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SOCIEDADE, CULTURA E CIDADANIA Diego Coletti Oliva Somos realmente diferentes? Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar criticamente o predomínio histórico de uma homogeneização cultural e sua influência nos currículos escolares. Reconhecer a necessidade da promoção de um currículo aberto a todas as identidades sociais e as manifestações culturais da vida cotidiana. Construir um currículo culturalmente heterogêno e sem os prejuízos do racismo, da xenofobia e do preconceito. Introdução Dermeval Saviani, filósofo e pedagogo idealizador da vertente histórico-crítica no Brasil, afirmava que, para se trabalhar, entender ou abordar a pedagogia precisa-se, antes de tudo, compreender como a educação se construiu no Brasil, para então se analisar o presente e, só depois, pensar no futuro. É partindo dessa ideia que este capítulo construirá a trajetória da educação formal e sua relação com as pautas da diversidade e das diferenças. Para alcançar o objetivo final de compreender a educação de forma historicamente situada e criticamente analisada, este capítulo desenvolverá uma análise em três momentos: 1) retomada histórico-crítica da educação formal e sua relação com a diversidade; 2) compreensão histórica de uma formação de currículo alinhada aos preceitos internacionais de direitos humanos e políticas da diferença; e, por fim 3) diferentes formas de traçar uma educação que englobe as políticas das diferenças a partir de um olhar crítico-reflexivo. Dessa forma, entendemos que você, leitor ou leitora, poderá abordar a temática deste capítulo com crítica, reflexão, de forma analítica e situada, seja para a construção de currículo, para a prática acadêmica ou para a construção de conhecimento de um tema contemporâneo e basilar nas teorias e práticas educacionais. A cultura como ponto de ruptura histórico- -crítica da educação A educação formal se inicia no Brasil com a chegada da colonização portu- guesa. Os jesuítas foram os primeiros professores, os quais acreditavam que a população nativa indígena seria como uma “tela em branco”. Tal proposição indicava que o conhecimento europeu-cristão era a base para qualquer saber, ignorando o conhecimento e a construção local, tanto religiosa como moral e social. A história da educação começa, então, no sentido oposto à proposta das diferenças e diversidades, ou seja, tem seu início com a proposta de homo- geneizar as diferenças que se encontravam em um país massivamente de comunidades indígenas, massacrando a população local e escravizando os que sobreviviam ao violento processo colonizador. Diversidade é o conceito que fala sobre aquilo que é abundante, mas não igual. A palavra remete a múltiplos elementos que formam um conjunto de atributos ou de aglomerados ou de nomeações. Diferenças é o conceito que tensiona a política de tolerância da diversidade, colocando como ponto central a não homogenização dos sujeitos. É durante o Império que o ensino torna-se estatal, ou seja, torna-se uma responsabilidade dos reis. A educação nesse período era regulada pelas orien- tações de Pombal, e não havia uma formação para professores. Os professores eram sujeitos que possuíam conhecimentos em algumas áreas, quase sempre padres, os quais davam as aulas, normalmente, dentro de suas casas. O ensino era laico, porém, com a alta participação de padres como docentes, acabava por ter um viés forte de catolicismo. Nesse período, o ensino era focado em ensinar à elite masculina branca e, especialmente, cristã. As mulheres mantinham seu ensino, quando feito, em instituições religiosas. Somos realmente diferentes?2 O Marquês de Pombal foi um nobre português responsável pelo estabelecimento de uma série de regulações sobre a educação no Brasil durante o período colonial, entre outros assuntos. Já muito complexa, a relação entre os professores e o Império acontecia de forma conflituosa. Embora os professores ganhassem títulos de nobreza, o que os permitia algumas liberdades (p. ex., a criação da escola formal), os salários eram baixos, e o professorado exigia melhorias e mudanças. Nem sempre muito bem vistos pela sociedade, os professores da época imperial tinham uma série de listas de virtudes a seguir, principalmente aquelas de caráter moral e de virtudes do sacerdócio. De acordo com Castanha e Bittar (2009, p. 41): Os adjetivos utilizados para conceituar os professores primários no século XIX foram variados. No entanto, podemos afirmar que o foco central da ação do Estado, ou seja, a estrutura legal constituída para regulamentar e organizar o trabalho docente, estava voltada para garantir a moralidade, mesmo quando se tratava de medidas relacionadas à formação profissio- nal. Muitas ações foram desencadeadas para qualificar os professores, mas nenhuma teve pleno êxito, e, em todas elas, o preceito da moralidade era exigido. Essa visão do professor como guardador da moral perdurou por algum tempo, e alguns de seus efeitos podem ser sentidos até hoje, especialmente após a época da “feminilização” da profissão, época em que a docência deixa de ser masculina e passa a abrigar, massivamente, mão de obra feminina, havendo uma associação entre docência e cuidado, que dá uma normatização de gênero às relações profissionais da educação. Ainda sobre mudanças na educação, na segunda metade do século XIX, várias reformas tentaram dar um rumo mais profícuo para a educação. Outros métodos foram utilizados, como o simultâneo, em que o professor se dirigia a grupos de alunos reunidos pelo tema a ser estudado, e o intuitivo, que propunha o uso dos cinco sentidos para 3Somos realmente diferentes? o aprendizado. A reforma instituída na corte em 1854 estabeleceu que, aos 5 anos, as crianças poderiam ingressar na escola, porém isso não era seguido. Como resultado, adolescentes de até 15 anos chegavam para as primeiras aulas e o docente tinha de lidar com isso. Era comum que quando a criança aprendesse a ler e escrever os pais a tirassem da escola, porque, naquele contexto de um país ainda excessivamente agrário e escravocrata, a Educação não era uma necessidade de fato [...] (SCACHETTI, 2013, documento on-line). Contudo, é durante o século XX que a educação começa a passar por drásticas mudanças. Em 1932, a ideia de uma escola realmente laica, pública e gratuita ganha força, mas é ainda assim pautada em princípios não universais de cidadania. A era Vargas trouxe consigo os debates de combate ao analfabe- tismo como uma das formas de driblar a crise de 1929. Pensadores da Escola Nova, como Anísio Teixeira, defendiam fortemente a ampliação das escolas, saindo das elites e alcançando uma parcela mais significativa da população. A escola se tornou, com o argumento de reconstrução da sociedade, um instrumento nacionalista de propaganda de ideias morais conservadores e ainda muito atreladas à religião católica. Mesmo com o fortalecimento do ensino público laico, ainda se tinha nos valores cristãos uma forma de catequizar e homogeneizar os valores sociais. O acesso das mulheres à educação nesse período ainda se mantinha restrito e difícil. É possível refletir, a partir de Freire (2014, p. 80), sobre o papel do professor nesse período: O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invari- áveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez dessas posições nega a Educação e o conhecimento como processos de busca [...] Nessa chave, o educador sempre tem razão, dando pouco espaço para a construção de saberes vindos de diferentes perspectivas, sendo essa uma educação que busca somente transmitir valores e formatar os sujeitos dentro de uma perspectiva única. Na Era Vargas, os professores ainda não eram formados em cursos superio- res, mas sim em cursos para docência que tinham um currículo vago e pouco útil para o dia a dia da profissão. Nesse período, as mulhereseram maioria Somos realmente diferentes?4 como educadoras dos primeiros anos (anos iniciais do ensino fundamental), e os homens seguiam como centrais para a educação dos anos seguintes, ginásio e colegial (anos finais dos ensinos fundamental e médio). Da mesma forma, dividiam-se as classes, com os alunos e as alunas de início formando turmas mistas e, depois, seguindo separadamente. O ensino era muito ligado a uma formação moral exemplar, especialmente para formar sujeitos que integrariam, posteriormente, o exército e seriam combatentes do Estado. Essa era uma forma funcionalista de ver a educação como parte de um processo ligado à militarização educacional. Para Freire (2014, p. 82), essa educação, na qual alunos e alunas são depósitos de conhe- cimento do docente, vistos somente como um meio para um fim, acaba “[...] refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura do silêncio’, a ‘educação bancária’ mantém e estimula a contradição.”. A Escola Nova, oposição ao ensino religioso, professoral e pouco dinâmico, foi um dos movimentos centrais no período e visava a entender os alunos como indíviduos, dentro de suas particularidades, e trabalhar a escola como um espaço que refletia e pensava criticamente as relações sociais e culturais. Foi graças a grandes pensadores da Escola Nova, como John Dewey, Anísio Teixeira, Cecília Meireles, entre outros, que algumas escolas brasileiras come- çaram a tomar um formato mais ligado ao social do que a um funcionalismo profissional e moral. Em 1942, a educação passa, via legislação, a ser uma obrigação da União. Seguido poucos anos: Em 1948, o ministro Clemente Mariani (1900-1981) apresentou o anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), o que gerou novos conflitos entre os escolanovistas e a Igreja Católica. "Além da manutenção do Ensino Religioso, estava em jogo qual desses grupos era mais capacitado para atuar em espaços de decisão", diz Marcus Levy Bencostta, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Por causa desse debate acirrado, a LDBEN foi aprovada 13 anos depois, permitindo a pluralidade dos currículos e estabe- lecendo que o Estado destinaria recursos a entidades privadas. (CAMILLO, 2013, documento on-line) Nos anos que se seguiram, marcados pelos regimes populistas de governo, a educação popular ganhou mais força, e as ideologias de Paulo Freire toma- ram formatos ainda mais fortes. É em 1960 que as ideias de Freire começam a ser aplicadas, mas seu processo foi interrompido, em 1964, pelos anos de retrocesso da ditadura brasileira. 5Somos realmente diferentes? Durante os anos da ditadura, a escola retoma seu formato de homogeneização dos sujeitos e sua completa visão funcionalista. Intelectuais pedagogos e filósofos progressistas foram expulsos do país, presos, ficaram desaparecidos ou foram assassinados durante esse período. As ideias de Paulo Freire, que tomavam conta de uma educação para todos de forma libertária, deram lugar ao Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Uma forma técnica e pouco crítica de olhar a alfabetização, principalmente de adultos, e o aprendizado. É com o fim da ditadura, a Constituição de 1988 e a posterior criação da LDB de 1996 que a educação volta ao eixo da diversidade, agora assim nomeada. Os ideais do Patrono da Educação voltam a tomar novos formatos, e a legislação busca abarcar as diferentes individualidades dos sujeitos que passam a integrar a escola. A seguir, veja a sequência de alguns importantes marcos da educação pelas diferenças após a Ditadura Civil-Militar no Brasil. 1988 Abertura democrática, nova constituição brasileira 1990 Declaração Mundial sobre Educação para todos 1994 Declaração de Salamanca 1996 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 2001 Plano Nacional de Educação 2001-2010 (PNE 2001-2010) 2001 Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica 2001 Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo 2002 Declaração Universal Sobre A Diversidade Cultural 2003 Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Lei nº 10.639/03) 2004 Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade 2004 Programa Universidade para Todos (Prouni) 2004 Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) 2012 Lei de Cotas (Lei nº 12.711/12) 2014 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas Embora alguns dos costumes da época da ditadura tenham se mantido, é inegável os desenvolvimentos em busca de uma educação que envolva e agregue a todos, sobretudo no que tange à diversidade, combatendo a exclusão dos segregados, como indígenas e pessoas do campo, mas propondo diretrizes Somos realmente diferentes?6 que englobem as suas particularidades. Para compreender essas relações, o antropólogo Munanga (2014, p. 35) articula as questões de diversidades, políticas e culturas: Em vez de opor igualdade e diferença, é preciso combiná-las para poder construir a democracia. É nessa preocupação que se coloca a questão do multicultura- lismo, definido como encontro de culturas, ou seja, a existência de conjuntos culturais fortemente constituídos, cuja identidade, especificidade e lógica interna devem ser reconhecidas, mas que não são inteiramente estranhas umas às outras, embora diferentes entre si. No plano político, o reconhecimento da diversidade cultural conduz à proteção das culturas minoradas. Por exemplo: as culturas indígenas da Amazônia e de outras partes do continente americano que estão sendo destruídas, seja pelas invasões de seus territórios, seja ainda pela criação das reservas onde se acelera a deterioração das sociedades e dos indivíduos. Nos países da diáspora africana se coloca a mesma questão política do reconhecimento da identidade dos afrodescendentes. Pensar a partir da ótica de Munanga (2014) nos ajuda a elucidar o que a edu- cação, a política e a cultura têm em comum. Em nossas diferenças e igualdades, é fundamental o comprometimento coletivo na construção de uma democracia que fortifique as diferenças em suas particularidades. Como fazemos para conquistar esses objetivos? Parte disso já conseguimos vislumbrar neste tópico, agora aprofundaremos nossos estudos. Construção de currículos abertos à diversidade A construção de um currículo pedagógico deve estar sempre conectada à re- alidade e às relações socioculturais. A tarefa de fazer um currículo diverso é um processo que precisa ser encarado com muita seriedade, informação e compreensão das relações colocadas nesse documento: O currículo é um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão mutuamente implicados. O currículo corporifica relações sociais. (SILVA ,1996, p. 23.). Dessa forma, o currículo é a primeira relação formal entre a instituição de ensino, os educadores e os educandos, traçando alguns princípios que serão a ponta de lança e a base na mediação das conexões e dos conhecimentos. Refletir 7Somos realmente diferentes? as relações socioculturais já implica em um currículo formado por conteúdos hibridos, que possam contemplar diferentes relações, desde questões formais e burocráticas, até conhecimentos locais, imbricados em relações, muitas vezes, de afeto e de culturas. Quando um currículo falha em refletir as relações socioculturais diversas, acaba por se tornar obsoleto, corroborando com uma educação que pouco en- sina e mais normatiza as relações. Embora todo currículo traga em si relações de poder imbricadas, essas relações podem ser mais ou menos conectadas à realidade dos educandos e das escolas, fazendo a transmissão e construção de saberes mais ou menos complexas. Nesse sentido, “[...]o currículo se torna um terreno propício para a transformação ou manutenção das relações de poder e, portanto, das mudanças sociais [...]” (JESUS, 2008, p. 2639). Quer se aprofundar mais no tema da diversidade e igualdade? Leia o texto de Joan Scott (2005), chamado “O enigma da igualdade”, disponível no link a seguir. https://goo.gl/wxXdAe O currículo deve, então, refletir hibridamente as diferentes realidades sociais e as diferenças culturais, sem apagar ou diminuir uma ou outra cultura. Para tanto, a organização de bons materiais pode ser um dos melhores aliados. Dessa forma, um currículo que não se conecta com a realidade da escola, dos alunos e dos professores se torna, como diz Jesus (2008), um produto anacrônico que acaba por favorecer uma estrutura isolada, deixando o trabalho de educadores mais árduo e criando uma maior propensão para a evasão de alunas e alunos. Em um material publicado pelo Ministério da Educação, Gomes (2007, p. 19) nos traz uma importante afirmação que pode servir como base para começar os questionamentos com o currículo: “O discurso, a compreensão e o trato pedagógico da diversidade vão muito além da visão romântica do elogio à diferença ou da visão negativa que advoga que ao falarmos sobre a diversidade corremos o risco de discriminar os ditos diferentes [...]”. Somos realmente diferentes?8 A perspectiva crítica da política das diferenças pode ser uma aliada útil para conseguir trabalhar a partir da visão da Nilma Lino Gomes (2007). É importante, então, que um currículo contemple a realidade social de forma não discrininatória, livre de preconceitos, livre de estigmas e de forma crítica e reflexiva. A seguir veja as indagações centrais colocadas pela autora para pensar um currículo que pense a diversidade de forma não discriminatória. Questões para discussão nos processos de formação em serviço: 1. O que entendemos por currículo? 2. Que concepções de diversidade permeiam as nossas práticas, os nossos currículos, a nossa relação com os alunos e suas famílias e as nossas relações profissionais? 3. A nossa abordagem em sala de aula e os nossos projetos pedagógicos sobre edu- cação ambiental têm explorado a complexidade e os conflitos trazidos pela forma como a sociedade atual se relaciona com a diversidade biológica? 4. Que entidades dos movimentos sociais existem na região onde atuamos como educadores(as)? Eles trazem demandas para a escola? Quais? A escola tem consi- derado essas demandas na sua prática curricular? Como? 5. Será que os movimentos sociais conseguem indagar e incorporar mais a diversidade nas suas ações do que a própria escola e a política educacional? 6. Como vemos o debate sobre a inclusão das crianças com deficiência na escola regular? As escolas regulares introduzem no seu currículo a necessidade de uma postura ética em relação às crianças com deficiência? 7. Conhecemos as principais demandas do movimento negro em prol da educação escolar? Como tem sido o processo de implementação da Lei de nº 10.639/03 (obri- gatoriedade da inclusão do ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira) nos currículos das nossas escolas? 8. Colocamos a discussão sobre a diversidade e o currículo no campo da ética ou a entendemos como uma reivindicação dos ditos “diferentes”? 9. É possível a inclusão das diferenças sem a superação da rigidez da estrutura espacial e temporal da instituição escolar? O que poderia ser feito para flexibilizar os tempos e os espaços da escola onde atuamos? 9Somos realmente diferentes? A convivência das diferenças e os processos de alteridade Partindo das questões colocadas por Gomes (2007) no quadro acima, precisamos nos aprofundar e pensar os processos de convivência a partir da perspectiva das políticas das diferenças. Como ponto de partida, observemos com atenção a citação de Munanga (2014, p. 36): Na contramão da globalização neoliberal homogeneizante que quer arrastar todos os povos para o mesmo fosso, corre paralelamente, em todo o mundo, o debate sobre a preservação da diversidade como uma das riquezas da humanidade. A questão fundamental que se coloca em toda parte é como combinar sem conflitos a liberdade individual com o reconhecimento das diferenças culturais e as garantias constitucionais que protegem essa liberdade e essa diferença. Essa questão leva a uma reflexão complexa que abarca notadamente o político, o jurídico e a educação. A globalização tem inúmeras facetas que podem acirrar as desigualdades. Parte do processo de homogeneização cultural implica fortalecimento e crescimento do individualismo, e é comum que, em nome das liberdades individuais, acabe- -se por apagar as diferenças socioculturais e o reconhecimento de seu impacto direto sobre o desenvolvimento de certos grupos minoritários em relação à uma visão generalizada do que seria um padrão cultural ocidental. Todavia, ao mesmo tempo, alguns de seus recursos podem ajudar professores e professoras em suas salas de aula, especialmente quando pensamos em tecnologia: Hoje a tecnologia é útil ao aprendizado, pois o seu desconhecimento vem geran- do no mundo atual o mesmo tipo de exclusão que sofre o analfabeto no mundo da escrita. Mas agora vem a seguinte pergunta, o que é necessário? Esta é uma pergunta difícil de ser respondida, pois depende do contexto, da realidade em que se vive e da autonomia de cada um. O que se pode afirmar, sem erro, é que é preciso entender que o essencial é acreditar no potencial cognitivo de cada um. “É essencial à descoberta da alegria do conhecimento, pois ela é à base da autonomia e da subjetividade.” (BEZERRA, 2017, documento on-line). Pensar os processos de diferença e suas relaões socioculturais implica em pensar em um currículo que dialogue com a realidade de alunos e alunas. No que tange à tecnologia, ela pode ser uma aliada para atrair a atenção dos estudantes ou distanciá-los, de acordo com as diferentes abordagens. Sendo assim, é necessário pensar em um currículo que integre de forma dinâmica as tecnologias com as realidades dos alunos, pois, como mostra uma recente pesquisa do IBGE, “[...] Somos realmente diferentes?10 novos dados [...] mostram que 77,1% da população, com 10 anos ou mais de idade, tinham um aparelho de celular próprio em 2016 [...]” (BELIZÁRIO, 2018, documento on-line). E esse número tende a crescer com o passar dos anos, sendo um dado importante para pensar a educação em tempos tecnológicos. A tecnologia, como aliada, pode ser uma forma de atrair o aluno ou a aluna para os conhecimentos escolares, principalmente aqueles que abordam questões relativas a preconceitos e discriminações. Ao pensar a relação entre o racismo, a xenofobia e a sociedade brasileira, nos valemos novamente de Munanga (2014, p. 40) que explica de forma objetiva o que se propõe ao pensar o combate ao racismo: O problema fundamental não está na raça, que é uma classificação pseudocien- tífica rejeitada pelos próprios cientistas da área biológica. O nó do problema está no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a discriminação existente. […] Da mesma maneira que o Brasil criou seu racismo com base na negação do mesmo, os racismos contemporâneos não precisam mais do conceito de raça. A maioria dos países ocidentais pratica o racismo antinegro e antiárabe, sem mais recorrer aos conceitos de raças superiores e inferiores, servindo-se apenas dos conceitos de diferenças culturais e identitárias. As propostas de combate ao racismo não estão mais no abandono ou na erradicação da raça, que é apenas um conceito e não uma realidade, nem no uso dos léxicos cômodos como os de etnia, de identidade ou de diversidade cultural, pois o racismo é uma ideologia capaz de parasitar por todos os conceitos. O autor aponta a ineficácia de um projeto que visa a sobrepor a raça, até mesmo sob a rubrica “somos todos iguais”, quando, na verdade, o próprio título do capítulo elucida: somos diferentes em nossas particularidades e é necessárioum projeto que combata a negação do racismo no Brasil, propiciando um amplo e sério debate, que, para o autor, “[...] não está na erradicação da palavra raça e dos processos de construção da identidade racial, mas sim numa educação e numa socialização que enfatizem a coexistência ou a convivência igualitária das diferenças e das identidades particulares [...]” (MUNANGA, 2014, p. 41). Quer conhecer mais sobre as ideias críticas de Kabengele Munanga? Acesse a entevista “A educação colabora para a perpetuação do racismo”, por meio do link: https://goo.gl/bMkQ7o 11Somos realmente diferentes? O que o autor aponta como saída é o que se tem trabalhado neste mate- rial como foco de debate, a diversidade a partir de uma ótica da educação (MUNANGA, 2014). Há tempos, o Movimento Negro Brasileiro tem trazido pautas que denunciam e demonstram as discursividades racistas e exclusórias da sociedade brasileira. Uma das suas conquistas foi a homologação da Lei de Educação e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas, que propicia uma maior criticidade para todos os envolvidos nos processos educacionais. Da mesma forma, a Lei de Cotas busca evidenciar, ao mesmo tempo em que tenta preencher, o espaço vago que pessoas negras não ocupavam nas universidades. Algumas conquistas práticas podem nos ajudar a compreender para onde caminham os debates sobre diferenças, da mesma forma que um profis- sional comprometido com uma educação não racista, não xenofóbica, não homofóbica ou não machista faz grande diferença durante o processo de aprendizagem em qualquer uma das etapas da educação formal e fora dela. Como podemos, então, formar profissionais comprometidos com a garantia dos direitos humanos? Alteridade O processo de pensar as identidades sociais, que é parte do que estamos fazendo neste capítulo, é um importante aliado do conceito de alteridade que nos permite pensar sobre as diferenças para trabalhar a diversidade. A alteridade já foi muito debatida e criticada dentro das ciências humanas, contudo continua, pela perspectiva que está sendo debatida aqui, fundamental para que possamos compreender “o outro” como parte do todo que precisa ser olhado, e, muitas vezes, é levada a cabo uma série de propostas para que as pessoas possam ter uma vida digna. Dessa forma, a resposta para a pergunta: como posso compreender o que não passei? Está justamente na questão da alteridade: [...] a ênfase na identidade resulta, também, na ênfase da diferença. Ao mesmo tempo em que a busca da identidade por parte de um grupo social evoca a diferença deste em relação à sociedade ou ao governo ou a outro grupo e instituição, ela possui um processo de elaboração e diminuição das diferenças internas do próprio grupo e dos vários grupos que formam, naquele momento de reivindicação, um único sujeito político. E esse trabalho Somos realmente diferentes?12 envolvendo semelhanças e diferenças propicia a articulação entre poder e cultura, pois “é exatamente no domínio da cultura que estes grupos (sejam mulheres ou índios) resgatam sua autonomia e reafirmam a sua diferença” (NOVAES,1993: 27). Nesse sentido, o meu mundo, o meu eu, a minha cultura, são traduzidos também através do outro, de seu mundo e de sua cultura, do processo de decifração desse outro, do diferente. (GOMES, 2007, p. 41-42). Nós nos reconhecemos a partir do outro, contudo nem sempre é pela aceitação deste, mas sim pela negação da sua existência ou da possibilidade de sermos como ele. Assim, embora o conceito de alteridade não venha como uma resposta para os processos de exclusão, este é uma parte importante do processo de compreender que os conceitos aqui trabalhados são concretos no dia a dia. Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma reali- dade diversa daquele meu mundo, hoje, o longe é perto, e o outro é também eu mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas, pois, não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro é hoje próximo e familiar, mas não necessariamente é nosso conhecido. O desafio da alteridade é assim, mais contundente agora do que no passado, em que a imposição pela força era suficiente para definir hierarquias e papéis, subjulgando em nome de princípios científicos morais e religiosos. (GUSMÃO, 1999, p. 45). A alteridade, contudo, não pode ser usada para acharmos que compreen- demos o lugar do outro no mundo, pelo contrário, a alteridade será o espelho invertido para questionar nossas certezas, mas não questionar a existência do outro ou pensar que o entendemos por completo. Dessa forma, o processo é, então, uma aproximação situada dentro do contexto cultural e social já reforçado anteriormente. A alteridade serve como base para situarmos alguns conhecimentos e, principalmente, para elucidarmos o espaço de conquistas e disputas nas quais as diferenças estão inseridas. Pensar uma sociedade democrática no Brasil é pensar as relações étnico- -raciais, o combate aos preconceitos e, dessa forma, não há como ignorar as dinâmicas da diferença que perpassam especialmente a educação formal. As políticas de ações afirmativas são parte da conquista de direitos, mas é preciso avançar ainda mais para pensar as possibilidades de um futuro com cada vez mais respeito às diferenças. 13Somos realmente diferentes? BELIZÁRIO, J. Pesquisa do IBGE revela que 138 milhões de brasileiros possuem um smart phone. 2018. Disponível em: <https://www.tudocelular.com/android/noticias/n120658/ Pesquisa-revela-indice-uso-smartphones-brasil.html>. Acesso em: 03 dez. 2018. BEZERRA, E. A. A educação e as novas tecnologias. 2017. Disponível em: <https://www. webartigos.com/artigos/a-educacao-e-as-novas-tecnologias/3050/>. Acesso em: 03 dez. 2018. CAMILO, C. Era Vargas: profusão de ideias. 2013. Disponível em: <https://novaescola. org.br/conteudo/3434/era-vargas-profusao-de-ideias>. Acesso em: 04 dez. 2018. CASTANHA, A. P.; BITTAR, M. O papel dos professores na formação social brasileira: 1827-1889. Revista HISTEDBR Online, Campinas, v. 9, n. 34, p. 37-61, 2009. FREIRE, P. 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