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1 MECANISMOS DE DEFESA AULA 3 Profª Juliana Santos Prof. Marcelo de Oliveiro 2 CONVERSA INICIAL O tema que trataremos nesta etapa é bastante transversal em toda a psicanálise e para além dela, pois Freud começou a discutir os Mecanismos de Defesa em suas cartas a Fliess, nas quais ele levantou suas primeiras hipóteses a respeito de como funcionavam esses mecanismos nas diferentes estruturas psicanalíticas. Nessas cartas, Freud já colocava em evidência a função dos mecanismos de defesa, sustentando que a análise desses mecanismos possibilitaria ao psicanalista o acesso aos conteúdos inconscientes de seus pacientes. Os estudos sobre os mecanismos de defesa foram adaptados quando Freud estava escrevendo os textos da segunda tópica, na qual ele abandona a concepção de estrutura psíquica como Cs-Pcs-Ics e passa a utilizar Id, Ego e Superego. Os mecanismos de defesa também foram fundamentais em seus textos para Freud conceituar suas hipóteses sobre o desenvolvimento psicossexual infantil e para a compreensão das estruturas neuróticas, psicóticas e perversas. Posteriormente, tanto Melanie Klein quanto Lacan irão estender as concepções sobre os mecanismos de defesa; além disso, Anna Freud, que fez parte da escola americana ligada à Psicologia do Ego, aprofundou os conceitos de defesa para embasar suas próprias hipóteses na clínica com crianças. Assim, os estudos sobre as formas de defesa permeiam diversos textos de Freud e dos autores pós-freudianos e compreender os princípios que estão em jogo na constituição das diferentes formas de defesa é o trabalho fundamental do psicanalista dentro do setting terapêutico, pois pela investigação das deformações que o ego manifesta, é possível levantar hipóteses sobre os desejos recalcados do Id e a dinâmica psíquica inconsciente do analisando. TEMA 1 – PRIMEIROS ESCRITOS, NARCISISMO E RESISTÊNCIA COLETIVA 1.1 Os primórdios dos estudos sobre os mecanismos de defesa Freud começa a estudar os mecanismos de defesa já em seus primeiros escritos. Na carta 22 a Fliess, por exemplo, ele (1895) já traz uma tabela na qual ele procura analisar individualmente como se processam os mecanismos de defesa em 3 cada uma das estruturas psíquicas: Afeto Conteúdo da ideia Alucinação Resultado Histeria eliminado pela conversão - - ausente da consciência - defesa instável com ganho satisfatório Ideia obsessiva conservado + - ausente da consciência substituto encontrado - defesa permanente sem ganho Confusão alucinatória ausente - - ausente favorável ao EGO favorável à defesa defesa permanente com ganho acentuado Paranoia conservado + + projetado para fora hostil ao EGO favorável à defesa defesa permanente sem ganho Psicose histérica domina a consciência + + domina a consciência hostil ao EGO hostil à defesa fracasso da ideia Aqui, podemos observar que tanto a neurose obsessiva quanto a paranoia possuem pontos em comum, como a conservação do afeto que estava presente na origem do conflito e a tentativa de defesa do ganho sem qualquer ganho. Posteriormente, no Rascunho K (As neuroses de defesa: um conto de fadas natalino), Freud parte desse estudo anterior e estabelece uma diferenciação entre a histeria, a neurose obsessiva e a paranoia. Nestas, Freud (1895) considera que: • Na histeria, os principais mecanismos de defesa são o recalque do conteúdo traumático e a formação dos sintomas a partir desse recalque, combinados com a passividade ou a ausência de vida sexual e a experiência de desprazer advinda do aparecimento de uma ideia particularmente insuportável para o ego. • Na neurose obsessiva, os mecanismos de defesa se dão no aparecimento de pensamentos repetitivos, seguidos de comportamentos que tentam anular ou contrapor esses pensamentos, funcionamento como uma autocensura para que o ego seja capaz de recalcar aquele pensamento repulsivo. • Na paranoia, embora nenhuma autocensura esteja evidente, o processo de projeção é que surge após a desconfiança inicial e representação do afeto reprimido. Nesse sentido, os sintomas mais comuns estão ligados à megalomania e ao medo de perseguição, sendo ambos criados com o objetivo de proteger o ego. 4 Segundo Laplanche e Pontalis (2001, p. 277): Não há divergências quanto ao fato de que os mecanismos de defesa são utilizados pelo ego, mas permanece aberta a questão teórica de saber se a sua utilização pressupõe sempre a existência de um ego organizado que seja o seu suporte. Com essa afirmação, os autores trazem que não é imprescindível que haja um desenvolvimento satisfatório do ego para que haja mecanismos e defesa em atuação, permitindo, então, que qualquer estrutura (neurótica, psicótica ou perversa) faça uso de mecanismos de defesa quando necessário. 1.2 Um pouco sobre narcisismo e os mecanismos de defesa Quando Freud escreve sobre o narcisismo em 1914, seu objetivo foi escrever sobre a etapa anterior ao Complexo de Édipo, na qual o investimento libidinal é direcionado ao próprio ego. Embora, após a etapa do Complexo de Édipo, esse investimento passa a ser direcionado ao outro, o aprendizado nessa fase se dá com a ideia de onipotência infantil e com o estádio do espelho, no qual Lacan afirma que a criança passa a ver sua imagem como sendo a dela mesma, e não como a imagem de outra criança. Nessa fase narcísica, a criança passa a ter uma maior noção de si mesma, podendo também haver a fixação de um ideal em si mesmo, pelo qual passa a medir o ego real – e a formação desse ideal é o condicionante do recalque. Embora a sublimação possa ser impulsionada pelo ideal do ego, ela não depende dele, e nessa relação entre o ideal do ego e a capacidade de sublimação é que se dá a neurose. Com isso, essa neurose se forma quando há uma falta de sintonia com o ego – o ego distônico ou alienígena –, enquanto a capacidade de articular o ideal de ego e a sublimação permitem que o ego esteja em sintonia com ele mesmo – o egossintônico. Esses dois tipos de ego não necessariamente permanecem a todo momento no indivíduo, mas se alternam, e é essa ambivalência que permite ao ego se desenvolver e amadurecer. 1.3 As resistências à psicanálise: mecanismos de defesa coletivos Embora esse texto de 1925 não seja exatamente direcionado para a discussão sobre os mecanismos de defesa propostos por Freud na análise das estruturas psíquicas, falar de “As resistências à psicanálise” também é falar de mecanismos de defesa. Isso porque, ao falar do desprazer das pessoas ao se depararem com algo novo, com algo que elas não conhecem, é também falar de mecanismos de defesa que entram em ação. Segundo o autor (Freud, 1925, v. XIX, p. 239): “a fonte de 5 desprazer é a exigência feita à mente por algo que é novo, o dispêndio psíquico que ela exige, a incerteza alçada até a ansiosa expectativa que ela traz consigo”. Ou seja, para uma análise do comportamento comum das pessoas, começamos a olhar para aquilo que é novo. Quando Freud discute essa questão do novo, ele o traz sob a perspectiva da psicanálise. De seu ponto de vista, a ciência está correta ao se mostrar cética diante de qualquer novidade que não oferece qualquer evidência daquilo que afirma e de rejeitar pontos de vista que não permitem o rigor de seu método investigativo. No entanto, afirma Freud (1925), esse ceticismo pode incorrer em dois processos inesperados: 1) uma vez que a ciência está acostumada a determinados pensamentos e metodologias, ela pode passar a rejeitar qualquer novo pensamento antes mesmo de avaliá-lo; 2) a ciência pode passar a se contentar apenas com o que já é conhecido, sem qualquer demanda de ter algo novo para ser incorporado.A rejeição e a passividade já foram constatadas ao longo da história da ciência e, mais de uma vez, pode se observar como a ciência se recusou a aceitar determinado pensamento até finalmente perceber que “a resistência era injustificada, e a novidade, valiosa e importante” (Freud, 1925, p. 239). Nesse sentido, Freud passa a descrever a história da psicanálise desde seus primórdios com Charcot e Breuer e como os pensamentos desses cientistas foram pouco aproveitados, embora se mostrassem bastante consistentes do ponto de vista metodológico. Na opinião dele, se a descoberta da origem das neuroses tivesse sido por algum distúrbio químico do corpo ou algum estado tóxico, não haveria motivos para oposição. Porém, a partir do momento que ele criou uma via de abordagem diferente, baseada na combinação do somático com o mental e como essa combinação inusitada poderia dar origem, isso gerou uma revolta por parte dos demais cientistas, que não conseguiram perceber que a psicanálise se baseava em um método científico rigoroso, embora não se utilizasse mais dos mesmos paradigmas existentes até aquele presente momento. Desta forma, o autor conclui que, embora a psicanálise tenha muito a contribuir do ponto de vista de se compreender a dinâmica inconsciente e como se formam os sintomas neuróticos, há um grande desafio por parte dos cientistas de compreenderem que nem sempre as perspectivas para uma nova grande descoberta são possíveis, se partirmos sempre dos mesmos pontos de vista. 6 TEMA 2 – INIBIÇÕES, SINTOMA E ANGÚSTIA Segundo Strachey (1926), foi ao longo dos estudos das neuroses atuais que Freud se deparou pela primeira vez com a questão da angústia, sendo esse assunto posteriormente explorado por diversos outros autores pós-freudianos (Laplanche, 1998). Antes de escrever o texto “Inibições, Sintomas e Angústia”, Freud ainda tentava descobrir se haveria alguma forma de articular os sintomas histéricos em termos fisiológicos. No entanto, ao analisar as psiconeuroses, Freud observava que o acúmulo de excitação acumulada (ou libido) e não descarregada era de origem psicológica, no caso, o recalque. Ao fazer essa observação, Freud também identificou que esse era o mesmo das neuroses atuais. Sobre a angústia, Strachey (1926, p. 83) traz uma série de exemplos dos textos de Freud: Algumas citações indicarão com que lealdade Freud manteve esse ponto de vista. No ‘rascunho E’ (c. 1894) [...], escreveu ele: ‘A angústia surge por uma transformação da tensão acumulada’. Em A Interpretação dos Sonhos (1900a): ‘A angústia é um impulso libidinal que tem sua origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente’. [...]. Em Gradiva (1907a): ‘A Angústia em sonhos de angústia, como a angústia neurótica em geral, ... decorre da libido pelo processo de recalque’[...] No artigo metapsicológico sobre “Recalque” (1915d): ‘Após o recalque, a ‘parcela significativa [do impulso instintual – isto é, sua energia] não desapareceu, mas foi transformada em angústia’. [...] Finalmente, já em 1920, Freud acrescentou numa nota de rodapé à quarta edição dos Três Ensaios: ‘Um dos resultados mais importantes da pesquisa psicanalítica é essa descoberta de que a ansiedade neurótica se origina da libido, que é produto de uma transformação desta e que, assim, se relaciona com ela da mesma forma que o vinagre com o vinho. Assim, durante muito tempo, Freud considerou a angústia mais como uma libido transformada do que como uma simples reação a alguma situação de perigo. Embora Freud não descartasse a existência da ansiedade devido a temores reais, suas hipóteses estavam muito mais calcadas na angústia como consequência de uma situação traumática, de uma experiência de desamparo com a qual o indivíduo não consegue lidar – como o trauma do nascimento, a angústia da perda da mãe como objeto, a perda do pênis, a perda do amor do objeto e a perda do amor do superego (aqui, já entrando na segunda tópica freudiana). TEMA 3 – MAIS UM POUCO SOBRE INIBIÇÕES E SINTOMAS Em seu texto “Inibições, sintomas e angústia”, Freud (1925) afirma que a inibição é uma restrição normal a uma função. Ao fazer uma diferenciação entre os dois termos, Freud (1925) afirma que o sintoma é a presença de algo patológico; a 7 inibição é quando há uma redução de função, enquanto o sintoma é quando “uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta” (1925, p. 91). Em seus estudos, o autor traz a comparação da função sexual com o comer, a locomoção e o trabalho profissional. No caso da função sexual, Freud (1925) traz que algumas formas de inibição são a impotência psíquica, o desprazer psíquico com o próprio ato, a falta de ereção e a ejaculação precoce. Já no caso da alimentação, podemos citar a anorexia, a bulimia e a própria compulsão alimentar como o medo de morrer. Por fim, na locomoção, o autor traz como exemplo a indisposição para andar ou uma fraqueza durante as caminhadas, o que ele observou muito bem em seus atendimentos com as histéricas. Com isso, quando há uma redução no prazer, quando o indivíduo se sente incapaz de sentir prazer devidamente ou quando sente certas reações, como fadiga, enjoo ou tontura, isso vem da inibição da libido, que então se encontra recalcada. Ou seja, a inibição é uma “restrição de uma função do ego” (Freud, 1925, p. 93). Essa restrição pode ocorrer quando o ego deseja evitar entrar em conflito com o id, ou pode transformar a inibição em uma espécie de punição quando o objetivo aqui é evitar um conflito com o superego. Já no caso das inibições mais generalizadas, como na ocorrência da perda de um ente querido ou quando há um surto com intensa supressão de afeto, há uma perda tão grande da quantidade de energia que o indivíduo passa a ficar em uma espécie de posição de espectador, parado sem conseguir reagir ao que está à sua volta. Em suma, pode-se dizer que as inibições “são restrições das funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia”. Ao concluir a análise sobre as inibições, Freud (1925) observa que, ao mapear o significado de inibição, o sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele. Desta forma, afirma Freud (1925, p. 95): Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente; é uma consequência do processo de recalque. O recalque se processa a partir do ego quando este – pode ser por ordem do superego – se recusa a associar-se com uma catexia instintual que foi provocada no id. O sentido dos sintomas neuróticos foi descoberto por Breuer durante seus estudos com as histéricas, em particular, Anna O. Esse caso permitiu a Breuer, juntamente com Freud, inferir que as excitações que não encontravam descarga normal se tornavam patogênicas, sendo o sintoma produto desse processo. Como 8 bem sintetiza o autor Birman (1991, p. 141): Na interpretação freudiana, os sintomas histéricos se articulam num sistema coerente, fundado na imagem do corpo, e não na estrutura do corpo, subordinada esta última às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais. O importante passa a ser como o histérico vivencia a sua corporalidade, ou seja, de que maneira investe as diferentes partes do seu corpo e as interpreta como superfícies dotadas de significação. TEMA 4 – MAIS UM POUCO SOBRE ANGÚSTIA Um dos pilares sobre a angústia, para Freud, fala do trauma do nascimento e a teoria da angústia. Segundo Roudinesco e Plon (1997), na primeira teoria da angústia, o autor a associa ao coito insatisfatório, uma vez que se refere a uma quantidade de energia que não foi devidamente descarregada. Posteriormente, Freud trata da questão da angústia a fantasias sobre o útero, tornando o próprio nascimento comoo protótipo do afeto de angústia. Durante o texto “Interpretação dos Sonhos”, Freud traz a noção das fantasias para analisar se a angústia apresentada pelos pacientes seria fruto de experiências realmente vividas ou de fantasias relacionadas a questões psíquicas. Com isso, Freud (1925) cria três termos para o conceito de angústia: (1) a angústia frente a um perigo real, (2) a angústia automática ou como uma reação imediata a uma situação traumática de origem social, (3) o sinal de angústia, que funciona como um símbolo mnêmico que permite ao ego reagir por meio de uma defesa. O conceito de angústia se refere assim a um estado afetivo sentido pelo ego, trazendo um estado especial de desprazer com atos pontuais de descarga desse desprazer. E, para além dessa análise puramente fisiológica, podemos dizer que a angústia é a reprodução de alguma experiência que encerrava as condições necessárias para tal aumento de excitação e uma descarga por trilhas específicas, e que a partir dessa circunstância o desprazer da angústia recebe seu caráter específico. (Freud, 1925, p. 132) Ao trazer a citação do texto a respeito da angústia, Hanns (1996) traz que a angústia tem uma inegável relação com a expectativa; tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto. No caso da ansiedade neurótica, a angústia é por um perigo desconhecido, que ainda precisa ser descoberto, pois foi oculto do ego. O principal caso utilizado por Freud para exemplificar suas hipóteses a respeito da angústia é o caso do Pequeno Hans. Assim, o medo de cavalos do menino era um sintoma e sua incapacidade para sair de casa era uma inibição imposta para evitar despertar o sintoma de angústia. Hans tinha medo de que um cavalo o mordesse, mas sua fobia estava sempre buscando tornar-se mais indefinida 9 de modo que somente a angústia e seu objeto fossem perceptíveis. Por que essa ideia de que um cavalo o mordesse constituía o núcleo do sintoma de angústia de Hans? Do ponto de vista freudiano, Hans estava vivendo uma atitude edipiana hostil em relação ao pai, o qual ele também amava. Mas não era por causa dos sentimentos por sua mãe ou por seu pai que ele desenvolvera uma neurose ou fobia, mas, sim, porque houve a substituição da figura do pai pela figura do cavalo. A análise do caso de Hans permitiu então a Freud afirmar que é a angústia que produz o recalque, não o contrário. Ou seja, a “mola” da formação dos sintomas é o medo que o ego tem de seu superego e da existência de desejos recalcados no inconsciente. No caso de Hans, após a formação do sintoma, seu amor pela mãe foi eliminado pelo recalque, enquanto a própria formação dos sintomas ocorreu em relação aos seus impulsos agressivos em direção ao pai. TEMA 5 – O RECALQUE De acordo com Freud, a repressão ou recalque (Vorstellung) é uma estratégia dinâmica que o sujeito utiliza para repelir ou manter no Ics representações (como pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. É um mecanismo de defesa ou destino de pulsão capaz de ser utilizado como defesa e pode ser considerado um processo psíquico universal, estando na origem da constituição do aparato psíquico. O recalque é um tipo de defesa que não é nem tão elementar como o reflexo de defesa pela fuga (baseado no perigo externo), nem tão elaborado quanto o juízo de condenação (proibição por razões morais ou de oportunidade). Ela é uma etapa preliminar e surge quando a pulsão produz mais desprazer do que prazer (perigo interno). Não é qualquer ideia que pode ser recalcada; para um representante instintual parecer ameaçador, significa que ele é percebido como um precipitado de alguma experiência traumática primeva, como um símbolo mnêmico que está para ser revivido. O recalque possui três fases distintas: o recalque primevo, ou primeira fase do recalque (Urverdrängung), que corresponde a uma primeira inscrição produzida pela negação da entrada do representante psíquico pulsional na consciência. Com isso, estabelece-se uma fixação, uma ligação da pulsão ao representante psíquico que passou a ser recalcado, ocorrendo geralmente na primeira infância. Essa representação recalcada constitui um primeiro núcleo de cristalização e poderá atrair outras representações insuportáveis sem que intervenha forçosamente uma intenção 10 consciente. A segunda fase do recalque é o recalque secundário ou propriamente dito (eigentliche Verdrängung), o qual cria uma pressão em derivados mentais do representante recalcado, ou força sucessões de pensamento à necessidade do recalque, pois embora tenham se originado em outra parte, entraram em ligação associativa com o recalcado original. A terceira fase é o retorno do recalcado sob a forma de sintomas, sonhos, atos falhos etc. O retorno do recalcado não é o aparecimento puro e simples da representação recalcada do sistema consciente, mas ocorre quando há uma modificação do recalcado original a tal ponto que as deformações escapam aos mecanismos defensivos. Desta forma, a essência do recalque consiste em afastar uma determinada ideia da consciência. Isto não quer dizer que o recalque impeça a satisfação da pulsão, pois se a função defensiva fosse levada ao extremo de impedir toda e qualquer satisfação de pulsão, o aparato psíquico perderia sua razão de ser. O recalque não está contra a satisfação pulsional, mas a serviço dela, buscando ao mesmo tempo manter o melhor equilíbrio possível entre as exigências pulsionais e as exigências sociais e culturais. Assim, aquilo que foi recalcado tenta voltar à consciência e, com isso, o mecanismo de recalque cria uma formação substitutiva como os sintomas, de forma a limitar o efeito do conteúdo recalcado. A formação de sintomas e a formação de substitutos coincidem e são indicações do retorno do recalcado. O processo de recalque é contínuo e exige um dispêndio persistente de energia, pois o material inconsciente e recalcado exerce uma pressão contínua em direção à consciência. Dentro da segunda tópica (em que se diferencia o funcionamento psíquico a partir de id, ego e superego), Freud define que o recalque ocorre quando o ego, sob influência do superego, nega-se a se associar com uma catexia instintual que foi provocada no id. Com isso, a ideia abominada pode ser conservada no ego, mas persiste com uma formação inconsciente, e o processo excitatório originado no id é inibido ou defletido. Essa separação não quer dizer que as três instâncias são totalmente separadas: o id e o ego são idênticos; o que os diferencia é que o ego é a parte organizada do id. Mesmo o ego e o superego, muitas vezes, se acham fundidos e nesses casos só podemos diferenciá-los quando há tensão ou conflito entre eles. 11 O recalque, portanto, está ligado à força que o ego faz para manter uma organização e estabilidade entre as instâncias psíquicas, como uma tentativa de restauração ou reconciliação (que, no caso do sintoma, permite uma vantagem secundária). NA PRÁTICA Um dos principais desafios de um analista, principalmente no início de sua vida profissional, é compreender as motivações individuais de seus pacientes que deram origem aos sintomas. Freud, ao relatar em seus artigos sobre os primeiros atendimentos com pacientes histéricas, admitia ter um grande desafio em tentar compreender a origem destas e o porquê da permanência nesses sintomas. Por isso, o papel do analista se assemelha muito mais ao de um investigador, pois, ao longo dos atendimentos, tentamos compreender o sentido dos sintomas. No livro Uma análise freudiana da obesidade, a paciente relata sobre sua relação com o comer e como ela se relacionava com seu corpo. À primeira vista, poderíamos interpretar essa relação com a comida apenas do ponto de vista orgânico, no qual o prazer de comer ainda é mais intenso que o desejo de ficar magra. No entanto, à medida que a paciente seguia com osatendimentos, ficava mais evidente como a questão alimentar não se resumia apenas à relação física, mas também com questões com sua mãe e suas recordações de infância, sobre como a comida desempenhava um papel para além do ego corporal. Comportamentos de não aceitação frente a um divórcio, um falecimento, uma demissão ou uma tragédia também demonstram uma tentativa do ego de lidar com o conflito psíquico. Na clínica, cheguei a ver pacientes que, mesmo depois de terem perdido o emprego, continuavam fazendo todos os dias o mesmo trajeto até o antigo local de trabalho, como se aquela quebra de vínculo não pudesse ser tolerada conscientemente. Com crianças, também vemos a dificuldade de verbalizar o divórcio de seus pais ou a morte de um ente querido, sendo que a tentativa de elaboração de seus egos se dá pelo brincar, movimento que foi estudado e explorado por Winnicott, a ponto de se tornar uma ferramenta terapêutica importante na clínica com crianças. Desta forma, o analista deve estar atento tanto aos conteúdos manifestos quanto às transformações e obstáculos que o ego utiliza diante desses conteúdos, tais como na produção de chistes, sonhos e sintomas. Na fala do paciente, o papel do analista é investigar quais os possíveis mecanismos de defesa que estão em 12 evidência, sob quais condições e quais as consequências que daí surgem (ou o que chamamos de benefícios secundários da doença). A partir do momento que o analista é capaz de compreender essa dinâmica psíquica, ainda que sem todas as respostas, é possível compreender um caminho possível para o cliente lidar com suas angústias, de forma a ressignificar essas angústias diante do mal-estar. FINALIZANDO Nesta etapa, fizemos uma retomada dos textos iniciais pré-psicanalíticos a respeito das hipóteses freudianas sobre os mecanismos de defesa. Para tanto, utilizamos os textos das cartas a Fliess e dos rascunhos de Freud, bem como seu texto sobre as resistências à psicanálise e como elas expressam, de alguma forma, mecanismos de defesa coletivos contra hipóteses que criam um ponto de vista diferente às ideias científicas existentes. Depois, fizemos uma revisão no texto “Inibições, Sintomas e Angústia”, de forma a explicitar como esses três conceitos se articulam e suas diferenças conceituais em relação ao sentido dessas palavras como reações fisiológicas. Esperamos que tenham aproveitado as discussões apresentadas aqui para conhecer um pouco mais dos conceitos psicanalíticos e convidamos você a continuar acompanhando para saber mais sobre esse campo do saber tão envolvente que é a psicanálise. 13 REFERÊNCIAS BERG, R. Uma análise freudiana da obesidade. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2008. 250 p. BIRMAN, J. Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relumé- Dumará, 1991. p. 136-146. v. 2. (A constituição da psicanálise) FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (1886-1899): livro VII. Rio de Janeiro: Imago, 1977. GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. v. 1, v. 2 e v. 3. _____. Recalcamento. In: INTRODUÇÃO à metapsicologia freudiana: narcisismo, pulsão, recalque, inconsciente (1914-1917). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. v. 3. p. 164-206. HANNS, L. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 506 p. KLEIN, M. Temas de psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. KLEIN, M. (1974). Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. LAPLANCHE, J. Problemáticas I: a Angústia. São Paulo: Martins Fontes. 346 p. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 552 p. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 874 p. SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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