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Universidade Federal Fluminense Aluna: Ana Gabriela Medeiros Silva Matéria: Literatura Brasileira IV – Aula 06 A subjetividade no século XIX · Machado de Assis viveu durante a transição entre as escolas literárias romântica e realista no Brasil. Embora tenha escrito romances como "A mão e a luva", "Helena" e "Iaiá Garcia" com influências românticas, ele desenvolveu um estilo único, conhecido como "machadiano". Apesar de ser associado à escola realista, Machado não se encaixava perfeitamente nela devido à sua originalidade. Além de escritor, ele exerceu diversas outras profissões, como jornalista, cronista, crítico literário, funcionário público e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Machado foi um homem à frente de seu tempo, com um aguçado poder de observação da realidade. Através da leitura de contos como "Um homem célebre" e "O espelho", podemos explorar essa subjetividade e genialidade do autor. · UM HOMEM CELEBRE Um resumo da obra: Pestana, um músico e compositor de polcas, tinha sucesso imediato com seu trabalho. No entanto, ele aspirava a ser reconhecido como um compositor de música clássica, como seus ídolos: Cimarosa, Beethoven, Bach, Schumann e Mozart. Passava horas estudando as sonatas dos grandes artistas ao piano, esperando criar uma obra similar ou um réquiem. Casou-se com Maria, uma cantora de ópera que faleceu logo após o casamento devido à tuberculose. Pestana se dedicou então a compor um réquiem em homenagem a ela, mas seus esforços foram em vão, assim como suas tentativas de criar uma sonata. Frustrado, ele voltou relutantemente a compor polcas para sobreviver. Seu editor encomendava essas composições por necessidade financeira, apesar de Pestana desejar fervorosamente realizar suas aspirações musicais. Muitos leitores contemporâneos acreditam numa distância entre eles e o autor do conto "Um homem célebre", pois pensam que estão distantes dos problemas vividos pelo homem do século XIX. Porém, o narrador cria uma conexão entre Pestana e o público, tornando sua história não apenas dele, mas de todos nós. A dualidade entre o que ele é (um compositor de música popular) e o que ele deseja ser (um autor de música clássica) o torna um personagem complexo e universal, refletindo as questões de identidade que permeiam não apenas o século XIX, mas também o século XXI. Assim, Pestana se torna um reflexo de todos nós, e a leitura do conto nos leva a refletir sobre nossa própria identidade e lugar no mundo. Vivemos em um mundo globalizado que nos conecta a diferentes povos, línguas, notícias e culturas, ao mesmo tempo em que nos distancia das pessoas mais próximas de nós. Esse contexto muitas vezes nos deixa desconfortáveis ao nos confrontarmos com rostos que não se parecem com o nosso, perdidos em uma multidão onde deixamos de ser vistos como indivíduos. Internamente, escolhemos e alternamos entre máscaras para sobreviver nesse mundo. No entanto, ao assumir uma identidade, surge o medo, pois não nos sentimos integrados nem aceitos no sistema capitalista. Por não jogarmos conforme suas regras, somos descartados como se fôssemos lixo, pois já não interessamos mais ao sistema político que o alimenta. A maioria de nós paira desconfortavelmente entre esses dois pólos, sem jamais ter certeza do tempo de duração de nossa liberdade de escolher o que desejamos e rejeitar o que nos desagrada. (...) Sabemos que, se os nossos esforços fracassarem por escassez de recursos ou falta de determinação, uma outra identidade, intrusa e indesejada, pode ser cravada sobre aquela que nós mesmos escolhemos. (Bauman, 2005)Parte superior do formulário Dois anos antes da morte de Maria, esposa do músico Pestana, o editor o visita, colocando-o novamente em uma situação desconfortável, lutando consigo mesmo, mas atendendo às expectativas do público. O editor propõe um contrato a Pestana: compor 20 polcas em um ano, com possibilidade de renovação. Pestana, endividado e sem recursos, aceita o contrato, mesmo não desejando compor polcas. No entanto, são essas composições que surgem naturalmente dele e lhe garantem sustento financeiro. Voltar as costas para as polcas significaria perder sua única fonte de renda. O conto nos transporta para o século XIX, levando-nos a refletir sobre os aspectos sócio-político-ideológico-culturais de um país recém-libertado de Portugal. As partituras que Pestana lê e cria simbolizam a construção da cultura brasileira, fruto do diálogo entre o europeu, o indígena e o africano. Assim como nas composições de Pestana, a sinfonia do Brasil se forma pela mistura de diferentes elementos. O texto de Machado de Assis nos leva a considerar que, após a independência política, deve vir a independência literária. Machado de Assis afirma que é mais fácil regenerar uma nação do que uma literatura, pois as mudanças na literatura ocorrem lentamente, sem os gritos de independência como na política. A divisão interna de Pestana persiste, pois ele é simultaneamente atraído pelas polcas, através de seu conhecimento dos clássicos estrangeiros. Embora o narrador do conto "Um homem célebre" não tome uma posição maniqueísta em relação aos diferentes tipos de música, a crítica tende a elevar as obras canônicas como modelos a serem seguidos pelos aspirantes a artistas. Assim, Pestana é pressionado pelas obras consagradas, desejando criar algo imortal, como um noturno ou um réquiem, mas se vê frustrado por não conseguir alcançar tais feitos. Ele fica preso a um ideal estrangeiro, que determina o que é considerado uma obra séria e inspirada, contrastando com as composições populares. · O ESPELHO Resumo do conto: Numa pequena sala à noite, alguns cavalheiros debatem sobre questões transcendentais, incluindo a natureza da alma. Jacobina, calado até então, compartilha uma história pessoal que ocorreu quando tinha cerca de 25 anos. Ele descreve como se tornou alferes da guarda nacional e foi mimado por sua tia, D. Marcolina, que o tratava com reverência enquanto usava sua farda. Porém, ao se ausentarem da casa, todos desapareciam, e Jacobina percebia que só podia se ver no espelho quando vestia o uniforme de alferes, tornando-se como um fantasma sem ele. Seus ouvintes ficam absortos na história, e quando voltam a si, Jacobina já se foi. No conto "O espelho" (1888) de Machado de Assis, o autor não adota uma narrativa em primeira pessoa, mas se concentra na subjetividade do personagem Jacobina, que enfrenta o conflito entre ser e parecer, desejo e máscara, vida pública e vida íntima. Machado destaca que nossa "alma externa", ligada ao status social e à imagem pública, muitas vezes é mais valorizada do que nossa "alma interna", nossa verdadeira personalidade. Ele propõe uma teoria sobre a constituição do sujeito, destacando que esta ocorre no inconsciente e é essencialmente imaginária. O espelho, símbolo frequente de introspecção, ganha destaque como o encontro do homem com sua alma exterior. Essa alma exterior pode ser representada de várias maneiras, como pela família, conquistas profissionais e interações sociais. Muitos objetos e situações refletem nosso eu, que muitas vezes é moldado pelas percepções dos outros. O autor mostra que existem muitas "almas exteriores", muitos espelhos, e apenas um sujeito definitivo. O conto aborda a construção e desconstrução do duplo eu, refletindo sobre a dualidade entre o que se é e o que os outros esperam que se seja. A narrativa utiliza alternâncias entre objetividade e subjetividade, concreto e abstrato, tempo cronológico e psicológico, além de alternar entre narradores em terceira e primeira pessoa. A atmosfera difusa é criada na descrição dos espaços, com a frase "Entre a cidade e o céu". O narrador machadiano deixa muitos elementos indefinidos, convidando o leitor a reflexões sobre o tema. Apesar de ser escrita no Realismo do século XIX, a história continua relevante para a sociedade contemporânea, explorando questões sociais e conflitos humanos, refletindo a visão irônica do autor sobre a realidade e suas críticas sociais, por meio de personagens inspiradosno cotidiano. No conto, o espelho representa uma dualidade entre o Eu e o Outro, refletindo uma experimentação formal e uma análise psicológica profunda, dentro de uma atmosfera pessimista e desiludida. O personagem, ao se olhar no espelho, percebe como sua "alma exterior" o preenche, eliminando sua verdadeira identidade. O confronto entre as partes reflete sua subjetividade. A crítica implícita é que na sociedade, o homem está completamente envolvido em sua máscara, raramente estando em contato consigo mesmo. Ele não é nada além do que parece ser aos outros. De acordo com Bakhtin (1996), a máscara é uma expressão das transferências, metamorfoses, violações de fronteiras naturais, ridicularização e apelidos, entre outros elementos. O conto "O Espelho" apresenta uma representação irônica da classe burguesa brasileira e sua formação. O autor enfatiza, por meio da história narrada pelo personagem, a importância do papel social e da aparência pública na formação da consciência e na percepção do Eu pelo Outro. A experiência radical vivida pelo personagem demonstra que somente a máscara, como a farda vitoriosa, permite uma fixação segura na sociedade. A farda representa uma sublimação do eu, sendo símbolo de status e existência no mundo. O espelho, carregado de simbolismo, representa a alma exterior do personagem Jacobina, evidenciando a dualidade da alma, entre o consciente e o inconsciente, o eu interno e externo. No conto, Machado de Assis aborda tanto a alma humana quanto a alma nacional brasileira, comparando o Alferes à política nacional da época. A descrição do espelho antigo, mas tradicional, sugere uma comparação entre a imagem de Jacobina e a imagem nacional, ambas projetadas ou dissolvidas na moldura antiquada. Assim como Jacobina precisa de sua farda para compor sua imagem, a alma do povo brasileiro talvez precise da tradição monárquica para sua representação na sociedade. A visão irônica de Machado sobre a sociedade brasileira se manifesta na transformação de Jacobina em Alferes, influenciado pelas honrarias e atenções. Marcado como símbolo da corrupção bem-intencionada, ele é constantemente lembrado de sua nova posição, valorizando-se a aparência e o título. No conto, Machado de Assis ironiza a crença da sociedade na existência de uma única alma com expressão única e inabalável. O personagem percorre uma trajetória que passa pela tradição bíblica, mitológica, literária e filosófica para expor os acontecimentos. Jacobina faz alusões à Bíblia ao chamar de "Legião" a senhora que troca de alma exterior várias vezes no ano, e citações bíblicas são frequentes em sua narrativa. A ironia do personagem-narrador reside no descompasso entre o universo sagrado da Bíblia e o mundo secular, como sua nomeação para alferes. O plano religioso é usado como argumento para a aspiração de grandeza de Jacobina, evidenciando a subjetividade presente no conto, que permeia os discursos do autor, do narrador e do personagem.Parte superior do formulário Parte superior do formulário Parte superior do formulário Em todo caso, por mais fortes que sejam as ilusões, as ambiguidades, as confusões “sobre o limiar”, a tentação de homologar imagens especulares e registros, basta recorrer ao experimentum crucis: reproduza-se um espelho numa fotografia, num enquadramento cinematográfico ou televisivo, num quadro. Essas imagens de imagens especulares não funcionam como imagens especulares. Do espelho não surge o registro ou ícone que não seja um outro espelho. O espelho, no mundo dos signos, transforma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio lembrança. (ECO, 1989)