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Michelle Karen Batista dos Santos Lucas e Silva Batista Pilau (Organizadores) ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS: Produções Coletivas de Resistência Porto Alegre OAB/RS 2018 Michelle Karen Batista dos Santos Lucas e Silva Batista Pilau (Organizadores) ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS: Produções Coletivas de Resistência Augusto Jobim Betina Warmling Barros Caroline Bussoloto de Brum Cibele de Souza Domenique Assis Goulart Fernanda Corrêa Osório Fernanda Martins Franchesca Inácio Zandavalli Laura Gigante Albuquerque Leandro da Cruz Soares Lucas Dall'Agnol Pedrassani Lucas e Silva Batista Pilau Michelle Karen Batista dos Santos Osmar Antônio Belusso Júnior Patrícia Martins Saraiva Porto Alegre OAB/RS 2018 Copyright © 2018 by autores Todos os direitos reservados Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da OABRS Fernanda Corrêa Osório Revisores Betina Warmling Barros Domenique Assis Goulart Thiago Ribeiro Rafagnin Capa Carlos Pivetta E52 Ensaios Criminológicos: produções coletivas de resistência/ Michelle Karen Santos, Lucas e Silva Batista Pilau (Organizadores); Augusto Jobim [et al.]. Porto Alegre/OABRS. 2018. 241p. ISBN online: 978-85-62896-13-2 1. Ensaios Criminológicos. 2. Resistência. I. Santos, Michelle Karen Batista dos. II. Pilau, Lucas e Silva Batista. III. Título CDU 343.9 Rua Manoelito de Ornellas,55 – Praia de Belas CEP: 90110-230 Porto Alegre/RS Telefone: (51) 3287-1838 O conteúdo é de exclusiva responsabilidade dos seus autores. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL CONSELHO FEDERAL ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL DIRETORIA/GESTÃO 2016/2018 Presidente: Claudio Pacheco Prates Lamachia Vice-Presidente: Luís Cláudio da Silva Chaves Secretário-Geral: Felipe Sarmento Cordeiro Secretário-Geral Adjunto: Marcelo Lavocar Galvão Diretor Tesoureiro: Antonio Oneildo Ferreira ESCOLA NACIONAL DE ADVOCACIA – ENA Diretor-Geral: José Alberto Simonetti Cabral ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL CONSELHO SECCIONAL DO RIO GRANDE DO SUL DIRETORIA/ GESTÃO 2016/2018 Presidente: Ricardo Ferreira Breier Vice-Presidente: Luiz Eduardo Amaro Pellizzer Secretário-Geral: Rafael Braude Canterji Secretária-Geral Adjunta: Maria Cristina Carrion Vidal de Oliveira Tesoureiro: André Luis Sonntag ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA Diretora-Geral: Rosângela Herzer dos Santos Vice-Diretor: Marcos Eduardo Faes Eberhardt Diretor Administrativo-Financeiro: Otto Júnior Barreto Diretor de Cursos Permanentes: Fernanda Corrêa Osório, Daniel Ustárroz Diretor de Cursos Especiais: Darci Guimarães Ribeiro Diretor de Cursos Não Presenciais: Eduardo Lemos Barbosa Diretora de Atividades Culturais: Karin Regina Rick Rosa Diretora da Revista Eletrônica da ESA: Denise Pires Fincato CONSELHO PEDAGÓGICO Alexandre Lima Wunderlich Ana Paula Oliveira Ávila Darci Guimarães Ribeiro Delton Winter de Carvalho Rolf Hanssen Madaleno CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS DIRETORIA/GESTÃO 2016/2018 Presidente: Rosane Marques Ramos Vice-Presidente: Pedro Zanette Alfonsin Secretária-Geral: Cláudia Brosina Secretária-Geral Adjunta: Melissa Telles Barufi Tesoureiro: Gustavo Juchem TRIBUNAL DE ÉTICA E DISCIPLINA Presidente: Cesar Souza Vice-Presidente: André Araujo CORREGEDORIA Corregedora: Maria Helena Camargo Dornelles Corregedores Adjuntos: Maria Ercília Hostyn Gralha, Josana Rosolen Rivoli, Darci Norte Rebelo Jr OABPrev Presidente: Jorge Luiz Dias Fara Diretor Administrativo: Paulo Cesar Azevedo Silva Diretora Financeira: Claudia Regina de Souza Bueno Diretor de Benefícios: Luiz Augusto Gonçalves de Gonçalves COOABCred-RS Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel Vice-Presidente: Márcia Heinen PALAVRA DO PRESIDENTE A Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/RS tem se notabilizado pela crescente e plural produção de conteúdo oferecida ao Direito brasileiro. São diferentes trabalhos elaborados a partir da enriquecedora contribuição de advogadas e advogados. A publicação da obra coletiva “Ensaios Criminológicos: Produções Coletivas de Resistência” é mais um desses projetos de fôlego. Questões relativas ao contexto do histórico de crimes no Brasil, discursos criminológicos vigentes e suas implicações, desdobramentos para a sociedade de novas realidades sociais, entre outros olhares, são pautas atuais que impulsionam avaliações e revisões de temas significativos para os brasileiros. A OAB/RS se coloca como uma grande fomentadora e plataforma impulsionadora para relevantes debates. Nesse sentido, o trabalho da ESA deve ser reiteradamente reconhecido, em um trabalho de muita qualidade e dedicação da diretora-geral Rosângela Herzer dos Santos. Neste particular, o trabalho da diretora de Cursos Permanentes da ESA, Fernanda Osório, acompanha os aplausos e elogios. Por fim, registro com satisfação, tantos profissionais cada vez mais interessados em contribuir com estudos e análises. É através dessa riqueza de ideias, pontos de vista e pesquisas que qualificamos o debate sobre pautas que fazem do Direito algo tão apaixonante e envolvente. A todos que colaboraram com a obra “Ensaios Criminológicos: Produções Coletivas de Resistência”, recebam minhas felicitações e reconhecimento. Ricardo Breier Presidente da OAB/RS PREFÁCIO Na segunda metade do ano de 2016, os organizadores dessa obra deram início a uma trajetória que até então desconheciam seu final e os possíveis resultados: passaram a compor, juntos, a coordenação do Grupo de Estudos em Criminologia na Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Optaram, em um primeiro momento, por um semestre voltado às leituras básicas do campo criminológico, retomando as etapas de constituição da criminologia como saber e as principais temáticas e pesquisas relativas às agências que compõe o sistema penal. Os próximos semestres, até o final de 2017, momento em que encerrou a coordenação em conjunto entre os organizadores (o que não ocasionou, por óbvio, o fim do grupo), buscou-se um olhar desde outros marcadores mais específicos (e por muito tempo colocados de lado pela epistemologia criminológica), como o de gênero e o racial. Diversos pesquisadores e pesquisadoras de Porto Alegre – com competência acadêmica reconhecida – foram convidados a contribuir com os debates, mas o que fez, verdadeiramente, que o grupo se constituísse e se mantivesse vivo foi a relutância, de diversos estudantes, advogadas/advogados e interessadas/interessados, em se manterem assíduos nas reuniões, contribuindo com suas experiências, acadêmicas e de vida, com os debates, e na construção do rumo que o grupo iria tomar a cada semestre. Esse livro é fruto daquelas pesquisadoras/pesquisadores que estavam presentes no primeiro semestre, quando o Grupo de Estudos em Criminologia da OAB/RS se constituiu, lá em 2016. A ideia, originada ao fim do semestre de trabalho, foi dar visibilidade às pesquisas e inquietações que os e as participantes trouxeram durante as reuniões, tomando como referência as temáticas e escritos que sustentaram as discussões. E por isso são chamados de ensaios, vez que construídos para dar vazão, através de artigos científicos, a propostas de pesquisas que podem ou não ter avançado no decorrer do tempo, com o amadurecimento acadêmico das autoras e autores. E nesse ponto, é preciso destacar que apesar de serem tomados como ensaios, dos escritos vertem muita qualidade, como os leitores e as leitoras poderão perceber. Ainda, é preciso esclarecer que o título, ao referir tratarem-se de produções coletivas de resistência, assim o é por dois motivos. Primeiro, porque a gestação e organização dos artigos foi realizada coletivamente, tendo pelo menos um(a) autor(a) revisado o artigo deoutro(a) autor(a), levantando dúvidas e críticas quanto ao seu conteúdo, com o objetivo final de tão somente qualificar os trabalhos que comporiam o livro. Segundo, como é mais evidente, pode-se notar que o fio condutor dos textos é a resistência aos discursos violentos e desinformados que há muito tempo dão base às políticas criminais e a atuação dos agentes e das agências de controle do sistema penal. Além disso, resistência, em um olhar mais atento, porque vive-se em um país onde recorrentemente – e nos últimos anos ainda mais – pesquisadores, até aqueles com larga trajetória acadêmica, são ameaçados com cortes de orçamento para suas pesquisas, assim como bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado passam a se tornar elemento raro e disputado nas faculdades e nos programas de pós-graduação (acomodando a lógica da concorrência entre pesquisadores e os efeitos em nível de saúde que esse estado impõe). Assim, tendo em vista que a maioria dos autores que compõe essa obra haviam recém iniciado sua caminhada no campo acadêmico, demonstraram esses estarem cientes de que, apesar das limitações que a profissão impõe, vale a pena lutar pela pesquisa e pela ciência do país. Essa publicação resiste, então, contra a redução e o encolhimento da pesquisa e mais ainda contra o obscurantismo que toma conta da questão criminal. Por fim, é preciso um agradecimento especial a professora e advogada Fernanda Osório, a qual contribuiu, de maneira decisiva, para que essa publicação fosse levada a cabo, e também aceitou o convite dos organizadores para realizar a apresentação da obra, assim como a Editora da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, por oportunizar que o material fosse publicado em seu catálogo. Porto Alegre, agosto de 2018. Lucas e Silva Batista Pilau Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) Advogado do Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDDH) de São Leopoldo Michelle Karen Batista dos Santos Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS) Coordenadora do Grupo de Estudos Direito e Criminologia (ESA- OAB/RS) Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) Advogada APRESENTAÇÃO Honra-me os autores e as autoras com o convite de apresentar a coletânea de textos, fruto dos encontros e das discussões realizadas no Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior da Advocacia da OABRS em parceria com a Comissão Especial do Jovem Advogado (CEJA/OABRS), coordenado por Michelle Karen Batista dos Santos e por Lucas e Silva Batista Pilau, incansáveis na concretização do projeto de aliar academia e advocacia, e que proporcionaram aos Advogados e Advogadas do Rio Grande do Sul a comunicação entre o saber criminológico e o saber jurídico-penal. Ainda que preliminarmente, registro a felicidade de participar desse projeto conjunto que revela as inquietações de um grupo de profissionais que, com um potencial revolucionário, resgatam no Direito e no exercício da advocacia a possibilidade de transformação da realidade. Não resta dúvida que há certas épocas em que os desafios são maiores para uma abordagem crítica dos problemas relacionados à violência, ao crime e ao controle social. Porém, para o Grupo de Estudos em Criminologia(s), o desafio só fez aumentar a qualidade e a profundidade dos debates, com o permanente incentivo para que todos/as os/as integrantes tivessem espaço de fala e (des)construções. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, o Grupo de Estudos em Criminologia(s), fez da Escola Superior da Advocacia um espaço coletivo de discussão e reflexão sobre temas criminológicos candentes: Criminologias Clássica, Positivista e Crítica, Crítica Criminológica ao Processo Penal, Política Criminal e Práticas Punitivas, Segurança Pública no Brasil, Criminologia Feminista, Políticas de Drogas e Encarceramento em Massa e, por fim, Criminalização da Juventude. As contribuições das Pesquisadoras Fernanda Martins, Betina Warmling Barros e do Pesquisador Augusto Jobim do Amaral nos encontros do Grupo enriqueceram os diálogos e permitiram questionar a ideia de que a adesão a uma lógica punitivista traria soluções efetivas para a diminuição da violência. A disposição para o diálogo e preocupação em diminuir os espaços entre a “teoria e prática” faz dessa coletânea de artigos um convite ao leitor para que se comprometa com os direitos e garantias fundamentais, tal como proclamados na Constituição da República e nas Declarações Internacionais. Por todos esses motivos, é um grande prazer e orgulho apresentar essa obra. Porto Alegre, julho de 2018. Fernanda Osório Advogada Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da OABRS Prof. da Escola de Direito da PUCRS SUMÁRIO PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier PREFÁCIO - Lucas e Silva Batista Pilau, Michelle Karen Batista dos Santos APRESENTAÇÃO – Fernanda Corrêa Osório (RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE .............................................................................. 15 Betina Warmling Barros e Lucas e Silva Batista Pilau RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA CRIMINOLÓGICA ......................................................................... 35 Caroline Bussoloto de Brum ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA LITERATURA NÃO FICCIONAL E/OU MARGINAL NA TRADUÇÃO DOS DISCURSOS PRODUZIDOS PELO SISTEMA PUNITIVO A PARTIR DO CONCEITO DE “LOCAL DE FALA” ................... 52 Cibele de Souza REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DA CONSTRUÇÃO DE UMA LÓGICA E UMA PRÁXIS JURÍDICAS ANTI-RACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE ..... 78 Domenique Goulart PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE MEDO ........... 100 Fernanda Martins e Augusto Jobim A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE ESTUPRO: A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA ...................................................... 115 Laura Gigante Albuquerque e Fernanda Corrêa Osório GUERRA ÀS DROGAS: DA INEFICÁCIA DO PROIBICIONISMO À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA .. 133 Franchesca Inácio Zandavalli A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL: PERSPECTIVAS DOGMÁTICA E JURISPRUDENCIAL ...... 149 Leandro da Cruz Soares A EXCEÇÃO COMO REGRA NA CRIMINALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA: EXPANSIONISMO PUNITIVO E O ABANDONO DAS JUSTIFICATIVAS JURÍDICAS NAS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SOCIAL ............................... 172 Lucas Dall'Agnol Pedrassani “MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”: O DISCURSO MIDIÁTICO COMO INSTRUMENTO DE INCENTIVO E SUPORTE DO POPULISMO PUNITIVO .................................. 196 Michelle Karen Batista dos Santos e Osmar Antônio Belusso Júnior FACÇÕES E MARAS: ANÁLISE COMPARATIVA DA CONSTITUIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ..... 216 Patrícia Martins Saraiva 15 (RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Betina Warmling Barros1 Lucas e Silva Batista Pilau2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Desde que passou a se consolidar como área própria de conhecimento no Brasil, principalmente a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a justiça juvenil e seus instrumentos socioeducativos vêm ganhando contornos teóricos cada vez mais robustos e interligados com a produção acadêmica internacional. A atuação dos profissionais a serviço do Estado que lidam com este público também vem sendo esmiuçada como problema de pesquisa, em que pese a ainda absoluta desigualdade de aprofundamento teórico e de quantidade de intervenções, se comparada 1 Mestranda em Sociologia no Programade Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Atualmente é bolsista de Mestrado CNPQ. Possui Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito/UFRGS. Atuação na área da Sociologia da Violência, Criminologia, Direito Penal e Direito Penal Juvenil. E-mail: barros.betina3@gmail.com. 2 Pesquisador e Advogado. Mestre em Ciências Criminais pelo Programa de Pós- Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Professor convidado na Pós-Graduação (lato senso) em Ciências Criminais da Faculdade Campo Real (Guarapuava/PR). Advogado do Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDDH) de São Leopoldo. E-mail: lucas.pilau@hotmail.com. mailto:barros.betina3@gmail.com mailto:lucas.pilau@hotmail.com 16 com temáticas mais tradicionais da criminologia, como o encarceramento adulto. Assim, a despeito da consolidação deste “novo” campo científico, há ainda extrema carência de aprofundamento nas pesquisas na área da justiça juvenil, sobretudo em temas mais específicos como, por exemplo, a atuação da polícia junto aos adolescentes. Talvez seja justamente no processo de indiferenciação das vivências destes jovens - como se a atuação da polícia produzisse os mesmos efeitos em um adolescente de 15 anos e em um adulto de 25 - que reside a força de movimentos conservadores, os quais buscam o desmantelamento das conquistas das últimas décadas3. É necessário, pois, singularizar. Com este objetivo, o presente artigo busca inicialmente traçar um breve histórico do sistema de justiça juvenil no Brasil, delineando os principais pontos de mudança com a transição da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. A virada no paradigma levou a promulgação de nova legislação, necessária também em razão das desconfianças que se instalavam a respeito das teorias etiológicas do crime e a reabilitação como objetivo da justiça juvenil4. Em paralelo a essa onda de renovação legislativa, entretanto, a polícia militar brasileira manteve seu funcionamento nos mesmos moldes do período da ditadura civil-militar, preservando um ordenamento 3 Entre 1993 e 2010 tramitaram no Legislativo brasileiro 37 propostas de Emenda Constitucional visando a redução da maioridade penal. (CAPPI, Ricardo. Pensando As Respostas Estatais às Condutas Criminalizadas: um estudo empírico dos debates parlamentares sobre a redução da maioridade penal (1993 - 2010). Revista de Estudos Empíricos em Direito, 1 (1), 10-27, 2013. p. 15.) 4 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin america. In: MÁXIMO, L.; TANENHAUS D. S; ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile Justice in Global Perspective. New York: New York University Press, 2015. p. 205. 17 hierárquico e militarizado, do qual o objetivo maior continua sendo o extermínio do inimigo. Assim, a despeito da inovação teórica ter produzido uma revolução no sistema de justiça juvenil, o primeiro contato do Estado com o adolescente continua sendo através de uma instituição policial que não passou por qualquer reformulação democrática. A polícia, se à época do menorismo era “provedor majoritário e habitual da clientela das chamadas instituições de ‘proteção’ ou de ‘bem-estar’’5, pouco se transformou nessas últimas décadas visando garantir a proteção integral destes sujeitos em desenvolvimento. Continua, na verdade, a representar o símbolo mais eloquente de violação aos direitos individuais dos adolescentes criminalizados, ainda que tal desrespeito não inicie através da polícia e nem por ela seja sepultado. 1 SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL: ENTRE O PUNIR E O EDUCAR O campo jurídico exerce grande influência na vida daqueles a ele subjugados. O Direito determina, em maior ou menor medida, os próximos capítulos do enredo pessoal de quem a ele se curva (ou é curvado, sem opção de fuga). Quando o público alvo dos desmandos judiciais está sendo acusado do cometimento de um crime, estamos falando do limite máximo de que é possível ao juiz dispor - a liberdade individual. Evidente que, a respaldar decisões desta ingerência, há um 5 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça. In: e BELOFF, Mary orgs. Infância, Lei e Democracia na América Latina, p. 42., apud, COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processuais e o direito penal juvenil: como limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 58. 18 sistema legal de comandos e proibições, eis que há tempos deixou-se de acreditar - explicitamente, ao menos - no juiz como homem sábio, detentor da verdade. Pela importância que essas normativas possuem na vida da sociedade a que se destina - não apenas como Lei a ser cumprida, mas como sistema legal complexo que funda instituições, determina seu funcionamento, e expõe suas razões de ser - acredita-se que compreender o processo de constituição e implementação do microssistema legal que respalda a realidade em análise é fundamental à pesquisa de qualidade. Nesse sentido, quando se escolhe o recorte da violência policial contra a juventude brasileira, o sistema socioeducativo entra em pauta e passa a ser elemento central na análise deste fenômeno social, dado que é somente a partir dele e para ele que se fundam as possibilidades e justificativas para a repressão policial. Passa-se, então, à análise do ECA. O Estatuto brasileiro inaugurou em 1990, o que depois virou tendência em praticamente toda a América Latina, a concretização em norma da Doutrina da Proteção Integral. No mesmo ano, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança possibilitou o início das chamadas leis de segunda geração6, sendo, o caso brasileiro representativo de uma “verdadeira ruptura com a tradição anterior, assim como um caso de aplicação rigorosa do novo paradigma”7. A promulgação da lei no contexto de redemocratização brasileira talvez represente a segunda maior ruptura no recém delineado campo da justiça juvenil, após a 6 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: HUCITEC, 1998. p. 34. 7 Idem, p. 35. 19 incorporação do modelo norteamericano de separação entre as varas criminais e juvenis, ainda no início do século XX8. É com a mudança legislativa de 1990 que se começa a pensar a criança e o adolescente, no contexto brasileiro, não mais como menor em situação irregular - ou “mero objeto do processo”9, mas como sujeito de direito, principalmente a partir do princípio constitucional da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento10. A partir do novo paradigma incorporado11, se por um lado começa-se a distinguir as políticas para adolescentes autores de ato infracional diversos daqueles previstos para crianças e adolescente em situação de risco, por outro, a legislação se propõe a ser instrumento para todo o conjunto da categoria infância. Nesse contexto, diversas estruturas de funcionamento do sistema de justiça juvenil são modificadas com o intuito de adequar-se a um devido processo legal pautado pela limitação do poder jurisdicional e pelo sistema de garantias, sendo extendido aos adolescentes “todas as garantias que correspondem aos adultos nos juízos criminais, segundo as constituições e instrumentos internacionais 8 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin america. 9 SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional. 3. ed. ampl. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 18. 10 Constituição Federal de 1988, art. 227, parágrafo 3º, inciso V. 11“ADoutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto conceitual, metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas às crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos humanos, superando o paradigma da situação irregular para instaurar uma nova ordem paradigmática.” (SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional. p. 18). 20 pertinentes”12. Mantém-se, todavia, a separação dos sistemas de julgamento e a diferenciação das sanções a serem aplicadas. De modo geral, portanto, o Brasil inaugurou transformação paradigmática vivida logo após nos demais países do continente, estabelecendo preceitos norteadores do sistema, conforme pontua Mary Berloff13, como o princípio da legalidade, mecanismos restaurativos e alternativos, idade mínima de responsabilidade criminal, devido processo legal, consequências legais para os jovens que se declaram criminalmente responsáveis e internação como a última medida. Certamente, o instrumento de maior ingerência do Estado sob a vida dos adolescentes, agora protegidos pelo ECA é a medida socioeducativa, isto é, a resposta estatal para o cometimento de ato infracional - o que seria considerado crime, fossem sujeitos adultos. Trata-se de mecanismo de duplo caráter, em que se encontram interligadas intrinsicamente as dimensões punitiva e pedagógica. Se o educar está no nome da sanção, no seu dever-ser, o punir está presente na prática, nos efeitos e na aparência que as medidas vão começar a apresentar para a sociedade a partir da vigência do Estatuto. A ambivalência desta nova categoria jurídica, criada juntamente com a responsabilização penal dos adolescentes, é confusa desde o seu princípio e, ao irradiar-se, continua a causar interpretações tanto em um sentido quanto em outro. Os técnicos responsáveis pela aplicação destas medidas (sejam juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais ou 12 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional. p. 27. 13 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin america. p. 210. 21 educadores) lidam com um objeto jurídico-educacional “que ao mesmo tempo deve reabilitar infratores e cultivar cidadãos14”. Assim, ao entender o adolescente como um ser passível de correição social, se cristalizou um ponto intermediário de intervenção do Estado, entre piedade e tratamento como meio de controle social15. Conforme se vê, portanto, a despeito da importância da promulgação do Estatuto no contexto brasileiro e latino-americano, a legislação não logrou romper com o chamado trinômio pobreza, desvio e delinquência, nas palavras de Liana de Paula16. O paradigma da Situação Irregular, precedente ao ECA e sustentado na ideia da divisão entre crianças e menores, ainda percorre os corredores das Varas da Infância e Juventude e dos locais de execução de medida socioeducativa. Compartilhando da análise realizada pela autora, ao apostar no poder judiciário como agente promotor de cidadania, ascensão social e garantidor dos direitos humanos, “a doutrina da proteção integral aposta na instituição de caráter mais conservador do Estado Moderno como propagadora de mudanças”17. Esquece, todavia, que o sistema socioeducativo, ao aplicar sanções, se afasta menos do que gostaria do sistema punitivo e, nesse sentido, segundo nos desvenda Foucault18, concede ao juiz nada mais do que o poder de sancionar 14 FONSECA, Cláudia; SCHUCH, Patrice. Políticas de proteção à infância: um olhar antropológico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 77. 15 NICODEMOS, Carlos. A natureza do sistema de responsabilização do adolescente autor de ato infracional. In: ILANUD (Org.), Justiça Adolescente e Ato Infracional: Socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006, p. 62-85. 16 PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São Paulo. 2011. - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 61 17 PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São Paulo, p. 61. 18CASTRO, Françoise. Foucault par lui même. Disponível em: 22 aquilo que já fora muito antes decidido, quando do momento da apreensão do adolescente pela polícia. 2 VIOLÊNCIA POLICIAL NO COTIDIANO BRASILEIRO No Brasil e no mundo, diariamente são propagadas, tanto nos meios tradicionais da mídia quanto nas redes sociais, fatos relacionados à violência19 policial. Ou seja, fatos que demonstram o aparato estatal interagindo com os sujeitos desde uma perspectiva autoritária e abusiva frente aos direitos humanos internacional e constitucionalmente consagrados. É a violação, pura e simples, daqueles que virtualmente teriam o dever de proteção. Mas, no Brasil, pensar segurança pública não é o mesmo que pensar segurança para todos. A Constituição Federal, promulgada em 1988, dedica, a partir do seu artigo 144, um capítulo inteiro sobre o funcionamento das forças policiais – as quais, como se em regimes autoritários estivessem, são consideradas, segundo o art. 144, inciso IV, § 6º, forças auxiliares e de reserva do exército20 – elencando as cinco dimensões em que a instituição é repartida para sua <https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To>. Acesso em: 19.02.2017. 19 O termo violência é aqui utilizado no sentido atribuído por Ricardo Timm de Souza: “Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e explícito à violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo e, inclusive, a violência autoinfligida, repousa no fato exercido de negação de uma alteridade [...] A violência, no sentido aqui proposto, constitui-se na medida em que se exerce, desde um polo de decisão individual ou social, de forma consciente ou em contextos que sugerem inconsciência, atos que negam a condição de outro do outro, ou seja, daquele que não pertence ao polo de decisão” (SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016, p. 100). 20 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52. 23 atividade: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícia civil e polícia militar e corpos de bombeiros. Diante das atribuições que a cada uma dessas estruturas é relegada pelo ordenamento jurídico brasileiro, para o objeto ora em voga, importa focar somente nas polícias militares, na medida em que são elas as responsáveis pelas atividades ostensivas, quer dizer, buscam coibir e prevenir atividades criminosas, lançando seus agentes à realidade dos bairros, das comunidades, das favelas. É o policial militar quem se apresenta num primeiro momento, inesperadamente ou quando convocado, aos fatos que podem (ou não) decorrer de atividades criminosas. Por isso é que, ao se falar de polícia militar, está se falando do bloco da instituição policial brasileira, e mesmo de forma mais ampla, do sistema penal como um todo, que incide diretamente sobre a sociedade e especificamente sobre os indivíduos (gestos, ações e movimentos): ora, como uma de suas faces, poder disciplinar por excelência, na medida em que busca docilizar corpos para que se tornem (economicamente) úteis21. Nesse sentido, sua estética (condensada em armaduras e aparatos de forte blinde) contribui para sua função panóptica – enxergar sem ser enxergado – em que oscontemporâneos trajes de robocop mascaram a identidade do corpo ali inserido. Verdadeiro efeito de viseira22. 21 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009, pp. 131-163. 22 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 23. 24 É incontroverso que uma polícia estruturada de forma militar agirá como se em uma guerra estivesse (e, portanto, usará táticas direcionadas a inimigos), sem deixar de olvidar que os maiores genocídios cometidos até hoje estiveram a cargo de forças policias ou de forças armadas que cumpriam funções de polícia - a America Latina é um exemplo pulsante23. No caso do Brasil, a ausência de uma política de transição da ditadura civil-militar para o regime político- democrático também contribuiu para que a estrutura militarizada da polícia se mantivesse intocada e, portanto, envolta em uma continuidade autoritária em que morte e esquecimento24 pautam o cotidiano dos homini sacri, ou seja, das vidas matáveis25. Dirá acertadamente Nilo Batista: “O militar é adestrado para o inimigo, o policial para o cidadão. Na estrutura militar, a obediência integra a legalidade; na policial, a legalidade é condição prévia da obediência. São formações distintas, dirigidas a realidades também distintas”26. Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, só no ano de 2015 se registraram no Brasil 3.320 mortes decorrentes de intervenções policiais, sendo que no período compreendido entre 2009 e 2015, foram auferidas 17.688 pessoas 23 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana. IN: WOLKMER, Antônio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 165 a 209. 24 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 238. 25 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 16. 26 BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da militarização da segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza Nobre [et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012, 1ª reimpressão, setembro de 2013, p. 51. 25 mortas pelas polícias. Na mesma pesquisa, estimou-se que 70% dos entrevistados consideram que a polícia exagera no uso da violência, havendo o reconhecimento de 63% de que a polícia não possui boas condições de trabalho27. Não é nenhuma novidade que as más condições da instituição policial (sucateadas no Brasil principalmente a nível estadual) influência no modo como essa interage com a sociedade. Ao contrário do que se poderia pensar, nem todas aquelas mortes foram investigadas. Algumas, sequer lembradas. O esquecimento (Amarildo vive em poucos...) vem solapando as esperanças de mudanças nas estruturas policiais rigidamente postas desde tempos sombrios que o país passou, reatualizando diariamente, nas localidades mais vulneráveis, a barbárie. Sem transformá-los em números, mas listando-os por ordem temporal, somente após a promulgação da Constituição de 1988 teve-se: Carandiru, em 1992 (111 mortos); Candelária, em 1993 (08 mortos); Vigário Geral, em 1993, (21 mortos); São Paulo, em 2006 (500 mortos); Grande São Paulo, em 2015 (23 mortos); Costa Barros, em 2015 (05 mortos); Londrina, em 2016 (10 mortos); Porto Alegre, em 2016 (04 mortos). Sem contar os recentes casos emblemáticos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza (2013), morto após ser torturado na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Além dele, Cláudia Silva Ferreira (2014), arrastada por um camburão e morta, posteriormente, com um tiro dado pela polícia. Fatores que são decisivos na compreensão dessa lógica de extermínio são o racismo institucional combinado com uma estrutura 27 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2016, p. 06. 26 punitiva onde a guerra é o elemento fundante (afinal, o Estado não fez cessar a guerra de uns contra outros como se havia pensado28). A guerra às drogas, verdadeira síntese de racismo, criminalização e polícia, atualmente, pode-se dizer, é o grande motor dessa máquina de moer gente chamada sistema penal. No Brasil, sabe-se há muito, crianças e adolescentes são alvejados e mortos sem sequer ter tido qualquer contato, para uso próprio ou para comércio, com substâncias ilícitas. Eduardo Ferreira, de 10 anos, assassinado em 2015 durante um confronto entre policiais e traficantes no Complexo do Alemão, é o exemplo dessa desumanização advinda de um progresso (pacificador) que só acumula catástrofe. Embora o quadro de Klee represente o pavor do anjo frente ao vento que sopra do passado29, a realidade brasileira estaria também representada pelo quadro de Edvard Munch30. Assim é que se deve destinar uma visão ampla à questão da militarização da polícia no Brasil, visto que sua prática cotidiana – fruto de diversos fatores passados e não enfrentados e de conjunturas atuais – acaba por impossibilitar a afirmação de direitos, antes possibilitando tão somente a criminalização e a violação massiva e a conta-gotas desses. Ao se tratar de uma parcela da população tão vulnerável como adolescentes, nota-se certos entraves que essa polícia militarizada, acostumada no Brasil a assassinar e torturar para garantir a segurança 28 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (19751976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 91. 29 Em referência à tese IX das teses “Sobre o conceito da história” de Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1, pp. 245-246). 30 Em referência ao famoso quadro O Grito, de Edvard Munch, em que uma criatura demonstra, com as mãos coladas na face, angústia e desespero. 27 (de uns poucos), acaba impondo na concretização inclusive de legislações vigentes promulgadas já no regime político-democrático. 3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E POLÍCIA NO BRASIL: INCOMPATIBILIDADE INTRANSPONÍVEL Nesse sentido, é preciso pontuar que a ideia de ressocializar através do sistema penal não é necessariamente uma novidade do ECA. Na criminologia, tal noção se apresenta como um dos regimes em que, em determinado momento histórico, a pena tornou como objetivo declarado. Uma breve história dos pensamentos criminológicos31 deve passar pelas apropriações e reelaborações de termos que o sistema penal se utiliza para justificar sua barbárie. Ressocializar é uma delas, entre todos os métodos “re” (reintegrar, readaptar, reinserir) pela qual a clientela desse sistema perverso teve de se submeter. Não faz muito tempo que uma onda – e assim é chamada pelo fato de vir e voltar constantemente, não tendo lugar definido – de ressocialização acossou os sistemas penais do mundo. Terminada a Segunda Guerra Mundial, parte da segunda metade do século XX, nos países centrais, conheceu-se o chamado welfare state, onde o Estado, diante de uma memória recente de terror, passou a dar assistência direta aos indivíduos. Para os criminalizados e encarcerados da época, o discurso estava centrado na busca pela ressocialização– a ideia de um previdenciarismo penal girava em torno da prosperidade da sociedade, incluindo nela os criminalizados sob cuidado agora de um Estado 31 Para uma visão geral, ver: ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008. 28 preocupado tanto com a reforma quanto com o bem-estar deles32. No mesmo período, a partir da segunda metade do século XX, a retórica da reabilitação encontrou lugar cativo na temática da justiça juvenil, não apenas na América Latina, mas nos sistemas de justiça juvenil ao redor de todo o mundo33. Diferentemente da lógica penal, em que o neoliberalismo da década de 70 em diante retoma o ideal retribucionista da pena, o sentimento reabilitador continua vivo ao redor do mundo no contexto da justiça juvenil. As razões para a preservação deste ideal não são propriamente a crença completa nos benefícios alcançados com a reabilitação, mas estão muito mais relacionados com o diagnóstico de que o fenômeno da especialização da justiça juvenil ao redor do mundo inquestionavelmente conquistou a garantia de menos adolescentes encarcerados e de menos tempo de reclusão34. De todo modo, o discurso legal e majoritário da doutrina especializada no tema é de que, a despeito da natureza sancionatória da medida, “a responsabilização do adolescente em conflito com a lei deve atender ao caráter socioeducativo”35. Legitima-se, portanto, a intervenção estatal na vida do sujeito para que a este sejam 32 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 110. 33 ZIMRING, Franklin E.; LANGER, Máximo. One theme are many? The search for a deep structure in global juvenile justice. In: LANGER, M.; TANENHAUS D. S; ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile Justice in Global Perspective. New York: New York University Press, 2015. p. 389. 34 Idem, ibidem. 35 COSTA, A.P. M.Os direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas e sistema constitucional brasileiro. In: CRAIDY, C. M.; SZUCHMAN, K. (Org.). Socioeducação: Fundamentos e Práticas. Porto Alegre: Evangraf, 2015. p. 19. 29 concretizados o acesso a certos direitos sociais até então negligenciados, na esperança de que essa reposição estatal desencoraje a prática de atos infracionais pelo adolescente. Trata-se, em verdade, da ideia de que o resgate dos direitos constitucionais de primeiro nível36 - como educação, habitação, convivência familiar, cultura, saúde e esporte - não só é possível passados de 12 a 18 anos da vida do sujeito, com é fundado pedir em contrapartida o abandono da prática criminosa pelo adolescente. Ocorre que, é curioso imaginar como sustentar tal ideologia em que o adolescente precisa readquirir confiança no Estado - uma vez que o próprio assume suas falhas com o sujeito até então - quando o primeiro contato entre indivíduo-judiciário se realiza através da polícia. É difícil, portanto, que as ideias contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente possam prosperar enquanto não se enfrentar o mecanismo que realiza o jogo de seleção entre os adolescentes a ser captados: a polícia militar. Aprofundada na ditadura civil-militar, a militarização, calcada nas formas da disciplina e do combate àquele que obstrui o recorrente e recorrido termo ordem pública, só reproduz violência, dor e sofrimento quando do contato com indivíduos vulneráveis – vulnerabilidade essa que se dá propriamente em função da idade, mas que resta alargada no Brasil em razão de classe e cor. Quer dizer: vulnerável pela adolescência, mas mais vulnerável ainda se jovem, pobre e negro. As proteções que o ECA projeta para os adolescentes não impedem que a polícia militar viole massivamente seus direitos no dia-a-dia das favelas, dos bairros pobres, das delegacias 36 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional. p. 50. 30 e das fundações em que mantidos segregados. Visto como inimigos, a eles nenhum direito cabe: visão diária e corriqueira que a polícia militar não cansa de reproduzir e, o pior, de ser aplaudida por segmentos fascistas de classes mais abastadas, despreocupadas com o destino de uma juventude que há muito experimenta a cilada da cidadania – também conhecida como ciladania37. O que foi trazido até então projeta, portanto, um oximoro chamado ressocialização militarizada. Como a ressocialização de um adolescente, o qual se encontra em fase da vida que justifica o reconhecimento especial da própria legislação vigente, pode em alguma medida prosperar através da violência que a militarização opera? No Brasil, como um adolescente pode ter seus direitos consolidados se, para chegar até eles, é obrigatório que seja captado por uma polícia operando em uma lógica de guerra, a exterminar seus inimigos? Por último, é possível que uma legislação como o Estatuto da Criança e do Adolescente consiga operar em seu máximo quando intocadas as garantias e prerrogativas de uma polícia militarizada desde a época da recente ditadura civil-militar? Questões essas que, por certo, se possuem resposta, tais encontram-se no plano da realidade, certamente mais violenta e cruel do que as elucubrações teóricas aqui explanadas. 37 BATISTA, Vera Malaguti. Marx com Foucault: análises acerca de uma programação criminalizante. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.02, n.04, p. 25- 31, julho-dezembro de 2005, p. 28. 31 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do exposto, candente se torna pontuar algumas breves reflexões finais. Na maneira como a justiça juvenil funciona, a sua identificação com o sistema penal torna-se inafastável, ainda que se tenha uma legislação que pretende realizar uma distinção teórico- prática, mascarando o evidente. A reabilitação dos adolescentes, portanto, é mera ferramenta discursiva que está em completo desacordo com a prática da justiça juvenil no Brasil. A despeito de existirem razões legítimas para mantê-la, não se pode deixar de apontar as contradições e barreiras que essa pretenção ressocializativa encontra no momento da sua operacionalização. Uma polícia militarizada é a maior delas. Atuando com sua engenharia violenta de controle social, a instituição policial no país atua renovando, diariamente, o exército de corpos dóceis disponíveis ao sistema econômico e social – afinal, alguns grupos devem submeter-se à disciplina necessária para que se contentem com subempregos. No entanto, essa lógica disciplinar não afasta a verdadeira política de morte estatal instrumentalizada pela polícia militar nas zonas periféricas. Assim, em sendo pressuposto o entrelaçamento dessas duas esferas – legislação reabilitadora e polícia militarizada – para o funcionamento da justiça repressiva a adolescentes, difícil vislumbrar como não haver um campo de disputa entre elas. Seus discursos caminham em direção opostas, porém devido à necessidade da atuação conjunta no momento da intervenção estatal na vida do adolescente, suas práticas se chocam. 32 Choque esse inabalável, mesmo que maiores sejam os esforços reformistas tanto no sistema socioeducativo, quanto na polícia historicamente militarizada. Transpor essa lógica significaria estarem dispostas, sociedade e governabilidade estatal, a renunciar uma ou outra dessas estratégias. É por essa razão que uma ressocialização militarizada carrega consigo a impossibilidade de um por vir garantidor dos direitos fundamentais da juventude brasileira, seja ela criminalizada ou não. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o podersoberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da militarização da segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza Nobre [et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan, 2012, 1ª reimpressão, setembro de 2013. BATISTA, Vera Malaguti. Marx com Foucault: análises acerca de uma programação criminalizante. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.02, n.04, p. 25-31, julho-dezembro de 2005. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. 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Dada a necessidade contínua de transformação social, uma vez que reconhecidos como cidadãos ativos e saturados do absolutismo, a população burguesa revoluciona-se em prol de garantir seus direitos, sua liberdade e igualdade. Nunca para os cidadãos existiram direitos absolutos na esfera pública antes das revoluções burguesas, exceto para o soberano, cujos direitos e poderes se fundiam. Os direitos públicos, como conhecidos atualmente, eram roupados como possibilidades de iniciativa pessoal, construídos como privilégios, ou mais frequentemente como status, concedidos às coletividades2. As revoluções burguesas tentaram elevar certos interesses fundamentais ao nível de garantias, tentando tornar tais direitos absolutos. Essas metas foram, em certa medida, entendidas como planos de ação, pelo menos na teoria inicial para a elaboração da 1 Pós-Graduanda na Especialização em Direito Penal e Políticas Criminais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Advogada. 2 SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of Purposiveness (29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental Rights. Edited by András Sajo. Eleven International Publishing. 2006. p. 43. 36 declaração resultante da revolução francesa.3 A declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que define os direitos individuais e coletivos dos homens como universais, não trouxe a resolução desta matéria, ou seja, deixou para a legislação interna de cada Estado signatário prever os limites aos direitos que ali dispõe como mínimos. Para compreender melhor o contra o que se revolucionaram, é necessário saber o conceito trazido como “Estado” que pode ser entendido como “um grande conjunto de pessoas, instituições e classes que possuem o monopólio do poder e da força física”.4 O Estado, enquanto garantidor, busca suprir demandas populares, e, quanto menos seguras estão as pessoas, mais elas exigem um Estado policial e um Estado forte. Um Estado estruturalmente forte e altamente policial reduz o espaço da democracia e estrutura-se para garantir, a qualquer preço, a realização dos interesses dos sujeitos e classes que o controlam5. O Estado no modelo autoritário mais moderno, pós- imperialistas, não pode ser encarado como algo contra as massas, mas, ao contrário, aceito e, geralmente, defendido por elas, uma vez que nada acontece sem que ocorra uma consonância com as aspirações coletivas. Não se pode dizer que elas concordam com um Estado de terror tal, mas sim, que buscam uma certa segurança que só é encontrada, nos termos de hoje, como sinônimo de um Estado todo-poderoso.6 3 SAJÓ, András. Idem. p.43. 4 FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica. Editora moderna, 1987. p. 54. 5 FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 56. 6 FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 72. 37 Para melhor elucidação, as massas, enquanto definição terminológica, somente são utilizadas neste contexto quando lidamos com pessoas que são, devido ao seu número ou indiferença, ou ambos, não integrantes de qualquer tipo de organização de interesses comuns, como partidos ou sindicatos. São indivíduos comuns e presentes nos Estados totalitários, que “não se unem pela consciência de um interesse e falta-lhes aquela específica articulaçãode classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis”.7Assim, a incansável busca pela garantia e concessão de direitos nada mais é do que a perquirição pela proteção dos arbítrios do Estado, que, na maioria das vezes, foram inclusive legitimados pelos próprios cidadãos. Assim, os modelos tradicionais de sociedade e Estado surgiram baseados na hierarquia e esta, por sua vez, no poder. Nesta linha de raciocínio, as normas jurídicas, as morais e as sociais emanam de um poder hierarquizado e seguem uma direção descendente. Desta forma, quem ostenta o poder, ou participa dele de alguma maneira, não só o detém, mas é identificado ou relacionado com a “fonte dos valores sociais”, culminando na impressão de que “o poderoso não somente é forte, mas acaba sendo visto como bom”.8 Com esta estrutura social era natural que a criminalidade aparecesse em sua maioria, ou até totalidade, representada pelos marginalizados. 7 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 361. 8 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 45. 38 1. CRIMINOLOGIA E ABUSO DE PODER - EVOLUÇÕES TEÓRICAS Os criminólogos italianos Lombroso, Ferri e Garófalo, quando iniciaram o estudo empírico da criminalidade e fundaram a criminologia positivista, fizeram suas considerações a partir dos “delinquentes” que povoavam as prisões. Eles estudavam os autores de delitos, classificando-os e estereotipando-os através da análise suas personalidades, chegando à conclusão de que eram portadores de uma patologia.9 Hoje, já se adverte ao fato de que estas pessoas, e não outras, constituíam e ainda constituem a “clientela” habitual do sistema penal pela valoração e tomada de decisões serem realizadas por quem tem a capacidade (dispõe do poder) de definir o que vem a ser delito ou não, e de quem são os perseguidos ou não como delinquentes.10 Mas não foi nem a valoração social ou a estrutural adotada pelos positivistas italianos, ou pela Criminologia tradicional. Partiu-se, ao contrário, do conceito natural de delito, segundo o qual este não é um produto de um determinado tipo de sociedade, mas sim algo intrínseco ao indivíduo, que o faz nocivo. A consequência disto foi que ficou consagrado um conceito de “delinquente” vinculado estreitamente à marginalização social, fazendo com que as tipologias desses elaboradas à época não se ajustassem à imagem de quem abusava das posições de 9 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição. p. 45/46. 10 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 43. 39 privilégio tanto social, como econômico ou político.11 Esta noção errônea estereotipada ainda pode ser observada no pensamento criminológico atual, enraizado de uma forma cultural através das classificações hierarquizantes que se expandiram após o período colonialista12. Uma das realizações das novas teorias criminológicas foi ter descoberto a chamada ubiquidade da delinquência. Com esse conceito, quer se dizer que os delitos podem e são cometidos em todos os níveis da sociedade, mas gera, concomitantemente, um fenômeno onde não se pode identificar todos aquele que cometem crimes, ou seja, a chamada cifra negra da criminalidade.13 Dentre as novas teorias, surge a criminologia crítica, nascida em contraponto às teorias tradicionais positivistas, analisa o abuso de poder, explicando inicialmente que a adoção da teoria liberal pode ser útil para impor limites aos governos, tendo como característica central a prescrição de reformas, concentrando-se em pesquisas sociológicas para sugerir mudanças institucionais e sociais como meios de prevenção do comportamento antissocial.14 Comparando-se as teorias conservadoras e liberais, pode- se chegar ao ponto comum de que ambas não questionam a estrutura social ou suas instituições jurídicas e políticas, mas se dirigem para o 11 PUIG, Santiago Mir. Idem. Ibidem. 12 BATISTA, Vera Malaguti. Idem. p. 41. 13 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 44. 14 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen Juris, 2008. p. 4. 40 estudo da minoria criminosa, elaborando etiologias do crime fundadas em estudos patológicos, psicológicos e até genéticos.15 Para contrapor as teorias criminológicas meramente focadas em aspectos internos do indivíduo desviante, surge a criminologia radical, criada no Grupo Europeu para o Estudo do Desvio e do Controle Social, em Florença na Itália, em 1972. Tal vertente, denunciava os modos dominantes de análise do crime, que viam o criminoso como “produto de defeitos psicológicos ou de personalidades anormais”, e o controle social, que era avaliado apenas em termos de efetividade e eficiência através das estatísticas criminais.16 Ou seja, as análises do que era crime e de quem era o criminoso eram feitas pela camada superior de poder, que não ditava suas próprias características como as comuns aos indivíduos criminosos, fazendo com que ficassem evidentes as relações entre os sistemas de controle social e a estrutura de classes do modo de produção capitalista.17 Tal vertente criminológica chega à conclusão de que os caracteres sociais do sujeito ativo do abuso de poder, ou seja, aquele que executa o crime no exercício de atividades político-administrativas, pela soma das complexidades legais, das cumplicidades oficiais e pela atuação de tribunais, às vezes especiais para tais autores, explica a imunidade processual e a inexistência de estigmatização criminal para estes.18 Desta forma, a criminologia radical aponta as estatísticas criminais como “produtos da luta de classes nas sociedades 15 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem. 16 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 7. 17 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem. 18 ANIYAR, 1977, p. 92-93 apud SANTOS, 2008 p.13. 41 capitalistas”,19 afirmando que a criminalidade das classes dominantes, expressa pelo abuso de poder econômico e político, está excluída das estatísticas criminais, uma vez que sua origem estrutural e o lugar de classe dos autores, os quais se encontram em posição de poder econômico e político, são as explicações desta exclusão.20 Descobre também que no sistema de justiça criminal há uma disjunção concreta entre uma ordem social imaginária, que é difundida com noções de igualdade e de proteção geral, e uma ordem social real, na qual ocorrem desigualdade e opressão de classes.21 Nos anos 70, surge um movimento teórico com amplo impacto popular conhecido como a criminologia da denúncia, que focava no comportamento dos poderosos, “enunciando os defeitos das elites de poder econômico e político da sociedade, para mostrar que os que fazem as leis são, também, os maiores violadores dessas leis”22. Esta vertente criminológica supõe que os poderosos deteriam um "direito moral" que os capacitaa converter força em "autoridade", por meio dos procedimentos legalmente estabelecidos.23 Demonstrando que a criminalidade do poder econômico e político não é um fenômeno irregular ou acidental, mas sim regular e institucionalizado, fortemente ligado à posição estrutural de classe na formação social. Assim, conforme traz Cirino em sua explicação sobre o tema, o ponto central 19 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen Juris, 2008. p. 14. 20 YOUNG, 1979, p.16 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 14. 21 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 15. 22 TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 25. 23 TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 26 42 que gera consequências práticas da criminologia radical é a negação do mito do direito penal igualitário, ou seja a proteção geral de bens e interesses existe, realmente, como proteção parcial, que privilegia os interesses estruturais das classes dominantes; a igualdade legal, no sentido de igual posição em face da lei, ou de iguais chances de criminalização, existe, realmente, como desigualdade penal: os processos de criminalização dependem da posição social do autor e independem da gravidade do crime ou do dano social. 24 Desse modo, a criminologia radical melhor explica as relações de poder e desigualdade, a fim de explicar a criminalização demasiada dos marginalizados, bem como a precária falta de criminalização daqueles que detêm o poder ou que podem dele se utilizar para subverter o direito em seu benefício. 2. CRIMINALIDADE INCIDENTE NO ABUSO DE PODER Dentre os tipos de abusos estatais aos quais os indivíduos estão sujeitos, encontra-se o abuso de poder, que é o mais frequente e suscetível a todos. Pode ser estruturado de forma a supor que o autor deste, em uma determinada classe social alta, dispõe de um poder potencial ou que o permite exercê-lo de maneira especial, não disponível para qualquer um, e que apresenta uma influência contra os desejos dos outros.25 Normalmente os praticantes do abuso de poder 24 BARATTA, 1978, p. 10 apud SANTOS, 2008, p. 46 e ss. 25 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 13. 43 possuem uma ambição patológica, ou seja, sentem o poder como uma droga26. As causas que o motivam, geralmente, são a necessidade de prestígio, a ambição de poder e a excessiva aspiração de influência. É característico o esforço por aumentar ou reforçar a situação de poder já existente, a ânsia pela perpetuação do poder quando ele não pode ou não conseguiu desenvolver-se de maneira legal ou pelas vias democráticas, que tem como consequência o abuso de poder que se dirige à ilegalidade27. Dados os mais distintos sentidos possíveis para o conceito de poder, também são diversas as possibilidades para entender o conceito objetivo de delinquência relacionada com o abuso deste poder. Em uma análise ampla do sentido, o poder a que se alude pode alcançar não somente o estatal ou o político, mas também a capacidade de influência que tem determinados sujeitos por ocuparem posições sociais ou econômicas privilegiadas. Não cabe no sentido amplo de poder a criminalidade objetivamente relacionada com o crime, o qual se cometa utilizando o aparato institucional do Estado, pois este é entendido como uma manifestação no sentido estrito de delinquência por abuso de poder28. Comumente, a responsabilidade penal para as formas tradicionais do abuso do poder é reconhecida às pessoas físicas, que são 26 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 14. 27 TRIFFTERER, Otto. Idem, Ibidem. 28 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 46. 44 aquelas na primeira linha para a responsabilidade penal. Mas, há algum tempo, se realizam esforços a nível nacional e internacional para estabelecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas e inclusive do Estado29. Nos casos de abuso de poder cometidos por órgãos estatais, inclusive nos Estados democráticos, os mecanismos sancionadores existentes muitas vezes não funcionam corretamente, fazendo com que esta forma de aparição do abuso de poder seja objeto, mais que qualquer outro delito, de um crescente interesse internacional.30 Esta atenção especial na esfera internacional se deve, sobretudo, por tais abusos de poder geralmente violarem direitos humanos. A mesma comunidade internacional se sente cada vez mais chamada a denunciar tais violações e a exercer pressão sobre o Estado agressor, se faltam, por exemplo, os mecanismos sancionadores ou de controle.31 O abuso de poder estatal ocorre quando se comete um abuso de poder mediante órgãos do Estado ou ao menos com seu consentimento ou sua tolerância tácita. Nestes casos, são inclusos também os responsáveis pela administração da justiça, visto que é um poder do Estado, que, sequer em uma democracia, se vê livre de influências externas e ocasionalmente pode vir a ser o autor do abuso do poder.32 Em tempos de Estado democrático, via de regra, a probabilidade de alguém ser vítima de um abuso de poder estatal que restrinja sua liberdade, lhe cause prejuízo ou até mesmo culmine em uma fatalidade, 29 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 16. 30 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 16. 31 TRIFFTERER, Otto. Idem. Ibidem. 32 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 17. 45 é consideravelmente menor que em uma ditadura ou em um Estado absolutista. Porém, o abuso do poder costuma aparecer onde o poder não seja suficientemente controlado, sendo tão somente um consolo que em uma democracia, que geralmente funciona, se estabeleçam meios legais que possibilitem aos prejudicados se defenderem ou serem indenizados em eventuais abusos.33 Quanto aos problemas dogmáticos encontrados na delinquência vinculada ao abuso de poder, pode-se dizer que esta não se limita a este ou àquele tipo de delito, mas sim, em qualquer dos delitos que possam ser cometidos abusando do poder, na medida em que estes se caracterizam frequentemente pela utilização de um aparato hierárquico, que muitas vezes obscurece a individualização dos responsáveis.34 3. ABUSO DE PODER PELA AUTORIDADE POLICIAL - BREVES OBSERVAÇÕES CRIMINOLÓGICAS Por fim, cabe analisar a conduta de abuso de poder daquele que viola mais diretamente os direitos, pela sua presença na linha de frente representando o Estado: a autoridade policial. Neuman analisa a violência e o papel da polícia no contexto da América Latina, e 33 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 18. 34 PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la Delinquência de Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologiafrente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 113. 46 realizando pesquisas empíricas com policiais dos países na Argentina, Uruguai, Brasil e México, chega à conclusão de que Suas mentes parecem aderidas a precisos e inalteráveis esquemas. Se expressam e observam - talvez por omissão profissional - com desconfiança como se estivessem sempre na presença de alguém suspeito. Possuem todos um grande “espírito de corpo” e, muitos deles, ideias fixas como tatuagens de que o delinquente é perverso, canália, mentiroso bem armado, não tem nada a perder, é um refugo humano, é uma praga ou carniça, é tudo, tudo isso, menos ser humano. A violência que muitos descarregam em sua ação frente a delinquência é, para eles, sempre uma resposta e nunca uma provocação.35 A atuação desta polícia acaba vendo com normalidade a presença da violência no seu cotidiano, não em seu fim, mas em seu meio de exercício profissional. Inclusive expressam publicamente que o conceito de repressão tem variado pela maior violência delitiva, tentando justificar a atuação truculenta, quando na realidade, querem dizer que a repressão violenta do crime tem se tornado uma atividade elementar, diária e indispensável.36 Nos países da américa latina, ainda persiste a ideia de que o crime é algo avassalador, tomado de características amedrontadoras, fazendo com que seja útil aos discursos políticos, implantando o Estado de terror, que acaba por legitimar e amparar a ação policial. 37 Assim, 35 NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 135. 36 NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 136. 37 NEUMAN, Elías. Idem. p.136. 47 surgindo a aclamada “guerra contra o crime”, que, aos moldes da ânsia pela vingança privada praticada pelo poder público, limita-se ao campo da violência como inalterável e única resposta. Além da constante violência nas abordagens, existe ainda a prática cotidiana da tortura, a qual é convertida em um método de trabalho e realizada por alguns que foram conscientizados para impor a sua função um sentido de “ordem e limpeza”.38 Os torturadores são geralmente recrutados nas classes sociais mais desprotegidas, por meio de um processo que é conhecido como policização. Por fim, cabe ressaltar que o abuso de autoridade, como já exposto, apesar de suas mais diversas facetas, quando carregado de violência na ação política, expressa uma visível força do domínio e do governo.39 Não sendo essa força um objetivo consciente do corpo político, ou ainda, o alvo final de qualquer ação política definida, uma vez que a força sem coibição gera mais força, e a violência, quando administrativa, em benefício da força e não da lei, “torna-se um princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar”40. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como observado, o abuso de autoridade vem de uma relação hierárquica de poder estatal, que ao longo do tempo, com a evolução dos direitos, pode ser criminalizado e punido. As estruturas de poder são baseadas na hierarquia e dificilmente podem ser desconstituídas ou 38 NEUMAN, Elías. Idem. p. 141. 39 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 167. 40 ARENDT, Hannah. Idem. p. 167. 48 alteradas pelas suas frequentes vítimas. Porém, a tipificação do abuso de poder buscou mais do que punir, mas também garantir os direitos básicos encontradas nas cartas de direitos humanos que hoje pautam internacionalmente o tema. No Estado brasileiro, apesar de não ser este o tema do presente artigo, vale observar que possui sua própria legislação sobre a temática, tratada na Lei 4.898 de 09 de dezembro de 1965, que traz os procedimentos necessários na seara cível e criminal para representação nos processos de abuso de autoridade. A lei, editada no período em que os militares se encontravam no poder (1964-1985), no projeto original, em sua exposição de motivos, justificava sua existência pois Previu a Constituição, ao instituir as regras fundamentais que caracterizam o estado de direito e ao inscrever no seu texto direitos e garantias individuais, que abusos poderiam ser cometidos pelas autoridades encarregadas de velar pela execução das leis e pela manutenção da vigência dos princípios asseguradores dos direitos da pessoa humana. Conferiu, por isso mesmo, a quem quer que seja, o direito de representar contra os abusos de autoridades e de promover a responsabilidade delas por tais abusos [...]41. Assim, apesar da lei ter como objetivo responsabilizar os abusos feitos pelas autoridades, e dentre eles, estar elencado em seu art. 4º ser 41 FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898 de 9.12.65 - 4ª. ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de 1988 - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991. p. 15-16. 49 o abuso de poder uma modalidade de abuso de autoridade,42 esta foi editada em um dos períodos onde mais ocorreram abusos pelas autoridades estatais no Brasil. O relatório conduzido pelo bispo Dom Paulo Evaristo Arns acerca da repressão política realizada no período da ditadura militar, especialmente de 1964 a 1979, averiguou, dentre as várias atrocidades cometidas, que eram além de comuns, incentivadas e legalizadas as supressões de direitos aos perseguidos políticos. Dentre elas, destaca a falta de submissão dos presos ao poder judiciário, afirmando que [...] Isso repercutia na pessoa do preso político de várias maneiras. A principal delas era que os presos ficavam inteiramente subordinados ao controle dos organismos policiais, que não submetiam seus atos a apreciação judicial. Nessas condições, onde os processos não registravam os responsáveis pelas prisões, nem o momento e as circunstâncias em que elas ocorriam, a defesa ficava bastante prejudicada. Além disso, a falta dessas informações implicava na ocultação das responsabilidades das autoridades pela custódia dos presos, gerando a impunidade face às violações da integridade física e moral [...]43. Ou seja, mesmo em um dos períodos mais sombrios da história brasileira, onde a regra era a imposição do medo pelo aparelho estatal, onde a força ideológica e até instrumental impunha a lei e a ordem na república, houve uma lei que buscava coibir tais abusos, ironicamente punidos por aqueles que os permitiam. 42 Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; [...] 43 ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 16-17. 50 Por fim, cabe ressaltar que a análise do abuso de autoridade pela criminologia destaca em sua maior parte a origem do perfil criminal e como este por muito tempo não foi condizente aos violadores por parte do Estado, ou que por esse foram legitimados. Assim, demonstra a evidente necessidade de proteção do cidadão e da segurança jurídica na aplicação da lei indistintamente para todos que a violem, pois aqueles que abusam de seu poder, especialmente por meio do Estado,não apenas extrapolam seu papel de garantidor, mas viram violadores de direitos humanos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1987. BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição. FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica. Editora moderna, 1987. FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898 de 9.12.65 - 4ª. ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de 1988 - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991. NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la Delinquência de Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.; 51 CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. _______________. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of Purposiveness (29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental Rights. Edited by András Sajo. Eleven International Publishing, 2006. SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen Juris, 2008. TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos de Abuso de Poder y sus Posibles Respuestas em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. 52 ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA LITERATURA NÃO FICCIONAL E/OU MARGINAL NA TRADUÇÃO DOS DISCURSOS PRODUZIDOS PELO SISTEMA PUNITIVO A PARTIR DO CONCEITO DE “LOCAL DE FALA” Cibele de Souza1 “LOCAL DE FALA”: PROBLEMATIZAÇÕES INICIAIS Algumas palavras estão entrelaçadas de modo tão contundente que a desconstrução de suas definições torna-se praticamente impossível. O discurso que as define normalmente vem arraigado de duplos sentidos pejorativos que inevitavelmente interligam uma a outra no imaginário social. A tentativa das pesquisas empíricas, com uma base de dados sólida, não é capaz de ultrapassar a ignorância desvelada nos discursos de ódio2 reproduzidos diariamente por grande parcela da 1 Advogada com inscrição na OAB/RS nº 92.686. Pós-graduanda em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016). Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2012). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Penal Contemporâneo e Teoria do Crime, sob a coordenação do Prof. Dr. Fabio Roberto D'Avila, e do Grupo de Criminologias da OAB/RS; e do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC - PUCRS), coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, e do grupo de pesquisa Processo Penal Contemporâneo: fundamentos, perspectivas e problemas atuais coordenado pelo Prof. Dr. Nereu José Giacomolli. E-mail: cibele_de_souza@hotmail.com 2 DA SILVA, Rosane Leal e Outros. Discursos de ódio em redes sociais: Jurisprudência brasileira. Revista direito FGV, São Paulo, 7(2)|p.445-468|jul- dez2011.Sitio em: http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de- odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira. Acesso em 20 de fev. 2017. http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de-odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de-odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira 53 população brasileira, especialmente quando o tema versa sobre violência, periferia, criminalidade e sistema penal. De outro ponto, a linguagem empregada socialmente não contempla a todos. Embora a língua seja a premissa básica para cognição e expansão de uma civilização, percebe-se que a “fala” permeia as glorias e as derrotas de uma sociedade. Em que pese a evolução comunicativa presenciada ao longo da história, o “poder” objetificado pela “fala” mantém-se disponível nas mãos dos mesmos indivíduos ao longo dos tempos, ou seja, nas mãos de alguns poucos homens. Nesse passo, o questionamento que se propõe no presente artigo é sobre o poder que a literatura não ficcional e/ou marginal tem como elemento de reprodução e conhecimento da realidade social brasileira e de transmutação dos estigmas intrínsecos a algumas falas. Com base na ideia de desconstrução dos conceitos e barreiras impostas socialmente, buscaremos, a partir dos fundamentos da criminologia radical3, realizar uma análise dos discursos envolvidos na literatura nacional não ficcional4 e na literatura marginal5 sobre a “cultura da punição”, 3 Juarez Cirino dos Santos3 a criminologia radical visa: “contribuir para a formulação de políticas criminais democráticas e humanistas, opostas ao boom repressivo e intolerante das políticas penais próprias do período de globalização da economia capitalista ...”. SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia Rádical/ Juarez Cirino dos Santos. – 3. Ed. – Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008. 4 FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005. 132 p. Quarto de despejo: diário de uma favelada, na qual conta sua vida de catadora de lixo e a luta pela sobrevivência. (Carolina de Jesus), LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 550 p. 5 “Numa acepção estritamente artística, marginais são as produções que afrontam o cânone, rompendo com as normas e os paradigmas estéticos vigentes.” OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. 54 discutindo sobre a importância da observância do “local de fala” para conhecimento dos problemas vivenciados pelos envolvidos nestes processos criminalizantes. Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, a criminologia radical pretende: “contribuir para a formulação de políticas criminais democráticas e humanistas, opostas ao boom repressivo e intolerante das políticas penais próprias do período de globalização da economia capitalista[...]”. Tal modalidade vai ao encontro do estudo ora proposto, já que busca por meio de seus escritos a construção de uma sociedade democrática e igualitária. 1 A LITERATURA COMO FONTE DE CONHECIMENTO SOCIAL Sabe-se que a ausência de dados específicos obsta a realização de pesquisas, bem como, a resposta destas não se faz suficiente para alinhar as “expectativas sociais” com as políticas públicas, a ponto de resolver os problemas relacionados ao aumento da violência e da criminalidade nos grandes centros urbanos.6 A literatura, especificamente a literatura não ficcional/marginal, demonstra-se como uma forma palpável de introspecção e análise da “sociedade” em suas diversas formas. Assim, pretende-se realizar aqui uma análise sócio/criminológica com base nos dados apresentados nas obras “O dono do morro: Um homem e a batalha pelo Rio”, “Ninguém é inocente em São Paulo”, “Capão Redondo”, “Abusado:O dono do morro Santa 6 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 55 Marta” e “Quarto de despejo”, averiguando, assim, o papel dessas obras na construção de um novo caminho comunicativo, dando voz aos que detém a propriedade necessária sobre suas falas e suas reinvindicações, isto é, suas vidas. A questão que se apresenta inicialmente é se a literatura tem o poder de tecer, de modo contundente, o senso comum, provocando a desconstrução da lógica dos discursos autoritários7, que, de fato, as pesquisas e estudos realizados pela academia nem sempre conseguem transpor, introduzindo, por meio da literatura, os “marginalizados” na pauta dos que se dizem “cidadãos de bem”8. Nesse prisma, questiona-se se as obras não ficcionais/marginais atingiriam o nível necessário para transpor a barreira verificada na “sociedade brasileira”, qual seja, a da ignorância generalizada sobre a vida do outro9, dos problemas da periferia e das favelas, associada ao “silenciamento” e exclusão das “minorias”, sendo ocupada, de modo paliativo, pela voz/representação de alguns poucos homens. Observa- se, entretanto, que quando falamos de “minorias” não estamos 7 TIBURI. Marcia, 1970. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro/ Marcia Tiburi. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2016. 8 Referência a crença nacional lendária que diferencia os cidadãos entre bons e maus, entre dignos e indignos de direitos. “No Brasil, em razão das redes de TV utilizarem o mesmo enquadramento jornalístico quando tratam os temas crime, criminalidade e criminosos, foram criadas duas categorias fixas em permanente oposição: bandidos x cidadãos de bem. Os primeiros deveriam ser esmagados, mas são bem tratados e protegidos pelos defensores dos direitos humanos. Os outros são vítimas inocentes cujos direitos à vida e à propriedade (não necessariamente nesta ordem) seguem sendo pisoteados pelos bandidos e ignorados pelos advogados deles. As Leis brasileiras seriam muito permissivas e o Judiciário não é tão rigoroso quando deveria.” Sitio em: http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos- sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil. Acesso em 17 de fev. 2017. 9 BAUMAN, Zygmund, Vida líquida/ Zygmund Bauman; tradução Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed.2007. http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos-sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos-sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil 56 empregando o caráter quantitativo da expressão, mas sim evidenciando o seu caráter político. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda10, a literatura marginal tem o condão de mostrar o ponto de vista, os pensamentos e os sentimentos vivenciados por autores que estiveram ou estão à margem da sociedade. Entretanto, parece necessária a desmistificação do “marginal”, já que a palavra remete a uma visão socialmente estereotipada, quando, em verdade, a literatura marginal compreende uma forma de resistência artística e cultural dos que vivem à margem da sociedade, ou seja, dos desde sempre excluídos e silenciados. No contexto brasileiro, infere-se entre as problemáticas envolvidas no campo do “controle social” a questão do desrespeito ao “local de fala” dos diferentes indivíduos, o que torna as informações “relatadas” sobre os pares envolvidos/recrutados pelo sistema penal ainda mais sensível, já que são raras as informações apresentadas sobre estes, enunciada por estes. Os dados, estudos e informações levantados e reunidos em diversos livros, dôssies e revistas não englobam a perspectiva do “apenado” sobre a situação do sistema carcerário brasileiro, cultura da punição, perspectivas de vida, educação, etc. A exposição que se busca transpor aqui é a relatada pelo próprio “marginalizado”, a partir da análise do conceito de “local de fala”, sendo especificamente o 10 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. As fronteiras móveis da literatura. Disponível em http://www.heloisabuarquedehollanda. com.br/?p=67. Acesso em: 20 de fev. de 2017. 57 “encarcerado” peça fundamental na produção de conhecimento sobre os meandros do sistema penal. A literatura tem a possibilidade de dar voz a estas pessoas que há muito foram silenciadas. Há que se observar que antes de ser parte do sistema prisional já eram silenciadas pela sociedade, transformando- se o cárcere numa extensão da fábrica de exclusão social legislativamente reconhecida no Brasil11. A obra “O dono do Morro: um homem e a batalha pelo Rio” retrata, por meio de diversos depoimentos, as facetas de “Nem”, conhecido como um dos homens mais procurados do Brasil até novembro 2011, quando foi preso.12 Referida obra desconstrói a visão midiática edificada sobre Antônio Francisco Bomfim Lopes, vulgo “Nem” da Rocinha, bem como consegue a partir dos depoimentos de “Nem”, demonstrar a sua relação com a favela, a família, o tráfico e, os motivos que o levaram a ocupar o cargo de “traficante mais procurado do Brasil”. O texto, nesse ponto, tem um papel de suma importância, pois reúne ainda relatos e depoimentos dos moradores envolvidos direta ou indiretamente nos diversos confrontos vivenciados a partir de 1960, na Favela da Rocinha, explorando de modo brilhante a história da vida de “Nem” que, em alguma medida, confunde-se com a História e ascensão da Favela da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro. Embora a discussão sobre “a propriedade de fala”, especialmente sobre o respeito aos limites opostos pelo “local de 11 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 12 GLENNY, Misha. O dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio/ Misha Glenny; tradução Denise Bottman. – 1º ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016. P.22. 58 fala”13, venha ganhando força nos últimos tempos, não se verifica um diálogo sobre a percepção e comunicação dos apenados sobre o sistema criminal. A bandeira que se defende é a do “local de fala” das minorias, em contraponto à hegemonia da voz do “homem branco, heterossexual, cis e endinheirado na história”14 que perdurou por séculos, vislumbrando-se, assim, o fim da discussão quando o “indivíduo” chega ao cárcere. Quinalha defende que: “os verbos da ação política, assim, não podem mais ser conjugados em terceira pessoa, mas em primeira. Ninguém melhor do que o grupo que é portador da experiência do sofrimento e do preconceito para capitanear sua própria emancipação.”15 Nesse passo, questiona-se quem teria propriedade para perquirir as garantias legislativas, constitucionais e humanitárias devidas aos apenados se não eles mesmos. Quem melhor que os próprios encarcerados para relatar os meandros do sistema? A vida antes e depois do cárcere, justapondo as nuances que convolam a vida emudecida. 13 O conceito representa a busca pelo fim da mediação: a pessoa que sofre preconceito fala por si, como protagonista da própria luta e movimento. É um mecanismo que surgiu como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público. Ele é utilizado por grupos que historicamente têm menos espaço para falar. Assim, negros têm o lugar de fala - ou seja, a legitimidade - para falar sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo, transexuais sobre a transfobia e assim por diante. Sitio em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate Acesso em: 12 fev. 2017. 14 QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ Acesso em 22 jan. 2017. 15 Ibdem. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ 59 Para Rosane Borges16, lugar de fala: “é a posição de onde olho para o mundo para então intervir nele”. A pesquisadora observa que o tema deve ser tratado com muito cuidado, pois aplicado por um campo teórico que pratica a análise do discurso por meio da enunciação. Nesse aspecto, Quinalha leciona que: “O “lugar de fala” remete, simultaneamente, a um duplo movimento: tomada de um ponto de enunciação que deveria pertencer por legitimidade de experiência aos oprimidos e, ao mesmo tempo, despejo do titular de um lugar ocupado, por força da dominação, por aqueles que se apossaram das tradições de fala em uma sociedade estratificada.”17 Nas palavras de Giocomonni: “Um sujeito, quando ocupa um lugar institucional, faz uso dos enunciados de determinado campo discursivo segundo os interesses de cada trama momentânea. [...] Além destes elementos, há outro central: a compreensão de que o discurso é uma prática, que constrói seu sentido nas relações e nos enunciados em pleno funcionamento.18 A par do campo de enunciação dos discursos, insta referir que: “o local de fala esta instintivamente ligado ao mito da “verdade”, 16 Matheus Moreira & Tatiana Dias. O que é ‘lugar de fala’ e como ele é aplicado no debate público. Sitio em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O- que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9- aplicado-no-debate-p%C3%BAblico Acesso em 12 de fev. 2017. 17 QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/. Acesso em 22 jan. 2017 18 GIACOMONI, Marcello Paniz & Vargas, Anderson Zalewski. Foucault, a Arqueologia do Saber e a Formação Discursiva. Veredas on line – análise do discurso – 2/2010, p. 119-129 – ppg linguística/ufjf – juiz de fora - issn 1982-2243. p.4. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate-p%C3%BAblico https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate-p%C3%BAblico https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate-p%C3%BAblico 60 quem tem o poder de fala é credenciado como portador de verdades”.19 Partindo da análise do autor, o questionamento que se faz é se o “mito da verdade” seria uma das motivações da perpetuação do descrédito verificado na fala das “minorias” e, consequentemente, dos apenados. A título exemplificativo, se colocados lado a lado, um homem branco e um homem negro, o homem branco sempre será ouvido com maior atenção pela sociedade em geral, embora quem tenha propriedade para perquirir as questões intrínsecas ao preconceito e outros problemas vivenciados seja o homem negro. Dita premissa, demonstra os fluxos de poder envolvidos nos discursos, bem como na manutenção de uma sociedade verticalmente hierarquizada. Foucault em sua obra “A arqueologia do saber” permite a análise da margem onde se encontra o mito da “verdade”, a “história” e nós. A partir da ideia do autor, demonstra-se necessário para a compreensão das questões fundantes do saber humano, a análise das urgências e dos limites históricos de como nos conhecemos e não nos reconhecemos enquanto seres inseridos numa comunidade.20 Em outra obra, o autor incita o questionamento sobre os jogos de verdade envolvidos nos discursos: “Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando se olha como doente, quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser trabalhador, quando ele 19 QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ . Acesso em 22 jan. 2017. 20 MADARASZ, Norman R.; JAQUET, Gabriela M.; FÁVERO, Daniela N.; CENTENARO, Natasha (Orgs.). Foucault: leituras acontecimentais.[recurso eletrônico]/ Norman R. Madarasz, Gabriela M. Jaquet, Daniela N. Fávero, Natasha Centenaro (Orgs.) -Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016. p. 152. http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ 61 se julga e se pune enquanto criminoso? Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?” 21 Na formação de uma sociedade democrática, a multiplicidade de falas, tendo como base a diversidade de experiências constantes de uma vivência reconhecidamente opressora, oportuniza a acepção de “discursos” com contribuições ímpares para a construção de uma realidade mais justa e igualitária. Quinalha defende que a “política transformadora que almeja universalizar princípios de igualdade e de liberdade deve ser atividade de todxs. Por direito e por obrigação.”22. A partir destes dados, percebe-se a importância da compreensão e acepção do conceito designado pelo “local de fala”. Independentemente das incongruências teóricas existentes, a “fala” promove, em alguma medida, mudanças, oportunizando a construção de novos paradigmas e a desconstrução de velhos estereótipos. Sobre o tema, Foucault defende que os sujeitos e objetos não existem a priori, são construídos discursivamente sobre o que se fala sobre eles, sendo conhecidos e definidos discursivamente em dados momentos pelo próprio homem. 23 Nesse ponto, verifica-se a produção e perpetuação de um desconhecimento generalizado sobre os indivíduos e seus problemas em sociedade, uma vez que sempre definidos a partir 21 FOUCAULT, Michael. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p. 13. 22QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/. Acesso em 22 jan. 2017 23 A título exemplificativo, assim leciona Machado: ” O corpo, por exemplo, só passou a existir a partir das modificações discursivas da passagem da Idade Média para a modernidade. Com o desenvolvimento da patologia, o corpo passa a ser percebido como um conjunto de órgãos, e a Medicina passa a discursivizá-lo, ou seja, a formular práticas e efetuar dizeres sobre ele.” - Veredas on line – Análise do discurso – 2/2010, p. 119-129 – ppg linguística/ufjf – juiz de fora - issn 1982-2243 http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ 62 da análise de outros homens, com outras vivências e linguagens. A teoria do labeling approach24 ecoa suas constatações até os dias de hoje, já que os “discursos” socialmente reconhecidos, mantêm-se nas “falas” de apenas alguns homens, o que, em dada medida, retroalimenta o processo de rotulação e estigmatização das minorias na sociedade. Baratta leciona que: “ A criminalidade é – um “bem negativo”, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixadas no sistema sócio – econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos.”25 Fischer observa, entretanto, que “a descrição dos enunciados que nesse tempo e lugar se tornam verdade,fazem-se práticas cotidianas e interpelam sujeitos, produzem felicidades e dores, rejeições e acolhimentos, solidariedades e injustiças.” 26 Com base na ideia de enunciado defendida por FOUCAULT, questiona-se ainda, a incipiente adesão, bem como responsabilidade da mídia sobre a reprodução da cultura da punição27. Por enunciado, tem- se um tipo especial de ato discursivo que se separa dos contextos locais e dos significados cotidianos para construir um campo de sentidos que devem ser aceitos, seja por seus efeitos de verdade, seja pela função daquele que o enunciou ou pela instituição que o acolhe.28 Assim, o 24 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 86 25 Ibdem.P. 161. 26 FISCHER, R. M. B. Foucault revoluciona a pesquisa em educação? Perspectiva. Florianópolis, v. 21, n. 2, 2003, p. 378. 27 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 28 VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 113. 63 enunciado não tem vinculação com a “verdade”, mas sim com “as verdades” intrínsecas ao sujeito que o enuncia. A par disso, o questionamento proposto a priori volta à voga: a literatura não ficcional/marginal, por conjugar as diferentes falas sobre um mesmo fato ou individuo, contrapondo estes com a fala do próprio individuo, cumpriria, de modo satisfatório, o papel de oportunizar a “fala” destas minorias e, por conseguinte, determinaria um modo de empoderamento social? 2 LITERATURA, REALIDADE, CRIMINOLOGIA E CULTURA DA PUNIÇÃO Na intersecção entre a literatura e a criminologia, vislumbra-se um dos problemas ligados à reprodução da violência nas sociedades modernas, objetificado pelo sistema penal através do “silenciamento” e exclusão da voz das “minorias”. De outro ponto, infere-se o questionamento sobre a relação entre literatura e realidade dada a complexidade da admissão da literatura como forma de acepção de “verdades”. Para Lobo: La relación entre literatura y realidad, o literatura como forma de verdad, es un tema recurrente en las discusiones. Frecuentemente se le asignan a la literatura atributos tales como su capacidad de presentar facetas ocultas de la realidad, de dar voz a quien no la tiene, de develar verdades...Existe entonces un problema en torno a la verdad que permea hasta a la institución literaria, sobre todo en géneros como podrían ser el testimonio, las memorias, la novela histórica y, claro está, la literatura policiaca.29 29LOBO, Tatiana. Introducción: verdad, saber, poder e historia en la literatura policiaca. Sitio em: https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABE R_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA. Acesso em 18 de fev. 2017. https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABER_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABER_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA 64 O tema do presente artigo surgiu da inquietude gerada pela explanação do termo “local de fala”. A expressão em questão remete sempre a uma cisão no meio acadêmico, bem como político, já que muitas vezes é utilizada para fins diversos do conceito originário. Guimaraes30 aduz que o falante é um sujeito da língua constituído em um espaço de enunciação que se define como o: “espaço do funcionamento de línguas que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços ‘habitados’ por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer.” Nesse prisma, o espaço de enunciação considera a prática política, enquanto desconsidera o lado individual ou subjetivo, pois, para o autor, enunciar significa estar na língua em funcionamento no/pelo acontecimento. De outro ponto, Quinalha observa que não se pode desqualificar de pronto qualquer iniciativa dos que tentam se aliar às reinvindicações dos “marginalizados” e “excluídos”, seja pela literatura, seja pelo discurso público, uma vez que, inevitavelmente, estas vozes se fazem necessárias na construção de uma sociedade menos estratificada.31 Uma reportagem recentemente produzida por Gerivaldo Neiva, juiz de Direito Baiano, e publicada pelo portal de notícias Carta Capital, em parceria com a página Justificando32, demonstrou a dificuldade 30 GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2005 p. 18. 31QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ . Acesso em 22 jan. 2017 32 NEIVA, Gerivaldo. Fernando Beira – mar: esse cara sou eu. http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ 65 vivenciada por Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como “Fernandinho Beira-Mar”, em encontrar um espaço onde sua “voz” seja respeitada e reconhecida. A reportagem intitulada: “Luis Fernando (Beira-mar): esse cara sou eu”, concede espaço a este traficante de renome nacional, perseguido durante os anos 2000, no Brasil. Na entrevista, “Fernandinho Beira-mar”, entre outras coisas, assim respondeu quando indagado como se sentia o “bandido” mais famoso do Brasil: “– Doutor, eu estou nessa vida há muito tempo. Cometi umas bobagens no Rio de Janeiro e depois precisei sair para a fronteira. Lá, o esquema era muito perigoso. Nossa atividade era de risco e envolvia drogas, armas e carros. É claro que nessa atividade havia desentendimentos, extorsão e conflitos de interesses. Logo, se matava e se morria muito. Agora, doutor, igual a mim, naquela época, existiam várias pessoas, inclusive policiais que participavam do esquema. Pior do que eu, existiam muito mais pessoas naquela atividade. O problema é que o Estado Brasileiro precisava, para se afirmar como eficiente e garantidor da lei, de um grande bandido nacional para condenar a 300 anos de cadeia e mantê-lo preso como exemplo dessa eficiência. O problema é que minha prisão e condenação não acabou com o tráfico, com a violência e criminalidade. Pronto! Estou condenado, isolado em uma penitenciária de segurança máxima e todos esses os problemas se agravaram. Na verdade, eu já nem sei por quais crimes fui condenado e por quais motivos tive minha pena agravada em presídios, pois basta que um agente penitenciário me acuse para que seja certa a condenação. Por fim, doutor, o sistema precisa desse grande bandido nacional e esse cara sou eu!”33 http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse- cara-sou-eu/ Acesso em 18 de fev. 2017. 33 NEIVA. Gerivaldo. “Luis Fernando (Beira-mar): esse cara sou eu”. Sitio em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse- cara-sou-eu/. Acesso em 17 de fev. 2017. http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/ http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/ http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/ http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/ 66 Embora a reportagem seja sucinta, consegue transcrever com sabedoria e alteridade a importância de oportunizar a “fala” aos “apenados”. Em um relato paradigmático, Neiva assim observa: “Este relato que faço agora é fruto de anotações e lembranças, mas é impossível retratar a realidade deum presídio federal e, muito menos, o que deve sentir e pensar “o grande bandido nacional” em suas 22 horas diárias de isolamento e o peso da condenação em 300 anos de reclusão. Os meandros de sua mente e de suas lembranças, conforme me relatou o próprio Luiz Fernando, serão expostos quando do lançamento de seu livro de memórias. Não me adiantou o conteúdo dessas memórias, mas observou que precisa oferecer às pessoas o outro lado da história oficial.”34 A temática aqui discutida envolve inúmeros conceitos, produzindo incontáveis dúvidas quanto ao emprego do conceito de “ local de fala” pela sociedade, bem como do poder incutido aos discursos para resolução e conhecimento dos conflitos. Spivak aduz em sua obra “Pode o subalterno falar?” a incongruência que permeia a tentativa de transposição do “outro” a partir de referenciais culturais distintos, valendo-se do conceito de “pós-colonialismo” como argumento contrário aos estudos e discursos promovidos sob a perspectiva de alguns pensadores Europeus35. Assim exemplificando a problemática aventada: "É impossível para os intelectuais franceses contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é apenas o fato de que tudo o que leem ― crítico ou não ― esteja aprisionado no debate sobre a produção desse 34 Ibdem. 35 A autora faz uma forte critica a visão empregada por Deleuze e Foucault em suas obras, tendo em vista o desconhecimento da realidade vivenciado pela população dos países de terceiro Mundo. 67 Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito como sendo a Europa" (idem, p.45-46). A autora define como subalterno os membros das “camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”.36 Em contrapartida, na concepção de Ferréz, não se pode associar os “subalternos” de Spivak aos “marginais” da literatura marginal, já que entende o último a partir de uma concepção mais complexa. Assim, nas palavras de Ferréz37 a: “literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço”, ou seja, o “marginal” é o bandido, ou “bicho-solto”, que vive à margem da sociedade e que busca um espaço na série literária. Enquanto isso, Spivak leciona que o intelectual tem o “dever” de representar o subalterno, concluindo, que este percurso deve ser feito com atenção “para não emudecer [mais] o subalterno, e sim ser um veículo para que este possa falar e ser ouvido.”38 A autora é reconhecida ainda, pelas suas críticas às leituras feitas e produzidas por Foucault e Deleuze sobre a sociedade. 36 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.P. 12. 37 FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005. 38 BRAGA FILHO, Edmar. M. Voz, agência e representação: Spivak e os sujeitos subalternos. Sitio em : https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e- representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/. Acesso em 10 de fev. 2017. https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/ https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/ 68 Segundo a autora: “o subalterno não deve configurar apenas um “objeto” a ser revelado ou conhecido pelo intelectual que deseja falar pelo outro.”39, desmistificando, o modelo de “autorrepresentação”40. A intenção evidenciada em sua obra é a de “desafiar os discursos hegemônicos e nossas próprias crenças como leitores e produtores de saber e conhecimento.”41 Na intersecção entre literatura e respeito ao “local de fala”, Oliveira aduz que a propriedade de fala: “seria o primeiro desafio a ser enfrentado pela teoria frente à atual produção literária da periferia brasileira, relacionado ao papel do sujeito como agente e produtor cultural, que muitas vezes vive sob condições de ilegalidade, reivindicando, no entanto, o direito de falar desde essa experiência.”42 Para a autora: “tanto o marginal como o periférico são conceitos intrinsecamente ligados a modelos de representação, que põem em causa não apenas modos de significar o mundo, como também de produzir identidades.”43 Dita afirmação demonstra-se essencial para divagarmos sobre essa nova modalidade de “produção literária contemporânea originada nos morros e favelas das grandes cidades brasileiras”, questionando, “o modo como ela se inscreve no contexto 39 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.P. 14. 40 Entende-se por “autorrepresentação” o 41 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.P. 8. 42 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. 43 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.32. 69 sociocultural em que se situa, as experiências que ela traduz e as identidades que engendra.” De outro passo, Oliveira leciona que: “a condição periférica, marcada pela pobreza e exclusão social, econômica e cultural, sempre ganhou as páginas da nossa literatura.”44. Aduz ainda que a obra “Os pobres na literatura brasileira”, de Roberto Schwarz, tem como pano de fundo o retrato dessa “marginália”. Exemplificando o viés da literatura marginal publicado até então no Brasil: “... os miseráveis explorados pela metrópole nos poemas satíricos de Gregório de Matos, os escravos da poesia libertária de Castro Alves, os moradores dos cortiços de Aluísio Azevedo, os sertanejos de Euclides da Cunha, os desvalidos de Lima Barreto, o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, os severinos de João Cabral, os retirantes de Graciliano Ramos, os pequenos trabalhadores e contraventores de João Antonio; os mendigos e criminosos das ruas do Rio de Janeiro de Rubem Fonseca”45 Na contemporaneidade, entretanto, estas produções literárias vêm ganhando novos contornos. Se observarmos as condições de produção dessa nova modalidade literária, perceberemos as diferenças presentes no lugar assumido pelo escritor, bem como o vínculo presente em seu discurso com a comunidade onde vive.46 Verifica-se, portanto, que a característica central da literatura marginal contemporânea versa sobre o fato de sua produção ser 44 Ibdem. P .33. 45 SCHWARZ, Roberto. Os pobres da literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. 246 p. Apud OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.33. 46 Ibdem. p. 34. 70 essencialmente realizada por autores da periferia, consagrando, assim, uma nova visão baseada em um olhar interno, ecoando nestes escritos a experiência diária de viver na “condição de marginalizados sociais e culturais”. 47 Nesse aspecto, percebemos a literatura marginal como meio de resistência das minorias frente ao sistema ora estabelecido, valendo-se desse espaço de enunciação para denúncia e produção de conhecimento. Essa nova geração de escritores periféricos estabelecem a diferença crucial entre as obras literárias clássicas e a literatura marginal contemporânea, pois, conformeelucida Oliveira: “a maior parte dos escritores que povoaram suas páginas com os marginais e marginalizados da sociedade, salvo algumas poucas exceções, não pertencem a essa classe de indivíduos, senão que assumem o papel de porta-vozes desses sujeitos, falando em seu lugar, assumindo a sua voz.”48 Vellozo exprime de modo conciso o papel da produção literária como meio de mudança social. Para a autora: “A produção literária é um fenômeno social, na medida em que resulta de convicções, crenças, códigos e costumes sociais (ver Oliveira, 1984). Enquanto tal exprime a sociedade, não ipsis litteris, mas modificando-a e até mesmo negando-a.”49 Em contraponto, a autora aduz que a literatura não tem 47 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.33. 48 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.33. 49 VELLOSO, Mônica Pimenta. A Literatura como Espelho da Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, P. 240. 71 obrigação de ser o registro fiel da realidade histórica que emerge, mas pode sim insurgir-se contra esta realidade, apresentando à sociedade uma imagem que ela, por vezes, se recusa a reconhecer. A mesma conclui afirmando que a produção literária se trata: “de uma relação necessária, contraditória e imprevisível.”50 Não desqualificando grandes nomes da literatura nacional, como Machado de Assis, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Jorge Amado, Oswald de Andrade e Mario de Andrade, que dentro das suas categorias literárias retrataram de modo brilhante aspectos sociais, verifica-se que essas obras retratam o modo como estes percebiam a sociedade brasileira, mantendo assim o “poder discursivo” nas mãos dos homens letrados e privilegiados. Desse modo, a literatura marginal vem se estabelecendo como uma nova forma de produção cultural e literária, já que produzida pelos próprios “excluídos”, “marginalizados”, que produzem conhecimento da favela e não apenas “sobre” a favela. Nesse passo, Oliveira observa que: “Um traço bastante inovador da literatura marginal da periferia é justamente o seu caráter de voz coletiva, comprometida em contar e escrever a própria experiência, em contraponto à cultura oficial dominante.”51 A inovação parte da tentativa de dar voz a vida dos que vivem à margem do conceito de sociedade pré-estabelecido. 50 Ibdem. p. 240. 51 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.34. 72 BREVES CONCLUSÕES No âmbito da sociedade excludente, a literatura não ficcional e/ou marginal apresenta-se como uma oportunidade de dar “voz” aos problemas vivenciados diariamente pelas “minorias”. Os “marginalizados” que convivem desde sempre a par desse estereótipo e, na maioria das vezes, não são ouvidos ou questionados sobre as modificações sociais necessárias para tornar a vida em sociedade mais justa e igualitária, têm por meio da literatura uma fonte de empoderamento e resistência social. Urge, no entanto, repensar os conceitos envolvidos na reprodução de conhecimento em sociedade, bem como o poder ilegitimamente intitulado a poucos e parcos “homens de bem”, seguido pela negligência constituída à “fala”. A fala nos remete a potência da evolução humana, uma vez que somos a única espécie que detemos tal poder. Assim sendo, por que usamos este privilégio evolutivo de modo involutivo? Além das considerações já tecidas, o presente estudo não traz soluções à problemática aventada, entretanto, visa instigar o questionamento quanto ao poder que a literatura marginal e/ou não ficcional tem como fonte de resistência numa sociedade verticalmente hierarquizada. Afora todo o exposto, esses grupos52 que traduzem por meio da literatura marginal a voz das periferias, em certa medida, oferecem uma 52 Ferréz, fundou o grupo 1DASUL; Sérgio Vaz, ficou conhecido pelos saraus que organiza na Zona Sul da cidade; Sacolinha, criou, em 2002, o projeto Literatura no Brasil, que veio a tornar-se uma Associação Cultural. Além de produzir uma revista especializada com o mesmo nome, a Literatura no Brasil realiza concursos literários. 73 nova opção aos jovens socialmente negligenciados, já que a literatura surge como um meio de reconhecimento e crescimento.53 A par disso tudo e reconhecendo-se a natureza multidimensional dos tópicos aqui levantados, instiga-se o questionamento sobre o papel que a “fala” alcançaria no contexto social para fins de diminuição da violência e da criminalidade nos grandes centros urbanos, seja por meio da literatura marginal, seja por outros meios discursivos. Luiz Eduardo Soares alerta que: “Os direitos democráticos são amplamente garantidos, na letra da Constituição, mas a prática os distribui de acordo com idade, gênero, cor e classe social – e local de moradia, posto que a segregação é também espacial...” 54. A afirmação do pesquisador convola a perspectiva da segregação espacial narrada nos discursos literários ora apresentados. Ainda que obras não ficcionais como: “O dono do Morrro: Um homem e a batalha pelo rio, “Abusado - O dono do Morro Dona Marta”, “Estação Carandiru” e “Rota 66” apresentem suas histórias por meio da escrita de outros homens, como exposto ao longo do texto, estes escritos não devem ser negligenciados, já que por meio de testemunhos e 53 Sobre o tema, Soares observa que: “Hoje, estamos diante de um genocídio de jovens pobres e negros, que morrem e matam em um enfrentamento autofágico e fatricida, sem quartel, sem bandeira e sem razão. Apesar da maioria resistir, muitos jovens sem perspectiva e esperança, distantes das oportunidades geradas pela educação e a cultura, sem lazer, esporte, afeto, reconhecimento e valorização, com suas auto- estimas degradadas, acabam cedendo à sedução exercida pelo crime. Ao se deixarem recrutar, aceitam a arma como passaporte para visibilidade social e o reconhecimento, antes de usá-la em benefício de estratégias econômicas.” SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 54 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 74 pesquisas de campo contrapõe fatos e dão “voz” a história de pessoas que talvez não tivessem essa oportunidade por elas mesmas. Em suma, qualquer meio de ocupação e empoderamento do “ local de fala” das minorias, justapondo a hegemonia dos discursos totalitários dominantes, demonstra-se como uma possibilidade de resistência e luta contra os preconceitos e estigmas reproduzidos na sociedade brasileira. A única discussão permitida nesses espaços de enunciação deveria ser contra a censura vivenciada diariamente na sociedade brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 20 Bauman, Zygmund. Vida líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed.2007. BRAGA FILHO, Edmar. M. Voz, agência e representação: Spivak e os sujeitos subalternos. Sitio em: https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/. Acesso em 10 de fev. 2018. 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Nueva Sociedad nº 208. Marzo-Abril 2007. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG (2010 [1985]). TIBURI. Marcia, 1970. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 7ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2016. VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. VELLOSO, Mônica Pimenta. A Literatura como Espelho da Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p.239-263. 78 REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DA CONSTRUÇÃO DE UMA LÓGICA E UMA PRÁXIS JURÍDICAS ANTIRRACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE Domenique Goulart1 “Hoje eu me acordei branca. Tomei banho, lavei o cabelo, sai para trabalhar e não precisei pensar quantas pessoas vão fazer comentários desnecessários sobre ele. Caminhei pelas ruas sem olhares de escárnio ou fetichização. Cheguei ao meu destino em tempo adequado, não tive nenhuma angústia sobre a cor da minha pele durante o dia todo. Hoje eu me acordei branca. Por nenhum segundo precisei refletir sobre racismo, porque me acordei branca e portanto pude "não ver racismo em tudo", já que ele não me atingiu nenhuma vez. Pude ignorar o fato de que todas as pessoas que me pediram dinheiro na rua ou um prato de comida eram negras. Não precisei pensar sobre o que isso significa na sociedade porque me acordei branca. Fui para aula na universidade, escolhi uma classe e ao olhar para os lados me senti acolhida, todas as pessoas na minha classe são parecidas comigo e isso é ótimo. Hoje eu me acordei branca, não fui parada por nenhum porteiro. Andei por todos os lugares segura de mim. Pude ignorar dados, estatísticas, fatos. Porque hoje eu me acordei branca e não fui impedida em absolutamente nada do que resolvi fazer. Hoje eu me acordei branca, defini isso para mim. Posso me acordar branca, tenho parentes que são, posso me sentir branca, posso ter pertença branca, me acordei branca me sentindo branca. 1 Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cofundadora e integrante do Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Assessoria para Mulheres (GRITAM/SAJU). Bolsista de iniciação científica (CNPq). E-mail: domenique.goulart@gmail.com. 79 Acontece que o resto do mundo acordou e olhou para mim também. E o mundo decidiu: eu não sou branca”2 INTRODUÇÃO O que se busca nestes escritos, em linhas gerais e sem pretensão alguma de esgotar os assuntos, é uma breve tentativa de expor,em um primeiro espaço, que os marcadores de raça, classe e gênero influencia(ra)m profundamente os alicerces da epistemologia jurídica. Num segundo momento, busca-se mostrar o impacto da lógica elitista, masculinista e branca nos trâmites processuais e na esfera judicial, bem como tecer breves considerações acerca dos mecanismos considerados imprescindíveis para a construção de um raciocínio jurídico anti- hegemônico e progressista. EIXO I - Uma perspectiva epistemológica: dos marcadores sociais de gênero, raça e classe que são estruturais e estruturantes da Ciência Jurídica Numa sociedade de origem patriarcal, de herança escravocrata, o homem, o branco, torna-se a norma, o totalizante, e linguagem além de designar coisas e objetos, será um modo de interpretação de mundo que atribuirá valores a determinados grupos como forma de (manter) poder ou de opressão.3 (...) a estrutura social não foi profundamente modificada pela evolução da condição feminina; este mundo, que 2 BUENO, Winnie. Hoje eu acordei branca, fev 2017. Disponível em: <https://www.facebook.com/ninebueno/posts/10208124557302698>. Consultado em: fev. 2017. 3 RIBEIRO, Djamila. Linguagem, Gênero e Filosofia: Qual o mundo criado para as mulheres?, Periódico Sapere Aude, Revista de Filosofia - PUC Minas Gerais, v. 5, n. 9, 2014. Disponível em: <http://periodicos. pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674>. Consulta em: fevereiro de 2017. https://www.facebook.com/ninebueno/posts/10208124557302698 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 80 sempre pertenceu aos homens, conserva ainda a forma que eles lhe imprimiram..4 A Ciência Jurídica sempre foi tida como um ramo elitizado e muito valorizado socialmente. Semelhante às faculdades de Medicina, as de Direito conferiam e ainda conferem notório destaque às pessoas desta área. Historicamente, cursos como esses foram destinados com exclusividade às pessoas mais favorecidas socioeconomicamente. Nas paredes da Faculdade de Direito da UFRGS, por exemplo, encontram- se pendurados muitos quadros com fotos de pessoas que ali se formaram. Ao direcionar a atenção às imagens ostentadas pelas pomposas molduras, perceptível que apenas recentemente o curso começou a ser composto por mulheres e por pessoas negras. Com efeito, a esfera jurídica é um ramo das ciências humanas e sociais composta por seleto grupo de pessoas majoritariamente do gênero masculino, brancas, ricas, com conhecimentos e vivências direcionados. O resultado disso é a construção de uma lógica e de um regime de verdade particulares e específicas, a excluir demais perspectivas e abordagens. Ao se referir às demais lógicas suprimidas, se entende por todas as outras dissonantes, divergentes, plurais e outsiders5. Isso quer dizer que ao serem elencados determinados fatores 4 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, pg 450. 5 “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta,a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider.” BECKER, Howard Saul.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kushnir. - 1.ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, pg. 15. 81 limitantes como a regra a ser seguida, esta parte de pressupostos fixos que condicionam a racionalidade a ser percorrida e que consolidam uma única narrativa. Pelo âmbito das ciências jurídicas ser constituído, historicamente, por grupos minoritários elitizados, os quais são dotados de determinada ideologia, toda teoria e prática jurídicas refletem tais aspectos. A ausência de pluralidade de pressupostos e de olhares com vivências diversificadas, por meio da exclusividade do acesso à esfera jurídica por um grupo com determinadas demandas e formas de ver o mundo, acarreta a edificação dos pilares jurídicos sob um prisma de manter os privilégios já adquiridos. Ou seja, há um caminho percorrido no sentido da manutenção do status quo através desse ramo do saber, que tanto impacta diferentes aspectos da dinâmica social. Como expôs Nereu Giacomolli6, a ideologia: (...) é tida como um conjunto de ideias e valores informadores da direção do pensamento e da ação, na compreensão e na resolução de um problema, ou seja, como pensar, o que pensar, como fazer e o que fazer. Através da ideologia é que o poder dominante se legitima, o qual recebe uma identidade de pensamento (...). A ideologia legitima, integra e justifica uma realidade e, paradoxalmente, também a deforma e profana. Há um certo consenso de que a ideologia conduz a ação e o pensamento, as pré-compreensões, determinando práticas e apresentando resultados. Deveras, a ideologia dos grupos dominantes dá forma à (e deforma a) epistemologia jurídica. E no momento em que se deixa de tratar como relevantes as ideologias sociais que alicerçam e atravessam a realidade das pessoas que detêm os meios de produção do 6 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. - 3. ed. rev., atual e ampl. - São Paulo: Atlas, 2016, pg. 87. 82 conhecimento, tratamos como naturalmente legítimas tais pessoas a falar e produzir saberes, normas, discursos e dinâmicas sociais, em detrimento do silenciamento histórico de toda a coletividade. Também a linguagem se conforma como modo de exercício de poder e de estabelecimento de exclusões e monopólios, principalmente quando nos atentamos às especificidades do nosso “juridiquês”. Na análise construída por Djamila Ribeiro7, à luz do filósofo Wittgenstein, a linguagem seria ela mesma um modo de interpretar o mundo, que não é neutro, mas sim alicerçado e direcionado por exercícios de poder: a linguagem não é somente uma estrutura de vocabulários, não é simplesmente uma gramática com o objetivo de ensinar alguém a escrever ou falar, a linguagem é uma forma de vida que traz em si valores políticos e sociais formando uma visão de mundo. Esses valores oferecidos pela linguagem, explicitando sua não neutralidade, recaem sobre determinados grupos, como as mulheres. (...) linguagem além de designar coisas e objetos, será um modo de interpretação de mundo que atribuirá valores a determinados grupos como forma de (manter) poder ou de opressão. O modo como são edificados os saberes a partir das opressões estruturais regula a distribuição desigual de direitos e oportunidades, além de naturalizar violências e invisibilizações a determinados corpos. Face a isso, com o objetivo de romper com essa racionalidade de manutenção de privilégios, é indispensável que se entenda que os marcadores sociais estruturais atingem de modos diferentes as pessoas 7 RIBEIRO, Djamila. Linguagem, Gênero e Filosofia: Qual o mundo criado para as mulheres?, Periódico Sapere Aude, Revista de Filosofia - PUC Minas Gerais, v. 5, n. 9, 2014. Disponível em: <http://periodicos. pucminas.br/index.php/SapereAude/article/ http://periodicos./ http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 83 e podem também coexistir, devido às intersecções de condições de gênero, raça e classe. Interseccionalidade é uma maneira de entender quemais de um tipo de opressão pode atravessar um mesmo contexto, sem que haja uma hierarquia entre opressões ali existentes. Cada marcador social age e impacta de um modo diverso e não pode ser analisado de forma apartada. Ou seja, opressões tais como a LGBTTfobia8, o racismo, o classismo, o machismo, por exemplo, podem ser fatores conjugados, a atingir uma mesma pessoa ou grupo de pessoas. Há quem diga que tais marcadores sociais - gênero e raça, por exemplo - são apenas atributos pessoais que não devem ser ressaltados, pois cada pessoa é um conjunto de particularidades e especificidades que a torna única. Entretanto, esta é não somente uma forma de se eximir de responsabilidades enquanto sujeitos privilegiados, mas 8 LGBTT é a sigla do movimento político que representa as lésbicas, os gays, as pessoas bissexuais, trans e travestis. De modo mais objetivo, a LGBTTfobia é a opressão e a violência pautadas no preconceito, na aversão, na não aceitação, na fobia que pessoas sentem pelas pessoas LGBTT’s. Enquanto as letras L, G e B, se referem à sexualidade, as letras T’s se referem à identidade de gênero. Para melhor elucidar a questão, à: “nível de conceituação moderna o termo trans, prefixado historicamente na palavra transexual, é cunhado para significar identidades de gêneros que estejam em oposição com a norma cultural vigente de que os órgãos genitais (pênis e vagina) definem o gênero (homem e mulher). Ao longo da história a palavra transexual era utilizada como sinônimo de homossexualidade, enquanto interpretação de que homens e mulheres homossexuais possuíam desejo de trocar o sexo e por conseguinte o gênero. Hoje, já se construiu um termo que abrange a experiência de incômodo existencial com o gênero ofertado pela relação sexo-gênero, o termo transgênero. Do latim, trans, aquilo que está em oposição, observamos que seres humanos transgêneros se qualificam enquanto existirem em oposição ao gênero definido somente por carregarem tal ou qual órgão genital. Mais tarde se popularizou o termo transexual masculino e feminino, para por fim definirmos, atualmente, os conceitos de homem transexual (gênero inicialmente ofertado foi o de mulher por possuir vagina) e mulher transexual (gênero inicialmente ofertado foi o de homem por possuir pênis).” ROVEDA, Atena Beauvoir. Transantropologia: corpos, existências e humanidades em oposição, fev. 2017. Disponível em: <http://atenabeauvoir.blogspot.com.br/>. Acesso em: fevereiro de 2017. http://atenabeauvoir.blogspot.com.br/ 84 também um modo de invisibilizar pautas de opressão, as quais devem ser cada vez mais confrontadas. Ciente da discussão acerca da interseccionalidade, substancial a retomada da reflexão sobre quem dita as normas sociais e jurídicas. Apenas muito recentemente a abertura política possibilitou a participação de mulheres em âmbitos sociais mais influentes. Apesar disso, a ascensão de mulheres à posições de poder ainda é escassa. Quando conjugamos também o marcador de raça, vemos ainda muito menos mulheres negras em espaços de significativa influência normativa. Um exemplo concreto disso é a ínfima quantidade de mulheres que participaram da Assembleia Nacional Constituinte que deu corpo ao texto da Constituição Federal de 1988. A Assembleia foi formada por apenas 24 mulheres9 das 559 pessoas que a compuseram (72 pessoas Senadoras e 487 pessoas Deputadas10). Ou seja, isso representa a irrisória porcentagem de 4,29% de mulheres que participaram da escrita do texto original da nossa Carta Magna. Salta ainda mais aos olhos quando verificamos que, destas 559 pessoas que formaram a Constituinte, apenas uma delas era uma mulher negra11: a parlamentar constituinte Benedita da Silva. 9Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de- 1988/mulher-constituinte>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 10Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de- 1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte>. Acesso em 05 de fevereiro de 2017. 11Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/ constituicao- cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituic ao20anos_bioconstituintes?pk=103478>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478 http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478 http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478 http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478 85 Por outro lado, a representatividade de mulheres e/ou de pessoas negras, por si só, não garante que as demandas coletivas e os fatores que vulnerabilizam as mulheres e a população negra sejam pautas reivindicadas. Nesse sentido que é demonstrado o percurso transcorrido nos EUA por movimentos sociais, o qual foi historicizado por Angela Davis, no célebre livro Mulheres, Raça e Classe. A autora narra a forma como o movimento de mulheres, apesar de inicialmente ter agido ativamente em prol da abolição da escravatura no país, depois apresentou reiteradas posturas racistas, a negar a participação das mulheres de cor nos espaços de luta pelos direitos das mulheres: A ideologia burguesa - e particularmente seus componentes racistas - realmente deve possuir o poder de diluir as imagens reais de terror em obscuridade e insignificância de dissipar os terríveis gritos de sofrimento dos seres humanos em murmúrios quase inaudíveis e, então, em silêncio. Com a chegada do século XX, um casamento ideológico sólido uniu racismo e sexismo de uma nova maneira. A supremacia branca e a supremacia masculina, que sempre se cortejaram com facilidade, estreitaram os laços e consolidaram abertamente o romance.12 Neste contexto histórico que foi proferido o memorável discurso demarcado pelo questionamento feito por Sojourner Truth, uma ativista negra, em face ao movimento de mulheres brancas: “E não sou eu uma mulher?”13. Desse modo, carece haver a conscientização do engendramento das opressões em virtude dos recortes de classe, raça e gênero, dando visibilidade e atenção às especificidades de cada pauta.12 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016, p. 127. 13 Disponível em: <http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner- truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0 kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks>. Acesso em: junho de 2017. http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks 86 Quanto ao ponto, cabe trazer à tona a ideia sustentada por Sueli Carneiro, a qual defende a necessidade de enegrecer o feminismo14: Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas particulares vêm exigindo, paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. Outrossim, imperioso enfatizar o fato de que a crença e práxis pautadas no machismo e no racismo são vislumbradas tanto nas micro- relações quanto nas macro-relações. O machismo e o racismo são ideologias dominantes também nas bases estruturais e estruturantes institucionais, as quais silenciam aquelas e aqueles que são oprimidas/os. De fato, as diversas formas de violência contra as mulheres15 transcendem as relações pessoais e constituem também as lógicas 14CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142003000300008>, dezembro de 2003. Acesso em: junho de 2017. 15 Algumas das formas de violência contra as mulheres se encontram elencadas na Lei Maria da Penha. Uma conquista significativa ao movimento de mulheres foi ver validadas enquanto violências as formas descritas no art. 7° do referido dispositivo. Senão vejamos: Lei n. 11.343/06, Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno 87 institucionais. Isso ocorre seja na invisibilização e negligenciamento de demandas que somente as mulheres apresentam, na maior punição de mulheres encarceradas16, na hostilização e menosprezo às mulheres, na deslegitimação de suas insurgências e nos abusos morais e sexuais. A lista de violências às quais as mulheres são submetidas nas esferas institucionais é demasiadamente longa. Sob a roupagem de argumentos morais, religiosos e culturais, os quais se mostram sempre impregnados de estigma, quem apresenta o poder de ditar as normas instrumentaliza o patriarcalismo, a retirar a autonomia das mulheres sobre suas próprias vidas e sobre seus próprios corpos. No que concerne a tais posturas institucionais paternalistas e patriarcais, cabe transcrever fragmento do Informe do grupo de trabalho da ONU sobre questões das mulheres, de 201617: desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. 16 ALVES, Dina. Rés negras, Judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640>. Acesso em: fevereiro de 2017. 17 Recomendações do grupo de trabalho da ONU. Informe do grupo de trabalho da ONU sobre questões das mulheres, 2016. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640 88 Ao longo de todo seu ciclo vital, o corpo da mulher é instrumentalizado e suas funções e necessidades biológicas estigmatizadas, submetidas a um programa patriarcal politizado. O estado trata as mulheres de forma instrumental, como ferramentas as quais aplica políticas e programas. Por vezes se recorre a sanções penais e com frequência com o pretexto de proteger a saúde e a segurança da mulher, com argumentos religiosos e culturais. Fins políticos, culturais, religiosos e econômicos para a instrumentalização do corpo das mulheres. Dessa forma, o que se busca demarcar é que as estruturas do direito foram edificadas por grupos com pressupostos patriarcais, racistas e elitizados, com inexistência de pluralidade e diversidade, bem como desatenção às demandas de segmentos denominados como “minorias”. Impossível mensurar o impacto desta construção histórica. Contudo, essencial que sejam direcionados olhares, ouvidos e vozes àquelas e àqueles que vêm reivindicando e finalmente tomando (apenas após muita luta) os espaços e os tornando cada vez mais plurais. EIXO II - Do impacto da lógica elitista, masculinista e branca nos trâmites processuais e na esfera judicial É sintomático que as causas que toquem profundamente as pessoas e as prioridades por elas elencadas digam bastante sobre seu local de fala18. Devido a isso, é latente a necessidade de conseguir 18Demarcar quais são os privilégios e opressões da pessoa a qual está sendo dada a voz (ou que a toma com afinco) é substancial, pois são expostos quais os pressupostos de onde partem a pessoa para que se construa o que se quer dizer. Ao salientar isso, não se entende, por exemplo, que somente possa falar sobre uma opressão aquele que sofre com isso. Entretanto, implica dizer que se deve refletir a realidade por meio da própria posição de quem se manifesta em determinado contexto. Ninguém que não sofre com alguma opressão é legítimo para apontar o que é e o que não é uma forma de discriminação, uma vez que este sentimento é subjetivo e individual (ainda que também estrutural, porém no caso em concreto deve ser respeitadaa autonomia da 89 enxergar e dar visibilidades aos diversos marcadores sociais, os quais atravessam o contexto que atinge cada pessoa em suas particularidades. E essa carência se deve principalmente ao fato de que, como dito, a lógica jurídica foi construída por meio destes primas masculinistas, elitistas e brancos, acarretando que o processo, (principalmente o penal), acabe por negligenciar e omitir a complexidade das estruturas sociais que impactam os sujeitos, sobretudo, os criminalizados pelo sistema de controle penal. Ao refletir sobre a construção da racionalidade que rege a tramitação dos processos penais, possível enxergar haver uma sistemática de desumanização das pessoas julgadas. Isso ocorre em virtude de uma análise mecanicista dos fatos contidos nos autos, ao que pretere todo o contexto sócio-político que gerou aquele fato social. Em que pese seja crucial não cair na falácia do Direito Penal do Autor19, o que se vê é o paradigma oposto disso20, a ser julgada a conduta como se ela fosse apartada de todas as condições sociais da pessoa que a pessoa que é diretamente atingida), não cabendo a quem causa um sofrimento dar (in)validade ao ato ocorrido. Por outro lado, cabe a esta pessoa pensar e (des)construir a conduta ou disseminação de uma opressão a partir da sua posição no mundo. Nesse sentido é que se fala, por exemplo, que pessoas brancas devam falar sobre sua conduta enquanto racistas e os homens enquanto machistas, cabendo refletir e buscar formas de diminuir e extinguir as opressões por elas mantidas e alimentadas. 19 “O Direito Penal do autor configura-se quando a reprovabilidade social, bem como a aplicação das sanções penais são baseadas não na ocorrência de um fato ilícito, mas sim no modo de ser do agente. A sanção deve ser aplicada, portanto, fundamentada na personalidade do agente, na atitude interna jurídica corrompida do agente. A conduta realizada seria apenas uma das características inerente aquele ser que nasceu para delinqüir.” MOTTA, Alessandra Costa da Silva. Uma análise sobre a aplicação do direito penal do autor nos dias atuais relacionada ao pensamento de Lombroso. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862& revista_caderno=3>. Acesso em: fev. de 2017. 20 ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Direito Penal do autor ou Direito Penal do fato? Disponível em <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal- do-autor-ou-direito-penal-do-fato>. Consultado em: 05 de fevereiro de 2017. http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3 http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3 http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3 https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato 90 executou, a ignorar todas as opressões estruturais que perpassam aquela situação. E isso acarreta uma desumanização da(o)s julgada(o)s, pois a mera qualificação prévia ao interrogatório, por exemplo, não se mostra suficiente para que seja enxergado o indivíduo em sua plenitude e complexidade. O Poder Judiciário está então a tropeçar no mito da igualdade21. Ao fragmentar e simplificar os sujeitos a condutas passíveis de mera tipificação penal, são colocados entraves a um exercício mínimo de empatia22. Nesse sentido, a alteridade é um exercício que precisa ser levado em conta quando da realização da atividade jurisdicional, justamente pela questão de análise de prova quando averiguada a credibilidade e verossimilhança dadas aos ditos das pessoas acusadas. E nenhuma dessas reflexões vão de encontro ao dever de imparcialidade da pessoa julgadora23. Pelo contrário, justamente devido à incapacidade de analisar com a mesma ausência de preconceitos as teses acusatória e defensiva, encontra-se a impossibilitar o alcance da esperada imparcialidade. Tais preconceitos se concretizam na pré-disposição a 21 “Uma nova forma de hierarquia se estabelece, desta maneira, sob a forma de uma sociedade individualista e administrativa. Se todos se tornam juridicamente iguais, elas vêm a ser igualmente dominados por uma instância que lhes é superior. A uniformidade, a igualização e a homogeinização dos indivíduos facilita o exercício do poder absoluto em vez de impedi-lo.” WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Sequencia, 3(5): p. 40. 1992. 22 Entendo por empatia o exercício de tentar se colocar no lugar da outra pessoa. Tentar “vestir” suas vivências a fim de enxergar e sentir como a pessoa vê e sente as experiências que a atingem. É o esforço de abdicar dos preconceitos e dos julgamentos morais para entender a realidade subjetiva da outra pessoa. 23 “Mais adequado conceituar imparcialidade como um princípio supremo do processo (...), pois dela decorre uma vinculação da conduta dos magistrados, que devem comportar-se na condução do processo como terceiros alheios aos interesses das partes” MAYA, André. Imparcialidade e Processo Penal, da Prevenção da Competência ao Juiz de Garantias. São Paulo: Atlas, 2014, p. 102. 91 tratar como inverídicas as versões defensivas, sempre dando maior peso aos ditos testemunhais dos policiais militares24, os quais, por exemplo, na visão majoritária das pessoas julgadoras, “jamais teriam motivos para faltarem com a verdade”. E tal contexto, ao fim e ao cabo, fere frontalmente o princípio da presunção de inocência25. Portanto, o exercício da alteridade é um requisito necessário para que a atividade judicial não acabe imersa em um alheamento à realidade. Ocorre que a dificuldade de conseguir se colocar no lugar da outra pessoa se deve a algumas causas, sendo as principais: a fundação epistemológica do próprio direito (já exposta no eixo I), a grande demanda de processos, a forma do ensino jurídico e a organização da lógica do poder judiciário. Em primeiro lugar, o distanciamento entre as pessoas julgadora e julgada é causado pela excessiva quantidade de processos que cada juiz(a) compete analisar. Com isso, criam-se mecanismos de julgamento 24 Sobre o assunto: “Mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas têm apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. O problema, para quem estuda a área, é que prender e condenar com base, principalmente, em depoimentos de agentes viola o contraditório e a ampla defesa, tornando quase impossível a absolvição de um acusado.”. RODAS, Sérgio. 74% das prisões por tráfico têm apenas policiais como testemunhas do caso. Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas- policiais-testemunhas>. Acesso em: fevereiro de 2017. 25 “Trata-se, como afirmou Luigi Lucchi, de “um corolário lógico do fim racional consignado ao processo” e também a “primeira e fundamental garantia que o procedimento assegura ao cidadão: presunção juris como sói dizer-se, isto é, até prova contrária”. A culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa - ao invés da inocência, presumida desde o início - que forma o objeto do juízo”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Prefário da 1. ed. italiana, Norberto Bobbio. - 4. ed. rev. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pg. 505. http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas92 que buscam simplificar os contextos26, além de haver uma abstração das consequências concretas de cada decisão. Há também certa desumanização intencional das pessoas julgadas, para que seja humanamente possível lidar com o peso das decisões judiciais aplicadas, principalmente quando se está decidido sobre suas liberdades. Com o passar do tempo, a atividade discricionária de aplicação da pena27 acaba sendo unicamente uma proporção abstrata, e não anos de vida em que alguém permanecerá enjaulado em condições extremamente insalubres. E, com feito, isso é estruturado pela forma com que se dá o ensino jurídico. Para mudar tal aspecto, necessária não somente a revisão dos currículos dos cursos de direito, mas urge que se faça toda uma revolução da forma pela qual o conhecimento é construído dentro dos pomposos muros das faculdades de ciências jurídicas. Para demonstrar tal urgência, calham as valiosas reflexões de Boaventura de Sousa Santos28: 26 Evidente exposição da generalização e da simplificação dos casos judiciais é a forma cada vez mais recorrente que os Tribunais Superiores vêm julgando casos com repercussão geral, limitando demais tribunais a realizarem maior análise das especificidades do caso em concreto. 27 “Conceito de fixação de pena: trata-se de um processo judicial de discricionariedade juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e reprovação da infração penal. O juiz, dentro dos limites estabelecidos pelo legislador (mínimo e máximo, abstratamente fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se do seu livre convencimento (discricionariedade), embora com fundamentada exposição do seu raciocínio (juridicamente vinculada)”. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 11. ed. rev., atual e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pg. 414. 28 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. - 3. ed. - São Paulo: Cortez, 2011, pg. 86-87. 93 O paradigma jurídico-dogmático que domina o ensino nas faculdades de direito não tem conseguido ver que na sociedade circulam várias formas de poder, de direito e de conhecimentos que vão muito além do que cabe nos seus postulados. Com a tentativa de eliminação de qualquer elemento extranormativo, as faculdades de direito acabam criando uma cultura de extrema indiferença ou exterioridade do direito diante das mudanças experimentadas pela sociedade. Enquanto locais de circulação dos postulados da dogmática jurídica, têm estado distantes das preocupações sociais e têm servido, em regra, para a formação de profissionais sem um maior comprometimento com problemas sociais. Nesse prisma, é a defesa do fortalecimento das atividades de extensão29, as quais são justamente aquelas que possibilitam haver uma maior pluralidade e diversidade de saberes, além da troca de conhecimentos entre estudantes da academia e a sociedade como um todo. Primordialmente, os núcleos de assessorias jurídicas populares buscam que eixos socialmente marginalizados tenham acesso à justiça, atuando na promoção e efetivação de direitos humanos e acesso à justiça, a proporcionar que a Universidade cumpra sua função social. No Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRGS)30, por exemplo, a elevada atuação das e dos estudantes na extensão direciona “seus 29 Constituição Federal/1988: art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. 30 Programa de extensão voluntário, pautado em protagonismo estudantil, em que as pessoas participantes atuam com o objetivo de proporcionar acesso à justiça a pessoas em situação de hipossuficiência socioeconômica. O SAJU/UFRGS atualmente conta com vinte grupos, cujas temáticas se especificam para melhor atender as demandas sociais. 94 conhecimentos para uma atividade jurídica de cunho social, reflexiva, crítica e transformadora da realidade.31 No entanto, o que se vê, em regra, é o oposto disso: o fomento da perpetuação de uma “bolha acadêmica”, a qual é distante e alheia à causas, controvérsias e reivindicações sociais. Como dito anteriormente, por este âmbito historicamente ser construído por pessoas advindas de camadas mais favorecidas social e economicamente, impera o esforço para manter o alheamento ao que Boaventura denomina de fascismo del apartheid social32. O ensino jurídico dialoga com casos tão simplórios que não dão conta da materialidade dos casos reais. Reflexo disso é que no próprio Poder Judiciário os conflitos sociais são simplificados à nível de meras demandas jurídicas, acarretando uma fragmentarização do indivíduo, o qual deixa de existir e de ser visto em sua humanidade e complexidade, passando a ser enxergado como um objeto, um case, uma lide. Da necessidade de se lidar com um conflito real de uma relação social, passa-se a trabalhar com as folhas dos autos, com números de processos. 31SAJU: Breves apontamentos e suas tendências. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/saju/sobre-o-saju/historia-1>,. Consulta em: 19 de fevereiro de 2017. 32 “Es decir, la segregación social de los excluidos a través de la división de ciudades en zonas salvajes y zonas civilizadas. Las zonas salvajes son las zonas del estado de naturaleza de Hobbes. Las zonas civilizadas son las zonas del contrato social, y viven bajo la amenaza constante de las zonas salvajes. Para defenderse a sí mismas, las zonas civilizadas se convierten en castillos neofeudales, enclaves fortificados que son característicos de las nuevas formas de segregación urbana: urbanizaciones privadas cerradas, comunidades valladas. (...) En relación al Estado, la división agrega un doble criterio de acción estatal en las zonas salvajes y civilizadas. En las zonas civilizadas, ek Estado actúa de forma democrática, como un Estado protector, incluso si en ocasiones es ineficiente y poco fiable. En las zonas salvajes, el Estado actúa de una manera fascista, como un Estado predador, sin ningún respeto, ni siquera en aparencia, por el Estado de derecho.” SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología jurídica crítica - Para un nuevo sentido común en el derecho. p. 560. http://www.ufrgs.br/saju/sobre-o-saju/historia-1 95 Impera uma “cultura normativista técnico-burocrática”33. No pertine a esta discussão, Daniel Achutti34 assim se refere quanto à obra de Nils Christie: (...) as cortes penais, ainda segundo o autor, possuem uma mensagem escondida para a população: ao trabalhar por meio de um sistema simplificador, os tribunais transmitem a ideia de que “atos, bem como pessoas, podem e devem ser avaliados através de dicotomias simplistas”, com a consequente redução ao mínimo possível de elementos a serem considerados relevantes em um julgamento. Também não há como deixar de mencionar a relevância de políticas públicas de inclusão social e ações afirmativas nas pautas aqui tocadas. Não somente no que concerne ao acesso às universidades, mas também nos concursos públicos, políticas de caráter de compensação histórica se mostram indispensáveis à acessibilidade destes espaços. Ou seja, devido à elitização da esfera jurídica - desde o seu ensino até a prática judicial -, vige um alheamento às causas sociais. Por restarem insuficientes e inadequados os mecanismos concretos de pluralização de tais meios, as e os operadoras/es do direito apresentam grande dificuldade de empatia com aquelas e aqueles que são majoritiariamente selecionadas/os pelo sistema de controle penal: pessoas marginalizadas econômica e socialmente. Ante a isso, urge que se revolucione, se politizee se humanize não somente o ensino jurídico, 33 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. - 3. ed. - São Paulo: Cortez, 2011, pg. 85. 34 ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal. - São Paulo: Saraiva, 2014, pg. 109. 96 mas também demais esferas do meio jurídico, o que, em verdade, possibilita o combate a esta dicotomia vigente: Por un lado, quienes encabezan secuencias de destrucción y de creación social - generalmente, grupos sociales pequenos, dominantes - se encuentran tan absorbidos en la mecanicidad de la secuencia, que perguntarse lo que hacen es, en el mejor de los casos, irrelevante, y en el peor, amenazante y peligroso. Por otro lado, la gran mayoría de la población que vive las consecuencias de una intensa destrucción y creación social está tan ocupada o pressionada para adaptarse, resistir, o simplemente sobrevivir, que no logra indagar y mucho menos responder a cuestiones complejas sobre lo que están haciendo y por qué. (...) éste no es un periodo conducente a la autorreflexión. Ésta probablemente está restringida a aquellos lo suficientemente privilegiados como para atribuirla a otros.35 EIXO III - Proposições reflexivas Face ao emaranhado de inquietações aqui expostas, forçosa a consolidação de constantes questionamentos e enfrentamentos por parte dos segmentos de resistência. A explanação de reiterados chamamentos, a fim de buscar a instauração de um estado de alerta permanente, visando esforços para que o fluxo não seja seguido. E o fluxo, sem dúvida, é a perpetuação da invisibilização das demandas de segmentos socialmente vulneráveis e a reprodução de violências: No curso de sua afirmação, a utilização das ferramentas jurídicas hegemônicas e o recurso a concepções alternativas não hegemônicas encontrará contradições, avanços e recuos e a realização do potencial emancipatório do direito dependerá não só de proatividade, mas também de resiliência e constante vigilância epistemológica.36 35 SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología Jurídica Crítica, p. 542. 36 SANTOS, Boaventura de Souza. Para um revolução democrática do Direito, pg. 68. 97 Assim sendo, o combate à falácia da neutralidade do direito é crucial, pois, como demonstrado, este mito está a serviço de poucos, os quais buscam se manter em posições de poder e de privilégio. O questionamento e desconforto devem ser constantes face à cultura hegemônica jurídica. Assim, busca-se demonstrar a necessidade não somente de resiliência, mas também de resistência e combatividade. Isto posto, principalmente em momentos políticos tal como o atual, com retirada de direitos sociais básicos e desmantelamento do Estado Democrático de Direito, a construção de uma lógica e uma práxis jurídicas antirracistas, feministas e de base são substanciais a uma perspectiva progressista. Com efeito, são muitas as pessoas irresignadas, as quais devem superar os sectarismos e atuar de modo conjunto, a fim de que esse âmbito socialmente tão relevante seja pluralizado, humanizado e politizado, tornando-o instrumento de transformação sócio-política. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal. São Paulo: Saraiva, 2014. ALVES, Dina. Rés negras, Judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640>. Acesso em: fevereiro de 2018. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640 98 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kushnir. - 1.ed. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142003000300008>, dezembro de 2003. Acesso em: junho de 2018. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016. FERAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Prefário da 1. ed. italiana, Norberto Bobbio. - 4. ed. rev. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. - 3. ed. rev., atual e ampl. - São Paulo: Atlhas, 2016. MAYA, André. Imparcialidade e Processo Penal, da Prevenção da Competência ao Juiz de Garantias. São Paulo: Atlas, 2014. MOTTA, Alessandra Costa da Silva. Uma análise sobre a aplicação do direito penal do autor nos dias atuais relacionada ao pensamento de Lombroso. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862 &revista_caderno=3>. 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Acesso em: 05 de fevereiro de 2018. http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3 http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3 http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674 https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato 99 RODAS, Sérgio. 74% das prisões por tráfico têm apenas policiais como testemunhas do caso. Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas- policiais-testemunhas>. Acesso em: fevereiro de 2018. SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. - São Paulo: Cortez, 2011. SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología jurídica crítica. 2. ed. - Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2009. http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas 100 PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE MEDO Fernanda Martins1 Augusto Jobim2 EX-POSIÇÃO Em tempos sombrios de naturalização da violência, sobretudo dos dispositivos de punição, em que o embrutecimento do pensamento toma protagonismo, orientado por uma “nova razão do mundo”3 ditada pelos auspícios neoliberais, a urgência radical de certa inteligência que enfrente a burrice do fanatismo mobilizado pelos fascismos como modo de vida atrofiado pelo medo se impõe. Um vazio reflexivo ganha eco, matraqueado pelo senso comum que, também em matéria penal, concretamente, não apenas franquia a morte emescala industrial operada pelo sistema penal, mas forja uma expansiva e permanente tecnologia de governo hábil à eliminação da diferença. Refletir, ainda que de maneira esparsa, mas comprometida com este estado de coisas, 1 Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo PPGD/UFSC, doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da UNIVALI. 2 Doutor em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor de Criminologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) da PUCRS. 3 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. 101 é mais que mera questão de engajamento, atualmente trata-se de ponto nevrálgico de sobre-vivência. 1 DEMOCRACIA COMO EXPERIÊNCIA DO IM- POSSÍVEL Diretamente ao ponto que propomos à reflexão: o que podemos dizer sobre o contexto de democracia que, supostamente como regime político, compartilhamos no ocidente? Ademais de relatar o sequestro que uma sociedade mercantil impinge, através de subjetividades arraigadas a um “ideal empreendedor de si”, aos atuais parâmetros democráticos, como propriamente poderíamos pensar a democracia através de novos impulsos? Necessário primeiramente que façamos a distinção tanto entre democracia real, como constituição do corpo político, e a democracia como mera técnica de administração das leis fetichistas da rentabilidade quanto também à democracia para além da sua subordinação à forma estatal. Cremos, ademais, nada auspicioso metermo-nos a apresentar receitas. Contudo, não podemos usar a democracia como paradigma se não dissermos como hoje a democracia tem-se portado. Para pensar em desconstruir de outro modo o conceito de democracia normalmente pintado, deve-se pensar uma diferença de natureza e não meramente de grau. Jamais se imiscuindo no deplorável espetáculo hipócrita do compromisso democrático falsamente despolitizado, urge (re)pensar neste viés uma democracia, agora por vir. Convite paradoxal, nunca cego ao apelo sedutor de algum regime político estreito, contudo que arrisca, para além da contingência de alterar as coordenadas do que 102 parece possível e poder dar condições a algo novo,4 sobretudo a resguardar como se5 possível fosse a radicalidade da abertura de um talvez im-possível6? Não estaríamos às voltas com tantos mal- entendidos sobre a democracia se não houvesse mesmo uma imperativa complexidade desconcertante no seu trato? Em todo o terreno, as complicações nunca se fazem por prazer, todavia fingir estar certo de alguma simplicidade onde ela não existe é postura por demais desaconselhada.7 Concedido algum espaço a isto, por fim, qual seria em parte o alcance político-democrático deste pensamento? O que se apõe é uma experiência aporética do impossível. Um pensamento radical de desconstrução8 em democracia, se é que isto pode-se dar, estaria longe de qualquer fatalismo niilista ou outra técnica menos eficaz de neutralização que possa apagar seu rastro, e ainda muito distante de algum método analítico. Esta hipérbole, imprevisível aposta, de maneira geral, muito mais comprometida estaria, sim, em desestabilizar propriedades estruturais que mantém unidos certos esquemas conceituais. Noutros termos, tratar-se-ia de suspender de maneira argumentada as hipóteses, pressuposições e as oposições 4 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Arriesgar lo imposible: Conversaciones com Glyn Daly. Traducción de Sonia Arribas. Madrid: Editorial Trotta, 2006. 5 DERRIDA, Jacques. Vadios: Dois Ensaios Sobre a Razão. Coordenação, Tradução e Notas de Fernanda Bernardo. Coimbra: Palimage, 2003, pp. 219 e 239. 6 DERRIDA, Jacques. “Como se fosse possível, “within such limits”...”. In: Papel- máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, pp. 258- 259. 7 DERRIDA, Jacques. “Em direção a uma Ética da Discussão” In: Limited Inc.. Tradução Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991, p. 161. 8 DERRIDA, Jacques. Mémories – pour Paul de Man. Paris: Galilée, 1988, p. 38 e DERRIDA, Jacques. Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo. In: Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; BASSAS, Javier (Orgs.). Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, p. 138. 103 diametralmente rígidas que identificam uma construção conceitual.9 Intervenção, pois, sobre identidades homogêneas, a qual não pretende negociar com seu objeto em troca de algum sentido ou significação, mas busca traços desconstrutivos que destotalizem totalidades autoinclusivas (não precisamos lembrar a totalizadora lógica que ostenta a democracia capital-parlamentar). De certo modo, estamos já pulsando sob o espaço que pode vir. Tudo aquilo que trazemos gira em torno, a rigor, em termos democráticos, de uma invocação por vir [à venir] da democracia – cada vez de novo, à-vez [tour à tour], e de uma vez por todas [une fois pour toutes]10 – num cenário urgente que não ignora o motivo que isto implica: não se pode querer ver vir o que permanece insistentemente por vir.11 Algo quiçá nada latente quando se afirmam comummente os argumentos sobre os horizontes democráticos não realizados, mas a serem alcançados como metas a serem perfectibilizadas teleologicamente. Falseiam as boas intenções, pois ainda estaremos sobre a miríade do cálculo, daquilo que se antecipa. E arrancar efetivamente a democracia para tocá-la radicalmente é ir além do mero círculo econômico (antecipações, projeções programadas de ideias reguladoras) que ainda tal lógica acaba por remeter. 9 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 251 (sobre os equívocos na sua acepção a parte da Destruktion heideggeriana, consultar p. 263, nota 4). 10 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 31. 11 DERRIDA, Jacques. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; BASSAS, Javier (Orgs.). Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, p. 70 e DERRIDA, Jacques. “Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento” (tradução de Piero Eyben). In: Revista Cerrados (Revista do Programa de Pós- Graduação em Literatura da UnB). Brasília: Vol. 21, nº 33 (2012), p. 244-5. 104 A democracia por vir (la démocratie à venir)12 com que lidamos não significa, tal qual escreve Derrida – é um de seus traços mais marcantes, ao contrário do que se poderia pensar – ser uma democracia futura que um dia será presente, pois diretamente uma democracia no sentido levantado nunca será presente, apresentável em si mesma, e tampouco subordinada a uma ideia reguladora kantiana. Ter esta aporia como base nos leva ao epicentro do conceito de democracia, em última análise, não como “regime político”, mas como a instância capaz de acolher a possibilidade de ser contestada, de se criticar e se aperfeiçoar indefinidamente. Esta indecidibilidade de base, novamente, não se inscreve num horizonte teleológico qualquer e leva a sério a aporia do demos que, segundo o filósofo franco-argelino, “(...) é simultaneamente singularidade incalculável de qualquer um, antes de qualquer ´sujeito´, o possível desfazer do laço social por um segredo a ser respeitado, além de toda cidadania, além de todo ´Estado´, na verdade de todo ´povo´, na verdade além do estado corrente da definição de um ser vivo como ser vivo ´humano´, e a universalidade do cálculo racional, da igualdade dos cidadãos perante a lei, do laço social de estar junto, com ou sem contrato (...).” 13 Vislumbra-se uma história a ser pensada de modo completamente alheiade qualquer horizonte, porque acredita na permanência do impossível. É nesta existência do impossível que a promessa da democracia se inscreve, logo a ordem do possível, de um ideal possível, não encontra domínio. Tal recurso que os próprios meios 12 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 96-7. 13 DERRIDA, Jacques. “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo com Jacques Derrida”. In: Filosofia em Tempo de Terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida. BORRADORI, Giovanna. Tradução Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 130. 105 tons (inclusive críticos) assumem quando falam sobre democracia corre o risco de tornar-se um álibi. Para nós, sucintamente, Derrida14 oferece reservas fundamentais a ela como ideia reguladora. No contexto kantiano, a ideia reguladora mantém-se na ordem do que é ainda virtual ou potencial, um possível infinitamente postergável, dentro de uma fórmula de poder nada livre de fins teleológicos. Reservadamente, em primeiro lugar, uma democracia por vir concentra seus esforços, como dito, sob o título do im-possível, uma heteronomia da lei vinda do outro. Im-possível, frise-se, que não é o inacessível, muito menos que eu possa postergar indefinidamente, pois me apanha num aqui e agora urgente da minha decisão, que não pode aguardar simplesmente no horizonte – injunção premente que, enfim, não pode ser idealizada. Portanto, por segundo, há uma responsabilidade que verticalmente se abate para ser feita, assimétrica à obediência de uma norma. Mesmo quando existe regra, por mais problemática que seja, sabe-se o caminho a tomar, não se hesita mais e, a rigor, mesmo a decisão já não decide mais nada, pois foi desdobrada pelos automatismos – o lugar da justiça ou da responsabilidade não mais se entrevê. Consequentemente, noutras palavras, a vinda singular do outro. Uma força fraca (nada segura, garantida ou coberta de sucesso), dirão alguns (com razão), para outros, apenas restará o equívoco de acusar tal faceta de uma abertura inescapável à fé messiânica. Àqueles, de fato, esta força vulnerável da alteridade comprova o limite da ex-posição incondicional ao que ou a quem vem e que vem afetá-la eticamente. Aos últimos – àqueles que em seus pobres registros de uma apropriada política democrática que consente apenas sobre aquilo que se sabe deve 14 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 164-168. 106 fazer, pelo dever e pela dívida – ressoaria sem dúvida ainda um chamado racional, mas de um outro lugar: o hiato de um espaço racional de uma fé hiper-crítica, desprovida de dogma ou religião, uma outra maneira de fazer a razão razoar.15 Pensar este encontro impossível com a democracia por vir – sob a égide do “agir como se”16, tal qual o performativo da acusatoriedade o qual viemos a desenvolver (ambos convocam-se longe de quaisquer idealizações e realizam-se a cada instante, responsavelmente desde uma heterogeneidade de ordem diversa) –, além de todo o mais, em contraste com as ambições político-reguladoras democráticas, facilita a pedagogia das chamadas figuras metonímicas do incondicional. Naturalmente, a mais importante delas para os nossos interesses, a qual cabe ao menos referir (ainda que sob o preço de alguma celeridade prejudicial), é a heterogeneidade e indissociabilidade da justiça e do direito.17 Se ingressamos a fundo no respaldo filosófico que o assunto da democracia envia, correlato aos trâmites jurídico-penais, não é senão para destacar algo aparentemente comezinho, mas que funda a questão: se direito e justiça apelam-se mutuamente, esta excede aquele. No entanto, a justiça mesmo excedendo não apenas o direito, mas a própria política, jamais deve ser rechaçada, subtraída ou preterida nesta convocação. Se há um núcleo que aquela desconstrução que propomos 15 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 93. 16 O tratamento mais aprofundado do tema pode ser lido em DERRIDA, Jacques. Dar la muerte. Traducción de Cristina de Peretti y Paco Vidarte. Barcelona: Paidós, 2006, p. 94-129. 17 Para tanto, indispensável referir o colóquio “Desconstruction and the Possibility of Justice” na Cardozo Law School em outubro de 1989 que dará origem, em parte, à obra DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 03-58. 107 (tanto à democracia quanto ao direito) encontra espaço, trata-se, ao mesmo tempo, do intervalo do seu próprio limite: a justiça. A justiça, como a possibilidade mesma da desconstrução, é o que ainda dará, não obstante, a autoridade do direito como possível exercício desconstrutor.18 É o desligamento deste espaço livre que se relaciona à singularidade incalculável do outro que faz, incomensuravelmente, a justiça exceder o direito, contudo nenhum impulso maior há ao devir da sua própria racionalidade jurídica. Enquanto, heterogêneos, como dito, justiça e direito apelam a sua indissociabilidade. Por isso, aquilo que a uma primeira vista poderia ser visto como uma condição (de justiça) importante (ninguém negaria), porém apartada diretamente dos escaninhos do processo penal (sintoma de alguma fraqueza envergonhada), deve sempre ser reconhecida conjunta e intransigentemente como sua exigência. É preciso à razão jurídica ver- se sempre às voltas com o cálculo e o incalculável – precisamente, é este transação impossível entre o condicional (direito) e o incondicional (justiça) que não se cansa de falar: “não há justiça sem apelo a determinações jurídicas e à força do direito, não há devir, transformação, história e perfectibilidade do direito que não apele a uma justiça que, não obstante, a excederá sempre”.19 Por mais que receemos, o cuidado nunca será demasiado diante da prudência necessária para que se evite a neutralização deste movimento. Nosso exercício sob o dispositivo inquisitivo – neste apartado em particular atravessado pela resistência aos blocos falsamente indesconstruíveis de uma democracia sequestrada pelo capitalismo – inclina-se em direção a 18 DERRIDA, Jacques. Força de Lei, pp. 27-8. 19 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 265. 108 este por vir, agora e urgente, de abertura radical a uma performance acusatória afeta a uma justiça, em seus termos, indissociavelmente jurídica. O desafio jurídico, e naturalmente da democracia, neste ponto, para não dizer da própria razão digna deste nome, em qualquer dimensão que a ela seja convocada, não poderá ter outra pedra de toque senão o irrenunciável momento decisivo de captar o incalculável no reino do cálculo. Para além da arquitetônica da razão, há racionalidades plurais que a põe sempre em crise, dignidade esta emprestada, indispensável e insuprimível de qualquer pensamento que se coloque incansavelmente avesso à neutralização do acontecimento, da alteridade singular e excepcional do que vem, incluso de quem vem, e sem a qual nada ocorre. Nada de idealismos e racionalismos transcendentes regidos sempre por teleologias – novamente, os entremeios democráticos e especialmente o “reino dos fins” no processo penal encontram-se francamente anêmicos a esta disposição –, pelo contrário, mas uma vinculação preocupada com o que há de mais concreto e radicalmente desafiador: “como articular esta justa incalculabilidade da dignidade com o indispensável cálculo do direito?”20 Como relacionar o singular com o universalizável? Tais considerações, para uma lógica especializada e propensa ao objetivismo reducionista, podem soar irresistivelmente estranhas, particularmentese esta racionalidade instrumental estiver rendida – querendo debater iludidamente com responsabilidade as questões candentes da esfera da política, da democracia e dos dispositivos criminais – às mesclas de certos pragmatismos (de perguntas e respostas 20 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 238. 109 fáceis) com os funcionalismos das mais variadas espécies – catalogadas, quase que por inércia, de “impossíveis” ou de “estéreis”, sem qualquer fundo prático. Para dizer o menos, pouco atentos estariam à assimetria insubssumível das regras jurídicas, tanto a uma justiça quanto a uma democracia por vir em si mesmas, sem que isto deixe radicalmente, contudo, de impor(tar) indissociavelmente um movimento impostergável da sua própria racionalidade. Assim, o idioma de uma democracia não poderia ver sua gramática reduzida meramente à contabilidade, nem a algum horizonte programável possível. A um tal pensamento não se conjugaria uma categoria mais justa do que o por vir. Porque se o possível em democracia fosse apenas o possível – não possível, seguramente e certamente possível – e acessível de antemão, já seria um possível sem por vir (sem vida). Por assim dizer, haveria uma democracia posta de lado, “segura da vida” – no sentido de seu desinteresse sobre ela, como se a contabilização e a calculabilidade no seu regime a tivesse colocado sob a lógica de qualquer “seguro de vida” – um programa causal de desenvolvimento sem desenrolar algum.21 Salvaguardar a democracia viria da invenção posta por uma escrita singular da razão democrática – instável, que incita e induz ao alcance da preferência do irredutível sobre o racional. Democracia razoável preferível ao racional – diferença frágil de uma língua precária – que, como aponta Derrida, se por um lado teria em conta a “contabilidade da justeza jurídica, (...) esforçar-se-ia também (...) em direcção à justiça.” O razoável da democracia não seria nada muito 21 DERRIDA, Jacques. Políticas da Amizade. Seguido de O Ouvido de Heidegger. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campos das Letras, 2003, p. 42. 110 diverso que “uma racionalidade que tem em conta o incalculável, para dele prestar contas, ali mesmo onde isso parece impossível, para o ter em conta ou para contar com ele, quer dizer, com o evento do que [ce qui] vem ou de quem [qui] vem.”22 Apenas uma democracia por vir, desafeta à banalização dos fetiches da alteridade, pode dar seu sentido e a sua racionalidade prática a todo e qualquer conceito de democracia, a toda e qualquer democraticidade, porque em sua grafia já seria o intervalo do outro lugar sem idade da democracia: democratic idade. Por isso o apelo: apelar a um pensamento do evento por vir, da democracia por vir, da razão por vir.23 A certeza de que deveríamos ter começado por aqui já não cede mais. Todavia, a tempo, haveria como deixar de fazê-lo, a todo custo, ao fim, como questão inicial? 2 ENTRE NÓS – PARA ALÉM DO MEDO Como pensar a democracia como a tarefa do impossível, de se calcular o incalculável, contar com o outro, sempre antes tendo-o em conta? Como lidar com a imprevisível e radical experiência de uma democracia por vir, principalmente quando lidamos com os agenciamentos maquínicos de um poder punitivo ao mesmo tempo repressivo, estigmatizante e seletivo e, sobretudo, configurador e canalizador de desejos violentos, dispositivo hábil a aniquilar qualquer futuro que não seja ditado pelo monopólio do medo? Como desatar estes nós, para a construção do que há de comum entre-nós? 22 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 276. 23 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 36. 111 Tal cumplicidade atravessa a partilha das angústias que tocam a inegociabilidade com o poder punitivo. Sendo assim, devem-se abrir sulcos no maciço dominante do conjunto do sistema penal. A esta economia que utiliza a aniquilação do outro ban(d)ido como combustível, opomos traços de momentos de vida e morte que se colocam tanto como memória inapreensível de um sofrimento surdo quanto inspiração ar-riscada de novos modos de viver a urgência de um pensamento sem medos. Este é o ritmo, a toada daquilo que procuramos ressoar neste trabalho, sempre premidos pelo aqui e agora das catástrofes que se acumulam sob a égide da violência punitiva. Ler nas entrelinhas as tragédias naturalizadas e su-portar o peso da responsabilidade ético-política é, antes de tudo, auscultar as estratégias capitais em seu mais rigoroso sentido. Deve-se buscar incessantemente, de forma mais específica, a fabricação de feixes, intersecções de tensores e extensores, construídos pela tentativa de questionar a opressão provinda e acalentada pelo poder punitivo. Portanto, provocar o diálogo pela perturbação da ordem punitiva fixada historicamente por uma lógica de segurança e medo. Tenhamos como convidada singular neste passo uma cena inspiradora de Nina Simone (documentário indicado ao Oscar do de ano 2016 “What happened, Miss Simone?”). A entrevista com esta figura ímpar, no ponto que nos interessa, apresenta sua condição singular de mulher. A partir de uma fala despretensiosa, há a demonstração da potência disruptiva de uma artista que conquistou um espaço predominantemente masculino do jazz norte americano. Assim, crucial, diante do inventário de questões que poderíamos retirar para os debates criminológicos, antever que estamos às voltas da indizível questão do 112 sofrimento humano. A interrogação feita a Nina é peremptória e aparentemente insuperável: “O que é ser livre para você?” (What`s free to you?). Nascida Eunice Kathleen Waymon em 1933 nos E.U.A., Nina teve formação musical para ser pianista clássica. No entanto, com a recusa do seu pedido de ingresso no Instituto de Música Curtis na Filadélfia, a artista transforma-se em Nina Simone para tocar em bares noturnos sem o conhecimento de seus pais. Como negra que transita pelos circuitos dominados por homens, a pergunta posta já bem conduz ao infinito diálogo sobre a ideia de liberdade. Sua resposta é arrebatadora e vai diretamente ao cerne daquilo que nos importa: “Ser livre”, diz ela “é só um sentimento. É como explicar a alguém como é estar apaixonado. Como você vai explicar para alguém que nunca se apaixonou como é amar? Você não pode fazer nem para salvar sua própria vida! (…) Liberdade é para mim: não ter medo. Não ter medo, mesmo!” Nina, ao dizer do desafio perene de viver sem medo encaminha aquilo que há de mais importante na não-resolução do problema de liberdade em meras dimensões formais: a subjetividade ética que deve lhe lastrear. Se quisermos fazer valer a pena, de fato, o problema da liberdade como sugerido na fala de Nina, defendê-la para além de simples identidades subjetivas, de mônadas dotadas de vontades individuais e de meras faculdades de agir postas contratual e ardilosamente sob fronteiras claras, bem ao perfil de democracias formais – liberdade(s) que terminam onde começa(m) a(s) do outro – nada, absolutamente nada se movimenta para fora da falácia. Enfim, deixar de ver a liberdade desta forma e transformá-la, como diz Ricardo 113 Timm de Souza24, na “condição vital da sobrevivência supraindividual dos múltiplos”, ou seja, consubstanciada em atos éticos que amparem em si mesmos a própria razão de ser da liberdade. Daí sim sua concretização para além da mera ideia: responsabilidade anterior à liberdade. Suscetibilidades que agora nos permitem falar numa liberdade ética transmutada sob a forma de responsabilidade pelo Outro. Escapar da patologia da totalidade carregada pelas lógicas da liberdade imunes com relação ao outro pressupõe encarar que todo o medo é medo do outro. A convocação posta com firmeza por Ninaé imperativa: liberdade é não ter medo. Medo este que é sempre do outro, outro sem o qual apenas a indiferença e a lógica do preconceito de todas as ordens (racial e de gênero em especial) poderão reinar. Todavia, não nos iludamos. E o alerta já foi dado pelo poeta moçambicano: “há quem tenha medo que o medo acabe”.25 Quiçá alguma loucura por justiça passe hoje pela libertação dos modos de determinação subjetiva em que nos encerramos, à condição de mostrar a viabilidade de se pensar um circuito de afetos que não tenha o medo como fundamento26. Talvez hoje, mais do que nunca, no mais arriscado desejo, a liberdade de não ter medo ressignifique olhares através das vidas que nos tocam. Resistindo em conjunto pelas lutas sempre urgentes e encarando radicalmente nossas autoimunidades medrosas, especialmente através do seu privilegiado acólito chamado 24 SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: Pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul: Educs, 2016, p. 145-152. 25 Intervenção “Murar o Medo” de Mia Couto nas Conferências de Estoril de 2011. 26 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 114 poder punitivo, talvez aí esteja a força motriz das oportunidades de viver uma vida radicalmente digna para além da violência, ainda mais possível sob novos tons da junção do querer viver para além do medo e a responsabilidade que há entre-nós. 115 A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE ESTUPRO: A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA Laura Gigante Albuquerque1 Fernanda Corrêa Osório2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente trabalho parte de uma verdadeira inquietação das autoras diante da fundamentação utilizada em decisões e acórdãos referentes a processos criminais – especialmente de estupro – para a responsabilização de mulheres, na modalidade comissiva por omissão, por crimes de estupro. A pesquisa volta-se primeiramente para a análise dos crimes omissivos impróprios e às suas peculiaridades, a fim de compreender como se dá a responsabilização penal do agente a partir da omissão. A seguir, passa-se a investigar de que forma a omissão imprópria vem sendo utilizada para operar-se a criminalização de mães em casos de violências praticadas contra os seus próprios filhos. Além disso, 1 Mestranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre/RS. Brasil. 2 Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora da Escola de Direito da PUCRS. Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da ESA/OABRS. Advogada. Porto Alegre/RS. Brasil. 116 entende-se essencial atentar para as práticas discursivas dos atores do sistema de justiça criminal – juízes, desembargadores, promotores, advogados –, e de que forma estes discursos3 refletem o pensamento de uma sociedade patriarcal4 em que estamos inseridos. No presente trabalho, a pesquisa se voltou à análise do discurso dos julgadores, em especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), sendo analisados acórdãos publicados entre os anos de 2000 e 2016 que tratassem da responsabilização criminal de mães através da figura da omissão imprópria. A fim de analisar as práticas discursivas, foi realizada pesquisa qualitativa de análise de discurso, buscando verificar de que forma o discurso e a prática do campo jurídico-penal reproduzem os estereótipos de gênero presentes em nossa sociedade. 1 OS CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE O INSTITUTO A responsabilidade penal a partir da omissão pode ser mais facilmente compreendida a partir da sua contradição em relação à responsabilidade pelos delitos chamados comissivos. Enquanto os crimes comissivos se revelam pela realização de uma ação humana, ou seja a realização da conduta proibida, os crimes omissivos caracterizar- se-iam pela “não-realização” de uma ação devida. 3 Na lição de Foucault (1998, p. 10), o discurso não é apenas aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que ou pelo que se luta: o poder do qual queremos nos apoderar. 4 “Numa sociedade de origem patriarcal, de herança escravocrata, o homem, o branco, torna-se a norma, o totalizante, e [a] linguagem além de designar coisas e objetos, será um modo de interpretação de mundo que atribuirá valores a determinados grupos como forma de (manter) poder ou de opressão” (Ribeiro, 2014, p. 459). 117 Os delitos comissivos, portanto, partem de uma ação positiva, e só poderiam ser praticados mediante a realização de um comportamento. Os delitos omissivos, por sua vez, somente se verificam através da omissão de uma ação determinada, ou seja, de uma não-ação, quando o agente era capaz de realizá-la (Prado, 2007, p. 317). Na lição de Juarez Cirino dos Santos: Desse modo, a ação seria uma realidade empírica reconhecível pelos sentidos; a omissão de ação não seria uma realidade empírica, mas uma expectativa frustrada de ação, somente conhecível por um juízo de valor. Nesse sentido, omitir uma ação não significa, simplesmente, não fazer nada, mas não fazer algo determinado pelo direito. (SANTOS, 2006, p. 198) Essa distinção entre ação e omissão ocorre porque o Direito Penal utiliza duas técnicas para a proteção de bens jurídicos (Santos, 2006, p. 200). A forma usual de proteção é quando a norma penal proíbe ações que podem lesar bens jurídicos. Excepcionalmente, no entanto, a norma penal ordena a realização de ações que protegem bens jurídicos. A omissão delituosa ocorrerá, portanto, quando da não realização de uma ação determinada pela norma penal, ou seja, quando houver violação a um comando ou dever de atuar (Prado, 2007, p. 322). Nas palavras de Fabio D’Avila, pode-se dizer que “enquanto nos crimes comissivos o agente viola uma norma proibitiva, nos crimes omissivos, a norma violada é preceptiva” (D’Avila, 2005, p. 202). Os crimes omissivos, que partem de um dever de agir, também se dividem em duas modalidades: a omissão própria e a omissão imprópria. A omissão própria é quando ocorre a violação a uma ordem de ação explícita, ou seja, quando o agente deixa de realizar uma conduta específica, como no delito de omissão de socorro: “deixar de 118 prestar assistência (...) à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo (...)” (artigo 135 do Código Penal). Pela omissão imprópria, o agente contribuiria para a realização de uma ação proibida, prevista nos tipos penais que seriam comissivos, por exemplo, “matar alguém” (artigo 121 do Código Penal). A realização do resultado morte poderá ocorrer, portanto, por uma omissão, e não por uma ação, sempre que o agente tinha o dever de impedir o resultado. Nos crimes omissivos impróprios, a ordem de realizar ações protetoras de bens jurídicos encontra-se implícita (Santos, 2006, p. 200), e não explícita em tipos legais, como no de omissão de socorro. Os crimes omissivos impróprios, também denominados crimes comissivos por omissão, têm por pressuposto a existência de uma posição de garantidor do bem jurídico, atribuída a determinados indivíduos (Santos, 2006, p. 200). Denominada por Jescheck como “causa jurídica especial” (Jescheck, 1993, p. 564), a posição de garantidor é o que gera um dever jurídico especial de agir para impedir o resultado proibido. Como descrito por Juarez Tavares: Diz-se, na verdade, que os crimes omissivosimpróprios são crimes de omissão qualificada porque os sujeitos devem possuir uma qualidade específica, que não é inerente e nem existe nas pessoas em geral. [...] Fala-se que essa relação especial do sujeito (qualificado) para com a vítima corresponde a um dever especial de proteção, diferentemente do dever geral de solidariedade dos delitos omissivos próprios. (TAVARES, 2012, p. 312-313) Sendo assim, os crimes omissivos impróprios são caracterizados por uma omissão dolosa ou imprudente de evitar um resultado previsto 119 como crime (morte, lesão corporal, etc), que somente pode ser atribuída ao agente que detinha a especial responsabilidade de evitar o resultado, ou seja, a pessoa que ocupa a posição de garantidor. O fundamento legal para a responsabilização penal por omissão é fornecido pelo § 2º do artigo 13 do Código Penal: § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Em relação à primeira hipótese, a pessoa que ocupa a posição de garantidor é aquela que, por lei, detém o dever de cuidado, proteção ou vigilância de outrem, tais como: a) superiores em relação a subordinados(as); b) ascendentes e descendentes entre si (principalmente os pais em relação a filhos(as) menores); e c) cônjuges, também em relação um ao outro (Tavares, 2012, p. 320-322). Assim, por exemplo, se os pais, mesmo sendo capazes, não impedem o afogamento do(a) filho(a) menor na piscina doméstica, responderão pelo resultado de morte (artigo 121 do Código Penal) em virtude da omissão, seja ela por dolo ou por imprudência (Santos, 2006, p. 201). Em tese, portanto, tanto a mãe quanto o pai encontram-se na posição de garantidores em relação aos(às) filhos(as) menores de idade para efeitos penais, pois ambos possuem dever de proteção, cuidado e vigilância para com a prole. A expressão “em tese” foi utilizada porque, 120 na prática, como procuraremos demonstrar a seguir, apenas as mães vêm sendo criminalizadas por este tipo de omissão de cuidado. Para além das diversas críticas dogmáticas que se podem fazer ao instituto da omissão imprópria, o enfoque aqui buscado é nas questões de gênero imbricadas na aplicação desta forma de responsabilização, em especial nas práticas discursivas reproduzidas no âmbito da justiça criminal. Quase exclusivamente são as mulheres que respondem penalmente nestes casos de delitos comissivos por omissão, sendo necessário analisar-se de que maneira as práticas jurídico-penais reproduzem discursos e estigmas relacionados aos papéis de gênero na sociedade. 2 A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER: UMA ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS JURÍDICO-PENAIS O local reservado à mulher na sociedade ainda é, predominantemente, o ambiente doméstico, familiar, privado. À mulher incumbem os papéis relacionados aos cuidados do lar e principalmente aos cuidados com os filhos, a sua educação e supervisão. Ainda que se tenha avançado muito em termos de igualdade de gênero, em especial no século XX, com os diversos movimentos feministas por igualdade, ainda hoje a mulher segue carregando o estigma da mãe, esposa, responsável pela esfera doméstica5, além de sofrer a imposição de padrões de feminilidade e passividade. 5 De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mesmo nos países em que a participação das mulheres no mercado de trabalho vem aumentando, elas ainda são responsáveis, em média, pelo dobro do trabalho doméstico e de cuidados 121 No que tange aos crimes omissivos impróprios, verifica-se que é a mulher quem assume o papel de principal garantidora em relação aos filhos menores, para efeitos do artigo 13, § 2º, alínea “a”, do Código Penal. Raramente se ouve falar de um caso em que o pai foi responsabilizado, por omissão imprópria, em razão de crime praticado contra o seu filho. Em relação às mães, pelo contrário, identifica-se uma tendência de culpabilização que vai além do senso comum da sociedade e ingressa na esfera jurídica, ou seja, na prática de responsabilização criminal. Entre os acórdãos analisados6, serão reproduzidos alguns trechos para demonstrar o discurso dos atores do campo jurídico que reproduzem os estereótipos de gênero dominantes na sociedade. No acórdão da apelação criminal n. 70055449326 (TJRS), tratou-se de denúncia pelo crime de atentado violento ao pudor, em que D.J.D. teria abusado sexualmente das filhas de F.R.R.M., com quem tinha um relacionamento amoroso. A mãe das duas vítimas e (não remunerado) do que aquele realizado pelos homens. Fonte: OIT. Mulheres no Trabalho: tendências de 2016, p. 68. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/--- publ/documents/ publication/wcms_457317.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2017. 6 Notas metodológicas: Considerando os limites de espaço e tempo do presente estudo, a pesquisa qualitativa foi realizada apenas no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A fim de analisar as práticas discursivas em torno da responsabilização de mães por omissão imprópria, foram analisados acórdãos publicados entre os anos de 2000 e 2016, contendo a expressão “omissão imprópria” ou a expressão “crime comissivo por omissão”, ambas relacionadas à palavra “mãe”. Foram encontrados 21 acórdãos na primeira chave de pesquisa (“omissão imprópria” e mãe) e 6 acórdãos na segunda (“crime comissivo por omissão” e mãe), sendo excluídos aqueles que tratavam de outros tipos de crimes de omissão imprópria, como por exemplo aqueles praticados por médicos. Os acórdãos pertinentes foram cuidadosamente lidos e tiveram alguns trechos selecionados para serem reproduzidos no presente artigo. Sabe-se que toda opção do(a) pesquisador(a) implica, por outro lado, em uma exclusão de demais dados que poderiam ser relevantes. A seleção dos trechos analisados no presente artigo teve a finalidade de demonstrar alguns discursos oficiais, por parte do Poder Judiciário, que reproduzem estigmas e papéis de gênero atribuídos às mulheres. 122 companheira do agressor foi denunciada pelo mesmo crime – atentado violento ao pudor – na forma da omissão imprópria, por ter-se omitido do dever de garantia em relação às filhas. Ao analisar-se o acórdão, destaca-se primeiramente a referência ao laudo psicológico realizado, que demonstra a culpabilização da mãe: “O laudo psicológico realizado em N.M.C [abreviei] conclui que: “A mesma relatou sintomas condizentes com a vitimização sexual que foi submetida (atentado violento ao pudor) [...]. Pode-se sugerir ainda que a adolescente foi exposta à situação constrangedora na infância, ficando vulnerável ao ter sua intimidade violada sexualmente e pela falta de uma mãe cuidadosa que acreditasse em seu pedido de ajuda na época que foi vítima de Abuso sexual. A mãe dizia que N.M.C [abreviei] era mentirosa e permitiu que seu companheiro a desmentisse. Pode-se sugerir que a Sra. F.R.R.M. [abreviei] foi negligente e passiva em relação à dinâmica incestuosa que seu companheiro mantinha com suas filhas (fls. 70/71 do inquérito).” (Trecho do acórdão da apelação n. 70055449326) O acórdão da apelação criminal também reproduziu extensos trechos da decisão que condenou a mãe acusada em concurso com o agressor. Pode-se extrair o seguinte trecho, da sentença de primeiro grau, que também demonstra um discurso moralizante por parte o magistrado de primeiro grau: “Neste quadro, é inequívoco que a genitora das vítimas manteve-se indiferente ante às atitudes libidinosas do acusadoMárcio, e, mesmo tendo a possibilidade de atuação, nada fez, não se importando com a situação vivenciada por suas filhas, embora o Direito lhe impusse agir.” (Trecho do acórdão da apelação n. 70055449326) 123 Por fim, na própria fundamentação do acórdão, destacam-se os seguintes trechos do voto do Desembargador relator, ao sustentar a responsabilidade da mãe: “Ressalte-se que a acusada, em depoimento à fl. 97, relatou que achou que casando ia viver, mas só foi viver mesmo aos 29 anos, quando foi fazer o curso supletivo e conheceu o réu. Disse que saía para ir ao colégio, mas, na verdade, ia se encontrar com o réu. O que desmente a versão do acusado de que não tinham nenhuma relação antes da separação, e corrobora o relato das vítimas de que dois ou três dias após a separação de seus pais, o acusado já estava dentro da casa das ofendidas. As vítimas disseram que a mãe saía muito à noite para dançar, e nessas ocasiões ficavam acompanhadas por babás, esclarecendo que Delmar a acompanhava nas festas, mas afirmaram que, a maior parte do tempo, quando a mãe saía, ficavam aos cuidados da irmã mais velha. Chama a atenção o comentário de Nathália ‘Minha mãe queria viver o tempo que ela não viveu’ (fl. 159v), o que não parece ser uma constatação infantil, mas uma frase muitas vezes ouvida. Importante referir que a pequena Vitória, irmã menor das ofendidas, ao ser avaliada por psicólogas disse ‘A Nati não teve infância, porque ela teve quer cuidar de mim e da Jé.’ (fl. 87), confirmando o relato das vítimas de que, muitas vezes, ficavam sozinhas aos cuidados de Nathália, então com 10 anos de idade. Não se está aqui fazendo julgamento moralista da ré, apenas analisando a alegação defensiva no sentido de que Flávia era uma mãe zelosa e que jamais deixava as meninas sozinhas, que não encontra respaldo na prova dos autos. (...) Não é aceitável que uma mãe, diante de tantos indícios, simplesmente se recusasse a acreditar nos relatos uníssonos de suas filhas. A prova dos autos evidencia que a ré optou, livremente, em manter uma relação com o acusado ainda que à custa do sofrimento de suas filhas menores. E mais, não satisfeita em ignorar os relatos e súplicas das crianças, ainda as constrangia impondo- lhes silêncio, dizendo que se contassem para o pai, o réu poderia matá-lo. Como conforto, as meninas apenas ouviram da mãe a orientação descabida de que tinham que esquecer, porque ‘ia passar’, e o relato de que sofrera tentativa de abuso na infância.” (Trechos do acórdão da apelação n. 70055449326) 124 Embora o próprio julgador afirme que não está realizando um “julgamento moralista”, percebe-se que a sua fundamentação jurídica não se dissocia do julgamento que faz em relação à conduta da acusada F.R.R.M.: parte-se, inevitavelmente, de uma avaliação do que se esperava dela no seu papel de mulher e de mãe. Por isso, a análise não recai apenas na quebra de um dever jurídico de garantia (o qual incumbe sempre a ambos os genitores). É necessário, para demonstrar a falha dessa mãe, ressaltar que ela “saía muito à noite para dançar”, que passou a ter um novo companheiro poucos dias após a separação, que “optou” por manter um relacionamento com o acusado “ainda que à custa do sofrimento de suas filhas menores”. Em última análise, as conclusões – muitas vezes disfarçadas de fundamentação jurídica – relacionam-se diretamente às constatações da psicóloga, ao afirmar, no laudo acima referido, que faltou às vítimas “uma mãe cuidadosa”. Na apelação criminal n. 70063826663 (TJRS), embora o desfecho tenha sido favorável à mãe acusada, observou-se que o voto divergente de um dos Desembargadores trouxe à tona algumas concepções morais e notadamente patriarcais, por mais que se saiba estarem incrustradas no imaginário social: “Com efeito, como mãe da ofendida, sua garante, era de se esperar que ela se pusesse de anteparo à barbárie, ao irracional, fosse o ombro consolador, o norte moral da situação. A culpa da ré, data vênia, afigura-se ainda maior do que a do padrasto, pois não foi ela movida pelo instinto irracional, incontido, de satisfação sexual, mas, diversamente, trouxe aos fatos elemento cerebral, pensado, racional de maldade, silenciando consciente e coniventemente com a sanha sexual irrefreada do réu (...).” (Trecho do acórdão da apelação n. 70063826663) 125 Para além do julgamento moral da mãe, que deveria ser “o ombro consolador, o norte moral da situação”, constata-se a referência ao “instinto irracional, incontido, de satisfação sexual” ao tratar do crime de estupro praticado pelo então padrasto da vítima. Trata-se de um discurso muito comum no âmbito do crime de estupro, o de relacioná-lo a um “instinto” de satisfação sexual, como uma forma de quase exculpar-se a conduta do agressor. De fato, como já bem observado por Vera Andrade (2005, p. 94), o senso comum policial e judicial não difere do senso comum social. Contudo, as pesquisas em torno dos crimes de estupro já há muito demonstraram que “não se trata de uma conduta voltada, prioritariamente, para a satisfação do prazer sexual (lascívia desenfreada)”, mas, sim, a um contexto de violência física, de controle e domínio (Andrade, 2005, p. 95-96). Na apelação n. 70050251891, houve a condenação da mãe D.M. por omissão imprópria em caso similar aos demais, por se tratar de crime de estupro praticado pelo seu então companheiro contra a sua filha. Ao tratar da responsabilidade penal da mãe, fundamentando a existência do dever de garantia que configurou o delito de estupro por omissão imprópria, o acórdão concluiu, em relação à conduta da mãe, que “mais lhe valia a companhia do criminoso do que a dignidade da filha”. Independente de eventual quebra do dever legal da mãe em relação à filha menor, verifica-se um evidente juízo moral, que extrapola os limites do julgamento dos fatos atinentes ao processo. Já no âmbito da apelação criminal n. 70011583234 (TJRS), houve a reforma da sentença pelo órgão colegiado e, portanto, a absolvição da mãe da vítima. De acordo com a denúncia, a mãe D.T.C.S. teria praticado o crime de atentado violento ao pudor por 126 omissão imprópria, em virtude dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticados pelo seu então marido contra a sua filha menor de idade. Embora o Tribunal tenha absolvido a mãe, chama atenção no acórdão o seguinte trecho reproduzido da sentença que havia condenado D.T.C.S.: “A omissão da mãe não é incomum nestes casos, mormente quando o marido exerce forte comando familiar, como geralmente acontece em cidades interioranas. Prova disso é que ela chegou a relatar para uma professora que estava sendo ameaçada de morte por A. Não é crível que D. não soubesse do que estava ocorrendo, pois se T. chegou a comentar os fatos com os colegas de escola, por certo, comentava com a mãe também. Esta, evidentemente, era pressionada pelo marido ou, no mínimo, fazia de conta que nada estava acontecendo, pois me custa acreditar que achasse tudo aquilo normal, no seu papel de mãe. (...) Pois, no caso dos autos, é certo que D. tinha um especial dever de cuidado, proteção e vigilância em relação à T., posto que é sua mãe. Ainda que o agressor direto fosse o seu próprio marido, tinha o dever jurídico e moral de dar um basta àquela situação, denunciando o fato às autoridades competentes, o que não se fez. (...) As ameaças que ela diz ter sofrido de A., ao meu sentir, não chegam a configurar uma coação moral irresistível, até porque tais fatos não foram bem explorados no decorrer da instrução. Tem-se, é claro, aquela impressão do que geralmente acontece, porém insuficiente para o reconhecimento da exclusão da culpabilidade. Tenho consciência da fragilidade que certas mulheres ainda apresentam em relação aos maridos, porém, na qualidade de mãe, o esperado era que D.rompesse quaisquer amarras, registrasse o fato na Delegacia de Polícia e exigisse providências. Isso se chama negligência.” (Trechos do acórdão da apelação n. 70011583234, com os nomes substituídos pela inicial). A referência expressa ao “papel de mãe” pelo magistrado de primeiro grau no caso acima analisado ilustra, de forma bastante 127 explícita, a influência dos já denominamos papéis sociais de gênero no pensamento e no discurso dos atores do campo jurídico. O lugar da mulher na sociedade (ainda) é o de zelar pelos outros, o de mãe “cuidadosa”, esposa dedicada. Ao ousar quebrar esses estereótipos, a mulher é duplamente condenada: pela sociedade e pelo Poder Judiciário. Os discursos jurídicos reproduzem, portanto, a opressão e estigmatização que as mulheres já sofrem em seu cotidiano na sociedade, independentemente de serem criminalizadas. Contudo, na esfera penal, “as opressões ficam ainda mais cruéis, pois a vida daquela mulher acaba por depender do olhar do julgador, que é um grande reprodutor de discursos patriarcais” (Castro, 2016, p. 175). Por outro lado, nas palavras de Rochelli Fachineto (2012, p. 358), a mulher ré paira num “não lugar”, na invisibilidade social, uma vez que a incidência de crimes cometidos por mulheres é demasiado pequena em relação aos crimes cometidos por homens, de forma que a mulher na condição de ré e de encarcerada é colocada neste “não- lugar”. De fato, uma das grandes críticas que se pode fazer ao sistema de justiça criminal é a ausência de atenção à mulher e às suas peculiaridades7. Considerando que o sistema prisional é um espaço essencialmente masculino, muitas vezes “as demandas básicas femininas são diminuídas a meros caprichos” (Souza; Santos; Mendes, 2015, p. 9). Dessa forma, a utilização, dos papéis de gênero pelos atores jurídicos, em especial dos estigmas ligados à categoria “mulher”, não 7 Como há muito já acentuado por Elena Larrauri (1994, p. 21-29) o direito penal trata as mulheres como os homens tratam as mulheres, pois ao próprio direito também são relacionadas as características do “masculino” (racional, ativo, objetivo). 128 se faz dissociada do meio social (Fachinetto, 2012, p. 397). Os papéis de gênero não são criados no campo jurídico, mas são por ele atualizados, ressignificados, a partir da estrutura social preexistente. Tampouco se pode considerar o discurso vinculado à estigmatização de gênero como uma prática consciente por parte do julgador, uma vez os preconceitos e mitos relacionados às mulheres fazem parte do habitus8 incorporado pelos atores jurídicos. Por fim, é importante perceber que o discurso não apenas reflete e representa a sociedade. Esta, a sociedade, também é modificada e construída pelos discursos (Figueiredo, 2014, p. 142). Em especial, quando se fala em discursos produzidos no campo jurídico, percebe-se a enorme força com que estes discursos podem influenciar a sociedade. De fato, o discurso produzido pelos atores do campo jurídico contribui “para a desigualdade de gênero no acesso à justiça, consolidando relações desiguais de poder, calcada em construções de gênero, criando e recriando estereótipos sobre comportamentos e maneiras de se portar de homens ou mulheres” (Fachinetto, 2011, p. 110). CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como tema central a figura dos crimes omissivos impróprios e a responsabilização penal das mães nos casos de crimes cometidos contra seus filhos menores. Dessa forma, em uma primeira abordagem sobre o tema e considerando os limites do presente 8 Habitus é conceituado por Bourdieu como “produto da incorporação de uma estrutura social sob a forma de uma disposição quase natural, frequentemente dotada de todas as aparências do que é inato, o habitus é a vis insita, a energia potencial, a força dormente, de onde a violência simbólica, em particular aquela exercida pelos performáticos, extrai sua misteriosa eficácia.” (Bourdieu, 2001, p. 205). 129 estudo, buscou-se demonstrar algumas práticas discursivas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que evidenciam como o campo jurídico segue reproduzindo estereótipos de gênero a partir dos papéis e estigmas provenientes da sociedade em geral. Em pesquisas futuras, pretende-se analisar também o discurso dos demais atores do campo jurídico (promotores de justiça e defensores públicos ou privados), através da realização de estudos de caso. Dessa forma, ao analisarem-se os casos com maior profundidade, será possível evidenciar também como a opressão de gênero se relaciona com outros tipos de opressão. Tendo em vista a seletividade do sistema penal, considera-se essencial que a análise das questões de gênero venha acompanhada de um estudo interseccional que revele as demais problemáticas que perpassam o fenômeno, como as opressões de raça e classe. Ao analisarem-se as práticas discursivas do Tribunal de Justiça gaúcho, já foi possível perceber como os estereótipos, mitos e papéis de gênero ainda estão implícitos e explícitos nas decisões, e reafirmam o local da mulher na sociedade: o papel dócil, frágil, de cuidadora. Ainda, como salientado em um dos acórdãos analisados, muitas vezes o discurso em relação à mãe pode ser ainda mais recriminador e repressor do que o julgamento em relação às atitudes do próprio agressor, ainda que se trate de crimes terríveis como o estupro. Por outro lado, não causa surpresa que a quase totalidade dos casos de responsabilização de genitores através da figura da omissão imprópria recaia sobre a mãe, e não sobre o pai. Um dos dogmas ainda muito difíceis de superar é o da distinção entre os papéis paterno e 130 materno9, pois a despeito dos avanços já conquistados em termos de igualdade de gênero e de poder familiar, a mãe permanece como a principal fonte de amor e de cuidado para o bebê: “amamentar, dar banho e comida, vigiar os primeiros passos, consolar, cuidar, tranqüilizar à noite... são gestos de amor e de devotamento” que recaem majoritariamente sobre a mãe (Badinter, 1985, p. 338). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, n. 50, p. 71-102, jul. 2005. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185>. Acesso em: 05 de junho de 2018. 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(...) o comportamento masculino semelhante, ao invés de gerar o mesmo ódio, ou no mínimo o mesmo furor argumentativo, é absorvido com absoluta naturalidade.” (BISPO, 2016, p. 31). 131 CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O dito pelo não dito: uma análise da criminalização secundária das traficantes na cidade do Recife. 192f. Dissertação (Mestrado em CiênciasCriminais). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, 2016. D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. FACHINETTO, Rochele Fellini. Homicídio contra mulheres e campo jurídico: a atuação dos operadores do direito na reprodução das categorias de gênero. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (Org.). Relações de gênero e sistema penal: violência e conflitualidade nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011, p. 107-136. FACHINETTO, Rochele Fellini. Quando eles as matam e quando elas os matam: uma análise dos julgamentos de homicídio pelo Tribunal do Júri. 421f. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, 2012. FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Discurso, gênero e violência: uma análise de representações públicas do crime de estupro. Language and Law / Linguagem e Direito, v. 1, n. 1, 2014, p. 141-158. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1998. JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: parte general. 4. ed. Tradução de José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993. LARRAURI, Elena. Una crítica feminista al derecho penal. In: Mujeres, derecho penal y criminología, 1994, p. 19-40. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/ 49465159_Mujeres_derecho_penal_y_criminologia>. 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Conforme dados divulgados em 2016 pelo do Sistema Integrado de Informação Penitenciária (InfoPen), em dezembro de 2014 a população carcerária brasileira atingiu o número de 622.202 presos, sendo que 55% tem entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% tem apenas o ensino fundamental completo. Dentre estes 1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER). 134 encarcerados, 28% são devido ao tráfico de drogas e 40% ainda não foram condenados. 2 Estes dados contrastam com a composição étnica brasileira, onde 50,7% da população é negra, ou seja, há uma visível disparidade. Mesmo não havendo distinção de classe entre os usuários de drogas ilícitas, a distinção existe nos métodos utilizados para combatê- las. Para Vera Malagutti Batista: A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas, permite- nos afirmar que o problema do sistema não é a droga em si, mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada perigosa. 3 Esta diferenciação aumenta em demasia o número de encarceramentos da juventude pobre. Percebe-se, pois, a inevitabilidade de considerar uma mudança na legislação vigente, visto que, segundo Salo de Carvalho: Apesar do reconhecimento mundial do fracasso desse modelo, importantes setores dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário reiteram a adesão ao punitivismo, cujos efeitos, nas últimas décadas, foram aumentar vertiginosamente os índices de encarceramento e criar barreiras à implementação de alternativas eficazes ao tratamento das pessoas que fazem uso problemático das drogas.4 2 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais- de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. 3Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.134. 4 Carvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 31 135 Enquanto assistimos muitos países considerados por alguns como desenvolvidos, até mesmo o que capitaneou a Guerra às Drogas5 darem grandes avanços nesse tema, no Brasil seguimos tentando aumentar a repressão e o proibicionismo que se mostra ineficaz há mais de 40 anos. 1 GUERRA ÀS DROGAS: A DISSEMINAÇÃO DO TERROR Em 1971, com a premissa de que as drogas ilícitas eram o “inimigo número um do país” o então presidente norte-americano, Richard Nixon, declarou pela primeira vez a famosa war on drugs. Rapidamente essa ideologia se alastrou pelo mundo e, notoriamente, pelo Brasil. A cultura de medo e terror, vendidos pela mídia e pelos políticos da época, fizeram a sociedade demonizar os traficantes e os usuários. A desumanização dos comerciantes de drogas somada com sensação de insegurança criou um cidadão que aceita essa guerra sem hesitar. Constituiu-se então uma ideologia de guerra, porém, uma guerra voltada às pessoas pobres e em sua maioria não-brancos, como bem pondera Maria Lucia Karam: A nociva, insana e sanguinária “guerra às drogas” não é efetivamente uma guerra contra as drogas. Como qualquer outra guerra, não se dirige contra coisas. É sim uma guerra contra pessoas - os produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas substâncias tornadas ilícitas. Mas, é ainda mais 5 A primeira declaração de “Guerra às Drogas” foi feita em 1971 pelo então presidente norte-americano Richard Nixon. 136 propriamente uma guerra contra os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os desprovidos de poder.6 Não há uma justificativa plausível e corroborada por estudos científicos para determinação de quais drogas são consideradas lícitas ou não. As consideradas lícitas são tão nocivas quanto asilícitas, “todas são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar dependência e causar doenças físicas e mentais. Todas são potencialmente perigosas e viciantes. Todas são drogas”7. A falta de argumentos embasados em dados aponta que o motivo que determina se uma substancia é ilícita ou não é puramente político. Desde a declaração desta guerra vivemos um ciclo de violência sem fim. O número de mortes violentas aumenta a cada ano no Brasil. Vemos nossas comunidades pobres sangrando todos os dias, reféns da violência comandada pelas redes criminosas e pela polícia. Todos os dias pessoas perdem suas vidas por causa desta guerra. Seja porque foram vítimas de balas perdidas, porque foram confundidas com traficantes, porque de fato eram traficantes, porque eram policiais em serviço, e por inúmeros outros motivos relacionados à esta insana repressão. A guerra às drogas no Brasil já matou e continua matando muito mais do que qualquer droga seria capaz. 6 KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement Against Prohibition, maio de 2012. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 7 KARAM, Maria Lúcia. Drogas: legalizar para respeitar os direitos humanos. Law Enforcement Against Prohibition, agosto de 2015. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 137 É inegável a influência midiática na disseminação dessa mistura de medo e ódio que mantém a guerra às drogas tão poderosa há tantos anos. O discurso de ódio das pessoas manipuladas por um senso comum faz com que esse debate tão importante permaneça inerte há muito tempo. Afinal, quem estamos tentando proteger? 2 POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL Em 2006, no Brasil, passou a vigorar a nova Lei de Drogas (11.343/2006), lei essa que mesmo extinguindo a pena de prisão para usuários, é uma das maiores culpadas pelo encarceramento em massa, principalmente dos mais desprovidos de recursos. A atual lei antidrogas não especifica a quantidade de droga que diferencia o usuário do traficante, desse modo, muitos usuários acabam sendo condenados por tráfico de drogas. Como sempre, os pobres, não- brancos e moradores da favela são os que mais sofrem as consequências desta legislação. Na prática a regra é simples: os brancos residentes de bairros de luxo são considerados usuários e os pobres residentes das favelas são considerados traficantes. São poucos os que têm o privilégio de serem tratados como usuários. Para a elite brasileira “as massas urbanas de trabalhadores, em sua maioria negros, vivendo nos morros, quilombados, constituem contingentes perigosos”8. Mesmo que a quantidade de drogas que caracterize um indivíduo como usuário ou traficante seja vago, a legislação prevê outros critérios com esse intuito, por exemplo, onde e como ocorreu a 8 Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 36 138 ação policial, as condições sociais e pessoais e também a conduta e os antecedentes da pessoa, como prevê o §2° do artigo 28 da Lei 11.343/2016. A ausência de critérios que especifiquem a quantidade de droga encontrada com a pessoa para que seja considerado o crime de tráfico é absurda, visto que o encarceramento em massa de usuários enquadrados como traficantes é uma das razões da superlotação do nosso sistema prisional. A realidade brasileira é que algumas gramas de maconha são o suficiente para fazer com que uma pessoa seja presa por anos. Décadas dessa guerra deixaram marcas profundas que não desaparecerão com facilidade. O Brasil tem hoje, em números absolutos, a quarta maior população carcerária do mundo, dentre eles, 40% são provisórios. O aumento constante do número de encarceramentos em nada diminuiu a violência nas ruas.9 O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Barroso reconhece que a atual legislação sobre o assunto causa um estrangulamento no sistema prisional brasileiro, apesar de não achar que uma simples descriminalização do consumo de drogas fosse resolver o problema: A crise no sistema penitenciário coloca agudamente na agenda brasileira a discussão da questão das drogas. Ela deve ser pensada de uma maneira mais profunda e abrangente do 9 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais- de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. 139 que a simples descriminalização do consumo pessoal, porque isso não resolve o problema. Um dos grandes problemas que as drogas têm gerado no Brasil é a prisão de milhares de jovens, com frequência primários e de bons antecedentes, que são jogados no sistema penitenciário. Pessoas que não são perigosas quando entram, mas que se tornaram perigosas quando saem. Portanto, nós temos uma política de drogas que é contraproducente, ela faz mal ao país.10 O Brasil sempre foi um país muito conservador e atrasado se comparado com “países de primeiro mundo”. O que acaba gerando mais problemas que poderiam ser evitados. São diversos os fundamentos para que as drogas sejam legalizadas no país, inclusive argumentos defendidos por estudiosos, porém ainda há quem, com discursos conservadores, reprima o assunto por interesses financeiros. Conforme analisa Jean Willys : (...) a criminalização não produz qualquer benefício à sociedade nem sequer naquilo que implicitamente promete. Alguns ingenuamente ainda acreditam que a simples proibição impede que alguém faça uso de alguma substância, mas está provado que isso não acontece. O consumo de drogas não se reduziu pela criminalização, mas aconteceu o contrário. E o que temos, então, é crime organizado, violência, corrupção policial, insegurança, milhares de mortes, criminalização de jovens das favelas e das periferias, presídios lotados onde esses jovens têm seu futuro aniquilado e drogas de má qualidade vendidas de maneira informal, sem controle, a pessoas de qualquer idade, em qualquer sítio e sem pagar impostos.11 A repressão não muda o fato de que o jovem da comunidade desamparado e esquecido pelo Estado verá na venda de drogas uma solução para mudar de vida, tampouco fará o jovem de classe média 10G1, Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por- trafico-de-drogas.ghtml>. Acesso em 13 de fevereiro de 2017. 11 Carta Capital, Legalizar as drogas. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/legalizar-as-drogas-2566.html>. Acesso em 13 de fevereiro de 2017. https://l.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fwww.cartacapital.com.br%2Fsociedade%2Flegalizar-as-drogas-2566.html&h=ATN4F2rSUOeDSZvby2os_2M8Mv3FNrWudm2q54zlThkqr0FF8bArNXNfsczK6_iQ59ve0Ig2hx-m5dwmYHJA_ulAFnMPhwNpIOtvHEQ9RyQay72XLzCgvxt9n3z9HXbC3spXMi78 140 parar de consumir. Com a legislação atual a tendência é que a população carcerária continue crescendo em ritmo acelerado, o que pode acabar por implodir o sistema prisional nacional, mas sem a contrapartida de diminuição da criminalidade, que pode até aumentar. Alicerçada em estereótipos e estigmas, a política de drogas no Brasil é um assunto que para grande parte da população deve ser tratado com a maior repressão possível, não havendo necessidade de debater sobre o assunto. 3 UM MUNDO LIVRE DAS DROGAS Essa idealização de que algum dia teremos um mundo livre das drogas, que deu origem a essa destruidora políticaproibicionista, não passa de uma utopia, tendo em vista que “drogas têm sido usadas desde a origem da história da humanidade”12. Hoje muitas substancias que alteram a psique humana (característica comum entre todas as drogas) são aceitas socialmente e usadas diariamente, como, por exemplo, cafeína e álcool. Como um Estado que não consegue controlar o tráfico dentro das prisões pode achar que existe uma forma de erradicá-lo fora dela? Os presídios brasileiros atualmente são controlados não pelo Estado, mas pelas facções e organizações criminosas que comandam e comercializam drogas mesmo que apenados. A corrupção dentro do próprio sistema carcerário faz com que os presos tenham acesso às 12 KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement Against Prohibition, maio de 2012. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 141 drogas dentro da prisão. É como se tirássemos o cidadão da rua para agradar a quem convém, mas não nos importássemos com ele tendo a mesma atitude lá dentro. Décadas de fracasso deveriam ser o suficiente para percebermos que esse modelo repressivo, definitivamente, não deu e nem dará certo. O fato é que a droga ilícita não deixará de existir. Para cada droga proibida surge outra mais barata e mais nociva, vide exemplo do crack, droga derivada da cocaína, com um custo muito mais barato e efeitos muito mais nocivos. No começo deste ano de 2017, presídios superlotados e comandados por facções, tiveram rebeliões que somadas resultaram na morte de mais de cem pessoas. Mortes cruéis que incluíram decapitações, esquartejamentos e carbonizações, cultura de violência esta que possivelmente foi adquirida dentro do próprio cárcere e que se estende às ruas. Se seres humanos são seres sociais, é natural que eles ajam de acordo com a sociedade na qual estão inseridos. Se inseridos em um ambiente onde a própria vida humana é desvalorizada, incluindo a sua, é natural que passem a desvalorizar a dos outros. Essa guerra por poder não afeta apenas os envolvidos com o tráfico de drogas, mas sim, toda sociedade, visto que, com o aumento de violência nas ruas, os não usuários também estão em perigo constante. Conforme lembra Luís Carlos Valois: “O legislador sequer imagina que a violência atribuída ao comércio das drogas tornadas 142 ilícitas só existe porque estas foram tornadas ilícitas, mas que na relação comercial em si não há qualquer violência. ”13. A máquina de violência da repressão está por todos os lados, e parte inclusive da polícia que deveria controlá-la. Vera Malaguti Batista, em seu livro Difíceis Ganhos Fáceis menciona que: O processo de demonização do tráfico de drogas fortaleceu os sistemas de controle social, aprofundando seu caráter genocida. O número de mortos na “guerra do tráfico” está em todas as bancas. A violência policial é imediatamente legitimada se a vítima é um suposto traficante. O mercado de drogas ilícitas propiciou uma concentração de investimentos no sistema penal, uma concentração dos lucros decorrentes do tráfico e, principalmente, argumentos para uma política permanente de genocídio e violação dos direitos humanos, contra as classes sociais vulneráveis (...)14 Os exorbitantes lucros obtidos com o comércio ilegal de drogas são um dos fatores que tiram também alguma justificativa econômica para o proibicionismo desta atividade. Com a ilegalidade do comércio de certos entorpecentes o estado provê às facções criminosas um monopólio com altas margens de lucro, mas sustentado por meio do uso de violência. Para garantir pontos de tráfico que oferecem altos potenciais de lucro, as redes criminosas utilizam de violência e investem em armamentos pesados para afastar potenciais concorrentes. 13VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. IBCCRIM. Setembro, 2016. 14 Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 36 143 Na teoria econômica sobre oligopólios, onde existem poucos ofertantes de um bem em certo mercado, a guerra se dá sobre o preço de produtos. No caso, analisando sobre o tráfico de drogas, a guerra perde seu sentido figurado e toma as ruas das comunidades pobres do Brasil. Se ao contrário de ser visto como um problema de segurança pública, o uso de drogas, hoje ilícitas, fosse tratado como problema de saúde pública (como é encarado hoje, por exemplo, o uso de álcool e tabaco) o Estado encontraria uma alta possibilidade de arrecadação nesta atividade que já existe de qualquer forma, mas onde todo dinheiro circula somente no mercado paralelo e ilícito. Uma mudança da forma como é encarado o problema de drogas no país resulta em uma boa justificativa econômica para o tema. CONSIDERAÇÕES FINAIS A guerra às drogas é um dos principais causadores de criminalização da pobreza no país. O que, de fato, aumenta a violência policial, principalmente nas periferias. Atualmente o Brasil tem a polícia que mais mata e mais morre no mundo. Temos uma polícia que além de ser mal paga é extremamente despreparada. Os policiais são preparados para “eliminar” os marginalizados e não para proteger a sociedade. “Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Como se espantar quando os policiais brasileiros torturam e matam? ”15 15 KARAM, Maria Lucia. Direitos Humanos, laço social e drogas: por uma política solidária com o sofrimento humano. Law Enforcement Against Prohibition, 144 A forma com que esses crimes são retratados pela grande mídia faz com que a sociedade aceite essas mortes partindo da premissa que “bandido bom é bandido morto” não importando a circunstâncias que ocasionaram esses homicídios. A população tem admitido essas mortes como se fosse algo inevitável para o combate do crime. A cor da pele e o endereço voltam a ser os principais quesitos na hora de decidir quem deve viver ou não. A cada notícia de que um jovem, negro e morador de favela foi morto surgem as especulações sobre os antecedentes da vítima, o que mostra como temos uma sociedade que justifica a morte daqueles considerado indesejados por ela. Não há problemas se um traficante é assassinado, pois ele é merecedor de violência e apenas mais uma estatística. O Brasil tem mais números de homicídios por ano do que países que estão em guerra. No Brasil, em um período de 4 anos, morreram 279 mil pessoas, enquanto que no mesmo período na Síria, país em guerra, morreram 256 mil16. A maioria dessas mortes tem uma relação direta ou indireta com a violência que a guerra às drogas proporciona. A abordagem policial seletiva é uma prova de como funciona a estigmatização das pessoas pobres, pois a ideia de que elas devem ser consideradas suspeitas, apenas por serem pobres e, em sua maioria negras, já deixa claro como a política antidrogas é seletiva e indefensável. Em pesquisa feita sobre drogas e a juventude pobre do novembro de 2011. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 15 de fevereiro de 2017. 16 G1, Número de homicídios no Brasil é maior do que o de países em guerra. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/10/numero-de- homicidios-no-brasil-e-maior-do-que-o-de-paises-em-guerra.html>. Acesso em: 13 de fevereiro de 2017. 145 Rio de Janeiro, Vera Malaguti Batista menciona que as palavras “atitude suspeita” são sempre utilizadas pelos policiais para justificar as abordagens daqueles que são marginalizados pela sociedade: “Analisando a fala dos policiais, o que se vê é que a ‘atitudesuspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo de ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres, pardos ou negros estão em atitude suspeita andando na rua, passando num táxi, sentados na grama do Aterro...”17 Como pode-se perceber “a guerra às drogas legitima a violência e as violações aos direitos humanos cometidas pelo próprio Estado contra os pobres, normalizando as mortes dos traficantes, ou dos supostos traficantes”18. A criminalização da pobreza tira os direitos fundamentais destas pessoas que têm suas casas invadidas pela polícia, passam por revistas sem autorização e são humilhadas diariamente, apenas por existirem e morarem em lugares considerados perigosos. Muito diferente dos moradores de condomínios de luxo, que mesmo tendo uma parcela de consumidores assíduos de entorpecentes não são sujeitados a nenhum tipo de constrangimento. O que é necessário que se entenda é que ser a favor de uma flexibilização da política de drogas, ou até mesmo ser a favor de uma eventual legalização delas, não é o mesmo que ser a favor das drogas. Ser a favor de políticas mais liberais em relação aos entorpecentes 17 Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 103 18 GENRO, Luciana. Guerra às drogas. 2014. Disponível em: < https://lucianagenro.com.br/2014/03/guerra-as-drogas/>. Acesso em: 19 de fevereiro de 2017. 146 considerados hoje como ilegais é um dos caminhos para que haja uma redução da violência e um alívio no sistema carcerário. Ser a favor do fim desta repressão contra comerciantes e usuários é compreender que o consumo da droga deve ser tratado como problema de saúde pública, não de polícia. Conforme salienta Salo: Não se trata de desconsiderar ou de minimizar os riscos e os danos individuais e sociais que podem decorrer do uso de drogas. Trata-se, ao contrário, de considerá-los em sua complexidade, fato que nos impede de crer na eficácia da solução pré-fabricada do direito penal.19 Afinal, quem esta guerra intenta proteger se estamos vendo nossa juventude morrer nas mãos de quem deveria protegê-la? Quem estamos tentando curar se estamos aprisionando pessoas em lugares que transformam suas vidas em verdadeiros infernos? Que violência visamos acabar se temos uma escola do crime disfarçada de prisão? Enquanto este assunto não for debatido até que a legalização e o controle sobre essas drogas passem a ser efetivos, o que nos resta é continuar acumulando estatísticas, famílias destruídas, vidas acabadas, chacinas e corrupção. A descriminalização das drogas, e a partir dela um estudo avançado sobre o comércio é o primeiro passo para o fim dessa violência descontrolada que, por enquanto, está longe de chegar ao fim. 19 Carvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 435. 147 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/populacao- carceraria-brasileira-chega-a-mais-de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2018. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. CARVALO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. G1, Número de homicídios no Brasil é maior do que o de países em guerra. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal- nacional/noticia/2016/10/numero-de-homicidios-no-brasil-e-maior-do- que-o-de-paises-em-guerra.html>. Acesso em 13 de fev. de 2018. 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Entre elas, adianta-se: a sua natureza inquisitiva, seu caráter sigiloso, sua indisponibilidade, sua dispensabilidade para a persecução penal, a obrigatoriedade de ser escrito, a sua oficiosidade e o seu aspecto unidirecional. Por fim, realiza-se uma crítica acerca da promulgação da Lei n.º 13.245/2016. 1Graduação. Pós-Graduação em andamento. Advogado. E-mail: leandro@leandrosoaresadv.com.br 150 Após, o segundo capítulo dedica-se a esclarecer, buscando referências no ordenamento jurídico-penal brasileiro, a questão em torno da razoável duração do inquérito policial. Defende-se, desde já, a existência de incidência do princípio da razoabilidade da duração do processo nos procedimentos investigativos, na medida em que a investigação preliminar que dura um tempo prolongado viola tal princípio fundamental. Por fim, realiza-se uma breve pesquisa jurisprudencial, visando firmar alguns entendimentos que podem ser encontrados no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acerca da razoabilidade de duração de um inquérito policial e suas diversas implicações. 1 INQUÉRITO POLICIAL BRASILEIRO: ELEMENTOS ESTRUTURAIS O inquérito policial é o conjunto de diligências comandadas por um delegado de polícia para a obtenção de elementos que apontem autoria e prova da materialidade de determinadas infrações penais. É um procedimento administrativo tendo em vista que a sua instauração prescinde de uma autoridade policial. Ademais, é um procedimento inquisitorial do qual se destina buscar informações para elucidar os mais diversos crimes. E por fim, não existe a ampla defesa2. Para Aury Lopes Jr., não se podenegar a necessidade do advogado, bem como a possibilidade de sua participação no 2 AVENA, Norberto. Processopenal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 151. 151 interrogatório do indiciado para sua defesa, conforme consagrado nos arts. 185, 186, 188 e seguintes do CPP3. Em regra, como é sabido, não existe o contraditório no inquérito policial. A exceção seria em relação ao inquérito policial instaurado com o objetivo de expulsão de estrangeiro, conforme o Estatuto do Estrangeiro, vez que o Decreto 86.715/1981, que regulamentou os dispositivos da Lei 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro), expõe uma sequência de etapas do qual se tem a possibilidade do contraditório, conforme os art. 102 a 105 do Decreto mencionado4. Nesse sentido, o inquérito policial é um conjunto de atos praticados pelo Estado – através da autoridade máxima da polícia civil, ou seja, um(a) delegado(a) de polícia – para apurar a autoria e materialidade (nos crimes que deixam vestígios) dando ao Parquet elementos que estruturariam, se necessário fosse, uma ação penal5. Ou seja, o inquérito policial é uma atividade realizada pelos órgãos do Estado após uma notícia-crime, a qual pretende averiguar a autoria e as circunstancias de um fato criminoso com o fim de dar início a ação penal ou, caso não haja elementos suficientes, seu arquivamento6. Nessa fase, o juiz deve permanecer alheio à qualidade da prova no curso do inquérito, somente intervindo para proteger violações ou ameaças de lesões a direitos e garantias individuais dos envolvidos, ou 3 LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 228. 4 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 152. 5 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 73. 6 LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90. 152 ainda para resguardar a efetividade da função jurisdicional, deste modo exercendo atos de natureza jurisdicional7. Deve-se destacar que nenhum processo penal terá início sem uma denúncia8 ou uma queixa9, que atende justamente o princípio da determinação prévia10. Esse princípio busca a verdade “sob pena de “navegar-se” sem rumo ou incorrer-se na maquiavélica devassa11”. Ou seja, para punir qualquer pessoa as sanções jurídicas devem estar determinadas em lei. Nesse sentido, tal princípio possibilita, com fins a dar limite ao poder de punir estatal, que “uma ação somente pode ser punida quando a punibilidade estiver determinada antes da ação a ser perpetrada12”. Colocada essas questões, sublinha-se que inquérito policial tem algumas características marcantes, que se lastreiam em sua natureza 7 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen Juris, 2009. p. 43. 8 É a existência de justa causa, onde há elementos mínimos de autoria e materialidade. Onde por sua vez, o Estado – Juiz menciona se existem possibilidades para dar início a persecução penal. (LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais. http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip- recebimento-denuncia-motivado acesso em 18/07/2017). 9 É quando “o particular é titular de uma pretensão acusatória e exerce o seu direito de ação, sem que exista delegação de poder ou substituição processual”, ou seja, atua unicamente em direito próprio. (LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 404). 10 Também conhecido como princípio da legalidade que é um dos princípios mais importantes da Constituição Federal. O referido princípio tem aplicação diferenciada para o Estado e para o Particular. Naquele tem o dever de fazer o que está determinado em Lei, para o particular esse pode fazer o que a lei não proíbe. (MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional. 1 ed. SP. Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 839). 11 TOVO, Paulo Cláudio. Opinião sobre investigação Criminal (CPI – assunto momentoso). Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.º 154 – setembro de 2005. 12 GIACOMOLLI, Nereu José; SILVA, Pablo Rodrigo Alflen. Direito penal e processo penal: estudos em homenagem ao Prof. Paulo Tovo. Porto Alegre: Sapiens, 2010. Artigo: O princípio da Legalidade no direito penal alemão: um exemplo a ser seguido(?) p. 278. http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado 153 inquisitiva, em seu caráter sigiloso, na sua indisponibilidade, na sua dispensabilidade para a persecução penal, na obrigatoriedade de ser escrito, na sua oficiosidade e no seu aspecto unidirecional. O procedimento inquisitivo do inquérito policial faz com que a figura do investigado fique a margem do direito de defesa, pois ainda não há uma acusação formal contra ele e sim uma averiguação realizada por um delegado de polícia13. Não existem regras determinadas para a instauração do inquérito policial. Conforme preceitua o art. 6º do Código de Processo Penal, não há dúvidas de que a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da prática de infração penal, deverá adotar uma série de procedimentos que tem por objetivo colher o maior número de informações sobre o fato delituoso ocorrido14. Quais sejam: ir ao local do crime, apreender objetos, colher provas, ouvir o indiciado, fazer acareações se necessário, enfim, uma série de procedimentos que visa a identificar a prova da existência do crime e o mínimo de indício de autoria. Importante mencionar que o art. 14 do Código de Processo Penal (CPP) permite que a autoridade policial, por seu próprio juízo, faça um valor sobre as diligências requeridas pelo indiciado, as quais, se consideradas impertinentes pela autoridade policial, poderão ser indeferidas, na medida em que a possibilidade de prejudicar o curso das investigações15. Com isso, reafirma-se: o inquérito policial é um 13 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 100. 14 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 100. 15 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 100. 154 procedimento inquisitivo, com o fim de obter elementos que sirvam de baliza ao oferecimento da denúncia ou de queixa-crime16. Outra característica do inquérito policial é que não esse não aceita a existência de uma investigação através do meio de expressão verbal. Todas as peças do inquérito policial serão por escrito e todas somente em um único processo, rubricadas pela autoridade (como preceitua o art. 9, do CPP). Os atos do inquérito policial devem ser reduzidos a termo para que exista segurança em relação ao conteúdo. Todavia, importante mencionar que o art. 405, § 1º, do CPP, diz que o registro do depoimento do investigado, indiciado, testemunhas e ofendido, sempre que possível, será feito a gravação magnética (inclusive audiovisual), sem a necessidade de posteriormente efetuar a transcrição dos depoimentos conforme art. 405, § 2º, do CPP17. Quando realizadas as investigações pela autoridade policial todo o material colhido deve ser documentado nos autos do inquérito, para que se possa ter uma reconstrução probatória dos fatos18. Já a unidirecionalidade do inquérito policial tem uma única finalidade: a de apuração dos fatos, não cabendo ao represente policial propagar nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como por exemplo que o investigado agiu em legítima defesa ou movido por violenta emoção ao cometer o crime de homicídio. Segundo Rangel, há “relatórios em inquéritos policiais quesão verdadeiras denúncias e 16 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 158. 17 REIS, Alexandre Cebrian Araujo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito processual penal esquematizado. Coordenador Pedro Lenza. 5ª edição. SP: Saraiva, 2016. p. 67. 18 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 102. 155 sentenças. É o ranço do inquisitorialismo no seio policial”19. Essa característica tem como atributo impedir que tal valoração ocorra. Além disso, vale destacar que não existe entre a investigação policial e o represente do Ministério Público relação de meio e fim, mas apenas de progressividade funcional. A polícia civil – vinculada ao Poder Executivo segundo o art. 144 da Constituição Federal – não tem compromisso algum com a acusação ou com a defesa. Tem a função preparatória de juntar elementos para dar substrato a eventual denúncia com elementos que constituam, se houver, uma justa causa para a ação penal20. A autoridade policial assegurará no âmbito do inquérito policial o sigilo necessário para a solução do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. O sigilo não abarca o membro do ministério público, nem a autoridade judiciária. O advogado pode acompanhar os autos do inquérito policial, porém, se estiver decretado judicialmente o sigilo na investigação, não poderá acompanhar a realização dos procedimentos21. Diferentemente do que ocorre em relação ao processo criminal, que rege pelo princípio da publicidade, o inquérito policial pode estar em sigilo no decorrer de uma determinada investigação. Muitas vezes o êxito das investigações está vinculado, em inúmeros casos, ao elemento surpresa nas diligências realizadas e ao fato de que as provas 19 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 103. 20 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro. Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada, 2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido- conceituado-forma-equivocada. Acesso em 17/07/2017. 21 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 159. http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada 156 obtidas durante o inquérito sejam produzidas no rumor dos acontecimentos, quando ainda não houve a oportunidade da pessoa a ser investigada tentar maquiar os fatos, como acontece regularmente na fase judicial22. No entanto, por vezes, o sigilo de uma investigação não permite a intromissão do advogado durante a fase investigatória, que está sendo feita sob total sigilo, já que, do contrário, a inquisitoriedade do inquérito policial ficaria prejudicada, bem com a própria investigação23. Inúmeras vezes a divulgação pela imprensa das diligências que serão efetuadas no âmbito de uma investigação frustra seu objetivo principal, que é a descoberta de prova da materialidade e autoria do crime24. A questão do sigilo no inquérito policial, principalmente no plano da atuação dos advogados, se revela às vezes um verdadeiro embate entre o advogado e a autoridade policial. Aquele quer o livre exercício profissional enquanto esse exerce o poder do Estado25. É muito comum, portanto, a Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil receber reclamações de advogados que foram impedidos, quer pela autoridade policial ou por algum agente de polícia, de examinar autos de inquérito policial na delegacia ou até mesmo conversar reservadamente com seu constituído. A súmula vinculante nº. 22 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 159. 23 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 103. 24 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 103. 25 D`URSO, Luiz Flávio Borges. O sigilo do inquérito policial e o exame dos autos por advogado, 2004. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo- O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado. Acesso em 17/07/2017. https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo-O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo-O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado 157 14, do Supremo Tribunal Federal, é clara em prever que os elementos de prova que o advogado tem direito, no curso da investigação criminal, devem ser as documentadas e não aquelas que ainda serão realizadas e que necessitam do sigilo necessário à sua consecução26. De outro lado, no âmbito do inquérito policial, o delegado de polícia pode determinar ou postular, com discricionariedade, todas as diligenciais que achar necessárias aos desdobramentos dos fatos. Isso nos indica que após a instauração do inquérito policial, a autoridade judiciária possui autonomia para decidir acerca das providências que deseja tomar acerca da investigação27. A autoridade policial, quando iniciado a investigação, não fica atrelada a nenhuma forma previamente determinada. A autoridade tem a liberdade de agir, para a averiguação do fato criminoso, dentro dos ditames estabelecidos em lei. Importante dizer que discricionariedade não é arbitrariedade. Essa última é a capacidade agir sem qualquer abrigo da lei28. Por fim, no ano de 2016 foi promulgada a Lei n.º 13.245/2016. Com ela, ao contrário do que se pensou, o inquérito policial não deixou de ser inquisitivo. A nova lei não conferiu caráter acusatório ao inquérito policial. A falta de poder requisitório do advogado na fase investigativa intensifica a continuidade da característica inquisitorial do 26 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 105. 27 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 159. 28 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 106. 158 inquérito. Da mesma forma não se pode ignorar que a eficácia da polícia civil em grande parte está ligada ao fator surpresa29. Aury Lopes Jr. diz que mesmo com o aumento da presença do advogado no inquérito policial, fortalecendo a defesa e o contraditório, não há supressão do caráter inquisitório do inquérito. A presença do advogado no interrogatório do indiciado é em geral pacífica por parte das autoridades policiais. Assim, a Lei 13.245/2016 veio apenas reforçar essa prerrogativa já prevendo a 'nulidade absoluta' dos atos quando barrada pela autoridade policial30. 2 RAZOABILIDADE NA CONCLUSÃO DO INQUÉRITO POLICIAL NO BRASIL: ELEMENTOS DOGMÁTICOS Sabe-se que a Emenda Constitucional n.º 45 de 30 de dezembro de 2004 criou, explicitamente, no ordenamento jurídico brasileiro, a garantia da duração razoável do processo31. Essa emenda foi imposta pelo legislador constituinte através do inciso LXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal: “[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 29 COUTRIM, Eujecio Lima Filho. Lei nº. 13.245/16 e o caráter inquisitivo do Inquérito Policial,2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no- 13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial. Acesso em 22/05/2017. 30LOPES, Aury Jr. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter“inquisitório” da investigação, 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite- penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao. Acesso em 17/07/2017. 31 BARBOSA, Ruchester Medeiros. Investigação criminal também deve cumprir prazo de duração razoável, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015- nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao- razoavel#_edn2, acesso em 27/06/2017. https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no-13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial.%20Acesso%20em%2022/05/2017 https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no-13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial.%20Acesso%20em%2022/05/2017 http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-razoavel#_edn2 http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-razoavel#_edn2 http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-razoavel#_edn2 159 Para Alexandre Morais da Rosa, a garantia da duração razoável do processo consagrada na Emenda Constitucional nº 45 não se trata de algo inédito, dado que já discutida em diversos âmbitos, especialmente na Europa32: “Na verdade, prometer-se a duração razoável sem medidas compensatórias é o mesmo que se prometer amor. Para além do Direito (ao amor ou à duração razoável do processo) é preciso estabelecer-se as garantias”33. Para Aury Lopes Jr., em que pese, o Código de Processo Penal fazer menção a diversos limites de duração dos atos (arts. 400,412, 531 etc.), infelizmente não retira a crítica, pois, são prazos sem nenhum tipo sanção.34 Sem contar que essa garantia constitucional, consagrada agora no ordenamento jurídico brasileiro, vem mencionada na Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH)35 do qual o Brasil ratificou e assumiu o compromisso de cumprir em todo território nacional, bem como todas as instituições, poderes, todos os agentes públicos e os cidadãos36. Deste modo, importante registrar o artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos: 32 ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor, 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul- 18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor. Acesso em 27/06/2017. 33 ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor, 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul- 18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor, acesso em 27/06/2017. 34 LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 188. 35 LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 187. 36 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo pemal. Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. Cases da Corte Interamericana, do Tribunal Europeu e do STF. SP: Atlas, 2014, p. 07. http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor 160 Artigo 8º – Garantias judiciais: 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Sem grifos no original. Nesse sentido, Lechenakoski diz que existe a incidência da razoável duração do processo nos procedimentos investigativos com base na Emenda Constitucional nº. 45/2004, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe referência expressa ao referido princípio da razoável duração do processo, consagrado no art. 5º, LXXVIII37. Por fim, a investigação criminal que dura um tempo demasiadamente prolongado pode não incidir no prazo da prescrição do crime, porém ocorrendo a violação do preceito fundamental da razoável duração do processo38. No ordenamento infraconstitucional brasileiro consta que o inquérito policial deverá ser encerrado e encaminhado ao juiz competente no tempo hábil de 10 (dez dias) estando o indiciado preso em flagrante ou preventivamente e, quando solto, mediante fiança ou 37 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 38 LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A razoável duração do processo X prescrição retroativa após alteração da Lei 12.234/2010, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao- retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno- lechenakoski/#_ftnref3, acesso em 27/06/2017. http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3 http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3 http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3 161 sem ela, terá a autoridade o prazo de 30 (trinta) dias. Segundo o Código de Processo Penal: Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela. Algumas variações da regra geral: no âmbito da Justiça Federal, o prazo é de 15 dias, se o acusado estiver preso, podendo ser prorrogado por mais 15 dias, conforme art. 66 da Lei 5.010/66. Sendo o acusado solto, o prazo segue a regra geral do qual será de 30 dias39, ou seja, seguindo o dispositivo do art. 10 do Código de Processo Penal. Com o advento da Lei nº. 11.343/2006, que trata sobre o tráfico ilícito de entorpecentes, o prazo de conclusão do inquérito policial é de 30 dias, conforme art. 51 da referida lei, quando o acusado estiver preso. Independentemente se o crime ocorreu em território brasileiro ou no exterior o prazo se manterá40. E de 90 dias se o acusado estiver solto. Conforme o parágrafo primeiro do art. 51 os prazos podem ser duplicados mediante pedido justificado41. Quando tratamos de crimes dos artigos 28, 33, § 3º e 38 da Lei 11.342/2006, não existe o inquérito policial, tendo em vista que são infrações de menor potencial ofensivo, tornando-se assim objeto da 39 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen Juris, 2009. p. 48. 40 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas,2017. P. 115. 41 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen Juris, 2009. p. 48. 162 lavratura de termo circunstanciado42. O termo circunstanciado está regulamentado no art. 69 da Lei nº. 9.099/95, a qual preceitua: Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. No âmbito dos crimes contra a economia popular – Lei n.º 1.521/1951 – a previsão é que inquérito policial seja finalizado em 10 dias, não importando se o investigado está preso ou solto (art. 10, § 1º)43. Já no inquérito policial militar, em consonância com o Código de Processo Penal Militar, o prazo de finalização é de 20 dias, se preso o investigado, e de 40 dias, prorrogáveis por mais 20 dias, se solto (art. 20 do Decreto-lei 1.002/1969)44. Lembrando que se o indiciado estiver solto o prazo tem como termo inicial a portaria de instauração do inquérito policial. Porém, se o indiciado estiver preso, o prazo terá como data inicial a dia efetivação da prisão. Por fim, inclui-se o dia do começo na contagem, não se prorrogando o prazo em hipótese alguma. Os prazos materiais têm a sua forma de contagem regrada pelo art. 10 do Código Penal, incluindo-se o dia do começo45. Estando o indiciado preso dentro do prazo previsto 42 RANGEL, Paulo; BACILA, Carlos Roberto. Lei de drogas: comentários penais e processuais. 2. Ed. SP: Atlas, 2014, p. 179. 43 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 193. 44 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 193. 45 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 190. 163 para a conclusão do inquérito policial e este ainda não concluído, é necessária sua soltura por constrangimento ilegal46. Não obstante, existe uma lacuna ainda não dirimida na lei processual penal quanto a finalização do prazo fixado em lei e sobre a existência de alguma sanção aplicada quando do prazo não for correspondido. Para Lopes Jr., quando o prazo não possui nenhuma sanção, tem-se a ineficácia do direito fundamental da razoável duração do procedimento47. E esses direitos são normas de conteúdo declaratório, previstos e consagrados na Constituição Federal. 3 RAZOABILIDADE PELA LENTE DO JUDICIÁRIO: UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL É consabido que a jurisprudência está presente para os advogados, juristas, doutrinadores e a sociedade de forma geral para fins de uma sensibilidade mais aguçada em torno da formação de uma mentalidade julgadora, norteando a todos, por vezes, a apuração de determinados casos concretos. Seu objetivo, na medida em que traz julgamentos já realizados, é dar embasamento para evitar que novas discussões acerca do tema sejam iniciadas. Por óbvio, vários casos têm decisões divergentes. Sendo assim, o Estado-Juiz, analisando o caso concreto, dará a melhor solução pela sua livre convicção e pelas provas produzidas durante a instrução processual. 46 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. p. 191. 47 LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 193. 164 Na Sétima Câmara Criminal do TJRS pode-se encontrar a seguinte decisão acerca da razoável duração do inquérito policial: HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO MAJORADO. Excesso de prazo na formação da culpa do paciente. Ausência de conclusão do inquérito policial dentro do prazo previsto no código de processo penal que configura constrangimento ilegal. Soltura do paciente que se impõe. A contagem dos prazos processuais para a formação da culpa do paciente no processo penal pátrio é global e não por etapas, devendo eventual ilegalidade da prisão cautelar por excesso de prazo ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade. O art. 10 do Código de Processo Penal prevê que o prazo para a conclusão do inquérito policial é de 10 (dez) dias nos casos em que o investigado estiver preso preventivamente, iniciando-se o prazo a partir do dia em que se executar a ordem de prisão. Nestes temos, estando o paciente preso desde a data de 25/04/2017 e não tendo sido remetido o inquérito policial ao Juízo Criminal dentro do prazo previsto na legislação processual penal pátria, a situação constitui constrangimento legal, havendo manifesta ofensa ao princípio da razoável duração do processo, de estatura constitucional, de forma que imperiosa a soltura do paciente, com aplicação de outras medidas cautelares, dada a ocorrência de excesso de prazo para a formação de culpa. ORDEM CONCEDIDA, EM PARTE. (Habeas Corpus Nº 70073591844, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 18/05/2017). No despacho acima o desembargador-relator menciona que não tendo sido o inquérito policial remetido ao juízo dentro do prazo estabelecido no art. 10 do CPP, ou seja, 10 (dez) dias e estando o investigado preso preventivamente, do qual o prazo inicia-se a partir da data em que se executar a ordem de prisão, sendo assim, o paciente estará preso preventivamente por um tempo maior do que o prazo estabelecido no mencionado artigo, de modo que a situação do caso 165 concreto constitui constrangimento ilegal, concluindo ainda o Relator que é uma ofensa ao princípio da razoável duração do processo. Por fim, determinou a soltura do paciente por excesso de prazo para a formação da culpa. No mesmo sentido vai a Terceira Câmara Criminal: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. EXCESSO DE PRAZO VERIFICADO. 1. A averiguação da ocorrência de violação à razoável duração do processo demanda análise, em concreto, da presença - ou não - das exigências da proporcionalidade. 2. No caso dos autos, o paciente encontra-se preso preventivamente desde 11 de setembro de 2016, e o feito encontra-se parado há 70 (setenta) dias sem a remessa do inquérito policial ao juízo, importando destacar que não se trata de fatos complexos. Porém, tendo em vista a gravidade concreta do delito e os antecedentes do paciente, adequada a fixação de medidas cautelares diversas. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. (Habeas Corpus Nº 70072016769, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ingo Wolfgang Sarlet, Julgado em 14/12/2016). Na decisão acima foi concedida a revogação da prisão preventiva tendo em vista que a autoridade policial estava a 70 (setenta) dias sem findar o inquérito policial. Ainda, deve-se destacar que não existia nenhum elemento nos autos do processo que indicava complexidade do feito a justificar tal morosidade. Por fim, o desembargador-relator conclui que restou evidenciada desídia por parte da autoridade policial, desta forma impondo a revogação da medida gravosa. No entanto, tais entendimentos não são unânimes. Em sentido contrário se manifestou a Primeira Câmera Criminal: 166 HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. MANUTENÇÃO DA SEGREGAÇÃO. EXCESSO DE PRAZO. INOCORRÊNCIA. 1. Considerados os poucos elementos juntados, não se observa constrangimento ilegal na manutenção da prisão, pois presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal. Conforme informações da autoridade apontada coatora, há indicativo da participação do paciente nos crimes imputados nos elementos colhidos no Inquérito Policial nº 20/2016/200850/A. O Magistrado mencionou que o triplo homicídio qualificado decorreria da rivalidade existente entre as facções“Bala na Cara” e “Os Vila Jardim”, circunstância que indica a gravidade concreta da conduta. A prudência recomenda, portanto, a manutenção da segregação cautelar, não sendo suficiente, no presente contexto, a aplicação de medidas cautelares diversas. 2. A duração do processo, nos exatos termos da norma constitucional (art. 5º, inciso LXXVIII, da CF), deve ser razoável, impondo-se a interpretação da demora no curso da instrução através da ponderação com o princípio da proporcionalidade, que em seu sentido estrito autoriza a maior dilação dos prazos processuais quando a ação penal apresentar maior complexidade. Embora o paciente esteja preso desde 21 de março de 2016, a complexidade do feito, que conta com nove réus e quatro fatos, autoriza maior dilação dos prazos processuais. Encontra-se pendente apenas a resposta à acusação de um dos réus, de forma que a instrução poderá se iniciar em breve. Não se identifica, por ora, inércia do aparelho judiciário, não podendo eventual demora ser atribuída ao Juízo condutor da ação. ORDEM DENEGADA. (Habeas Corpus Nº 70071384523, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 14/12/2016). Na decisão acima o desembargador-relator menciona que a duração do processo deve ser razoável, porém tendo em vista que a ação penal apresentou maior complexidade, e mesmo que o paciente estivesse segregado há nove meses sem avistar o início da instrução, em virtude da complexidade do caso e do número extensivo de réus – nove 167 (09) e dos quatro (04) fatos delituosos – não foi configurado o excesso de prazo na formação da culpa. No mesmo sentido assim novamente a Terceira Câmara Criminal decidiu: HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. COAÇÃO NO CURSO DO PROCESSO. DESNECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO ACUSADO. INOCORRÊNCIA. EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. INEXISTÊNCIA. SEGREGAÇÃO CAUTELAR MANTIDA. A prisão preventiva, no caso concreto, não configura antecipação da punição penal. Caso em que o decreto de prisão encontra-se adequadamente fundamentado – na garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal – e embasado em circunstâncias específicas do caso concreto, havendo comprovação da materialidade e suficientes indícios da autoria delitiva em nome do paciente. Embora primário o paciente, as circunstâncias fáticas, diante do contido nos autos – evidente, no caso, o periculum libertatis, ante a ameaça do paciente à vítima sobrevivente, bem como as testemunhas, o que tem dificultado o andamento do feito, inclusive, para seu encerramento já que as testemunhas em razão do temor que sentem não compareceram em duas solenidades aprazadas –, são desfavoráveis e pesam contra o acusado, pelo que não há ilegalidade na manutenção da prisão preventiva. a razoável duração do processo deve ter em consideração as circunstâncias específicas do caso concreto, como a complexidade do feito e o comportamento das partes e do magistrado. Nesta linha, o excesso de prazo na formação da culpa não decorre do simples descumprimento de prazos processuais isolados, como simples operação aritmética. Embora o paciente esteja preso há aproximadamente nove meses, não há qualquer retardo provocado pelo juízo ou ministério público na condução do processo, pelo que, no momento, não se vislumbra o alegado excesso de prazo sustentado. Excesso de prazo não configurado. ORDEM DENEGADA. (Habeas corpus nº 70073832867, terceira câmara criminal, tribunal de justiça do rs, relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, julgado em 05/07/2017). 168 Na decisão acima, para o desembargador-relator, mesmo que o paciente estivesse preso preventivamente a 09 (nove) meses, por si só, não configuraria excesso de prazo. Acrescenta ainda, que embora esteja assegurado o direito de ser julgado em um prazo razoável, o tempo não vem expresso. Diz ainda que a simples ultrapassagem dos prazos legais não configura a ilegalidade da custódia. Por fim, acrescenta o relator de que a alegação de excesso de prazo, não é suficiente para a concessão de liberdade do paciente, tendo em vista a periculosidade do agente em frente às circunstâncias do caso concreto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por tudo que foi exposto, a análise realizada aponta que o inquérito policial é um procedimento de investigação com o viés de apurar indícios de autoria e a prova da materialidade de um crime, fornecendo substratos mínimos para a propositura da ação penal. Em um primeiro momento foram analisados os conceitos básicos sobre o inquérito policial sobre a ótica de alguns autores. Posteriormente, foram analisadas algumas características principais do inquérito policial, sendo que se trata de um procedimento inquisitorial, ou seja, o indiciado fica afastado do direito de defesa; a característica formal é que todos os atos do inquérito policial serão por escrito; é sistemático, quando todo o material colhido deve ser documentado; unidirecional significa dizer que o inquérito policial tem a única finalidade de apuração do fato criminoso; e também é sigiloso, pois a autoridade assegurará o sigilo necessário para a concretização do inquérito em decorrência do fato criminoso; e discricionário, vez que concentra toda a carga do inquérito policial ao seu representante, que é o/a delegado(a) de polícia. 169 Ainda foi feito uma análise, mesmo que breve, sobre o prazo para a conclusão do inquérito policial que, em regra geral, se guia pelo o que está consagrado no art. 10 do CPP. Se por ventura o indiciado estando preso e a autoridade policial não concluiu o inquérito policial é necessário à sua soltura por constrangimento ilegal. As características estudadas estão em consonância com a finalidade do inquérito policial, e aos princípios fundamentais que garantem a preservação da dignidade do indivíduo consagrada na constituição federal. Por fim, diante dos acórdãos colhidos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cumpre destacar que não existe uma uniformização acerca da razoável duração do inquérito policial. Há decisões que concedem o excesso de prazo e outras não configuram o excesso de prazo para a formação da culpa. O parecer, quando não é favorável acerca do excesso de prazo, atrela-se principalmente a da complexidade do fato, muitas vezes caracterizado pelo número abundante de réus e outras vezes pela quantidade de fatos constantes na denúncia. Percebe- se que está longe de termos uma uniformização sobre o tema. Enquanto isso os presídios estão cada vez mais abarrotados de pessoas que por muitas vezes não precisariam estar segregados no sistema penitenciário. 170 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: método, 2014. BARBOSA, Ruchester Medeiros. Investigação criminal também deve cumprir prazo de duração razoável, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia- investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao- razoavel#_edn2. Acesso em 27/06/2017. CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro. Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada, 2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito- policial-sido-conceituado-forma-equivocada. Acesso em 17/07/2017. COUTRIM, Eujecio Lima Filho. Lei nº. 13.245/16 e o caráter inquisitivo do Inquérito Policial, 2016. 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LOPES, Aury Jr. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter “inquisitório” da investigação, 2016. 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Acesso em 17/07/2017. LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A razoável duração do processo X prescrição retroativa após alteração da Lei 12.234/2010, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do- processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010- por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3, acesso em 27/06/2017. PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen Juris, 2009. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. RANGEL, Paulo; BACILA, Carlos Roberto. Lei de drogas: comentários penais e processuais. 2. Ed. SP: Atlas, 2014. REIS, Alexandre Cebrian Araujo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito processual penal esquematizado. Coordenador Pedro Lenza. 5ª edição. SP: Saraiva, 2016. ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor, 2014. 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Nas ruas das cidades são celebradas cerimônias. Cada vez que um delinquente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio da doença que a atormenta. A morte de cada malvivente surte efeitos farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia vem de phármakos, o nome que os gregos davam as vítimas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos de crise2. INTRODUÇÃO Com os levantes de junho de 2013, a aproximação dos denominados “megaeventos” como a Copa do Mundo FIFA de 2014 e as Olimpíadas de 2016, houve uma intensificação nos mecanismos de controle social, também no intuito de vender melhor a imagem do país 1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Integrante do G10- Assessoria à Juventude Criminalizada (SAJU/UFRGS). Graduando em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogado. E-mail: lucasdpedrassani@gmail.com. 2 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 81 173 na mídia internacional, bem como no sentido de reforçar as posições sociais em que cada segmento deve se postar segundo a lógica dominante e os caminhos institucionalizados para sua esparsa variação segundo a ordem capitalista. A busca de novos mercados segue a lógica da globalização predatória - já anunciada nos slogans das grandes empresas - nos termos desenvolvidos pelo militante, geógrafo e advogado Milton Santos3: Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma dupla tirania, a do dinheiro e a da informação, intimamente relacionadas. Ambas, juntas, fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala. Tem as mesmas origens a produção, na base mesma da vida social, de uma violência estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das empresas e dos indivíduos. A perversidade sistêmica é um dos seus corolários. A partir desta demanda, em atenção aos interesses de investidores, ainda de proteção patrimonial da classe média e alta – e de seu “poder” de consumo – houve uma investida contra segmentos populacionais organizados e ocupantes segregados de parcelas do território outrora esquecidas. Estes, se viram tocados pelo poder estatal apenas quando surgiu a demanda do setor econômico na sua exploração, 3 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único a consciência universal. Record: Rio de Janeiro/São Paulo, 2000a, p. 19. 174 tendo tais populações anteriormente se habituado a sobreviver perante o abandono e a inércia estatal em face de sua condição. Os elevados “investimentos” em infraestrutura em contraste com a precarização dos serviços básicos que supostamente visariam assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, bem como a privatização dos espaços públicos, a expulsão de comunidades inteiras em direção à periferia e a segmentação do espaço urbano culminaram por desvelar, de forma drástica, a sobreposição dos interesses de uma classe sobre a outra. O marco da guerreira defesa dos agentes repressores em nomedos fulecos, ao longo do Brasil em detrimento da população, deram a tônica do que estava por vir4. Eis que, quando se apresenta o tal agir estatal, não bastasse a não observância em assegurar as garantias fundamentais e condições dignas de vida, subverte a lógica apregoada pelo ordenamento jurídico, ignorando a fragmentariedade do Direito Penal e, ainda, invertendo princípios basilares do Estado Democrático de Direito, como os consolidados “in dúbio pro reo”, o direito ao julgamento, a presunção de inocência dentre outras garantias constitucionais, ao praticar verdadeiro direito penal do inimigo5 em relação a determinadas frações da população na escusa de se tratar de uma situação atípica. 4 OLIVEIRA, Samir. Protesto envolvendo Tatu-Bola segue repercutindo entre policiais e ativistas de Porto Alegre. Sul21, Porto Alegre, 6 de fev. 2013. (Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/protesto-envolvendo-tatu-bola-segue- repercutindo-entre-policiais-e-ativistas-de-porto-alegre/>. Acesso em: 28 set. 2015). 5 Eugênio Raul Zaffaroni que assim dispõe: “O direito penal [do inimigo] tem como uma de suas marcantes características o combate a perigos, isso representa, em muitos casos, a antecipação de punibilidade, na qual o inimigo é interceptado, em um estado inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele não é mais o homem o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente 175 Ocorre, em verdade, que a única excepcionalidade destes abusos é a sua magnitude que vem tomando contornos cada vez mais desavergonhados, dignos de nota dos teóricos do terceiro reich, consolidando, na exceção à regra, um mecanismo de controle que paira com permanência. Dito isto, o artigo pretende questionar a legitimidade do discurso da política de conciliação de classes e do Estado de Direito, que cai por terra sempre que se enfrentam questões em que há choque de forma mais direta entre os direitos e privilégios de uma e de outra classe, recorrendo-se a verdadeiro estado de exceção para manter a torta coesão social e as posições de funcionamento da organização social vigente. Como pode o Direito burlar a si próprio para assegurar a implementação de determinada vontade do poder dominante? E mais, ao fazer isso, como mantém sua legitimidade de assegurar as próprias leis que viola? A EXPANSÃO DAS PRÁTICAS E TÁTICAS DE UM ESTADO TERRORISTA Abandonemos, de início, a noção mais comumente difundida da associação do terrorismo enquanto categoria relativa ao sujeito ou organização que comete atentados pelo uso de violência direta. A ideia que o título busca remeter é justamente mais próxima a definição primeira de aterrorizar, causar medo, impor vontade pelo uso sistemático de práticas de terror. Essa vem sendo a tônica da postura do aparato repressivo estatal para lidar com os movimentos sociais de socionormativo” ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo do Direito Penal. Ed. Revan 2007, p. 76. 176 contestação da ordem que vem surgindo ao longo da formação do nosso país, recorrendo a práticas e táticas notoriamente ilegais em nome da manutenção da legalidade, situação cujo exemplo mais difundido têm sido o período da ditadura civil-militar. A premissa neoliberal que dominou a política posteriormente, como bem assevera Loic Waquant6 é constantemente reapresentada como solução para o “monstro da criminalidade” tão alimentado pela mídia hegemônica, aduzindo o seguinte paradoxo: “Remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva [...]”. Assim, o denominado Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs toma força no norteamento da política interna de combate aos sujeitos tidos por perigosos através de seus simbólicos Robocops7 e caveirões8 dirigindo-lhes um olhar desprovido da noção de cidadania e dignidade. De acordo com Jakobs9: 6 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 7. 7 ELY, Débora. Robocop na Copa: o traje que os policiais usarão no Mundial. Para atuar em possíveis protestos durante os jogos, Brigada Militar receberá 300 exoesqueletos do governo federal. Zero Hora, Porto Alegre, 21 de mai. 2014. Disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/copa- 2014/noticia/2014/05/robocop-na-copa-o-traje-que-os-policiais-usarao-no-mundial- 4505977.html>. Acesso em: 28 set. 2015. 8 CONTRA protestos em SP, PM compra 'supercaveirão'. Estadão, São Paulo, 12 de mar. 2015. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia- estado/2015/03/12/contra-protestos-em-sp-pm-compra-supercaveirao.htm>. Acesso em: 28 set. 2015. 9 JAKOBS, Ghunter; MELIÁ, Manuel Câncio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2005, p. 37. 177 O direito penal conhece dois pólos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize a sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade. Amparados pelas proposições de Walter Benjamin e de Giorgio Agamben pretende-se desencobrir uma parcela desta intimidade cadavérica entre os regimes totalitários e as democracias modernas10. A atualidade de seus pensamentos conjugados com o conhecimento de Zaffaroni acerca dos Estados Latinos pode dar as pistas para melhor compreender as estratégias de formação de um estereótipo de indivíduo a ser combatido como nas categorias de “subversivo”, “terrorista”, “bandido”, “vândalo” entre outras, para justificar o recrudescimento das políticas repressivas fazendo valer o slogan fascista da “ordem e progresso” (ou o atual, “Não pense em crise, trabalhe”) a custo dos sujeitos dispensáveis, ou seja, através do paradigmático conceito do protagonista da obra de Giorgio Agamben: A Vida Nua11. Na perseguição de seus inimigos o sob o mote do desenvolvimentismo, as forças repressivas se pautam pela ação da força 10No início da obra o Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua I,Agamben nos antecipa o que virá a ser objeto de seu dedicado olhar:“A tese de uma íntima solidariedade entre democracia e totalitarismo (que aqui devemos, mesmo com toda prudência,adiantar) não é, obviamente (como,por outra,aquela de Strauss sobre a secreta convergência entre liberalismo e comunismo quanto à meta final),uma tese historiográfica, que autorize a liquidação e o achatamento das enormes diferenças que caracterizam sua história e seu antagonismo; não obstante isto, no plano histórico- filosófico que lhe é próprio, deve ser mantida com firmeza, porque somente ela poderá permitir que orientemo-no diante das novas realidades e das convergências imprevistas do fim de milênio, desobstruindo o campo em direção àquela nova política que ainda resta em grande parte inventar.”AGAMBEN, Giorgio.Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.Belo Horizonte:UFMG,2002,p. 18. 11 Ibidem, p. 16. 178 de lei12 sem lei, que suspende as garantias legais em nome da sua própria manutenção. Ora, não tem sido exatamente esse o paradigma central do discurso predominante na política nacional, em especial naquilo que remete a (in)segurança pública? Para tanto é necessário retomar ideia primordial de Walter Benjamin acerca da exceção. É através da intensificação dos mecanismos de controle e pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais que se verifica de forma mais visível a correlação de forças que desemboca naquilo que chamaram estado de exceção,razão pela qual temos a necessidade de nos situarmos perante esse paradigma, senão vejamos13: A tradição dos oprimidos nos ensina que o “Estado de Exceção”, no qual nós vivemos, é a regra. Precisamos atingir um conceito de história que corresponda a isto. Então teremos diante de nós como nossa tarefa provocar o efetivo Estado de Exceção; e deste modo melhorará a nossa posição na luta contra o fascismo. A sorte deste depende não em última instância, que seus opositores lutem contra ele em nome do progresso como uma norma histórica. – A admiração de que as coisas que nós vivenciamos ‘ainda’ são possíveis no século XX, não é filosófica. Ela não esta no início de um conhecimento, a não ser de que a idéia de história, de onde ela provém, não pode mais ser sustentada. A ideia da neutralidade do estado tão fortemente criticada pelos mais variados setores da esquerda nacional e internacional de 12 Conforme Agamben O sintagma “força de lei” vincula-se a uma longa tradição do direito romano e no medieval, [...] tem o sentido geral de eficácia, de capacidade de obrigar. [...] O conceito “força de lei”, enquanto termo técnico do direito define, pois uma separação entre vis obligandi ou aplicabilidade da norma e sua essência formal, pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua “força’. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p.60. 13 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas; v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226. 179 Marilena Chauí14 a Meszáros15, segue intocável fora dos bastidores decisórios do poder. Da mesma forma, a confiança em uma justiça suprema ou em uma verdade prevalecente que deriva do argumento de autoridade é tanta, que o apego às formalidades ou consistências jurídicas e argumentativas das decisões e ações que derivam no exercício do poder de polícia vem sendo notoriamente abandonadas. Dessa forma retomamos a problematização de Benjamin, quando nos deparamos com as bizarras decisões e ações dos agentes repressivos: A admiração (ou o espanto) de que as coisas que nós vivenciamos ainda são possíveis atualmente em pleno século XXI não é filosófica, porque a “história” de onde esse espanto provém não pode mais ser sustentada. WALTER BENJAMIN, CONTROLE SOCIAL E LEGITIMAÇÕES. Walter Benjamin traz a margem um questionamento de espantosa atualidade, se pensado com atenção voltada ao cenário político brasileiro. Diante da crise da representatividade que permeia o cenário atual, inclusive relativo ao período anterior ao atual regime 14 A crítica referida pode ser analisada de forma mais explícita no seguinte trecho do livro O que é Ideologia: “O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina a sociedade. [...]O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja ti da como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 90. 15 A passagem de Meszáros a que se refere a menção pode ser compreendida a partir da obra O poder da Ideologia: “A verdade prosaica de que o Estado na verdade não é a encarnação do “princípio da legitimidade”, mas das relações de poder prevalecentes, e que não é constituído a partir de decisões individuais soberanas, mas em resposta aos contínuos antagonismos de classe, permanece oculta sob o véu da impressionante fachada teórica da ideologia dominante.” MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 26. 180 vampiresco que carece ainda mais de legitimidade, a brutalidade policial vêm sendo a resposta estatal para os anseios sociais que, na derrocada da estratégia do pão e circo, retomou pelos mecanismos mais tradicionais a “ordem pública” necessária ao “progresso”. Calcada em nome do interesse público, tal ação repressiva, lança mão de inúmeros subterfúgios (i)legais de modo a pressionar e coagir os contestadores da política implantada. Após a caracterização do poder enquanto instituinte e mantenedor do Direito, do âmago de sua violência criadora e conservadora, Benjamin dispara: [...] Poder-se-ia dizer que um sistema de fins jurídicos é insustentável quando, em algum lugar, fins naturais ainda podem ser perseguidos pelo meio da violência. Mas isso, por enquanto, é um simples dogma. Por outro lado, talvez deva se levar em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito [...]16 Com essa afirmativa em mente torna-se possível desferir um olhar mais apurado para os fatos públicos que ocorreram não só no Brasil, mas em diversos outros país, mais especificamente os latinos que vêm tendo constantes interferências de origem externa corroborando significativas alterações políticas em nome da expansão do capital na história recente. A hipocrisia do progresso seletivo e do agravamento da segmentação social, geraram (e geram) uma resistência, não raro violenta, através de uma LEGÍTIMA defesa, de uma casa, de uma escola, de um bairro, de uma renda, de um amigo: de 16 BENJAMIN, Walter. Crítica da violência – crítica do poder. ___. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. (Trad.: Willi Bolle). São Paulo: Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo 1986, p. 162. 181 dignidade. Assim, o recrudescimento do aparato repressor, compreendido desde o policiamento ostensivo, passando pelas inquisitórias denúncias criminais, constante vigilância (inclusive por informantes infiltrados e com utilização de drones), abordagens infundadas, flagrantes forjados, tudo amparado pela proteção normativa, convenientemente interpretada por seus pares, pode ser recordada no destacamento do poder amorfo da instituição policial em mais uma passagem das teses benjaminianas: A infâmia dessa instituição - sentida por poucos, porque raramente a competência da polícia é suficiente para praticar inter·venções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido pelas leis - consiste em que ali se encontra suspensa e separação entre poder* instituinte e poder* mantenedor do direito. Do primeiro se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins. O poder* da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder* instituinte do direito - cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito - e um poder* mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins do poder* policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade, o "direito" da polícia é o ponto em que o Estado - ou por impotência ou devido às inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária - não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço17. O desvelamento das relações de poder ocultadas pelo aparato teórico que justifica a força de lei enquanto instrumento de garantia de privilégios deve ser, nas formulações de Benjamin (definitivamente não só dele), exposta18. Essa violência - que define pura, ou criadora - seria 17 Ibidem. p. 166. 18 Ibidem. p. 226.182 única capaz de provocar fim a esse movimento oscilante da violência instituinte e mantenedora do Direito. Em oposição à teoria do Soberano de Carl Schmitt, a exceção de fato não poderia ser fundada na premissa de conservar o próprio direito, mas em uma dimensão que destruiria o próprio reino que o jurista do Terceiro Reich visa assegurar. Para tanto, deve-se primeiramente expor os meandros dessa relação tiranizante, identificá-la, revelá-la, para aí então destruí-la, esse é o desafio acerca da reconstrução da história, sobre o conceito de história, ou, como propõe de forma brilhante Reyes Matte, no catar dos dejetos19. Assim, nos termos propostos por Neto: Essa violência inerente e oculta do direito é o que legitima a injustiça em que vivemos e por vezes se torna visível em episódios como os campos de concentração, aeroportos rejeitam refugiados, favelas em que a vida está exposta à morte, zonas rurais dominadas por coronéis. Nesses locais a vida está nua, ou seja, totalmente exposta, totalmente submissa a um poder que pode a descartar livremente. Então a conclusão dessa primeira perte é: o estado de exceção não é “exceção”, mas a regra sobre o qual o estado de direito se ergue como uma espécie de mito que encobre as relações de poder reais que existem20. Nesse caminho adentramos a conceituação de Agamben acerca dos corpos disponíveis ao bel prazer do fazer político. Aliás, como ponto de contato entre a resistência afirmada anteriormente e os matáveis do cotidiano nacional, é simbólico o recorrente drama das abordagens policiais na defesa da “paz social” das praias cariocas em 19 MATTE, Reyes. Meia-noite na história: Comentários sobre às teses de Walter Benjamin. Sobre o conceito de história. Ed. Unisinos.2010. p. 125. 20 NETO, Moysés Pinto. A matriz oculta do Direito Moderno: crítica do constitucionalismo contemporâneo. Cadernos de ética e filosofia política, São Paulo, n. 17, p.131 – 152, jan./jun. 2010. 183 que se é preciso reafirmar obviedades em tempos de bárbarie21. A suspensão de direitos daqueles que subvertem a hegemonia branca dos calçadões e trazem à superfície o sintoma da perversa coesão social que lhes é imposta, evidencia o caráter eugenista da ideia de “cidade maravilhosa”. Este local, onde um mês do salário de muitos de seus habitantes é consumido em apenas um dia de capricho dos que detém esse privilégio, reproduz o conflito inarredável decorrente dessas contradições. A resposta estatal recorrente é a repressão na forma de retirada das garantias daqueles a quem se quer combater, dos nossos próprios “inimigos” internos, através da batalha diária dos Capitães do Mato contra os Capitães de Areia 22. Essa ficção jurídica da suspensão do tempo, da invocação de artifícios não legais em nome da ordem e do progresso, é instrumento de constante aplicação no cotidiano, tanto das democracias, quanto dos absolutismos atuais. Seus alvos, em geral os corpos negros que as balas policiais insistem em achar 23, sentem todo peso da lógica de 21 A menção se refere à ação impetrada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro para ver declarado o raríssimo Direito dos adolescentes de não serem presos a não ser que estivessem cometendo algum delito. OUCHANA, Giselle. Vara da Infância e Juventude proíbe PM de apreender adolescentes sem flagrante Decisão foi tomada após adolescentes serem retirados de ônibus a caminho das praias da Zona Sul no mês passado. O Globo, 10 de nov. 2015. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender- adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL>. Acesso em: 10 de out. 2015. 22 VICE, Marie Declercq da. “PM do Rio impede adolescentes da periferia de ir às praias da zona sul”, Folha de São Paulo, 25 de ago. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede- adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml>. Acesso em: 07 de out. 2015. 23 A menção faz referência ao brilhante artigo escrito por Eliane Brum em que expõe a matabilidade e ausência completa de empatia, de emocionabilidade com o que já se tornou tão corriqueiro no cenário (bio)político nacional. Intitulado “ECA do B”, busca explicitar com uma ironia ácida a lei real (ou a força de lei sem lei) que é a exceção http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender-adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender-adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml 184 dispensabilidade de suas vidas perante a organização social que lhes é imposta. A gestão da miséria como bem assevera Loic Wacquant através da globalização da lógica da tolerância zero24 introduz uma condição do que Agamben vem a denominar campo decorrente da não provisoriedade da lógica da exceção, na menção ao nazismo e suas concentrações de morte. Essa parcela territorial que, por sua vez, se encontra desamparada pelo ordenamento jurídico do qual está inserida é o elemento através do qual são dirigidas as políticas públicas de extermínio dos indesejáveis nacionais que, tampouco possuem acesso aos direitos básicos, bem como, sequer as garantias constitucionais de presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, e mesmo, da vida. A lei, ainda que assegure suas liberdades e garantias, lhes sujeita, enquanto que a prática dá conta de impossibilitar a sua efetivação de todas as maneiras. Se, como refere BAUMAN, o holocausto é fruto da própria racionalidade da civilização moderna, da lógica do consumo, do descarte25, a fabricação de cadáveres não cessou ao findar a segunda guerra, mas persiste nas inúmeras Auschwitz nacionais26. Não obstante às exigências do cumprimento de certos requisitos para sua decretação, o que se verifica na realidade do Estado brasileiro é a presença constante da exceção enquanto paradigma de permanente na lida com a pobreza e os ban(d)idos perpassando os recorrentes comentários que dão a tônica do pensamento “comum” vomitado pela pela mídia hegemônica. BRUM, Eliane. ECA do B. El País, 28 de set. 2015. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html>. Acesso em: 8 de out. 2015. 24 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 25 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.32. 26 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. . São Paulo: Boitempo, 2008, p. 79. http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html 185 governo. A partir desta constatação traçamos um panorama da convivência do ordenamento jurídico com as violações às suas garantias de parte de seus órgãos promotores, e a serviço de que(m) estão tais práticas que atuam na construção da figura do inimigo, e na corporificação de toda a culpa das frustrações sociais vividas em indivíduos, costas disponíveis ao açoite da chibata do capital. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarada no sentido técnico) tornou- seuma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos 27. A supressão temporária dos direitos, derivada do conceito de iustititum deu margem à brutalidade policial vista nas repressões e criminalizações dos manifestantes, posta em prática sob argumentos estigmatizantes, visando retirar a humanidade dos indivíduos que a compunham. Os vândalos, comunistas, anarquistas, subversivos, baderneiros travaram uma dura batalha para irromper o abismo que separa o governo do povo que, rapidamente, tratou de restabelecer a distância rotineira por meio da (i)legitimidade do artifício jurídico- policial. As prisões (i)legais se multiplicaram no intuito de fazer cessar à base da força o resquício de contestação que persiste em meio à 27 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13. 186 naturalização da opressão, da desigualdade e da pobreza. Novas formulações legislativas trataram de ser imediatamente propostas e impostas, de modo a inserir em um aspecto de maior legitimidade as violações rotineiras praticadas contra os manifestantes. A qualificação dos sujeitos enquanto inimigos, os tão citados black blocs, serviram, assim como qualquer designação exposta pelo quarto poder, para tentar justificar as brutalidades do aparato repressivo que estaria combatendo um inimigo interno. Não obstante as reiteradas utilizações das forças armadas contra a própria população por meio das invasões às comunidades periféricas, o núcleo duro da ausência de legitimidade, da regra, retomando Benjamin, enquanto consolidação de vontade de uma classe sobre a outra, foi largamente expandido de modo a calar a crescente discórdia que transborda. TEORIAS ANTIGAS DE ATUALIDADE ALARMANTE Sob o assombro de constantes inovações legislativas, que fornecem o aparato “legítimo” dando instrumentos aos orquestrantes do permanente governo de exceção, o Brasil, que antes se deparou com a edição da chamada Lei de Segurança Nacional, definida por Heleno Cláudio Fragoso enquanto instrumento de perseguição e atemorização dos trabalhadores que poderiam reivindicar melhores condições de trabalho, agora se vê assombrado por reinterpretações de direitos fundamentais em nome da “flexibilização de estruturas arcaicas”. Na esfera penal o pensamento derivado da lógica de pensamento no combate ao inimigo, que pode estar infiltrado em solo nacional sob a carapaça de qualquer cidadão comum, ainda assombra os movimentos 187 sociais brasileiros como no inquérito que ensejou a detenção prévia da estudante de 19 anos em São Paulo por supostos atos preparatórios que visavam a depredação de uma viatura, há inúmeras inovações legislativas que almejam atualizar ou (re)oficializar as práticas repressivas em nome da ‘Segurança Nacional” 28. É o caso de inúmeros projetos de Lei, em especial o 2016/2015, aprovado pela câmara dos deputados que visa a regulamentação do terrorismo no Brasil(?), tipificando condutas como a sabotagem de bancos de dados de informática, bem como depredação de meios de transporte e bens públicos ou privados com sanções de reclusão que variam entre doze e trinta anos, nas mesmas penas daqueles que usariam conteúdos nucleares ou biológicos capazes de promover destruição em massa. A barbaridade ainda segue com pena de quatro a oito anos para quem “fizer publicamente apologia de fato tipificado como crime nesta Lei” e ainda, ao que parece uma sátira de fazer inveja ao artigo 33 da Lei de Drogas, aduz: Art. 6º Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei: Pena - reclusão, de quinze a trinta anos. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem oferecer ou receber, obtiver, guardar, mantiver em depósito, solicitar, investir ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas, associação, entidade, organização criminosa que tenha 28 JUSTIÇA paulista livra ativista de ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Rede Brasil Atual, 1 de jul. 2014. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista- de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html>. Acesso em: 12 de out. 2015. http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista-de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista-de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html 188 como atividade principal ou secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei. 29 O poder executivo pretendeu garantir um instrumento legal que torne mais crível a associação ao estigma de sujeito desprovido de direitos e garantias face ao tratamento já dispensado pela sua polícia. Não obstante os resquícios estruturais do período ditatorial, vivemos sob uma crescente punitivista que retoma o saudosismo daquilo que houve de mais podre dentre as importações (ou imposições) norte- americanas, a ideia da Doutrina de Segurança Nacional, logo após o “livre-mercado”. Aliás, nesta lógica de estado de guerra em “tempos de paz”, de uma liberdade (estritamente de consumo), bem como da influência do quarto poder em tempos de populismo penal, é de espantosa atualidade as prelusões da obra literária de George Orwell, 1984: Guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força, respectivamente.30 Em sua Nota aos leitores brasileiros, cujo subtítulo é Rumo a uma ditadura sobre os pobres?, Loic Wacquant traça um panorama da influência ideológica advinda do Norte, em que a classe miserável, ou retomando Marx, o subproletariado, se vê combatida e subjugada ao clamor dos pânicos orquestrados pela máquina midiática que alardeia os medos da classe média. A insegurança criminal no Brasil, aponta, é nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem, expressa na letalidade e brutalidade das polícias nacionais que advém de uma 29A íntegra da Redação Final pode está disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegracodteor=1373970 &filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015>. Acesso em: 12 de out. 2015. 30 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1373970&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1373970&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015 189 tradição multissecular de controle da miséria pela força perpassando a escravidão, os conflitos agrários e as duas décadas de Ditadura civil- militar em que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem31. Profundamente marcada pelo autoritarismo e pela ideia de que a defesa de direitos é coisa de vagabundos, subversivos, de quem quer se esquivar ao bem, vez que, quem não deve não teme, o Estado Penal Brasileiro está posto para responder às desordens suscitadas pelas contradições inerentes à lógica da sociedade contemporânea ditada pelo consumo, pela falácia da meritocracia, e pela desigualdade material 32. Nessa esteira o francês, conclui: Em suma, a adoção das medidas norte-americanas de limpeza policial das ruas e de aprisionamento maciço dos pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do mercado desregulamentado só ira agravar os males de que já sofre a sociedade brasileira em seudifícil caminho rumo ao estabelecimento de uma democracia que não seja de fachada, quais sejam, “a deslegitimização das instituições legais e judiciárias, a escalada da criminalidade violenta e dos abusos policiais, a criminalização dos pobres, o crescimento significativo da defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição desigual e não equitativa dos direitos do cidadão”. A despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a urgência, no Brasil como na maioria dos países do planeta, é lutar em todas as direções não contra os criminosos, mas contra a pobreza e a desigualdade, isto é, contra a insegurança social que, em todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal de predação que alimenta a violência 33. 31 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro. ED. Jorge Zahar 2001. P. 8. 32 Ibidem. p. 10. 33 Ibidem. p.. 13. 190 Conforme nos recorda Taiguara, a criminalização não se restringe à gestão da miséria, mas atua visivelmente no controle dos atos contestatórios à ordem vigente34. A rotulação, derivada da teoria do labelling approach, é fator que conduz ao estigma do homo sacer destinado às novas classes perigosas ou aos inimigos públicos. Como o foco no trato do inimigo, conforme referido anteriormente, não é, propriamente, o de punir ou readequar um sujeito desviante, mas de neutralizar uma ameaça à ordem, as mais variadas arbitrariedades passam a serem exercidas por meio de armas letais e menos letais de parte dos agentes públicos. O processo de construção do Estado brasileiro é profundamente tatuado pela tinta da obediência e da submissão em que a repactuação do contrato social repete a fórmula do coronelismo, do absolutismo e da escravidão, prestando veracidade às palavras do rapper paulista Eduardo Taddeo: "Ainda vivemos em temos de chibatas. Senhor de escravos virou patrão, capitão do mato virou polícia, homem branco virou playboy, escravo virou cidadão de renda modesta; casa grande virou mansão; senzala virou favela; tronco e pelourinho se transformaram em sistema carcerário e navio negreiro se transformou em viaturas da polícia." 35. 34 SOUZA, Taiguara Libano Soares e. Estado Policial e Criminalização dos Movimentos Sociais: Notas sobre a Iconstitucionalidade do Decreto nº 44.302/13 do Governo do Estado do Rio de Janeiro. \R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 185 - 205, jan - fev. 2015, p. 193. 35 A frase se deu em postagem em sua página pessoal nas redes sociais. Disponível em: <https://pt- br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792 207>. Acesso em: 11 de out. 2015. https://pt-br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792207 https://pt-br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792207 https://pt-br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792207 191 O teor criminalizatório dirigido contra os movimentos sociais que reivindicam, em suma, a instauração plena das próprias previsões constitucionais, acusados não raro de atentarem contra a própria democracia, são falácias estratégicas daqueles que estão satisfeitos com o desenrolar das coisas. O Brasil, talvez em uma escala maior que muitos países, têm gravado no seu cerne o trato aos movimentos sociais enquanto casos de polícia, notadamente dada a origem destes no campo da esquerda e a histórica caça aos comunistas patrocinada pelo ideário do sonho americano, agravada pelo contexto da guerra fria. As violações estatais típicas da lógica da exceção culminaram por estender o campo exposto por Agamben, das periferias para o asfalto, sendo que o absoluto vazio legal instaurado a partir da lacuna de poder delegado em que podem atuar as policiais decorre da lógica de guerra instaurada do Estado (e seus defendidos) contra sua própria população: “Nas zonas indiscerníveis de indistinção entre espaço político e vida nua é que a força policial se dá, abrindo o campo de vidas matáveis o qual se habita.” 36. As vidas nuas, portanto, também passaram a marchar pelas ruas da cidade. Que os movimentos sociais sigam a profanar o improfanável, como sugere Giorgio Agamben37, de modo a abrir o percurso do novo, de modo a manter a humanidade caminhando em busca da utopia como sugere Galeano38 para que talvez possa encontrar a justiça social que 36 AMARAL, Augusto Jobim Do. Polícia e democracia: o tempo que resta das jornadas de junho de 2013. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 174-195, jul.-dez. 2014. p. 38 37 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 79. 38 GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 1994. 192 buscam os segmentos historicamente esquecidos, pois, como bem lembra o falecido escritor uruguaio: “Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem — a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta.”39. Libertem Rafael Braga Vieira! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. . São Paulo: Boitempo, 2008. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. AMARAL, Augusto Jobim do. 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Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis nºs 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro posicao=1514014>. Acesso em 15 de out. 2015. BRUM, Eliane. ECA do Brasil. El País, 28 de set. 2015. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_7844 66.html>. Acesso em: 8 de out. 2015. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1984. CONTRA protestos em SP, PM compra 'supercaveirão'. Estadão, São Paulo, 12 de mar. 2015. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia- estado/2015/03/12/contra-protestos-em-sp-pm-compra- supercaveirao.htm>. Acesso em: 28 set. 2015. ELY, Débora. Robocop na Copa: o traje que os policiais usarão no Mundial. 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Revan, 2007. 196 “MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”: O DISCURSO MIDIÁTICO COMO INSTRUMENTO DE INCENTIVO E SUPORTE DO POPULISMO PUNITIVO Michelle Karen Batista dos Santos1 Osmar Antônio Belusso Júnior2 INTRODUÇÃO O cenário atual dos veículos de comunicação é marcado por discursos dominantes que buscam através do endurecimento de penas, da criminalização de condutas e da redução de garantias processuais, utilizar o sistema penal como solução para o problema da criminalidade e da violência, agravando imensamente o problema do encarceramento em massa e retroalimentando as condições que possibilitaram e legitimam esse fenômeno. 1 Mestranda em Ciências Criminais (PPGCCRIM/PUCRS). Pós-Graduanda em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduada em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB/DF). Coordenadora do Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS), coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.. 2 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Assessor Jurídico do Projeto Cada Jovem Conta! – Centro de Prevenção às Violências. Advogado do Grupo de Estudos e Intervenção em Matéria Penal (GEIP-SAJU/UFRGS). Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS). 197 Assim, o presente trabalho pretende trazer à discussão o papel desempenhado pela mídia no que se denomina populismo punitivo. Para tanto, abordaremos em um primeiro momento aspectos que dizem respeito diretamente sobre o funcionamento estrutural das agências de comunicação, isto é, quais são seus métodos de atuação e fins almejados dentro de uma sociedade intimamente marcada pela violência. Após verificarmos quais são os discursos presentes nos meios de comunicação, debateremos a sua capacidade de propagar o medo e o sentimento de insegurança na população, ensejando, por consequência, a defesa de meros slogans, tão vagos quanto ineficazes aos fins propostos, mas que produzem efeitos reais e cruéis para aqueles selecionados pelo poder punitivo. A MÍDIA, O CRIME E O CRIMINOSO Antes de tratar especificamente sobre os mecanismos utilizados pela mídia a partir da íntima relação que guarda com o sistema penal, abordaremos brevemente alguns pressupostos que consideramos importantes para compreender esse ente abstrato. Da mesma maneira como o século XX trouxe consigo uma série de transformações rápidas e radicais nas formas de transportes, a metamorfose dos meios de comunicação igualmente representa um aspecto essencial dos fatores de mobilidade. Acontece que a comunicação é, também, um meio de transporte - que não envolve o deslocamento de corpos físicos em si, senão de informação3. 3 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 17. 198 Assim, as mudanças estruturais nas redes comunicacionais alteraram profundamente a forma como as relações sociais se estabelecem dentro e entre comunidades, através, principalmente, do fator velocidade. As informações de terras distantes são limites que se quebram na medida em que a velocidade permite o rompimento das fronteiras geográficas. Com o surgimento e popularização da internet, modificam-se os próprios significados conferidos às noções de “viagem”, “distância” e “longe”, uma vez que se traz à tona um novo conceito temporal fundamental para a nova configuração dos meios de comunicação: a instantaneidade4. De acordo com Paul Virilio, esse novo espaço - virtual - é desprovido de dimensões espaciais, ao mesmo passo em que é inscrito em uma temporalidade muito singular. Inexistem obstáculos físicos ou distâncias temporais. Com a variada gama de aparelhos eletrônicos à disposição dos indivíduos - computadores, tablets, smartphones, etc. -, distinções entre “aqui” e “lá” esvaziam-se ou tornam-se puramente artificiais5. O distante fica próximo, o velho torna-se novo. Essa velocidade, reduzida ao instante, permite a sensação de um “espaço comunitário virtual”, rápido e público. Essa ideia - de que compartilhamos uma vida em rede - perpassa pela percepção dos acontecimentos pelos indivíduos em circunstâncias simuladas da experiência real, ou seja, a mídia possibilita um espaço onde episódios distantes no tempo e no espaço se apresentem como um simulacro4 BAUMAN. Ibidem. p. 18. 5 VIRILIO, Paul apud BAUMAN. Ibidem. p. 20. 199 simbólico de vivência simultânea, tornando episódios individuais imediatamente públicos6 7. Entre os acontecimentos sociais que, mais do que se tornarem públicos, ascendem à condição de problemas públicos a serem tratados pelas narrativas jornalísticas, está o crime - ou melhor: alguns crimes, pois como veremos adiante, não são todos os delitos que ingressam na agenda de fatos noticiáveis, assumindo maior ou menor enfoque de acordo com o caldo cultural da sociedade em que estão inseridos. Crime, mídia e cultura, assim, se entrelaçam fortemente: “o fascínio contemporâneo da imprensa noticiar a ação violenta relaciona o medo dos indivíduos de serem vítimas de um crime e o imperativo da modernidade de promoção de entretenimento”8. As decisões tomadas pela mídia para a escolha de quais temas são ou não inseridos no debate público, bem como em qual intensidade, diz respeito à estrutura de seu funcionamento, onde a seleção do que vira notícia passa por um conjunto de diretrizes pré-estabelecido, configurando o que se denomina agenda-setting9. Desse modo, o 6 MELO, Patricia Bandeira de. Criminologia e teorias da comunicação. In: LIMA, R. S.; RATTON, L. L.; AZEVEDO, R. G. (Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 165. 7 No entanto, em que pese as redes sociais digitais tenham possibilitado um ambiente em que é possível o estabelecimento de diversas discussões que dizem respeito a questões sociais ou das agendas políticas, não conseguiram garantir, ainda, a sua inclusão no debate público, onde as chamadas "velhas mídias" - televisão, jornal, rádio, etc. - ainda detêm o monopólio de "tornar as coisas públicas", dando visibilidade a determinados assuntos em um espaço formador de opinião pública. LIMA, Venício de A. Mídia, rebeldia urbana e crise de representação. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 90. 8 MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 165-166. 9 MELO, Patricia Bandeira de. Histórias que a mídia conta: o discurso sobre o crime violento e o trauma cultural do medo. Tese (Doutorado em Sociologia) - PPGS, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2010. p. 154. 200 processo de absorção de informação por parte do público não está condicionado apenas às seleções realizadas pela mídia sobre quais temas são apresentados, como também pela ênfase dada a cada tópico, acarretando na variação da carga de relevância depositada nas notícias. Nas palavras de Maxwell McCombs, a partir de tradução livre dos autores: Os jornais fornecem uma série de sugestões sobre a relevância dos tópicos nas notícias diárias: história principal na primeira página, capa diferenciada, grandes manchetes, etc. As notícias na televisão também oferecem numerosas sugestões sobre essa relevância: a história de abertura do noticiário, o tempo dedicado a cada história, etc. Essas sugestões repetidas dia após dia efetivamente comunicam a importância de cada tópico10. Assim, é possível afirmar que o discurso dos meios de comunicação produz efeitos de sentido, isto é, indicam para o indivíduo receptor da notícia - leitor/telespectador - o caminho de significações para os acontecimentos narrados, bem como a linha de construção da sua agenda pessoal de preocupações11. Os critérios para a noticiabilidade de um determinado acontecimento são, como mostra Patricia Bandeira de Melo, os denominados valores-notícia: constituem-se a partir de alguns medidores de relevância, como a importância do evento, quais os agentes envolvidos e a existência de conflito. Busca-se aquilo que é novo, inusitado, controverso, incomum, bárbaro12. 10 MCCOMBS, Maxwell. The Agenda-Setting Role of the Mass Media in the Shaping of Public Opinion. Austin: University of Texas at Austin, 2003. p. 1. 11 MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 155. 12 MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 158. 201 Segundo Elihu Katz, “o elemento de grande drama ou ritual é essencial: o processo tem de estar carregado de emoções ou símbolos, e o resultado repleto de consequências”13. Por essa razão, o crime assume papel protagonista nos veículos de comunicação, configurando um tema capaz de elevar drasticamente os índices de audiência. Arquiteta-se calculadamente a forma mais dramática e emocional de se expor um fato delitivo para manter a atenção do público. A narrativa apelativa requer a cerimônia, necessita de vilões, heróis e vítimas e deseja a culpa e a punição14 15. Entretanto, tais explicações, por si só, não compõem uma gama completa que dá conta de explicar um fenômeno tão complexo como o que ocorre no interior dos meios de comunicação. Se por um lado existe uma forte relação de interesse entre violência e audiência, também é certo que essa equação não encerra a questão criminal na mídia, sob pena de incorrermos em ingenuidade. Mais que isso, as agências de comunicação procuram constituir-se como os instrumentos de análise dos conflitos e dos problemas sociais por excelência, necessitando, para isso, de uma racionalidade bastante funcional para a sua performance. Essa estrutura de pensamento é o discurso criminológico midiático - tão distante daquele produzido no âmago da academia. Os demais discursos devem ser ignorados ou no mínimo menosprezados, como forma de se fortalecer uma mentalidade una e homogênea16. 13 KATZ, Elihu apud MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 161. 14 MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 170. 15 A incompreensão do “herói” sendo punido como se “vilão” fosse: "Homem preso por balear criminosos desabafa: 'Tratado como vagabundo'", In: G1, 26/02/2015. Disponível em <http://glo.bo/1833dXd>. Acesso em 15/02/2017. 16 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. ISSN: 1646-3137. 2003 Disponível em http://glo.bo/1833dXd 202 Faz-se uso de profissionais, ditos especialistas, para que as afirmações desse discurso - que jamais encontrariam uma comprovação empírica -, validem seus enunciados, por mais vagos que sejam. Nilo Batista traz exemplos de slogans conhecidos - que possuem tanto um grau elevado de introjeção, quanto de inverdade: "a impunidade aumenta o número de crimes", "nas drogas é como uma escada, passa- se das mais leves para as mais pesadas", "penas elevadas dissuadem”, etc. A regra oculta está na não-dissidência, ou seja, só se concede um espaço para que um profissional tenha voz quando a sua fala converge com o discurso criminológico homogêneo da mídia. O especialista complementa e legitima a informação, principalmente quando suas ideias não são a notícia. É a figura do argumento de autoridade17. Os relatos diários das narrativas delitivas não são imparciais e tampouco meramente descritivos. Vêm à tona já em formato de acusação - por vezes mais severas que a própria acusação formal, pois ausentes quaisquer possibilidades de defesa - e é marcada por um tom moralizante e maniqueísta: nós contra eles, cidadãos de bem contra delinquentes, o bem contra o mal.1819 Ocorre nesse meio a (nem sempre mascarada) estigmatização, onde enquadram-se indivíduos e grupos em um perfil estereótipo delinquente. A identificação de sinais - e quanto <http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em 09/02/2017. p. 6-7. 17 BATISTA. Ibidem, p. 9. 18 BATISTA. Ibidem, p. 14. 19 Ainda, sobre a violência dos bons: "Marconi: Entre o cidadão de bem e o bandido, nós todos estamos ao lado do cidadão de bem", In: Jornal Opção,06/04/2016. Disponível em <http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o- cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem- 63018/>. Acesso em 15/02/2017. http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-63018/ http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-63018/ http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-63018/ 203 mais visíveis melhor - atua na vinculação da pessoa a uma determinada condição, a de perigosa20. A ideia do “bandido”, do indivíduo perigoso, dá base para a criação do inimigo no imaginário social. Eugenio Raúl Zaffaroni compreende que essa conceituação surge da separação entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), onde este último possuirá um tratamento diferenciado por parte do Estado, em virtude de sua suposta periculosidade. Ao retirar-lhe a condição de pessoa, coisifica-se a pessoa e permite-se toda espécie de neutralização21. A tendência dentro desse espectro, embora não seja uma norma rígida, seja que a conduta dos “cidadãos de bem” seja via de regra compreendida como positiva, enquanto a conduta dos “inimigos”, em regra de modo negativo. O paradoxo se instala quando se percebe que existem comportamentos destrutivos e que causam danos há inúmeras pessoas que não são vistos como movimentos violentos, como é o caso das demissões em massa, do uso de métodos exploratórios no mercado de trabalho, etc., em detrimento de condutas menos danosas, mas que são duramente criminalizadas, como o vandalismo ou o furto. Esse tratamento diferenciado se faz vividamente presente nas agências de comunicação, através de uma seletividade que opera através de filtros de raça, classe e outros marcadores sociais.22 Segundo 20 FOSCARINI, Léia Tatiana. O discurso midiático nos meandros da criminalização: contemporaneidade e movimentos sociais. 2008. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33559-43484-1-PB.pdf>. Acesso em 15/02/2017. p. 4. 21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 18. 22 Impossível não trazer o clássico exemplo da discrepância entre duas manchetes do mesmo jornal de grande circulação nacional: "Polícia prende jovens de classe média com 300 kg de maconha no Rio", In: G1, 27/03/2015. Disponível em <http://glo.bo/1NhRaoR>. Acesso em 15/02/2017; e "Polícia prende traficante com http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33559-43484-1-PB.pdf http://glo.bo/1NhRaoR 204 Melo, “crimes de ordem tributária, por exemplo, estão nas páginas de economia ou política dos jornais, enquanto os crimes violentos ocupam as páginas policiais”23, quando não toda a primeira página. Notícias relacionadas a violência geralmente aparecem vinculadas aos setores mais pobres da sociedade. Como já foi exaustivamente exposto pelas edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o jovem pobre, negro e da periferia é a vítima número um, seja da prisão, seja da morte violenta, realizando a mídia um acompanhamento quase em tempo real, como um reality show, distante de qualquer postura crítica24. Léia Tatiana Foscarini escolhe muito bem as palavras quando afirma que a mídia não expõe simplesmente um fato, mas que "vende a notícia, cuidadosamente recortada e selecionada, exibindo um discurso parcial, dotado de pré-conceitos e de tratamentos diferenciados”25. Uma mídia que detenha um poder tal que, além de funcionar da maneira exposta, ainda seja capaz de pautar a atividade das agências executivas do próprio sistema penal26, merece, no mínimo, atenção redobrada. DO MEDO DO CRIME AO POPULISMO PUNITIVO No Brasil, a utilização da concepção abrangente de educação, voltada para o desenvolvimento da pessoa humana e para o exercício 10 quilos de maconha em Fortaleza", In: G1, 17/03/2015. Disponível em <http://glo.bo/1MIwOmK>. Acesso em 15/02/2017. 23 MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 168. 24 Sobre tratamento diverso para diferentes pessoas em diferentes classes sociais: "No aeroporto de NY, Eike é parado por brasileiros para selfies", In: O Globo, 30/01/2017. Disponível em <http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por- brasileiros-para-selfies-20841665>. Acesso em 15/02/2017; enquanto, por outro lado: "Assaltante é linchado após arrombar casa em Caruaru", In: Folha de Caruaru, 16/12/2016. Disponível em: <http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e- linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/>. Acesso em 15/02/2017. 25 FOSCARINI. Ibidem, p. 11. 26 BATISTA. Ibidem, p. 13. http://glo.bo/1MIwOmK http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por-brasileiros-para-selfies-20841665 http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por-brasileiros-para-selfies-20841665 http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e-linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/ http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e-linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/ 205 da cidadania, garantiu com que a Constituição da República prescrevesse que os conteúdos das programações dos meios de comunicação social devem atender às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas27. O radio e a televisão, por constituírem formas de serviços públicos, devem se submeter à regulação adequada, cumprindo com as devidas obrigações, tal como o atendimento ao fim educacional. De forma que, quando se fala da importância da regulação do setor de comunicação, não se trata de censura, mas de resultado do processo de juridicização da atividade de radiofusão28, onde se busca a proteção dos bens e valores, difusos e coletivos, mais vulneráveis. O comprometimento finalístico com delimitados valores públicos e sociais estabelece existência de compatibilidade entre o exercício das liberdades e a obtenção desses fins. No entanto, os grandes empresários do setor de radiofusão, preocupados apenas com seus interesses, se mostram contrários a qualquer tipo de regulação ou de controle29, alegando “defesa da liberdade de expressão”, utilizada muitas vezes para mascarar atuações arbitrárias que entram em choque com outros direitos, tais como o direito à honra e à intimidade. No fenômeno da indústria cultural30, os responsáveis pela cultura de massa oferecem produtos de baixa qualidade em razão dos seus interesses particulares baseados exclusivamente no lucro, de 27 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 07/02/2017. 28 ANDRÉA, Fernando de. O protagonismo dos meios de comunicação social: algumas reflexões. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 464. 29 ANDRÉA. Idem. 30 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984. p. 57. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm 206 maneira que o sucesso está nas práticas de manipulação adotadas, estas que garantem altos índices de audiência. Pensar em espectador como consumidor é ignorar inúmeras demandas, motivo pelo qual se faz necessária a regulação do setor, a fim de impulsionar o desenvolvimento de uma cidadania social, política e cultural31. E, também, no que tange ao pluralismo e à participação de grupos minoritários e excluídos, há que se perceber o problema da concentraçãovertical e de seus reflexos nocivos32. Tratando da necessidade de regulação dos meios de comunicação, há que se falar que a política cultural tem relação estratégica com as políticas de educação, comunicação social e mesmo com as de segurança pública, sendo essas relações elementos essenciais para o processo de transformação social. No entanto, especificadamente, no que tange à relação com a segurança pública, apresenta-se um problema denominado de “ideologia do repressivismo saneador”33, questão propagada pela mídia que, mediante a espetacularização, dissemina o medo na sociedade34, fazendo com que a criminalidade apareça como o problema social mais relevante. É o discurso punitivo, difundido pelos meios de comunicação em massa, que busca o aumento das penas e o cerceamento das garantias fundamentais, colocando a criminalidade como maior mal a ser combatido. Frisa-se, aqui, a importância do que Nilo Batista35 31 ANDRÉA. Ibidem, p. 465. 32 ANDRÉA. Ibidem, p. 467. 33 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos de instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 15. 34 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. p. 28. 35 BATISTA. Ibidem. p. 3. 207 denominou de “novo credo criminológico da mídia”, cujo núcleo reside na ideia de glorificação da pena. A vinculação entre mídia e o sistema penal apresenta uma disputa desigual entre o discurso criminológico acadêmico e o discurso criminológico midiático, de caráter hegemônico36, haja vista que este demonstra ter as melhores soluções para o exercício do controle penal dos contingentes humanos, por ele marginalizados37. Os meios de comunicação atuam como agentes políticos, idôneos para moldar a opinião pública. Noticiam fatos a partir de formas próprias de percepção do real, defendendo um Estado Penal máximo, em detrimento do Estado social, garantindo uma “onda punitiva” que por onde passa leva as consequências terríveis da miséria e persegue os inconvenientes sociais38. E, longe de apresentar qualquer hipótese de redução ou alteração das condições que atingem a população marginalizada, toda solução é depositada na prisão, ali aonde irá se conter, controlar e confinar os elementos considerados perigosos39. Temos na mídia fontes de percepção do delito e dos “caminhos necessários para solução dos problemas da segurança pública”, sendo essas informações, muitas vezes, transmitidas de forma abstrata e confusa. Nessas sociedades da informação, há a transformação de fatos que ocorrem em âmbitos mais reduzidos da coletividade em 36 ANDRÉA. Ibidem, p. 468. 37 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 21. 38 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Neoliberalismo, mídia e movimento de lei e ordem: rumo ao Estado de Polícia. In: Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, n° 15/16, 262. 39 ANDRÉA. Ibidem, p. 469. 208 acontecimentos públicos e, a partir desses alarmismos, os cidadãos adquirem uma dimensão social que dificilmente pode ser construída sem essas ações midiáticas40. As indústrias da comunicação surgem como as grandes mediadoras entre a cidadania e o mundo do delito, no sentido de que boa parte do que os indivíduos sabem e imaginam do crime é baseado nas imagens divulgadas na televisão, nas informações radiofônicas e nos discursos da imprensa escrita41. E, talvez, nem possam ser consideradas mediadoras, pois são elas que elaboram a mensagem transmitida. Essa forma de atuação alarmista, insistente e sensacionalista, mostra o forte papel da mídia na transformação dos imaginários coletivos da (in)segurança42 e na ampliação da cultura do medo. Precisando entender que o discurso do medo produz a imagem necessária do terror social, e é transferido de forma tão natural ao senso comum que se torna mais espontânea a exigência de uma ação estatal cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos estados totalitários43. Baierl44 entende que na nossa sociedade e na história da humanidade, o medo é usado como instrumento de manipulação, tornando as pessoas escravas e dominadas por determinados grupos, indivíduos ou situações. Assim, o poder de manipular as pessoas através 40 BARATA, Francesc. A midiatização do direito penal. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 471. 41 BARATA. Ibidem, p. 476. 42 BARATA. Idem. 43 SOBRINHO, Sergio Francisco Carlos Graziano. Reflexões sobre os fundamentos de uma sociedade de controle. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 333. 44 BAIERL, Luzia Fátima. Medo social: da violência visível ao invisível da violência. São Paulo: Cortez, 2004. p. 39. 209 do medo não é uma novidade, no entanto, o poder da mídia trouxe amplitude à essa manipulação45. O medo passou a ser usado de forma consciente para manipular as forças populares, revelando-se uma importante ferramenta para se alcançar o consenso na sociedade para o recrudescimento penal46. Bauman47 traz que esse medo tem caráter difuso, pois eles podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta. Das ruas escuras ou de telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos entram em contato. Do que chamamos “natureza” (pronta, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com proliferação de terremotos, inundações, furacões, deslizamentos, secar e ondas de calor) ou de outras pessoas (prontas, como dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos corpos com a súbita abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos, agressões sexuais, comida envenenada, água ou ar poluídos). O medo sentido e a criação desse pânico social, muitas vezes pela maximização operada pelos meios de comunicação, criam condições necessárias para que a população legitime o recrudescimento penal, aceite a redução de direitos e garantias, e se torne consumidora dos produtos de segurança. Ressaltando-se que esse recrudescimento é 45 FELETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio de Janeiro: Revan, 2014. p. 125. 46 FELETTI. Ibidem, p. 126. 47 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 11. 210 voltado para os delitos pelos quais os trabalhadores pobres são mais perseguidos, já a redução de direitos e garantias é para todos - mas principalmente para esses indivíduos, pois eles são o principal alvo do controle penal e os que são mais criminalizados pela mídia48. O consumo dos produtos de segurança, dessa forma, é consequência do medo de ser vítima de um crime. Essa cultura de propagar o medo e as pulsões repressivas presentes na sociedade, foi justamente chamada de “populismo penal”, expressão que caracteriza qualquer estratégia referente ao tema da segurança voltada para obter demagogicamente o consenso popular, respondendo ao medo da criminalidade com um uso conjuntural do direito penal tão duramente repressivo e antigarantista quando ineficaz a respeito das finalidades declaradas de prevenção49. As emoções coletivas passaram a ser um fator essencial nas políticascriminais, um fenômeno semelhante à sua inclusão no discurso político. Não é por acaso que o tema da (in)segurança vem ganhando amplo destaque nos debates eleitorais50. Apoiada nos alarmismos midiáticos, fortalece-se uma criminologia que comercializa “com imagens, arquétipos e ansiedades, em lugar de estar fundamentada em uma análise meticulosa e nos descobrimentos da investigação científica.”51. E é assim que muitas medidas abrangidas pelo populismo 48 FELETTI. Ibidem, p. 127. 49 SALAS, Denis apud FERRAJOLI, Luigi. Democracia e medo. Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, nº 21/22. p. 118. 50 BARATA. Ibidem, p. 485. 51 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005. p. 93-94. 211 punitivo são colocadas em prática depois de uma cobertura midiática intensiva, quando não sensacionalista, a respeito de determinados problemas sociais52. Amaral53 ressalta que “a paixão por punir, alimentada pelo populismo penal, é imposta, sobretudo, pelo afeto. Quebra-se qualquer olhar compreensível quanto ao acusado, na medida em que a indignação coletiva relega este olhar ao mal personificado”. A mudança de sentido do papel do direito penal e do conceito de segurança, somada ao alarme social, à dramatização do medo e ao populismo punitivo, formam a palavra de ordem “tolerância zero”, esta que é muito admirada, no entanto, nos custa a transformação das sociedades em regimes disciplinares, submetidos à vigilância invasiva e (nem sempre) sutil da polícia54. É preocupante a verificação de como as mensagens midiáticas estão se transformando nos melhores aliados das políticas conservadoras em matéria penal, já que suas informações favorecem a indignação e é sobre ela que as ações de “tolerância zero” são legitimadas55. Como afirma Garland, o sentimento que perpassa a política criminal “é agora, com mais frequência, uma irritação coletiva e uma exigência moral de retribuição, ao invés do compromisso de buscar uma solução justa, de caráter social”56. As políticas criminais estão sendo guiadas pelo discurso midiático de alarmismo e disseminação da cultura do medo. Há uma grande influência da mídia 52 BARATA. Ibidem, p. 486. 53 AMARAL, Augusto Jobim do e ROSA, Alexandre Morais da. Cultura da punição: a ostentação do horror. 2º ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 71. 54 FERRAJOLI. Ibidem, p. 124-125. 55 BARATA. Ibidem, p. 487. 56 GARLAND. Ibidem, p. 45. 212 na agenda penal, isto fica mais claro quando constatamos que os meios de comunicação estão atuando como o ator principal nas dinâmicas atuais das políticas criminais57. Sem a mídia, restaria uma grande dificuldade de compreender o auge do populismo punitivo e a consolidação do Estado Penal. CONSIDERAÇÕES FINAIS As reflexões, dentro das perspectivas aqui apontadas, apresentaram os profundos laços existentes entre os meios de comunicação social e as políticas populistas de sustentação do medo, estas que são inúteis, restringem liberdades e enfraquecem a luta por uma sociedade justa e solidária. O medo propagado consegue romper relações sociais, alimenta tensões, gera ódios e aumenta o desejo de vingança, envenenando a população, a fim de garantir um bom espaço para a cultura punitiva que ameaça a democracia. Compreendemos que os alarmismos midiáticos se tornam alarmismos sociais quando a mídia consegue, através de seu discurso desproporcional, insistente e sensacionalista, atingir a emoção pública e ser determinante para a formação da opinião dos cidadãos. E, assim, os meios de comunicação deixam de ser agentes de transmissão de informações, para se transformarem em instrumento de incentivo e suporte do populismo punitivo. Contestar esses processos é desenvolver novas formas de enxergar o outro e a justiça. O agora urge pela regulação da mídia, por novas formas de solidariedade e pela defesa da luta contra as políticas 57 BARATA. Ibidem, p. 487. 213 populistas de punição. Que o caminho seja de liberdades, igualdades e pluralidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984. AMARAL, Augusto Jobim do; ROSA, Alexandre Morais da. Cultura da punição: a ostentação do horror. 2º ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. ANDRÉA, Fernando de. O protagonismo dos meios de comunicação social: algumas reflexões. Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, nº 21/22. BAIERL, Luzia Fátima. Medo social: da violência visível ao invisível da violência. São Paulo: Cortez, 2004. BARATA, Francesc. A midiatização do direito penal. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. ISSN: 1646-3137. 2003. Disponível em <http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia- sistema-penal.pdf>. Acesso em 09/02/2018. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. 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