Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM PSICANÁLISE AULA 2 Prof.ª Juliana Santos 2 CONVERSA INICIAL No texto de apresentação da coleção Obras incompletas de Sigmund Freud: fundamentos da clínica psicanalítica, Gilson Tavares (2017) escreve o seguinte: Quais os fundamentos da clínica psicanalítica? O que separa a Psicanálise de outras práticas de cuidado, como o tratamento medicinal, as diversas psicoterapias ou as curas religiosas? A resposta mais direta a essas questões não se esgota em aspectos teóricos; ao contrário, remete-nos ao domínio da prática analítica, relativo ao método e à técnica, assim como à dimensão ética que dali se depreende. É com essa reflexão que iniciamos esta etapa, pois é só pela via da experiência viva com a prática e o conhecimento da teoria que poderemos compreender a real diferença entre a psicanálise e as demais práticas de cuidado. Assim, para darmos sequência a nossos estudos, vamos adentrar em mais um dos textos da metapsicologia freudiana: A interpretação dos sonhos (1900). Essa obra marca o início da psicanálise como um novo saber, e é nela que encontramos a formulação do funcionamento do aparelho psíquico e de seus mecanismos, desvelados por Freud por meio da análise do sonho. A primeira tópica, como foi chamada a apresentação inaugural do aparelho psíquico, teve seu funcionamento dividido em três sistemas: inconsciente, consciente e pré-consciente; cada um desses sistemas funciona de forma dinâmica, isto é, se opondo um ao outro, pois o que para um sistema é sentido como prazer, não o será para outro. Em seguida, buscaremos compreender a noção do desejo, pois, em psicanálise, o desejo é inconsciente, e sua satisfação é sempre uma satisfação sexual, por isso ele é recalcado. Para encerrar a etapa, buscaremos apreender a noção de sexualidade na psicanálise. Será que psicanalistas só falam em sexo? TEMA 1 – A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS A interpretação dos sonhos (1900) é um texto de revelação, pois apresenta a verdade da psicanálise: o desejo. Como Freud fez isso? A resposta não é nada simples, mas ele visitou nossa remota infância, na qual foram tramados os crimes jamais cometidos por 3 incompetência ou medo – o assassinato do pai e o incesto com a mãe. Contudo, o desejo proibido permaneceu lá, no limite de nossa existência, mas desistiu e passou a alimentar nossos sonhos. O sonho é isso: a realização de um desejo inconsciente. Ele se realiza não em sua forma original, mas de maneira distorcida e disfarçada para nos poupar de nós mesmos. Garcia-Roza (2008, p. 10) declara: Essa é a verdade fundamental da psicanálise: a verdade do desejo. No entanto, os fatos do nosso cotidiano não nos remetem diretamente a ela, não nos oferecem essa verdade já pronta, mas dissimulada enquanto distorcida. A verdade é um enigma a ser decifrado, e a psicanálise constituiu-se como teoria e prática do deciframento. Essa trama infantil evocada por Freud em seu texto é puramente imaginária, e nem sequer fará parte de nossas lembranças. Entretanto, os efeitos aí produzidos perdurarão por toda a vida, como signos de um passado esquecido. Garcia-Roza (2008, p. 11) ainda afirma: Os signos que compõem esse enigma são portadores de uma intensidade análoga à das pegadas que Robinson Crusoé descobriu na praia de sua ilha deserta. Enquanto signos, não nos remetem apenas a uma outra coisa, mas a um outro sujeito. No entanto, à diferença do romance de Daniel Defoe, nosso Sexta-feira habita nossa própria interioridade, ou melhor, somos simultaneamente Robinson Crusoé e Sexta-feira, sendo que este último teima em se esconder e, quando aparece, coloca em questão e deita por terra a onipotência do Robinson. A história de Robinson Crusoé é a de um homem náufrago e sozinho em uma ilha tentando manter suas aprendizagens e costumes, porém, depois de alguns anos, encontra pegadas no chão, descobrindo que a ilha era também habitada por canibais. Um desses canibais é “domesticado” e posto para lhe servir; ele logo ganha um nome: “Sexta-feira”, que se torna parceiro do protagonista. Garcia-Roza (2008) propõe uma analogia na qual somos habitados por dois seres: um é completamente desconhecido e, quando aparece, ao contrário do que ocorre na história, põe por terra a onipotência do primeiro. Freud foi testemunha da verdade da psicanálise, pois foi por meio da análise de seus próprios sonhos que ele pôde criar técnicas para interpretar os enigmas oníricos e descobrir o que estava além da consciência e da pré- consciência: o desejo inconsciente. Assim, Freud evidencia que o sonho é endereçado ao sonhador, ou seja, é o próprio inconsciente que se instrumentaliza do sonho para ser ouvido, buscando, assim, signos para ser simbolizado. 4 1.1 A análise do sonho e sua interpretação Freud afirma que todo material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado de alguma experiência nele relembrada; entretanto, esse material não está destinado a ser reconhecido facilmente pelo sonhador, pois é um material manifesto, e as imagens do sonho causam estranheza. Entre as fontes do material dos sonhos estão as experiências da infância, conteúdos que não são recordados, nem utilizados no pensamento de vigília (Freud, 1900, p. 35). Conforme Garcia-Roza (2008, p. 26), a importância desse conteúdo que se torna matéria-prima do sonho não é seu caráter extraordinário; pelo contrário, “são pequenos fragmentos, detalhes sem colorido, experiências cinzas, pensamentos vagos e fugidios, que vão se constituir como matéria-prima dos sonhos”. Contudo, o resgate dessas experiências é apagado logo que acordamos. As lembranças no sonho são apenas vagas recordações cheias de lacunas; há quem nem se lembre do que sonhou. Nesse sentido, Freud acrescenta que, além da deformação que o pensamento latente sofre com o sonho, a própria recordação do sonho pode sofrer deformação pelo pensamento de vigília; porém, mesmo sofrendo essa deformação, que ele nomeia de elaboração secundaria, a interpretação é válida. Dessa forma, Garcia-Roza (2008, p. 27-28) conclui: O que Freud defende, e esta é uma tese central de sua teoria dos sonhos, é que as modificações às quais o sonho é submetido não são arbitrárias, mas que obedecem ao determinismo psíquico. Nada há de arbitrário nas transformações sofridas por um material psíquico, seja ele qual for. A transposição do sonho em palavras obedece a um rigoroso determinismo, que é o que torna possível não apenas a interpretação dos sonhos, mas também o trabalho de interpretação presente na prática psicanalítica em geral. O que é importante compreendermos é que o trabalho de interpretação de sonhos não recupera o sonho esquecido na consciência, mas nos remete aos fatos importantes que eles nos trazem. TEMA 2 – O TRABALHO DO SONHO O trabalho do sonho é o tema do capítulo VI de A interpretação dos sonhos (1900), no qual Freud nos prepara para o capítulo seguinte, que vai tratar de um ponto fundamental da psicanálise: a estrutura do aparelho psíquico. 5 Freud (1900, p. 276) inicia o capítulo VII apontando para a descoberta de sua investigação: “introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o conteúdo manifesto dos sonhos e as conclusões de nossas investigações: a saber, seu conteúdo latente”. O pensamento latente é o pensamento do sonho, e ele é inconsciente e só surge no sonho recoberto pelo conteúdo manifesto. O campo de funcionamento do sonho foi concebido por Freud da seguinte forma. • Conteúdo manifesto: é o conteúdo recordado do sonho; é um material distorcido e única via para se ter acesso ao pensamento latente. • Pensamento latente: é a matéria-prima do sonho; está na origem do conteúdo manifesto e é inteiramente inconsciente. • Trabalho do sonho: processo que transforma o pensamento do sonho em conteúdo manifesto.• Trabalho de interpretação: processo oposto ao trabalho do sonho, pois parte do conteúdo manifesto para chegar ao pensamento latente do sonho. • Restos diurnos: são os materiais que comportam as distorções do conteúdo manifestos; podem ser desejos ou tarefas inacabadas do dia anterior. No entanto, nem tudo que aparece no sonho conseguirá ser explicado pelos restos diurnos, pois são elementos completamente desconectados; são precisamente esses elementos que interessarão mais à psicanálise em sua tarefa de interpretação. Pelas palavras de Garcia-Roza (2008, p. 83), Quanto mais trivial, disparatado e desinteressante é um elemento do sonho manifesto, e quanto mais o sonhador se recusa a fornecer associações a este elemento alegando sua desimportância, mais ele se mostra significante para o trabalho de decifração, posto que são precisamente eles que poderão conduzir ao desejo inconsciente e à solução do sonho. A dificuldade de levar o analisante a associar o conteúdo do sonho é imposta pela resistência, visto que a verdade do desejo inconsciente seguirá sendo censurada pela consciência. É nesse sentido que Lacan, em O seminário: livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1955), informa que a censura que se impõe contra a interpretação está no nível do discurso, portanto, não diz respeito ao recalque, mas trata-se de uma censura atrelada a uma lei advinda do supereu. Portanto, cabe-nos o seguinte entendimento: 6 censura e resistência, mas não ao mesmo registro. Garcia-Roza (2008, p. 88) nos ajuda nessa compreensão: • Censura: segundo Freud, a censura (Zensur) é responsável pela deformação a que são submetidos os pensamentos latentes pelo trabalho do sonho. É algo que opera na passagem de um sistema para outro mais elevado (Ics – P-Cs/P-Cs – Cs). Ao longo de sua obra, a função de censura foi atribuída ao eu, terminando por se confundir com a noção de supereu. • Resistência: é algo diferente da censura; nas palavras de Freud (1900): “tudo aquilo que perturba a continuação do trabalho analítico é uma resistência”, portanto, trata-se daquilo que se opõe à interpretação. 2.1 Os mecanismos do sonho Após o pensamento latente sofrer censura, os sonhos são transformados pelos mecanismos de deslocamento e condensação. • Condensação: é o mecanismo que transforma o pensamento latente em uma versão abreviada no conteúdo manifesto do sonho; desse modo, o conteúdo manifesto é sempre uma versão menor do que o pensamento latente, e o contrário nunca se aplica. Por exemplo: no sonho manifesto, uma casa pode representar várias coisas do pensamento latente – pode ter o aspecto da casa de infância, mas ser um hospital e ser o local de trabalho. • Deslocamento: esse mecanismo opera por dois meios: 1) substituindo um elemento do pensamento latente por outro que faça alusão ao primeiro; 2) deslocando o acento de um elemento importante para outros sem importância. Desse modo, um elemento importante do pensamento latente surge desacreditado de seu valor no conteúdo manifesto. Lacan, em A instância da letra no inconsciente (1957, p. 514), nos remete à ideia de que o sonho é uma linguagem de uma escrita psíquica, cujas imagens não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas em seu valor significante: “Essa estrutura de linguagem que possibilita a operação da leitura está no princípio da significância do sonho, da Traumdeutung”. Portanto, a imagem não porta sua significação, mas ela articula uma rede de significantes que, pela sua relação de oposição, vai constituindo o significado 7 do sonho. Garcia-Roza (2008, p. 96) declara que “’o efeito de distorção’ (Entstellung) produzido pelo trabalho do sonho é resultado desse deslizamento do significado sob o significante, distorção operada pelos mecanismos de condensação e de deslocamento”. Lacan aborda a teoria de deslocamento e condensação e lhe dá um novo entendimento: metáfora e metonímia. • Metáfora: é o que corresponde à condensação. • Metonímia: é o que corresponde ao deslocamento. TEMA 3 – O APARELHO PSÍQUICO O capítulo VII de A interpretação dos sonhos é considerado, por alguns autores, o herdeiro do Projeto; no entanto, como salienta Garcia-Roza (2009), não há, entre os dois textos, uma linha de continuidade; na verdade, o que há é uma mudança de direção, pois enquanto no Projeto se destaca a quantidade de energia, A interpretação dos sonhos trata do desejo. Nesse capítulo, Freud apresenta o seu primeiro modelo topológico do aparelho psíquico, denominado de primeira tópica do aparelho psíquico; nele, suas localizações representam um lugar metafórico, e não mais uma visão anatômica, como ocorria no Projeto. Freud, portanto, elabora um sistema de funcionamento dinâmico entre três instâncias: inconsciente, pré-consciente e consciente. • Inconsciente (Ics): os elementos que compõem o inconsciente são conteúdos recalcados recusados pela consciência; contudo, esse conteúdo não fica de forma passiva no inconsciente: ele exerce força contra os outros sistemas, pois seu único objetivo é a satisfação. • Pré-consciente (P-Cs): o conteúdo do sistema pré-consciente não está ativamente no campo da consciência, mas ele pode ser trazido à consciência quando evocado, pois, diferentemente do conteúdo inconsciente, ele não foi recalcado. • Consciente (Cs): esse sistema está na periferia do funcionamento do aparelho psíquico, isto é, na percepção. Ele recebe informações dos mundos exterior e interior. Laplanche e Pontalis (2001, p. 93) descrevem a consciência como um receptor de estímulos externos e internos, “sensações que se inscrevem na série de desprazer-prazer e as 8 revivescências mnêmicas.” O sistema consciente é onde os conflitos são gerados, pois ele cria defesas contra as investidas do inconsciente. Freud, no momento da elaboração da primeira tópica, buscava definir um sentido para o inconsciente; contudo, sua preocupação era apontar para o fluxo de seu sentido. Assim, o que importa para o autor não é sua posição no sistema, mas a relação que cada um dos sistemas mantinha com os demais. Ou seja, no conjunto dos sistemas, cada um possui um sentido ou direção, fazendo com que nossas atividades psíquicas se iniciem a partir de estímulos (internos ou externos) e finalizam em uma descarga motora. O funcionamento do aparelho apresentado por Freud, como salienta Garcia-Roza (2008, p. 154), não é apenas um aparelho de sonhar, mas, também, de memórias, de pensar, de falar, de fantasiar etc. A apresentação gráfica do aparelho psíquico, conhecido informalmente como o modelo do pente, é a seguinte: Figura 1 – Modelo do pente Fonte: Freud, 1900, p. 521. A zona perceptiva (Pcpt), que fica na extremidade do aparelho psíquico, recebe os estímulos, mas não os associa nem os registra, pois ela permanece sempre aberta a novos estímulos. Assim, fica reservada aos sistemas mnêmicos a função de receber a excitação e criar traços permanentes, de modo que as associações vão ocorrer no interior desse sistema, entre um traço e outro. No Ics, Freud localiza o impulso da formação dos sonhos, nos quais o desejo inconsciente se liga aos pensamentos oníricos pertencentes ao Pcs/Cs, procurando uma forma de acesso à consciência graças à diminuição da censura durante o sono (Garcia-Roza, 2009, p. 81). Assim, pela posição que ocupa no interior do aparelho, o sistema Ics só pode ter acesso à consciência através do sistema Pcs/Cs, sendo que nessa passagem seus conteúdos se submetem às exigências 9 deste último sistema. Qualquer que seja o conteúdo do Ics, ele só poderá ser conhecido se transcrito – e, portanto, modificado e distorcido – pela sintaxe do Pcs/Cs. (Garcia-Roza, 2009, p. 81) A consciência fica localizada no polo motor (M), visto que é o lugar onde o aparelho psíquico descarrega os estímulos; dessemodo, a consciência e a motricidade se encarregam de aliviar as tensões do aparelho psíquico, mantendo os níveis de tensão o mais baixo possível. Portanto, a consciência transforma quantidade em qualidade, pois, para Freud, o aparelho psíquico responde ao funcionamento do arco reflexo, que obedece ao princípio de prazer. Logo, como evidenciamos, Freud pretendia demonstrar uma ordem de sucessão temporal para os processos psíquicos, pela qual a excitação faz o percurso que vai da extremidade perceptiva à extremidade motora, passando pelos sistemas mnêmicos, pelo Ics, pelo Pcs, até atingir o Cs. Freud sustenta assim sua tese – de que no psiquismo não há uma arbitrariedade nos acontecimentos. E demostra, por meio dos pensamentos oníricos latentes que, para que eles possam chegar à consciência, sofrem uma deformação por conta de uma censura, um mecanismo de defesa que vela seu caráter no sonho. TEMA 4 – O DESEJO Wunsch (“desejo”), na psicanálise, não é acessível à consciência, pois o desejo é, antes de qualquer coisa, inconsciente. Nesse sentido, o desejo não está identificado com uma necessidade biológica, que pode encontrar satisfação em objetos adequados (como o alimento). O desejo inconsciente está ligado a traços mnêmicos, como os apontados por Freud na primeira experiência de satisfação. Em A interpretação dos sonhos (1900), Freud nos guia para o entendimento de que o desejo inconsciente tende a realizar-se na reprodução onírica ou fantasística dos signos de percepção pelos quais uma experiência de prazer (Lust) ou de desprazer (Unlust) foi memorizada no aparelho psíquico, sob a forma dos traços mnêmicos que a constituem. (Valas, 2001) Assim, para Freud, o desejo se impõe como uma força no psiquismo que vai sempre na direção das marcas mnêmicas deixadas pelas experiências vividas, pelas quais o objeto de satisfação é sempre um reencontro com o objeto perdido. 10 Roudinesco (1998, p. 147), no Dicionário de psicanálise, descreve a realização do desejo na reprodução, simultaneamente inconsciente e alucinatória, das percepções transformadas em signos de satisfação: “Esses signos, segundo Freud, têm sempre um caráter sexual, uma vez que o desejo sempre tem como móbil a sexualidade”. O desejo, portanto, porta em si um móbil sexual que, inevitavelmente, gera um conflito psíquico, haja vista que seu objeto de satisfação é proibido. Qual é o desejo que se realiza no sonho? De fato, não se trata de qualquer desejo, pois, como Freud nos ensina, o desejo diurno, consciente, não é capaz de produzir um sonho, a não ser que, paralelamente, ele consiga ascender a outro ponto, o inconsciente. É isso que Freud nos ensina em A interpretação dos sonhos: o desejo que produz o sonho é o desejo inconsciente. Ele fica à espreita da consciência, à espera de uma oportunidade para uma aliança. Esses desejos, em estado de alerta permanente, são os desejos recalcados, únicos capazes de produzir um sonho (apesar da aliança que fazem com os desejos do Pcs/Cs). São desejos infantis que permanecem em estado de recalcamento e que, enquanto tais, são indestrutíveis. (Garcia-Roza 2008, p. 176) Desse modo, podemos compreender que os desejos pré-conscientes ou conscientes participam da formação do sonho, fornecendo elementos para a realização do desejo inconsciente, os restos diurnos. A realização tem como efeito tornar real algo que antes era do campo da alucinação; nesse sentido, afirmar que o sonho é a realização do desejo é paradoxal, haja vista que a realização do desejo no sonho é alucinatória. Todavia, no caso do desejo que se realiza no sonho, ele nos direciona a outra ordem, que não é a biológica (cuja realização ocorre na realidade), mas a uma ordem não adaptativa, que é definida pelo registro do imaginário, cuja satisfação é simbólica. Lacan (1955, p. 280), em O seminário: Livro 2..., nos ensina a ler Freud pela perspectiva do mundo freudiano, ou seja, um mundo que não é das coisas e do ser, mas da falta, pois é desde aí que o desejo pode ser compreendido. A origem do desejo estará calcada no Complexo de Édipo, pois é por meio do mito que Freud desvela a estruturação do desejo articulada à lei. Da vivência edipiana decorrerão dois desejos: a morte do pai e o desejo sexual pela mãe, que será recalcado. Quinet (2003, p. 75) sublinha esse acontecimento: 11 Que o desejo guarde o selo da primeira infância só faz acentuar suas características de proibido, inconfessável e também de indestrutível. Uma vez presente, jamais se extinguirá. O desejo só conhece a morte como as sombras do inferno na Odisseia que, ao beberem sangue, despertam para uma nova vida. O verbo é o sangue do desejo no sonho. Assim, do mesmo modo como o sujeito deseja, ele repudia a realização do seu desejo, sendo essa a divisão do sujeito neurótico de que Freud nos aproxima desde o Projeto, quando situa, no psiquismo, o funcionamento dos processos primários que correspondem ao inconsciente e no qual só há desejos, e os processos secundários que os inibe. As formulações de Freud, destaca Quinet (2003, p. 76), são tais que podemos admitir que o inconsciente só “ex- siste” graças ao desejo: “Ele é incapaz de fazer qualquer coisa que não seja desejar”. Portanto, o desejo inconsciente, como uma noção psicanalítica a ser compreendida, é aquilo que não pode ser nomeado enquanto tal, tampouco pode ser designado; contudo, o sujeito se encontra inferido a ele. “Ele é desejo – sem qualificativos, sem atribuições, sem dono, sem nome. O sonho só faz encená-lo, e seu relato com suas associações mostra por quais significantes circula” (Quinet, 2003, p. 78). 4.1 Demanda e desejo A psicanálise nos ensina que o sujeito se constitui a partir de uma falta. Essa falta é nomeada de objeto perdido, pelo qual o sujeito passa a vida perseguindo, pois esse seria o objeto capaz de devolver-lhe a satisfação plena. Portanto, o objeto perdido desde sempre é a condição essencial do desejo. Freud (1900) retoma a experiência de satisfação, descrita no Projeto, no subcapítulo “A realização do desejo” de A interpretação dos sonhos. Na experiência de satisfação, a percepção do alimento estará associada à marca mnêmica do aumento de excitação de uma necessidade fisiológica: a fome. Assim, toda vez que a fome surgir, o bebê a associará ao objeto de satisfação. De toda forma, é o reinvestimento dessa imagem mnêmica do objeto que reconstituirá a situação da primeira satisfação. Esse movimento é o desejo, explica Quinet (2003, p. 88). A demanda será direcionada a um outro vetor: precisamos inserir na cena a imagem da mãe, que Lacan nomeia de Outro primordial, pois é a presença desse Outro provedor do objeto que satisfaz a necessidade de que podemos 12 situar a demanda, uma vez que, para que uma necessidade seja suprida, é necessário que o Outro interprete seu pedido. Assim, a demanda é um apelo ao Outro: “A demanda está nesse apelo (grito interpretado como dirigido ao Outro da assistência) que o sujeito faz em busca de um complemento que é o objeto que pode satisfazê-lo. E nessa demanda se desenrola o desejo” (Quinet 2003, p. 88). Na clínica, o sujeito demanda do analista: “quero satisfação”. Esse apelo deve ser transformado em uma demanda de análise, pois é em análise que o sujeito poderá se ver com o objeto perdido e sustentar seu desejo, para além da falta. TEMA 5 – A SEXUALIDADE NA TEORIA FREUDIANA Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) é um dos mais importantes artigos de Freud. Nele, é abordado o desenvolvimento da organização infantil, enfatizando que a vida sexual da criança é marcada pelo autoerotismo, ou seja, a criança encontra prazer no próprio corpo. Os três ensaios contêm as bases da concepção psicanalítica sobre a sexualidade, e se fazem atuais até hoje, pois ainda produzem resistência, por conterem contribuiçõesoriginais para o conhecimento humano. Na realidade, há um grande mal-entendido na sociedade que pensa que na psicanálise tudo gira em torno do sexo. Não chega a ser uma mentira, mas tampouco é uma verdade, pois o conceito de sexualidade, para a psicanálise, não está relacionado apenas aos órgãos genitais e ao ato sexual, mas a prazer e desprazer em sua relação com a pulsão. Freud desmontou a noção de patologia relacionada à sexualidade de sua época e se opôs ao enquadrando da normalidade da sexualidade “humanamente humana”. Coutinho Jorge (2010, p. 84) destaca que, ainda que não seja evidenciado pelos historiadores, o que Freud promoveu com sua teoria da sexualidade foi um grande corte epistemológico nos estudos da época. No entanto, a psicanálise ainda encontra resistência por aqueles que ainda não foram capazes de compreender que o sexual não é, em sua dimensão teórica, o mesmo que o genital; trata-se de uma ampliação do conceito, que desde início foi evidenciado pela pulsão. A sexualidade, na psicanálise, é, em suma, uma ruptura com os sexólogos, que reduzem a sexualidade ao sexual biológico, no qual são remetidos unicamente ao genital. A própria apreensão de 13 Freud a respeito da dimensão mortífera da pulsão, que, em seu artigo O problema econômico do masoquismo (1924) aponta para uma oposição entre o princípio de constância e princípio de Nirvana – não é abordada pelo viés do comportamento sexual, mas com a finalidade de alcançar o enraizamento do inconsciente. Portanto, Jorge (2010) afirma: é preciso que recordemos o importante lembrete de Foucault, quando afirmou que o grande escândalo promovido pela psicanálise foi não apenas falar de sexo, mas falar de sexo dentro de uma certa lógica, dentro de um certo aparato conceitual consistente. NA PRÁTICA O sonho foi e continua sendo um dos principais conteúdos para análise em nossa prática clínica. Muitas pessoas dizem que não sonham, mas, na verdade, o que ocorre é que elas não se recordam de seus sonhos, justamente porque o sonho está diretamente ligado ao desejo inconsciente; assim, ao acordar, ele sofre uma nova censura. Contudo, à medida que o analisante avança em sua análise, ele tem a sensação de estar sonhando mais, mas o real motivo para ele estar se recordando de seus sonhos está no fato de ele ter afrouxado sua resistência. Trabalhar com o material do sonho não é uma tarefa fácil, de modo que sua interpretação nem sempre ocorre durante uma sessão; em alguns casos, a interpretação pode ocorrer anos depois, ou, até mesmo, no final da análise. Por isso, nenhum sonho deve ser descartado, mas mantido como um conteúdo passível de ser associado pela associação livre. Em um caso clínico, uma paciente relatou um sonho que lhe era muito frequente: a analisante caminhava por diversos lugares, sem saber para onde ir; uma mulher, que se parecia com ela – mas não era ela, sempre a encontrava quando ela estava perdida; essa mulher a levava para casa, e então a paciente acordava. O sentimento de estar perdida a colocava em um imenso vazio, pois ela dizia que vagava, mas não sabia nem aonde ia, nem se havia um lugar para ir. A analisante tentava engravidar há anos, mas não tinha sucesso; seu desejo de ser mãe existia desde a infância, e sofria muito a cada tentativa frustrada. Tempos depois, ela engravidou de uma menina, e ela associa a imagem da mulher do sonho ao seu desejo de ter uma filha. Assim, a filha era a 14 mulher que dava um destino, uma identidade, um lugar ao seu desejo: a maternidade. FINALIZANDO A interpretação dos sonhos (1900) marca o início da psicanálise como o saber de um campo específico, cujo objeto de análise é o inconsciente. O trabalho do sonho foi apresentado por Freud por meio dos seguintes elementos: • Conteúdo manifesto; • Pensamento latente; • Trabalho do sonho; • Trabalho de interpretação; e • Restos diurnos. Os mecanismos dos sonhos são: deslocamento e condensação. • Condensação: é o mecanismo que transforma o pensamento latente em uma versão abreviada no conteúdo manifesto do sonho. • Deslocamento: esse mecanismo opera por dois meios: 1) substituindo um elemento do pensamento latente por outro que faça alusão ao primeiro; 2) deslocando o acento de um elemento importante para outros sem importância. Em seguida, trabalhamos a primeira tópica do aparelho psíquico, que apresenta os sistemas inconsciente (Ics), pré-consciente (P-cs) e consciente (Cs). Por meio deles, Freud sustenta sua tese de que no psiquismo não há uma arbitrariedade nos acontecimentos. Na seção 4, apresentamos a noção do desejo para a psicanálise. O desejo é inconsciente, visto que não pode ser nomeado como tal, tampouco pode ser designado; contudo o sujeito se encontra inferido a ele. “Ele é desejo – sem qualificativos, sem atribuições, sem dono, sem nome. O sonho só faz encená-lo, e seu relato com suas associações mostra por quais significantes circula” (Quinet, 2003, p. 78). Por fim, estudamos a noção de sexualidade na teoria psicanalítica: ela está além do sexo, referindo-se, no entanto, ao prazer e ao desprazer em relação à pulsão. 15 REFERÊNCIAS FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Obras completas: volume V. Rio de Janeiro: Imago, Versão digital. FREUD, S. Obras incompletas de Sigmund Freud: fundamentos da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. GARCIA-ROZA, L. A. Matapsicologia freudiana: volume 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan – volume 1. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. QUINET, A. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
Compartilhar