumente vivida, não mais pode ser compreendida 
pela via da razão somente, ao tornar a fé partícipe da comunhão do indivíduo para com 
tudo o que está ao seu redor. O próximo se inclui nesta dimensão de tal forma que o 
isolamento não pode ignorá-lo, ou seja, mesmo que a apreensão religiosa seja 
individual, o convívio humano é tão essencial que se transformou no maior 
mandamento bíblico
2
. Como então executar o movimento de retorno e se relacionar com 
o próximo ainda que este não seja crente, sentindo por ele o mesmo amor de Deus que 
se sente pelos irmãos em Cristo? Como estranhar o mundo e se sentir parte dele 
simultaneamente? No entender kierkegaardiano, a dúvida consistiria em: como o 
individual e o universal se organizam sabendo que o salto da fé possui como precedente 
a individualização, o isolamento? Como Abraão pôde cogitar a ideia de sacrificar Isaac 
dispondo o chamado de Deus como maior do que o laço de familiaridade que o liga ao 
seu próprio filho – que inclusive foi resultado de muitas orações e súplicas de Sarah, 
esposa de Abraão e mãe de Isaac, a qual não podia gerar filhos? 
 Este trabalho se propõe a esmiuçare relacionar a formulação kierkegaardiana e 
arendtiana de assimilação da fé religiosa como aquilo que gerirá uma nova visão de 
mundo, sensível à ação de Deus. O recorte deste estudo pretenderá destacar a 
perspectiva existencialista de ambos, e como a fé se encaixa adequadamente na busca 
humana de compreensão da existência
3
. 
 
O “SALTO DE FÉ” KIERKEGAARDIANO E O “RETORNO A ORIGEM” 
ARENDTIANO 
 Amar é desejar, logo, o que diferencia o amor do tipo caridade e o amor do tipo 
cobiça é o objeto desejado. Hannah Arendt explica que o segundo tipo de amor se 
diferencia pelo desejo ao que é transitório. Dispender a vida amando as coisas 
mundanas se caracteriza em uma permanente angústia, dado que o indivíduo estará a 
 
2
 O mandamento é: “Amarás ao próximo como a ti mesmo, mas a Deus com todo o teu coração, com toda 
tua alma e com todo teu Espírito.” Mateus 22:37, 38. 
3
 Enfatiza-se que o estudo aqui realizado não abordará a análise histórica que a Teologia Bíblica cerca a 
respeito da narrativa de Abraão e Isaac, priorizando uma compreensão voltada para o aspecto filosófico, 
ético e teológico. 
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todo o momento com medo da perda pois, mesmo que se alcance o objeto em questão, 
ele nunca será inteiramente retido para si, por ser sujeito ao tempo. Isso se percebe no 
amor a vida que, resumidamente, é um puro medo da morte, pois a própria vida está 
sujeita ao tempo e, logo, ao fim. O amor caridoso se destaca por seu desejo constante ao 
que é eterno, à vida na Cidade de Deus, colocando as coisas mundanas em segundo 
lugar. Assim, 
O medo casto teme perder aquilo para o qual se tende. [...] A 
realização do amor é a ausência de medo, enquanto que a realização 
da cobiça está precisamente ligada ao medo contínuo, que a impele de 
um objecto para outro na dispersão, e que a conduz irremediavelmente 
a uma escravatura, a uma servidão. (ARENDT, 1997, p. 39.) 
 
 O medo é o próprio mal que distingue o amor caridoso do amor cobiçoso. Ao 
direcionar sua determinação às coisas eternas, o indivíduo não mais sofrerá deste 
sentimento opressor, que prevê constantemente a perda devido ao próprio caráter 
mutável da criação. Ele estará inteiramente dedicado a Deus, sua fé o conduzirá aos 
novos caminhos e a uma nova relação para com o mundo, e a morte se tornará nada 
mais do que uma passagem à vida eterna, à fruição total e absoluta do amor de Deus que 
é infinito e imutável. A própria autora comenta que 
 
O futuro absoluto fornece também um lugar situado por princípio fora 
do mundo, e a partir do qual o mundo e as nossas relações com ele 
podem ser ordenados. O bem supremo é o fio condutor que unifica 
este pôr em ordem, esta hierarquização do mundo dos objectos 
disponíveis. (ARENDT, 1997, p. 40.) 
 
 Porém, a “caridade, ligada ao bem supremo, só tem relação com o mundo 
enquanto o mundo serve o seu fim último. No uso do mundo, o mundo é posto em 
relação com Deus. [...] A justa relação com o mundo é o uso. ” (ARENDT, 1997, p. 37). 
Para que isso ocorra, é necessário, primeiramente, reconhecer o mundo como lugar de 
usufruto e não de desejos e paixões. O amor caridoso, por exigir um compromisso total 
e pleno com o Criador, só pode ser encontrado após a realização do movimento de 
retorno à origem. Este ato se assemelha muito com o salto da fé em sua característica 
primordial, o reconhecimento completamente individual de que Deus, sendo infinito em 
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si mesmo, deve ser o objeto da fé resultante deste momento íntimo e particular. Esta 
mesma fé que, estranha à razão, norteará a nova relação com o mundo, que é finito. 
 O movimento de retorno compreende o instante em que o indivíduo volta à 
origem, ao antes-de-ser, um passado absoluto que somente possui sentido a partir do 
isolamento total da criatura. Este isolamento prescinde uma renúncia a si, ao outro e ao 
mundo, um processo denominado “estranhamento” no qual o indivíduo não mais se 
identifica com o mundo onde nasceu e ao qual pertence. Este regresso se concretiza 
quando o sujeito se reconhece face Àquele que o criou, logo, não mais um sujeito, e sim 
uma criatura concebida por Deus, concretizando uma relação de dependência. No amor 
caridoso, Arendt afirma que o “Amor de Deus e amor a si caminham lado a lado e não 
se contradizem.” (ARENDT, 1997, p. 34). 
 A fé como algo irracional, na medida em que a própria compreensão de mundo 
muitas vezes não é capaz de explicá-la, transforma o ser colocando-se como o novo 
óculos que desvelará a nova condição do próprio indivíduo, interno e externo ao mundo. 
A razão não é e nem pode ser excluída deste deslocamento, todavia não mais será a 
única via de entendimento e vivência da realidade. 
 Søren Kierkegaard é enfático ao afirmar: 
 
[...] se alguém supõe ter a fé sem reconhecer a impossibilidade de todo 
o seu coração e com toda a paixão de sua alma, ilude-se a si mesmo e 
o seu testemunho é completamente inaceitável, porque nem mesmo 
atingiu a resignação infinita. (KIERKEGAARD, 2012, p. 54) 
 
 É fundamental que o indivíduo, ao efetuar o salto da fé, se entregue em toda a 
sua plenitude à possibilidade da impossibilidade. Aos átimos em que a fé por si só se 
constitui na única compreensão factível, mesmo que entre em conflito com a razão, 
respondendo ao absurdo da experiência religiosa. 
 O salto da fé constrange o indivíduo a necessitar de um ser que o guie neste 
procedimento libertador. Patrick Gardner elucida que em primeiro lugar é indispensável 
que se conheça a Verdade, aquela que o impelirá à decisão: de permanecer no „pecado‟ 
e fora da esfera da fé ou de efetuar o deslocamento para dentro dos domínios que a 
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Verdade circunda, alcançando assim um novo estado existencial. Gardner compreende 
que 
a sensação de deslocamento do indivíduo não se dá por mero acidente 
ou incapacidade temporária: trata-se de um estado de coisas pelo qual 
ele próprio é responsável e que, como tal, pode ser descrito como um 
estado de „pecado‟ – ele não está apenas „fora da Verdade‟, mas 
„polêmico‟ em sua atitude para com ela. (GARDNER, 2001, p. 80) 
 
 Mas a Verdade não pode ser apreendida solitariamente, “neste sentido, [...] [a 
Verdade] não pode ser possuída pelo indivíduo, só lhe pode ser levada de fora” 
(GARDNER, 2001, p. 80). O professor seria aquele quem apresentaria a Verdade. Para 
Kierkegaard, quem representa este papel é o próprio Deus, o qual, por meio de Jesus 
Cristo, se mostra de igual para igual, de humano para humano, tornando viável a 
comunicação entre Ele e sua criatura. O autor dinamarquês concebe este último fato 
bíblico como um “paradoxo absoluto”, “pois exige que acreditemos que existe um 
momento em que o eterno entra na esfera temporal, assumindo as limitações da 
existência finita, e isso parece envolver uma impossibilidade manifesta [...].” 
(GARDNER, 2001, p. 81). 
 Gardner explicita que a “Fé, por outro lado, revela-se quando as categorias da 
razão são deixadas de lado e o indivíduo dá o „salto‟ que o reconhecimento do caráter 
especial do professor exige.” (GARDNER, 2001, p. 81). A cena de Abraão demonstra o 
desencontro entre a fé e a razão de forma clara, e sobre ela se debruça a inquietação de 
Kierkegaard 
 
Quando, porém, começo a meditar sobre Abraão, sinto-me como que 
aniquilado. Caio a todo momento no paradoxo inaudito que é a 
substância de sua existência; a todo instante sinto-me rechaçado, e não 
obstante o seu apaixonado furor, o pensamento não consegue 
compreender este paradoxo nem na medida de uma espessura de 
cabelo. Para conseguir uma saída retesotodos os músculos: no mesmo 
momento sinto-me paralisado. (KIERKEGAARD, 2012, p. 39) 
 
 O salto da fé, tanto para Hannah Arendt como para Kierkegaard deve levar em 
conta este paradoxo, uma contradição tão discreta que somente aqueles que pendem a 
estudar e a compreender como a fé se relaciona com a existência, descobrem a inaudita 
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interrogação que permanecerá ecoando no obscuro da racionalidade humana. Para 
Arendt, a contradição se faz presente na dúvida: como o ser, durante e após o retorno a 
origem, pode se localizar dentro e fora do mundo, como estranho e comum ao mesmo 
tempo? E para Kierkegaard, a indagação impera sobre o esforço completamente 
subjetivo de conciliar a fé e a razão em um único existir. Não obstante, evidencia-se que 
ambos tentaram desconstruir passo-a-passo o que leva um indivíduo a reconhecer a 
Deus e a confiar Nele toda a sua existência, o que assenta o existencialismo como um 
dos caminhos filosóficos que permite esclarecer como o ser está envolvido no simples 
verbo “existir” e a ampla relação que este desenvolve com o transcendental. 
 
ENTREGAR-SE À FÉ OU CEDER À RAZÃO? EIS O PROBLEMA DE 
ABRAÃO 
 Abraão, servo de Deus, foi chamado em certo momento para entregar o seu 
próprio filho em holocausto. Não é o único relato bíblico em que Deus (re)lembra os 
seus servos de um dever absoluto para com Ele
4
. Mesmo amargurado, justamente 
porque sua razão não compreendia o pedido de Deus, Abraão entrou em um conflito, 
pois precisaria confiar em Deus. Neste caso, a ética tradicional essencialmente humana 
não mais se aplicava, somente a fé justificaria tal ato. 
 
Dir-se-ia que Abraão alcançou por prescrição o título de grande 
homem, de tal maneira que, um ato se enobrece quando é praticado 
por ele e torna-se revoltante quando é praticado por outro? Assim 
sendo eu não tenho vontade de subscrever tão absurdo elogio. Se a fé 
não pode fazer santa a intenção de sacrificar o filho, Abraão tomba 
sob a alçada de um juízo que se pode aplicar a todo mundo. Se não 
existe valor para se ir até o fim do pensamento e afirmar que Abraão é 
assassino, antes é preferível adquiri-lo primeiro do que gastar o tempo 
em imerecidos elogios. Debaixo de um ponto de vista moral, a atitude 
de Abraão exprime-se dizendo que desejou matar Isaac, e, debaixo de 
um ponto de vista religioso, teve intenção de sacrificá-lo. Em tal 
contradição está a angústia que nos leva a insônia e sem a qual, 
 
4
 Outro exemplo seria a narrativa de Jó, um homem fiel a Deus e que por ação de Satanás, perde tudo em 
sua vida: filhos, dinheiro, colheitas e etc. O conflito que surge na situação consiste no fato de que a ordem 
para a ação do acusador veio do próprio Deus, posto que o primeiro se apresentou a Ele afirmando que se 
Jó perdesse tudo, ele não mais confiaria no Senhor. Na realidade, essa história se assemelha com a de 
Abraão pelo único aspecto de que Jó foi submetido a prova, a lembrança de que possui um dever absoluto 
para com o Pai: confiar Nele apesar de todas as circunstâncias. 
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porém, Abraão não é o homem que é. (KIERKEGAARD, 2012, pp. 
32-36) 
 
 É possível dizer que Abraão, em sua intenção em cumprir o dever absoluto para 
com Deus, transcendeu ao absoluto, indo além das possibilidades que o infinito lhe 
apresentava. Ele sabia que nada podia ser feito diante disso, era preciso manter o total 
silêncio, Sarah e nem ninguém poderia saber que cometeria tal ação para com o próprio 
filho, pois o risco de ser impedido era grande. Aliás, não existiria alguém que 
compreendesse sua motivação, a sua íntima relação e chamado, a sua particular fé que o 
preenchia de esperança. Porém, esperança de quê? O patriarca poderia, 
comprovadamente, ser acusado de tentativa de assassinato caso alguém descobrisse o 
que ele planejava. Como sentir esperança em uma situação dessas? Kierkegaard 
expressa 
Que fez, porém, Abraão? Não chegou muito cedo, nem muito tarde. 
Selou o burro seguindo, com lentidão, o rumo determinado. Durante 
todo esse período, manteve a fé, creu que Deus não desejava exigir-
lhe Isaac, estando, contudo, disposto a sacrificá-lo se isso fosse 
absolutamente preciso. Creu no absurdo, porque isso não faz parte do 
cálculo humano. O absurdo está em que Deus, pedindo-lhe o 
sacrifício, devia revogar o seu pedido no momento seguinte. Escalou a 
montanha e no momento em que a faca brilhava, creu que Deus não 
lhe exigiria Isaac. Então, com segurança, foi surpreendido pelo 
desenlace, porém já nessa oportunidade recobrara por um movimento 
duplo o seu primitivo estado, e foi por esse motivo que recebeu Isaac 
com a mesma alegria que sentira pela vez primeira. 
(KIERKEGAARD, 2012, p. 42) 
 
 O “crer” de Abraão consiste em acreditar no chamado e conhecer a Deus de tal 
maneira que, no fundo, possuía a esperança de que seu filho não seria verdadeiramente 
sacrificado. A fé de Abraão não pode ser vista como uma questão de desconfiança, ao 
contrário, sabendo que era criatura, portanto, dependente do Criador, deveria confiar em 
Deus de tal forma que sabia, em seu íntimo, que apesar de tudo, Deus é amor. Sendo um 
Pai misericordioso, mesmo que Ele realmente ensejasse que Abraão matasse seu Filho, 
haveria ainda algo de absurdo que somente a fé poderia revelar. De qualquer forma, 
salvo todas as possibilidades presentes na desconhecida real vontade de Deus, o 
patriarca se resignou. Como servo acatou a sua missão. 
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 Søren Kierkegaard nomeou Abraão de “cavaleiro de fé”, justamente porque, 
intrepidamente, ousou realizar o salto. Hannah Arendt também deixa bem claro que nem 
todos efetuam o movimento de retorno, pois para isso, é preciso coragem. 
 
[...] a morte, que só é pensada como „tributo do pecado‟ (São Paulo) – 
não como acontecimento natural –, torna-se no perigo que pesa sobre 
todos no cristianismo; já não se trata da morte como fim da vida 
terrestre, mas da morte castigo do pecado, da morte eterna. [...] O 
perigo é, pois, soçobrar neste passado pecador, e a queda é a da morte 
eterna. [...] O ter em conta o perigo separou já cada ser particular da 
antiga comunidade de destino; o que era necessário por nascimento 
[...] torna-se um perigo onde cabe a cada um decidir. A simples 
pertença ao género humano já não é, pois, decisiva por si só. Esta 
mesma morte, que antes da vinda de Cristo era uma maldição 
inexorável, a angústia constante de toda a vida, pode doravante 
significar a redenção para o homem bom. (ARENDT, 1997, p. 167) 
 
 A Verdade comentada por Kierkegaard, na visão agostiniana de Arendt, está 
disponível a todos. E, somente pelo seu conhecimento que se abre a possibilidade de 
decisão. Somente alguns escolherão o árduo caminho da fé, através da resignação 
 
Para que alguém se resigne, a fé não é indispensável, mas ela é 
necessária para conseguir a mínima coisa para além de minha 
consciência eterna: esse constitui o paradoxo. Confundem-se muitas 
vezes os movimentos. Afirma-se ser preciso a fé para tudo renunciar 
[...]. [Pela fé] [...] renuncio a tudo; é um movimento que eu efetuo 
sozinho e, se me abstenho, é em razão da covardia, da moleza da 
ausência de entusiasmo [...]. Faço esse movimento graças ao meu 
próprio esforço, e a minha recompensa sou eu mesmo na consciência 
de minha eternidade, imerso em uma bem-aventurada harmonia com o 
meu amor pelo ser eterno. Pela fé, a coisa alguma renuncio; pelo 
contrário, tudo recebo [...]. É preciso uma coragem puramente humana 
para renunciar a toda a temporalidade a fim de obter a eternidade, 
porém, ao menos eu aconquisto e não posso, já na eternidade, 
renunciar a ela sem cair em contradição. (KIERKEGAARD, 2012, p. 
56) 
 
 Abraão concretizou este ato ao confiar em Deus, com toda a sua existência. Ele 
não esperava ser retribuído nos céus pela sua coragem, mas ele simplesmente amava a 
Deus e por isso decidiu se entregar integralmente a Ele. Sozinho e em silêncio ele se 
resignou, o passo último, segundo Kierkegaard, que precede a fé, “pois é na resignação 
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infinita que, antes de qualquer coisa, tomo consciência de meu valor eterno” 
(KIERKEGAARD, 2012, p. 53). 
 Ciente de todos os paradoxos encerrados em sua decisão, Abraão encontrou 
consolo na dor da eventualidade da perda de seu filho, um fardo contingente, que 
possivelmente teria que carregar até os últimos dias de sua vida. Este consolo se 
caracterizava pelo fato de sua fé se consistir no entendimento de que Deus sabia o que 
estava exigindo
5
, ainda que o sucedido não pudesse ser compreendido pela razão. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 Søren Kierkegaard traça uma severa crítica a todos aqueles que pregam a 
história de Abraão como sendo uma narrativa do heroísmo do servo santo de Deus. 
Abraão era tão humano quanto qualquer outro, e sofreu em suas peculiares condições de 
humanidade frente à missão que lhe foi entregue. A conversão religiosa não é um 
simples ato de abdicação das coisas mundanas para se voltar a Deus, ela implica mais, 
envolvendo assim a dor, o sofrimento, o paradoxo, o isolamento, a resignação, o 
estranhamento, o ser com Deus e com o outro. É uma jornada pedregosa, que deve ser 
realizada por aqueles que se conscientizam de seu amor a Deus, e o fazem não só por 
que O amam, mas também confiam Nele. 
 Hannah Arendt, ao ponderar sobre o amor, chega a uma de suas conclusões na 
qual este sentimento deve ser o que impele o outro a executar o mesmo movimento de 
retorno a origem. Logo, o salto da fé é individual à medida que cada um o executa por si 
só, mas o amor encontrado face a Deus deve ser direcionado ao próximo também, 
independente de quem seja, permitindo que este tenha acesso à perspectiva da Verdade. 
Diante disto, uma rede se forma, em que a conversão de um dispõe o acesso para a 
conversão de outros. A fé, destarte, se configura em algo subjetivo e coletivo, individual 
e universal, contraposto à razão assume seu verdadeiro paradoxo, em que todos sabem o 
que ela é, mas sem efetuar o salto, se desconhece o verdadeiro sentido da vida que 
somente ela confere. 
 
5
 BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Trad. Euclides Martins Balancin et al. São Paulo: Paulus, 
2002. Em 1 Coríntios 10:13 está escrito: “[…] Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das 
vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar.”. 
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REFERÊNCIAS 
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Trad. Euclides Martins Balancin et al. São 
Paulo: Paulus, 2002. 
GARDNER, Patrick. Kierkegaard. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 
ARENDT, Hannah. O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto 
Piaget, 1997. 
KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. 
SILVA, Aline G. A suspensão teleológica da ética em Kierkegaard: uma análise a 
partir de Temor e Tremor. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Centro de Ciências 
Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2014.

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