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ENSAIOS CRIMINOLOGIA_OABRS

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Michelle Karen Batista dos Santos 
Lucas e Silva Batista Pilau 
 (Organizadores) 
 
ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS: 
Produções Coletivas de Resistência 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porto Alegre 
OAB/RS 
2018 
Michelle Karen Batista dos Santos 
Lucas e Silva Batista Pilau 
 (Organizadores) 
 
ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS: 
Produções Coletivas de Resistência 
 
Augusto Jobim 
Betina Warmling Barros 
Caroline Bussoloto de Brum 
Cibele de Souza 
Domenique Assis Goulart 
Fernanda Corrêa Osório 
Fernanda Martins 
Franchesca Inácio Zandavalli 
Laura Gigante Albuquerque 
Leandro da Cruz Soares 
Lucas Dall'Agnol Pedrassani 
Lucas e Silva Batista Pilau 
Michelle Karen Batista dos Santos 
Osmar Antônio Belusso Júnior 
Patrícia Martins Saraiva 
 
 
 
 
Porto Alegre 
OAB/RS 
2018 
Copyright © 2018 by autores 
Todos os direitos reservados 
Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da OABRS 
Fernanda Corrêa Osório 
 
Revisores 
Betina Warmling Barros 
Domenique Assis Goulart 
Thiago Ribeiro Rafagnin 
 
Capa 
Carlos Pivetta 
 
E52 
Ensaios Criminológicos: produções coletivas de resistência/ Michelle 
Karen Santos, Lucas e Silva Batista Pilau (Organizadores); Augusto 
Jobim [et al.]. Porto Alegre/OABRS. 2018. 241p. 
 
ISBN online: 978-85-62896-13-2 
 
1. Ensaios Criminológicos. 2. Resistência. I. Santos, Michelle Karen 
Batista dos. II. Pilau, Lucas e Silva Batista. III. Título 
 
 CDU 343.9 
 
Rua Manoelito de Ornellas,55 – Praia de Belas 
CEP: 90110-230 Porto Alegre/RS 
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O conteúdo é de exclusiva responsabilidade dos seus autores. 
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COOABCred-RS 
Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel 
Vice-Presidente: Márcia Heinen 
 
 
 
 
PALAVRA DO PRESIDENTE 
A Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/RS tem se 
notabilizado pela crescente e plural produção de conteúdo oferecida ao 
Direito brasileiro. São diferentes trabalhos elaborados a partir da 
enriquecedora contribuição de advogadas e advogados. 
A publicação da obra coletiva “Ensaios Criminológicos: 
Produções Coletivas de Resistência” é mais um desses projetos de 
fôlego. Questões relativas ao contexto do histórico de crimes no Brasil, 
discursos criminológicos vigentes e suas implicações, desdobramentos 
para a sociedade de novas realidades sociais, entre outros olhares, são 
pautas atuais que impulsionam avaliações e revisões de temas 
significativos para os brasileiros. 
A OAB/RS se coloca como uma grande fomentadora e 
plataforma impulsionadora para relevantes debates. Nesse sentido, o 
trabalho da ESA deve ser reiteradamente reconhecido, em um trabalho 
de muita qualidade e dedicação da diretora-geral Rosângela Herzer dos 
Santos. Neste particular, o trabalho da diretora de Cursos Permanentes 
da ESA, Fernanda Osório, acompanha os aplausos e elogios. 
Por fim, registro com satisfação, tantos profissionais cada vez 
mais interessados em contribuir com estudos e análises. É através dessa 
riqueza de ideias, pontos de vista e pesquisas que qualificamos o debate 
sobre pautas que fazem do Direito algo tão apaixonante e envolvente. 
A todos que colaboraram com a obra “Ensaios Criminológicos: 
Produções Coletivas de Resistência”, recebam minhas felicitações e 
reconhecimento. 
Ricardo Breier 
Presidente da OAB/RS 
 
 
 
PREFÁCIO 
Na segunda metade do ano de 2016, os organizadores dessa obra 
deram início a uma trajetória que até então desconheciam seu final e os 
possíveis resultados: passaram a compor, juntos, a coordenação do 
Grupo de Estudos em Criminologia na Escola Superior de Advocacia 
da OAB/RS. Optaram, em um primeiro momento, por um semestre 
voltado às leituras básicas do campo criminológico, retomando as 
etapas de constituição da criminologia como saber e as principais 
temáticas e pesquisas relativas às agências que compõe o sistema penal. 
Os próximos semestres, até o final de 2017, momento em que encerrou 
a coordenação em conjunto entre os organizadores (o que não 
ocasionou, por óbvio, o fim do grupo), buscou-se um olhar desde outros 
marcadores mais específicos (e por muito tempo colocados de lado pela 
epistemologia criminológica), como o de gênero e o racial. Diversos 
pesquisadores e pesquisadoras de Porto Alegre – com competência 
acadêmica reconhecida – foram convidados a contribuir com os 
debates, mas o que fez, verdadeiramente, que o grupo se constituísse e 
se mantivesse vivo foi a relutância, de diversos estudantes, 
advogadas/advogados e interessadas/interessados, em se manterem 
assíduos nas reuniões, contribuindo com suas experiências, acadêmicas 
e de vida, com os debates, e na construção do rumo que o grupo iria 
tomar a cada semestre. 
Esse livro é fruto daquelas pesquisadoras/pesquisadores que 
estavam presentes no primeiro semestre, quando o Grupo de Estudos 
em Criminologia da OAB/RS se constituiu, lá em 2016. A ideia, 
originada ao fim do semestre de trabalho, foi dar visibilidade às 
pesquisas e inquietações que os e as participantes trouxeram durante as 
reuniões, tomando como referência as temáticas e escritos que 
 
 
 
sustentaram as discussões. E por isso são chamados de ensaios, vez que 
construídos para dar vazão, através de artigos científicos, a propostas 
de pesquisas que podem ou não ter avançado no decorrer do tempo, com 
o amadurecimento acadêmico das autoras e autores. E nesse ponto, é 
preciso destacar que apesar de serem tomados como ensaios, dos 
escritos vertem muita qualidade, como os leitores e as leitoras poderão 
perceber. 
Ainda, é preciso esclarecer que o título, ao referir tratarem-se de 
produções coletivas de resistência, assim o é por dois motivos. 
Primeiro, porque a gestação e organização dos artigos foi realizada 
coletivamente, tendo pelo menos um(a) autor(a) revisado o artigo deoutro(a) autor(a), levantando dúvidas e críticas quanto ao seu conteúdo, 
com o objetivo final de tão somente qualificar os trabalhos que 
comporiam o livro. Segundo, como é mais evidente, pode-se notar que 
o fio condutor dos textos é a resistência aos discursos violentos e 
desinformados que há muito tempo dão base às políticas criminais e a 
atuação dos agentes e das agências de controle do sistema penal. Além 
disso, resistência, em um olhar mais atento, porque vive-se em um país 
onde recorrentemente – e nos últimos anos ainda mais – pesquisadores, 
até aqueles com larga trajetória acadêmica, são ameaçados com cortes 
de orçamento para suas pesquisas, assim como bolsas de iniciação 
científica, mestrado e doutorado passam a se tornar elemento raro e 
disputado nas faculdades e nos programas de pós-graduação 
(acomodando a lógica da concorrência entre pesquisadores e os efeitos 
em nível de saúde que esse estado impõe). Assim, tendo em vista que a 
maioria dos autores que compõe essa obra haviam recém iniciado sua 
caminhada no campo acadêmico, demonstraram esses estarem cientes 
de que, apesar das limitações que a profissão impõe, vale a pena lutar 
pela pesquisa e pela ciência do país. Essa publicação resiste, então, 
 
 
 
contra a redução e o encolhimento da pesquisa e mais ainda contra o 
obscurantismo que toma conta da questão criminal. 
Por fim, é preciso um agradecimento especial a professora e 
advogada Fernanda Osório, a qual contribuiu, de maneira decisiva, para 
que essa publicação fosse levada a cabo, e também aceitou o convite 
dos organizadores para realizar a apresentação da obra, assim como a 
Editora da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, por oportunizar 
que o material fosse publicado em seu catálogo. 
 
Porto Alegre, agosto de 2018. 
Lucas e Silva Batista Pilau 
Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) 
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e 
Administração da Justiça Penal (GPESC) 
Advogado do Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDDH) de São 
Leopoldo 
 
 
Michelle Karen Batista dos Santos 
Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS) 
Coordenadora do Grupo de Estudos Direito e Criminologia (ESA-
OAB/RS) 
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e 
Administração da Justiça Penal (GPESC) 
Advogada 
 
 
 
 
 
 
 
APRESENTAÇÃO 
Honra-me os autores e as autoras com o convite de apresentar a 
coletânea de textos, fruto dos encontros e das discussões realizadas no 
Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior da Advocacia 
da OABRS em parceria com a Comissão Especial do Jovem Advogado 
(CEJA/OABRS), coordenado por Michelle Karen Batista dos Santos e 
por Lucas e Silva Batista Pilau, incansáveis na concretização do projeto 
de aliar academia e advocacia, e que proporcionaram aos Advogados e 
Advogadas do Rio Grande do Sul a comunicação entre o saber 
criminológico e o saber jurídico-penal. 
Ainda que preliminarmente, registro a felicidade de participar 
desse projeto conjunto que revela as inquietações de um grupo de 
profissionais que, com um potencial revolucionário, resgatam no 
Direito e no exercício da advocacia a possibilidade de transformação da 
realidade. 
Não resta dúvida que há certas épocas em que os desafios são 
maiores para uma abordagem crítica dos problemas relacionados à 
violência, ao crime e ao controle social. Porém, para o Grupo de 
Estudos em Criminologia(s), o desafio só fez aumentar a qualidade e a 
profundidade dos debates, com o permanente incentivo para que 
todos/as os/as integrantes tivessem espaço de fala e (des)construções. 
A partir de uma perspectiva interdisciplinar, o Grupo de Estudos em 
Criminologia(s), fez da Escola Superior da Advocacia um espaço 
coletivo de discussão e reflexão sobre temas criminológicos candentes: 
Criminologias Clássica, Positivista e Crítica, Crítica Criminológica ao 
Processo Penal, Política Criminal e Práticas Punitivas, Segurança 
Pública no Brasil, Criminologia Feminista, Políticas de Drogas e 
Encarceramento em Massa e, por fim, Criminalização da Juventude. 
 
 
 
As contribuições das Pesquisadoras Fernanda Martins, Betina 
Warmling Barros e do Pesquisador Augusto Jobim do Amaral nos 
encontros do Grupo enriqueceram os diálogos e permitiram questionar 
a ideia de que a adesão a uma lógica punitivista traria soluções efetivas 
para a diminuição da violência. 
A disposição para o diálogo e preocupação em diminuir os 
espaços entre a “teoria e prática” faz dessa coletânea de artigos um 
convite ao leitor para que se comprometa com os direitos e garantias 
fundamentais, tal como proclamados na Constituição da República e 
nas Declarações Internacionais. Por todos esses motivos, é um grande 
prazer e orgulho apresentar essa obra. 
 
 Porto Alegre, julho de 2018. 
 
Fernanda Osório 
Advogada 
Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da 
OABRS 
Prof. da Escola de Direito da PUCRS
 
 
 
SUMÁRIO 
PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier 
PREFÁCIO - Lucas e Silva Batista Pilau, Michelle Karen Batista 
dos Santos 
APRESENTAÇÃO – Fernanda Corrêa Osório 
(RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA 
MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO 
ADOLESCENTE .............................................................................. 15 
Betina Warmling Barros e Lucas e Silva Batista Pilau 
RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA 
CRIMINOLÓGICA ......................................................................... 35 
Caroline Bussoloto de Brum 
ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA LITERATURA NÃO 
FICCIONAL E/OU MARGINAL NA TRADUÇÃO DOS 
DISCURSOS PRODUZIDOS PELO SISTEMA PUNITIVO A 
PARTIR DO CONCEITO DE “LOCAL DE FALA” ................... 52 
Cibele de Souza 
REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DA 
CONSTRUÇÃO DE UMA LÓGICA E UMA PRÁXIS 
JURÍDICAS ANTI-RACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE ..... 78 
Domenique Goulart 
PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE MEDO ........... 100 
Fernanda Martins e Augusto Jobim 
 
 
 
A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE ESTUPRO: A 
CULPABILIZAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE 
PATRIARCAL BRASILEIRA ...................................................... 115 
Laura Gigante Albuquerque e Fernanda Corrêa Osório 
GUERRA ÀS DROGAS: DA INEFICÁCIA DO 
PROIBICIONISMO À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA .. 133 
Franchesca Inácio Zandavalli 
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL: 
PERSPECTIVAS DOGMÁTICA E JURISPRUDENCIAL ...... 149 
Leandro da Cruz Soares 
A EXCEÇÃO COMO REGRA NA CRIMINALIZAÇÃO DA 
RESISTÊNCIA: EXPANSIONISMO PUNITIVO E O 
ABANDONO DAS JUSTIFICATIVAS JURÍDICAS NAS 
ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SOCIAL ............................... 172 
Lucas Dall'Agnol Pedrassani 
“MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”: O DISCURSO 
MIDIÁTICO COMO INSTRUMENTO DE INCENTIVO E 
SUPORTE DO POPULISMO PUNITIVO .................................. 196 
Michelle Karen Batista dos Santos e Osmar Antônio Belusso Júnior 
FACÇÕES E MARAS: ANÁLISE COMPARATIVA DA 
CONSTITUIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ..... 216 
Patrícia Martins Saraiva 
 
 
 
15 
 
 
(RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA 
MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA 
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 
 
Betina Warmling Barros1 
Lucas e Silva Batista Pilau2 
 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 
Desde que passou a se consolidar como área própria de 
conhecimento no Brasil, principalmente a partir da promulgação do 
Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a justiça juvenil e seus 
instrumentos socioeducativos vêm ganhando contornos teóricos cada 
vez mais robustos e interligados com a produção acadêmica 
internacional. A atuação dos profissionais a serviço do Estado que 
lidam com este público também vem sendo esmiuçada como problema 
de pesquisa, em que pese a ainda absoluta desigualdade de 
aprofundamento teórico e de quantidade de intervenções, se comparada 
 
1 Mestranda em Sociologia no Programade Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. 
Atualmente é bolsista de Mestrado CNPQ. Possui Graduação em Ciências Jurídicas e 
Sociais da Faculdade de Direito/UFRGS. Atuação na área da Sociologia da Violência, 
Criminologia, Direito Penal e Direito Penal Juvenil. E-mail: 
barros.betina3@gmail.com. 
2 Pesquisador e Advogado. Mestre em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande 
do Sul (PUCRS). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas 
(UCPel). Professor convidado na Pós-Graduação (lato senso) em Ciências Criminais 
da Faculdade Campo Real (Guarapuava/PR). Advogado do Centro de Defesa de 
Direitos Humanos (CDDH) de São Leopoldo. E-mail: lucas.pilau@hotmail.com. 
mailto:barros.betina3@gmail.com
mailto:lucas.pilau@hotmail.com
16 
 
 
com temáticas mais tradicionais da criminologia, como o 
encarceramento adulto. 
Assim, a despeito da consolidação deste “novo” campo 
científico, há ainda extrema carência de aprofundamento nas pesquisas 
na área da justiça juvenil, sobretudo em temas mais específicos como, 
por exemplo, a atuação da polícia junto aos adolescentes. Talvez seja 
justamente no processo de indiferenciação das vivências destes jovens 
- como se a atuação da polícia produzisse os mesmos efeitos em um 
adolescente de 15 anos e em um adulto de 25 - que reside a força de 
movimentos conservadores, os quais buscam o desmantelamento das 
conquistas das últimas décadas3. É necessário, pois, singularizar. 
Com este objetivo, o presente artigo busca inicialmente traçar 
um breve histórico do sistema de justiça juvenil no Brasil, delineando 
os principais pontos de mudança com a transição da Doutrina da 
Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. A virada no 
paradigma levou a promulgação de nova legislação, necessária também 
em razão das desconfianças que se instalavam a respeito das teorias 
etiológicas do crime e a reabilitação como objetivo da justiça juvenil4. 
Em paralelo a essa onda de renovação legislativa, entretanto, a polícia 
militar brasileira manteve seu funcionamento nos mesmos moldes do 
período da ditadura civil-militar, preservando um ordenamento 
 
3 Entre 1993 e 2010 tramitaram no Legislativo brasileiro 37 propostas de Emenda 
Constitucional visando a redução da maioridade penal. (CAPPI, Ricardo. Pensando 
As Respostas Estatais às Condutas Criminalizadas: um estudo empírico dos debates 
parlamentares sobre a redução da maioridade penal (1993 - 2010). Revista de Estudos 
Empíricos em Direito, 1 (1), 10-27, 2013. p. 15.) 
4 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin 
america. In: MÁXIMO, L.; TANENHAUS D. S; ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile 
Justice in Global Perspective. New York: New York University Press, 2015. p. 205. 
17 
 
 
hierárquico e militarizado, do qual o objetivo maior continua sendo o 
extermínio do inimigo. 
Assim, a despeito da inovação teórica ter produzido uma 
revolução no sistema de justiça juvenil, o primeiro contato do Estado 
com o adolescente continua sendo através de uma instituição policial 
que não passou por qualquer reformulação democrática. A polícia, se à 
época do menorismo era “provedor majoritário e habitual da clientela 
das chamadas instituições de ‘proteção’ ou de ‘bem-estar’’5, pouco se 
transformou nessas últimas décadas visando garantir a proteção integral 
destes sujeitos em desenvolvimento. Continua, na verdade, a 
representar o símbolo mais eloquente de violação aos direitos 
individuais dos adolescentes criminalizados, ainda que tal desrespeito 
não inicie através da polícia e nem por ela seja sepultado. 
 
1 SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL: ENTRE O PUNIR E O 
EDUCAR 
O campo jurídico exerce grande influência na vida daqueles a 
ele subjugados. O Direito determina, em maior ou menor medida, os 
próximos capítulos do enredo pessoal de quem a ele se curva (ou é 
curvado, sem opção de fuga). Quando o público alvo dos desmandos 
judiciais está sendo acusado do cometimento de um crime, estamos 
falando do limite máximo de que é possível ao juiz dispor - a liberdade 
individual. Evidente que, a respaldar decisões desta ingerência, há um 
 
5 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça. In: 
e BELOFF, Mary orgs. Infância, Lei e Democracia na América Latina, p. 42., apud, 
COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processuais e o direito penal juvenil: como 
limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria 
do Advogado, 2005. p. 58. 
18 
 
 
sistema legal de comandos e proibições, eis que há tempos deixou-se de 
acreditar - explicitamente, ao menos - no juiz como homem sábio, 
detentor da verdade. 
Pela importância que essas normativas possuem na vida da 
sociedade a que se destina - não apenas como Lei a ser cumprida, mas 
como sistema legal complexo que funda instituições, determina seu 
funcionamento, e expõe suas razões de ser - acredita-se que 
compreender o processo de constituição e implementação do 
microssistema legal que respalda a realidade em análise é fundamental 
à pesquisa de qualidade. Nesse sentido, quando se escolhe o recorte da 
violência policial contra a juventude brasileira, o sistema 
socioeducativo entra em pauta e passa a ser elemento central na análise 
deste fenômeno social, dado que é somente a partir dele e para ele que 
se fundam as possibilidades e justificativas para a repressão policial. 
Passa-se, então, à análise do ECA. 
O Estatuto brasileiro inaugurou em 1990, o que depois virou 
tendência em praticamente toda a América Latina, a concretização em 
norma da Doutrina da Proteção Integral. No mesmo ano, a Convenção 
Internacional dos Direitos da Criança possibilitou o início das chamadas 
leis de segunda geração6, sendo, o caso brasileiro representativo de uma 
“verdadeira ruptura com a tradição anterior, assim como um caso de 
aplicação rigorosa do novo paradigma”7. A promulgação da lei no 
contexto de redemocratização brasileira talvez represente a segunda 
maior ruptura no recém delineado campo da justiça juvenil, após a 
 
6 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: 
HUCITEC, 1998. p. 34. 
7 Idem, p. 35. 
19 
 
 
incorporação do modelo norteamericano de separação entre as varas 
criminais e juvenis, ainda no início do século XX8. 
É com a mudança legislativa de 1990 que se começa a pensar a 
criança e o adolescente, no contexto brasileiro, não mais como menor 
em situação irregular - ou “mero objeto do processo”9, mas como 
sujeito de direito, principalmente a partir do princípio constitucional da 
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento10. A partir do novo 
paradigma incorporado11, se por um lado começa-se a distinguir as 
políticas para adolescentes autores de ato infracional diversos daqueles 
previstos para crianças e adolescente em situação de risco, por outro, a 
legislação se propõe a ser instrumento para todo o conjunto da categoria 
infância. 
Nesse contexto, diversas estruturas de funcionamento do 
sistema de justiça juvenil são modificadas com o intuito de adequar-se 
a um devido processo legal pautado pela limitação do poder 
jurisdicional e pelo sistema de garantias, sendo extendido aos 
adolescentes “todas as garantias que correspondem aos adultos nos 
juízos criminais, segundo as constituições e instrumentos internacionais 
 
8 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin 
america. 
9 SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e 
ato infracional. 3. ed. ampl. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 18. 
10 Constituição Federal de 1988, art. 227, parágrafo 3º, inciso V. 
11“ADoutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que 
historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto conceitual, 
metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas às 
crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos humanos, superando o paradigma 
da situação irregular para instaurar uma nova ordem paradigmática.” (SARAIVA, 
João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato 
infracional. p. 18). 
 
20 
 
 
pertinentes”12. Mantém-se, todavia, a separação dos sistemas de 
julgamento e a diferenciação das sanções a serem aplicadas. De modo 
geral, portanto, o Brasil inaugurou transformação paradigmática vivida 
logo após nos demais países do continente, estabelecendo preceitos 
norteadores do sistema, conforme pontua Mary Berloff13, como o 
princípio da legalidade, mecanismos restaurativos e alternativos, idade 
mínima de responsabilidade criminal, devido processo legal, 
consequências legais para os jovens que se declaram criminalmente 
responsáveis e internação como a última medida. 
Certamente, o instrumento de maior ingerência do Estado sob a 
vida dos adolescentes, agora protegidos pelo ECA é a medida 
socioeducativa, isto é, a resposta estatal para o cometimento de ato 
infracional - o que seria considerado crime, fossem sujeitos adultos. 
Trata-se de mecanismo de duplo caráter, em que se encontram 
interligadas intrinsicamente as dimensões punitiva e pedagógica. Se o 
educar está no nome da sanção, no seu dever-ser, o punir está presente 
na prática, nos efeitos e na aparência que as medidas vão começar a 
apresentar para a sociedade a partir da vigência do Estatuto. 
A ambivalência desta nova categoria jurídica, criada juntamente 
com a responsabilização penal dos adolescentes, é confusa desde o seu 
princípio e, ao irradiar-se, continua a causar interpretações tanto em um 
sentido quanto em outro. Os técnicos responsáveis pela aplicação destas 
medidas (sejam juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais ou 
 
12 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: 
adolescente e ato infracional. p. 27. 
13 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin 
america. p. 210. 
21 
 
 
educadores) lidam com um objeto jurídico-educacional “que ao mesmo 
tempo deve reabilitar infratores e cultivar cidadãos14”. Assim, ao 
entender o adolescente como um ser passível de correição social, se 
cristalizou um ponto intermediário de intervenção do Estado, entre 
piedade e tratamento como meio de controle social15. 
 Conforme se vê, portanto, a despeito da importância da 
promulgação do Estatuto no contexto brasileiro e latino-americano, a 
legislação não logrou romper com o chamado trinômio pobreza, desvio 
e delinquência, nas palavras de Liana de Paula16. O paradigma da 
Situação Irregular, precedente ao ECA e sustentado na ideia da divisão 
entre crianças e menores, ainda percorre os corredores das Varas da 
Infância e Juventude e dos locais de execução de medida 
socioeducativa. Compartilhando da análise realizada pela autora, ao 
apostar no poder judiciário como agente promotor de cidadania, 
ascensão social e garantidor dos direitos humanos, “a doutrina da 
proteção integral aposta na instituição de caráter mais conservador do 
Estado Moderno como propagadora de mudanças”17. Esquece, todavia, 
que o sistema socioeducativo, ao aplicar sanções, se afasta menos do 
que gostaria do sistema punitivo e, nesse sentido, segundo nos desvenda 
Foucault18, concede ao juiz nada mais do que o poder de sancionar 
 
14 FONSECA, Cláudia; SCHUCH, Patrice. Políticas de proteção à infância: um olhar 
antropológico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 77. 
15 NICODEMOS, Carlos. A natureza do sistema de responsabilização do adolescente 
autor de ato infracional. In: ILANUD (Org.), Justiça Adolescente e Ato Infracional: 
Socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006, p. 62-85. 
16 PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São 
Paulo. 2011. - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de 
São Paulo, São Paulo, 2011. p. 61 
17 PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São 
Paulo, p. 61. 
18CASTRO, Françoise. Foucault par lui même. Disponível em: 
22 
 
 
aquilo que já fora muito antes decidido, quando do momento da 
apreensão do adolescente pela polícia. 
2 VIOLÊNCIA POLICIAL NO COTIDIANO BRASILEIRO 
No Brasil e no mundo, diariamente são propagadas, tanto nos 
meios tradicionais da mídia quanto nas redes sociais, fatos relacionados 
à violência19 policial. Ou seja, fatos que demonstram o aparato estatal 
interagindo com os sujeitos desde uma perspectiva autoritária e abusiva 
frente aos direitos humanos internacional e constitucionalmente 
consagrados. É a violação, pura e simples, daqueles que virtualmente 
teriam o dever de proteção. Mas, no Brasil, pensar segurança pública 
não é o mesmo que pensar segurança para todos. A Constituição 
Federal, promulgada em 1988, dedica, a partir do seu artigo 144, um 
capítulo inteiro sobre o funcionamento das forças policiais – as quais, 
como se em regimes autoritários estivessem, são consideradas, segundo 
o art. 144, inciso IV, § 6º, forças auxiliares e de reserva do exército20 – 
elencando as cinco dimensões em que a instituição é repartida para sua 
 
<https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To>. Acesso em: 19.02.2017. 
19 O termo violência é aqui utilizado no sentido atribuído por Ricardo Timm de Souza: 
“Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e 
explícito à violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo e, 
inclusive, a violência autoinfligida, repousa no fato exercido de negação de uma 
alteridade [...] A violência, no sentido aqui proposto, constitui-se na medida em que 
se exerce, desde um polo de decisão individual ou social, de forma consciente ou em 
contextos que sugerem inconsciência, atos que negam a condição de outro do outro, 
ou seja, daquele que não pertence ao polo de decisão” (SOUZA, Ricardo Timm de. 
Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul, RS: Educs, 
2016, p. 100). 
20 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição 
Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da 
ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52. 
23 
 
 
atividade: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária 
federal, polícia civil e polícia militar e corpos de bombeiros. 
Diante das atribuições que a cada uma dessas estruturas é 
relegada pelo ordenamento jurídico brasileiro, para o objeto ora em 
voga, importa focar somente nas polícias militares, na medida em que 
são elas as responsáveis pelas atividades ostensivas, quer dizer, buscam 
coibir e prevenir atividades criminosas, lançando seus agentes à 
realidade dos bairros, das comunidades, das favelas. É o policial militar 
quem se apresenta num primeiro momento, inesperadamente ou quando 
convocado, aos fatos que podem (ou não) decorrer de atividades 
criminosas. 
Por isso é que, ao se falar de polícia militar, está se falando do 
bloco da instituição policial brasileira, e mesmo de forma mais ampla, 
do sistema penal como um todo, que incide diretamente sobre a 
sociedade e especificamente sobre os indivíduos (gestos, ações e 
movimentos): ora, como uma de suas faces, poder disciplinar por 
excelência, na medida em que busca docilizar corpos para que se 
tornem (economicamente) úteis21. Nesse sentido, sua estética 
(condensada em armaduras e aparatos de forte blinde) contribui para 
sua função panóptica – enxergar sem ser enxergado – em que oscontemporâneos trajes de robocop mascaram a identidade do corpo ali 
inserido. Verdadeiro efeito de viseira22. 
 
21 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de 
Janeiro: Vozes, 2009, pp. 131-163. 
22 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a 
nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 
1994, p. 23. 
24 
 
 
É incontroverso que uma polícia estruturada de forma militar 
agirá como se em uma guerra estivesse (e, portanto, usará táticas 
direcionadas a inimigos), sem deixar de olvidar que os maiores 
genocídios cometidos até hoje estiveram a cargo de forças policias ou 
de forças armadas que cumpriam funções de polícia - a America Latina 
é um exemplo pulsante23. No caso do Brasil, a ausência de uma política 
de transição da ditadura civil-militar para o regime político-
democrático também contribuiu para que a estrutura militarizada da 
polícia se mantivesse intocada e, portanto, envolta em uma 
continuidade autoritária em que morte e esquecimento24 pautam o 
cotidiano dos homini sacri, ou seja, das vidas matáveis25. Dirá 
acertadamente Nilo Batista: “O militar é adestrado para o inimigo, o 
policial para o cidadão. Na estrutura militar, a obediência integra a 
legalidade; na policial, a legalidade é condição prévia da obediência. 
São formações distintas, dirigidas a realidades também distintas”26. 
Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança 
Pública, só no ano de 2015 se registraram no Brasil 3.320 mortes 
decorrentes de intervenções policiais, sendo que no período 
compreendido entre 2009 e 2015, foram auferidas 17.688 pessoas 
 
23 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas 
penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana. IN: WOLKMER, 
Antônio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 
1996. p. 165 a 209. 
24 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; 
SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São 
Paulo: Boitempo, 2010, p. 238. 
25 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de 
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 16. 
26 BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da 
militarização da segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza 
Nobre [et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan, 
2012, 1ª reimpressão, setembro de 2013, p. 51. 
25 
 
 
mortas pelas polícias. Na mesma pesquisa, estimou-se que 70% dos 
entrevistados consideram que a polícia exagera no uso da violência, 
havendo o reconhecimento de 63% de que a polícia não possui boas 
condições de trabalho27. Não é nenhuma novidade que as más condições 
da instituição policial (sucateadas no Brasil principalmente a nível 
estadual) influência no modo como essa interage com a sociedade. 
Ao contrário do que se poderia pensar, nem todas aquelas mortes 
foram investigadas. Algumas, sequer lembradas. O esquecimento 
(Amarildo vive em poucos...) vem solapando as esperanças de 
mudanças nas estruturas policiais rigidamente postas desde tempos 
sombrios que o país passou, reatualizando diariamente, nas localidades 
mais vulneráveis, a barbárie. Sem transformá-los em números, mas 
listando-os por ordem temporal, somente após a promulgação da 
Constituição de 1988 teve-se: Carandiru, em 1992 (111 mortos); 
Candelária, em 1993 (08 mortos); Vigário Geral, em 1993, (21 mortos); 
São Paulo, em 2006 (500 mortos); Grande São Paulo, em 2015 (23 
mortos); Costa Barros, em 2015 (05 mortos); Londrina, em 2016 (10 
mortos); Porto Alegre, em 2016 (04 mortos). Sem contar os recentes 
casos emblemáticos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo 
Dias de Souza (2013), morto após ser torturado na Favela da Rocinha, 
no Rio de Janeiro. Além dele, Cláudia Silva Ferreira (2014), arrastada 
por um camburão e morta, posteriormente, com um tiro dado pela 
polícia. 
Fatores que são decisivos na compreensão dessa lógica de 
extermínio são o racismo institucional combinado com uma estrutura 
 
27 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 10º Anuário Brasileiro de 
Segurança Pública, 2016, p. 06. 
26 
 
 
punitiva onde a guerra é o elemento fundante (afinal, o Estado não fez 
cessar a guerra de uns contra outros como se havia pensado28). A guerra 
às drogas, verdadeira síntese de racismo, criminalização e polícia, 
atualmente, pode-se dizer, é o grande motor dessa máquina de moer 
gente chamada sistema penal. No Brasil, sabe-se há muito, crianças e 
adolescentes são alvejados e mortos sem sequer ter tido qualquer 
contato, para uso próprio ou para comércio, com substâncias ilícitas. 
Eduardo Ferreira, de 10 anos, assassinado em 2015 durante um 
confronto entre policiais e traficantes no Complexo do Alemão, é o 
exemplo dessa desumanização advinda de um progresso (pacificador) 
que só acumula catástrofe. Embora o quadro de Klee represente o pavor 
do anjo frente ao vento que sopra do passado29, a realidade brasileira 
estaria também representada pelo quadro de Edvard Munch30. 
Assim é que se deve destinar uma visão ampla à questão da 
militarização da polícia no Brasil, visto que sua prática cotidiana – fruto 
de diversos fatores passados e não enfrentados e de conjunturas atuais 
– acaba por impossibilitar a afirmação de direitos, antes possibilitando 
tão somente a criminalização e a violação massiva e a conta-gotas 
desses. Ao se tratar de uma parcela da população tão vulnerável como 
adolescentes, nota-se certos entraves que essa polícia militarizada, 
acostumada no Brasil a assassinar e torturar para garantir a segurança 
 
28 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France 
(19751976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 
91. 
29 Em referência à tese IX das teses “Sobre o conceito da história” de Walter Benjamin 
(BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e 
história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin 
– 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1, pp. 245-246). 
30 Em referência ao famoso quadro O Grito, de Edvard Munch, em que uma criatura 
demonstra, com as mãos coladas na face, angústia e desespero. 
27 
 
 
(de uns poucos), acaba impondo na concretização inclusive de 
legislações vigentes promulgadas já no regime político-democrático. 
3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E 
POLÍCIA NO BRASIL: INCOMPATIBILIDADE 
INTRANSPONÍVEL 
Nesse sentido, é preciso pontuar que a ideia de ressocializar 
através do sistema penal não é necessariamente uma novidade do ECA. 
Na criminologia, tal noção se apresenta como um dos regimes em que, 
em determinado momento histórico, a pena tornou como objetivo 
declarado. Uma breve história dos pensamentos criminológicos31 deve 
passar pelas apropriações e reelaborações de termos que o sistema penal 
se utiliza para justificar sua barbárie. Ressocializar é uma delas, entre 
todos os métodos “re” (reintegrar, readaptar, reinserir) pela qual a 
clientela desse sistema perverso teve de se submeter. 
Não faz muito tempo que uma onda – e assim é chamada pelo 
fato de vir e voltar constantemente, não tendo lugar definido – de 
ressocialização acossou os sistemas penais do mundo. Terminada a 
Segunda Guerra Mundial, parte da segunda metade do século XX, nos 
países centrais, conheceu-se o chamado welfare state, onde o Estado, 
diante de uma memória recente de terror, passou a dar assistência direta 
aos indivíduos. Para os criminalizados e encarcerados da época, o 
discurso estava centrado na busca pela ressocialização– a ideia de um 
previdenciarismo penal girava em torno da prosperidade da sociedade, 
incluindo nela os criminalizados sob cuidado agora de um Estado 
 
31 Para uma visão geral, ver: ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos 
criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca 
de Criminologia, 2008. 
28 
 
 
preocupado tanto com a reforma quanto com o bem-estar deles32. 
No mesmo período, a partir da segunda metade do século XX, a 
retórica da reabilitação encontrou lugar cativo na temática da justiça 
juvenil, não apenas na América Latina, mas nos sistemas de justiça 
juvenil ao redor de todo o mundo33. Diferentemente da lógica penal, em 
que o neoliberalismo da década de 70 em diante retoma o ideal 
retribucionista da pena, o sentimento reabilitador continua vivo ao 
redor do mundo no contexto da justiça juvenil. As razões para a 
preservação deste ideal não são propriamente a crença completa nos 
benefícios alcançados com a reabilitação, mas estão muito mais 
relacionados com o diagnóstico de que o fenômeno da especialização 
da justiça juvenil ao redor do mundo inquestionavelmente conquistou a 
garantia de menos adolescentes encarcerados e de menos tempo de 
reclusão34. 
De todo modo, o discurso legal e majoritário da doutrina 
especializada no tema é de que, a despeito da natureza sancionatória da 
medida, “a responsabilização do adolescente em conflito com a lei deve 
atender ao caráter socioeducativo”35. Legitima-se, portanto, a 
intervenção estatal na vida do sujeito para que a este sejam 
 
32 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade 
contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 110. 
33 ZIMRING, Franklin E.; LANGER, Máximo. One theme are many? The search for 
a deep structure in global juvenile justice. In: LANGER, M.; TANENHAUS D. S; 
ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile Justice in Global Perspective. New York: New York 
University Press, 2015. p. 389. 
34 Idem, ibidem. 
35 COSTA, A.P. M.Os direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas 
socioeducativas e sistema constitucional brasileiro. In: CRAIDY, C. M.; 
SZUCHMAN, K. (Org.). Socioeducação: Fundamentos e Práticas. Porto Alegre: 
Evangraf, 2015. p. 19. 
29 
 
 
concretizados o acesso a certos direitos sociais até então 
negligenciados, na esperança de que essa reposição estatal desencoraje 
a prática de atos infracionais pelo adolescente. Trata-se, em verdade, da 
ideia de que o resgate dos direitos constitucionais de primeiro nível36 - 
como educação, habitação, convivência familiar, cultura, saúde e 
esporte - não só é possível passados de 12 a 18 anos da vida do sujeito, 
com é fundado pedir em contrapartida o abandono da prática criminosa 
pelo adolescente. 
Ocorre que, é curioso imaginar como sustentar tal ideologia em 
que o adolescente precisa readquirir confiança no Estado - uma vez 
que o próprio assume suas falhas com o sujeito até então - quando o 
primeiro contato entre indivíduo-judiciário se realiza através da polícia. 
É difícil, portanto, que as ideias contidas no Estatuto da Criança e do 
Adolescente possam prosperar enquanto não se enfrentar o mecanismo 
que realiza o jogo de seleção entre os adolescentes a ser captados: a 
polícia militar. Aprofundada na ditadura civil-militar, a militarização, 
calcada nas formas da disciplina e do combate àquele que obstrui o 
recorrente e recorrido termo ordem pública, só reproduz violência, dor 
e sofrimento quando do contato com indivíduos vulneráveis – 
vulnerabilidade essa que se dá propriamente em função da idade, mas 
que resta alargada no Brasil em razão de classe e cor. 
Quer dizer: vulnerável pela adolescência, mas mais vulnerável 
ainda se jovem, pobre e negro. As proteções que o ECA projeta para os 
adolescentes não impedem que a polícia militar viole massivamente 
seus direitos no dia-a-dia das favelas, dos bairros pobres, das delegacias 
 
36 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: 
adolescente e ato infracional. p. 50. 
30 
 
 
e das fundações em que mantidos segregados. Visto como inimigos, a 
eles nenhum direito cabe: visão diária e corriqueira que a polícia militar 
não cansa de reproduzir e, o pior, de ser aplaudida por segmentos 
fascistas de classes mais abastadas, despreocupadas com o destino de 
uma juventude que há muito experimenta a cilada da cidadania – 
também conhecida como ciladania37. 
O que foi trazido até então projeta, portanto, um oximoro 
chamado ressocialização militarizada. Como a ressocialização de um 
adolescente, o qual se encontra em fase da vida que justifica o 
reconhecimento especial da própria legislação vigente, pode em alguma 
medida prosperar através da violência que a militarização opera? No 
Brasil, como um adolescente pode ter seus direitos consolidados se, 
para chegar até eles, é obrigatório que seja captado por uma polícia 
operando em uma lógica de guerra, a exterminar seus inimigos? Por 
último, é possível que uma legislação como o Estatuto da Criança e do 
Adolescente consiga operar em seu máximo quando intocadas as 
garantias e prerrogativas de uma polícia militarizada desde a época da 
recente ditadura civil-militar? Questões essas que, por certo, se 
possuem resposta, tais encontram-se no plano da realidade, certamente 
mais violenta e cruel do que as elucubrações teóricas aqui explanadas. 
 
 
37 BATISTA, Vera Malaguti. Marx com Foucault: análises acerca de uma 
programação criminalizante. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.02, n.04, p. 25-
31, julho-dezembro de 2005, p. 28. 
31 
 
 
 CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A partir do exposto, candente se torna pontuar algumas breves 
reflexões finais. Na maneira como a justiça juvenil funciona, a sua 
identificação com o sistema penal torna-se inafastável, ainda que se 
tenha uma legislação que pretende realizar uma distinção teórico-
prática, mascarando o evidente. A reabilitação dos adolescentes, 
portanto, é mera ferramenta discursiva que está em completo desacordo 
com a prática da justiça juvenil no Brasil. A despeito de existirem 
razões legítimas para mantê-la, não se pode deixar de apontar as 
contradições e barreiras que essa pretenção ressocializativa encontra no 
momento da sua operacionalização. Uma polícia militarizada é a maior 
delas. 
Atuando com sua engenharia violenta de controle social, a 
instituição policial no país atua renovando, diariamente, o exército de 
corpos dóceis disponíveis ao sistema econômico e social – afinal, 
alguns grupos devem submeter-se à disciplina necessária para que se 
contentem com subempregos. No entanto, essa lógica disciplinar não 
afasta a verdadeira política de morte estatal instrumentalizada pela 
polícia militar nas zonas periféricas. Assim, em sendo pressuposto o 
entrelaçamento dessas duas esferas – legislação reabilitadora e polícia 
militarizada – para o funcionamento da justiça repressiva a 
adolescentes, difícil vislumbrar como não haver um campo de disputa 
entre elas. Seus discursos caminham em direção opostas, porém devido 
à necessidade da atuação conjunta no momento da intervenção estatal 
na vida do adolescente, suas práticas se chocam. 
32 
 
 
Choque esse inabalável, mesmo que maiores sejam os esforços 
reformistas tanto no sistema socioeducativo, quanto na polícia 
historicamente militarizada. Transpor essa lógica significaria estarem 
dispostas, sociedade e governabilidade estatal, a renunciar uma ou outra 
dessas estratégias. É por essa razão que uma ressocialização 
militarizada carrega consigo a impossibilidade de um por vir garantidor 
dos direitos fundamentais da juventude brasileira, seja ela criminalizada 
ou não. 
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Global Perspective. New York: New York University Press, 2015, p. 
383-411. 
35 
 
 
RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA 
CRIMINOLÓGICA 
 
Caroline Bussoloto de Brum1 
 
INTRODUÇÃO 
A necessidade de impor limites aos poderes do Estado perfaz 
eras e civilizações. Dada a necessidade contínua de transformação 
social, uma vez que reconhecidos como cidadãos ativos e saturados do 
absolutismo, a população burguesa revoluciona-se em prol de garantir 
seus direitos, sua liberdade e igualdade. 
Nunca para os cidadãos existiram direitos absolutos na esfera 
pública antes das revoluções burguesas, exceto para o soberano, cujos 
direitos e poderes se fundiam. Os direitos públicos, como conhecidos 
atualmente, eram roupados como possibilidades de iniciativa pessoal, 
construídos como privilégios, ou mais frequentemente como status, 
concedidos às coletividades2. 
As revoluções burguesas tentaram elevar certos interesses 
fundamentais ao nível de garantias, tentando tornar tais direitos 
absolutos. Essas metas foram, em certa medida, entendidas como 
planos de ação, pelo menos na teoria inicial para a elaboração da 
 
1 Pós-Graduanda na Especialização em Direito Penal e Políticas Criminais na 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Advogada. 
2 SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of Purposiveness 
(29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental Rights. Edited by András Sajo. 
Eleven International Publishing. 2006. p. 43. 
36 
 
 
declaração resultante da revolução francesa.3 A declaração francesa dos 
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que define os direitos 
individuais e coletivos dos homens como universais, não trouxe a 
resolução desta matéria, ou seja, deixou para a legislação interna de 
cada Estado signatário prever os limites aos direitos que ali dispõe como 
mínimos. 
Para compreender melhor o contra o que se revolucionaram, é 
necessário saber o conceito trazido como “Estado” que pode ser 
entendido como “um grande conjunto de pessoas, instituições e classes 
que possuem o monopólio do poder e da força física”.4 O Estado, 
enquanto garantidor, busca suprir demandas populares, e, quanto menos 
seguras estão as pessoas, mais elas exigem um Estado policial e um 
Estado forte. Um Estado estruturalmente forte e altamente policial 
reduz o espaço da democracia e estrutura-se para garantir, a qualquer 
preço, a realização dos interesses dos sujeitos e classes que o 
controlam5. 
O Estado no modelo autoritário mais moderno, pós-
imperialistas, não pode ser encarado como algo contra as massas, mas, 
ao contrário, aceito e, geralmente, defendido por elas, uma vez que nada 
acontece sem que ocorra uma consonância com as aspirações coletivas. 
Não se pode dizer que elas concordam com um Estado de terror tal, mas 
sim, que buscam uma certa segurança que só é encontrada, nos termos 
de hoje, como sinônimo de um Estado todo-poderoso.6 
 
3 SAJÓ, András. Idem. p.43. 
4 FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica. Editora moderna, 
1987. p. 54. 
5 FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 56. 
6 FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 72. 
37 
 
 
Para melhor elucidação, as massas, enquanto definição 
terminológica, somente são utilizadas neste contexto quando lidamos 
com pessoas que são, devido ao seu número ou indiferença, ou ambos, 
não integrantes de qualquer tipo de organização de interesses comuns, 
como partidos ou sindicatos. São indivíduos comuns e presentes nos 
Estados totalitários, que “não se unem pela consciência de um interesse 
e falta-lhes aquela específica articulaçãode classes que se expressa em 
objetivos determinados, limitados e atingíveis”.7Assim, a incansável 
busca pela garantia e concessão de direitos nada mais é do que a 
perquirição pela proteção dos arbítrios do Estado, que, na maioria das 
vezes, foram inclusive legitimados pelos próprios cidadãos. 
Assim, os modelos tradicionais de sociedade e Estado surgiram 
baseados na hierarquia e esta, por sua vez, no poder. Nesta linha de 
raciocínio, as normas jurídicas, as morais e as sociais emanam de um 
poder hierarquizado e seguem uma direção descendente. Desta forma, 
quem ostenta o poder, ou participa dele de alguma maneira, não só o 
detém, mas é identificado ou relacionado com a “fonte dos valores 
sociais”, culminando na impressão de que “o poderoso não somente é 
forte, mas acaba sendo visto como bom”.8 Com esta estrutura social era 
natural que a criminalidade aparecesse em sua maioria, ou até 
totalidade, representada pelos marginalizados. 
 
 
7 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e 
Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 361. 
8 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos 
Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia 
frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano 
en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 45. 
38 
 
 
1. CRIMINOLOGIA E ABUSO DE PODER - EVOLUÇÕES 
TEÓRICAS 
Os criminólogos italianos Lombroso, Ferri e Garófalo, quando 
iniciaram o estudo empírico da criminalidade e fundaram a 
criminologia positivista, fizeram suas considerações a partir dos 
“delinquentes” que povoavam as prisões. Eles estudavam os autores de 
delitos, classificando-os e estereotipando-os através da análise suas 
personalidades, chegando à conclusão de que eram portadores de uma 
patologia.9 Hoje, já se adverte ao fato de que estas pessoas, e não outras, 
constituíam e ainda constituem a “clientela” habitual do sistema penal 
pela valoração e tomada de decisões serem realizadas por quem tem a 
capacidade (dispõe do poder) de definir o que vem a ser delito ou não, 
e de quem são os perseguidos ou não como delinquentes.10 
Mas não foi nem a valoração social ou a estrutural adotada pelos 
positivistas italianos, ou pela Criminologia tradicional. Partiu-se, ao 
contrário, do conceito natural de delito, segundo o qual este não é um 
produto de um determinado tipo de sociedade, mas sim algo intrínseco 
ao indivíduo, que o faz nocivo. A consequência disto foi que ficou 
consagrado um conceito de “delinquente” vinculado estreitamente à 
marginalização social, fazendo com que as tipologias desses elaboradas 
à época não se ajustassem à imagem de quem abusava das posições de 
 
9 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de 
Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição. p. 45/46. 
10 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder 
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 43. 
39 
 
 
privilégio tanto social, como econômico ou político.11 Esta noção 
errônea estereotipada ainda pode ser observada no pensamento 
criminológico atual, enraizado de uma forma cultural através das 
classificações hierarquizantes que se expandiram após o período 
colonialista12. 
Uma das realizações das novas teorias criminológicas foi ter 
descoberto a chamada ubiquidade da delinquência. Com esse conceito, 
quer se dizer que os delitos podem e são cometidos em todos os níveis 
da sociedade, mas gera, concomitantemente, um fenômeno onde não se 
pode identificar todos aquele que cometem crimes, ou seja, a chamada 
cifra negra da criminalidade.13 Dentre as novas teorias, surge a 
criminologia crítica, nascida em contraponto às teorias tradicionais 
positivistas, analisa o abuso de poder, explicando inicialmente que a 
adoção da teoria liberal pode ser útil para impor limites aos governos, 
tendo como característica central a prescrição de reformas, 
concentrando-se em pesquisas sociológicas para sugerir mudanças 
institucionais e sociais como meios de prevenção do comportamento 
antissocial.14 Comparando-se as teorias conservadoras e liberais, pode-
se chegar ao ponto comum de que ambas não questionam a estrutura 
social ou suas instituições jurídicas e políticas, mas se dirigem para o 
 
11 PUIG, Santiago Mir. Idem. Ibidem. 
12 BATISTA, Vera Malaguti. Idem. p. 41. 
13 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder 
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 44. 
14 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen 
Juris, 2008. p. 4. 
40 
 
 
estudo da minoria criminosa, elaborando etiologias do crime fundadas 
em estudos patológicos, psicológicos e até genéticos.15 
Para contrapor as teorias criminológicas meramente focadas em 
aspectos internos do indivíduo desviante, surge a criminologia radical, 
criada no Grupo Europeu para o Estudo do Desvio e do Controle Social, 
em Florença na Itália, em 1972. Tal vertente, denunciava os modos 
dominantes de análise do crime, que viam o criminoso como “produto 
de defeitos psicológicos ou de personalidades anormais”, e o controle 
social, que era avaliado apenas em termos de efetividade e eficiência 
através das estatísticas criminais.16 
Ou seja, as análises do que era crime e de quem era o criminoso 
eram feitas pela camada superior de poder, que não ditava suas próprias 
características como as comuns aos indivíduos criminosos, fazendo 
com que ficassem evidentes as relações entre os sistemas de controle 
social e a estrutura de classes do modo de produção capitalista.17 Tal 
vertente criminológica chega à conclusão de que os caracteres sociais 
do sujeito ativo do abuso de poder, ou seja, aquele que executa o crime 
no exercício de atividades político-administrativas, pela soma das 
complexidades legais, das cumplicidades oficiais e pela atuação de 
tribunais, às vezes especiais para tais autores, explica a imunidade 
processual e a inexistência de estigmatização criminal para estes.18 
Desta forma, a criminologia radical aponta as estatísticas 
criminais como “produtos da luta de classes nas sociedades 
 
15 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem. 
16 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 7. 
17 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem. 
18 ANIYAR, 1977, p. 92-93 apud SANTOS, 2008 p.13. 
41 
 
 
capitalistas”,19 afirmando que a criminalidade das classes dominantes, 
expressa pelo abuso de poder econômico e político, está excluída das 
estatísticas criminais, uma vez que sua origem estrutural e o lugar de 
classe dos autores, os quais se encontram em posição de poder 
econômico e político, são as explicações desta exclusão.20 Descobre 
também que no sistema de justiça criminal há uma disjunção concreta 
entre uma ordem social imaginária, que é difundida com noções de 
igualdade e de proteção geral, e uma ordem social real, na qual ocorrem 
desigualdade e opressão de classes.21 
Nos anos 70, surge um movimento teórico com amplo impacto 
popular conhecido como a criminologia da denúncia, que focava no 
comportamento dos poderosos, “enunciando os defeitos das elites de 
poder econômico e político da sociedade, para mostrar que os que 
fazem as leis são, também, os maiores violadores dessas leis”22. Esta 
vertente criminológica supõe que os poderosos deteriam um "direito 
moral" que os capacitaa converter força em "autoridade", por meio dos 
procedimentos legalmente estabelecidos.23 Demonstrando que a 
criminalidade do poder econômico e político não é um fenômeno 
irregular ou acidental, mas sim regular e institucionalizado, fortemente 
ligado à posição estrutural de classe na formação social. Assim, 
conforme traz Cirino em sua explicação sobre o tema, o ponto central 
 
19 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen 
Juris, 2008. p. 14. 
20 YOUNG, 1979, p.16 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 14. 
21 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 15. 
22 TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 25. 
23 TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 26 
42 
 
 
que gera consequências práticas da criminologia radical é a negação do 
mito do direito penal igualitário, ou seja 
 
a proteção geral de bens e interesses existe, realmente, 
como proteção parcial, que privilegia os interesses 
estruturais das classes dominantes; a igualdade legal, no 
sentido de igual posição em face da lei, ou de iguais 
chances de criminalização, existe, realmente, como 
desigualdade penal: os processos de criminalização 
dependem da posição social do autor e independem da 
gravidade do crime ou do dano social. 24 
 
Desse modo, a criminologia radical melhor explica as relações 
de poder e desigualdade, a fim de explicar a criminalização demasiada 
dos marginalizados, bem como a precária falta de criminalização 
daqueles que detêm o poder ou que podem dele se utilizar para 
subverter o direito em seu benefício. 
 
2. CRIMINALIDADE INCIDENTE NO ABUSO DE PODER 
Dentre os tipos de abusos estatais aos quais os indivíduos estão 
sujeitos, encontra-se o abuso de poder, que é o mais frequente e 
suscetível a todos. Pode ser estruturado de forma a supor que o autor 
deste, em uma determinada classe social alta, dispõe de um poder 
potencial ou que o permite exercê-lo de maneira especial, não 
disponível para qualquer um, e que apresenta uma influência contra os 
desejos dos outros.25 Normalmente os praticantes do abuso de poder 
 
24 BARATTA, 1978, p. 10 apud SANTOS, 2008, p. 46 e ss. 
25 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles 
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. 
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais 
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 13. 
43 
 
 
possuem uma ambição patológica, ou seja, sentem o poder como uma 
droga26. 
As causas que o motivam, geralmente, são a necessidade de 
prestígio, a ambição de poder e a excessiva aspiração de influência. É 
característico o esforço por aumentar ou reforçar a situação de poder já 
existente, a ânsia pela perpetuação do poder quando ele não pode ou 
não conseguiu desenvolver-se de maneira legal ou pelas vias 
democráticas, que tem como consequência o abuso de poder que se 
dirige à ilegalidade27. 
Dados os mais distintos sentidos possíveis para o conceito de 
poder, também são diversas as possibilidades para entender o conceito 
objetivo de delinquência relacionada com o abuso deste poder. Em uma 
análise ampla do sentido, o poder a que se alude pode alcançar não 
somente o estatal ou o político, mas também a capacidade de influência 
que tem determinados sujeitos por ocuparem posições sociais ou 
econômicas privilegiadas. Não cabe no sentido amplo de poder a 
criminalidade objetivamente relacionada com o crime, o qual se cometa 
utilizando o aparato institucional do Estado, pois este é entendido como 
uma manifestação no sentido estrito de delinquência por abuso de 
poder28. 
Comumente, a responsabilidade penal para as formas 
tradicionais do abuso do poder é reconhecida às pessoas físicas, que são 
 
26 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 14. 
27 TRIFFTERER, Otto. Idem, Ibidem. 
28 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder 
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 46. 
44 
 
 
aquelas na primeira linha para a responsabilidade penal. Mas, há algum 
tempo, se realizam esforços a nível nacional e internacional para 
estabelecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas e inclusive 
do Estado29. Nos casos de abuso de poder cometidos por órgãos estatais, 
inclusive nos Estados democráticos, os mecanismos sancionadores 
existentes muitas vezes não funcionam corretamente, fazendo com que 
esta forma de aparição do abuso de poder seja objeto, mais que qualquer 
outro delito, de um crescente interesse internacional.30 
Esta atenção especial na esfera internacional se deve, sobretudo, 
por tais abusos de poder geralmente violarem direitos humanos. A 
mesma comunidade internacional se sente cada vez mais chamada a 
denunciar tais violações e a exercer pressão sobre o Estado agressor, se 
faltam, por exemplo, os mecanismos sancionadores ou de controle.31 O 
abuso de poder estatal ocorre quando se comete um abuso de poder 
mediante órgãos do Estado ou ao menos com seu consentimento ou sua 
tolerância tácita. Nestes casos, são inclusos também os responsáveis 
pela administração da justiça, visto que é um poder do Estado, que, 
sequer em uma democracia, se vê livre de influências externas e 
ocasionalmente pode vir a ser o autor do abuso do poder.32 
Em tempos de Estado democrático, via de regra, a probabilidade 
de alguém ser vítima de um abuso de poder estatal que restrinja sua 
liberdade, lhe cause prejuízo ou até mesmo culmine em uma fatalidade, 
 
29 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles 
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. 
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais 
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 16. 
30 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 16. 
31 TRIFFTERER, Otto. Idem. Ibidem. 
32 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 17. 
45 
 
 
é consideravelmente menor que em uma ditadura ou em um Estado 
absolutista. Porém, o abuso do poder costuma aparecer onde o poder 
não seja suficientemente controlado, sendo tão somente um consolo que 
em uma democracia, que geralmente funciona, se estabeleçam meios 
legais que possibilitem aos prejudicados se defenderem ou serem 
indenizados em eventuais abusos.33 
Quanto aos problemas dogmáticos encontrados na delinquência 
vinculada ao abuso de poder, pode-se dizer que esta não se limita a este 
ou àquele tipo de delito, mas sim, em qualquer dos delitos que possam 
ser cometidos abusando do poder, na medida em que estes se 
caracterizam frequentemente pela utilização de um aparato hierárquico, 
que muitas vezes obscurece a individualização dos responsáveis.34 
 
 
3. ABUSO DE PODER PELA AUTORIDADE POLICIAL - 
BREVES OBSERVAÇÕES CRIMINOLÓGICAS 
Por fim, cabe analisar a conduta de abuso de poder daquele que 
viola mais diretamente os direitos, pela sua presença na linha de frente 
representando o Estado: a autoridade policial. Neuman analisa a 
violência e o papel da polícia no contexto da América Latina, e 
 
33 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles 
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. 
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais 
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 18. 
34 PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la Delinquência de 
Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologiafrente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 113. 
46 
 
 
realizando pesquisas empíricas com policiais dos países na Argentina, 
Uruguai, Brasil e México, chega à conclusão de que 
 
Suas mentes parecem aderidas a precisos e inalteráveis 
esquemas. Se expressam e observam - talvez por omissão 
profissional - com desconfiança como se estivessem 
sempre na presença de alguém suspeito. Possuem todos 
um grande “espírito de corpo” e, muitos deles, ideias 
fixas como tatuagens de que o delinquente é perverso, 
canália, mentiroso bem armado, não tem nada a perder, é 
um refugo humano, é uma praga ou carniça, é tudo, tudo 
isso, menos ser humano. A violência que muitos 
descarregam em sua ação frente a delinquência é, para 
eles, sempre uma resposta e nunca uma provocação.35 
 
A atuação desta polícia acaba vendo com normalidade a 
presença da violência no seu cotidiano, não em seu fim, mas em seu 
meio de exercício profissional. Inclusive expressam publicamente que 
o conceito de repressão tem variado pela maior violência delitiva, 
tentando justificar a atuação truculenta, quando na realidade, querem 
dizer que a repressão violenta do crime tem se tornado uma atividade 
elementar, diária e indispensável.36 
Nos países da américa latina, ainda persiste a ideia de que o 
crime é algo avassalador, tomado de características amedrontadoras, 
fazendo com que seja útil aos discursos políticos, implantando o Estado 
de terror, que acaba por legitimar e amparar a ação policial. 37 Assim, 
 
35 NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: 
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. 
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II 
Cursos Europeos, 2001. p. 135. 
36 NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: 
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. 
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II 
Cursos Europeos, 2001. p. 136. 
37 NEUMAN, Elías. Idem. p.136. 
47 
 
 
surgindo a aclamada “guerra contra o crime”, que, aos moldes da ânsia 
pela vingança privada praticada pelo poder público, limita-se ao campo 
da violência como inalterável e única resposta. 
Além da constante violência nas abordagens, existe ainda a 
prática cotidiana da tortura, a qual é convertida em um método de 
trabalho e realizada por alguns que foram conscientizados para impor a 
sua função um sentido de “ordem e limpeza”.38 Os torturadores são 
geralmente recrutados nas classes sociais mais desprotegidas, por meio 
de um processo que é conhecido como policização. 
Por fim, cabe ressaltar que o abuso de autoridade, como já 
exposto, apesar de suas mais diversas facetas, quando carregado de 
violência na ação política, expressa uma visível força do domínio e do 
governo.39 Não sendo essa força um objetivo consciente do corpo 
político, ou ainda, o alvo final de qualquer ação política definida, uma 
vez que a força sem coibição gera mais força, e a violência, quando 
administrativa, em benefício da força e não da lei, “torna-se um 
princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar”40. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Como observado, o abuso de autoridade vem de uma relação 
hierárquica de poder estatal, que ao longo do tempo, com a evolução 
dos direitos, pode ser criminalizado e punido. As estruturas de poder 
são baseadas na hierarquia e dificilmente podem ser desconstituídas ou 
 
38 NEUMAN, Elías. Idem. p. 141. 
39 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e 
Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 167. 
40 ARENDT, Hannah. Idem. p. 167. 
48 
 
 
alteradas pelas suas frequentes vítimas. Porém, a tipificação do abuso 
de poder buscou mais do que punir, mas também garantir os direitos 
básicos encontradas nas cartas de direitos humanos que hoje pautam 
internacionalmente o tema. 
No Estado brasileiro, apesar de não ser este o tema do presente 
artigo, vale observar que possui sua própria legislação sobre a temática, 
tratada na Lei 4.898 de 09 de dezembro de 1965, que traz os 
procedimentos necessários na seara cível e criminal para representação 
nos processos de abuso de autoridade. 
A lei, editada no período em que os militares se encontravam no 
poder (1964-1985), no projeto original, em sua exposição de motivos, 
justificava sua existência pois 
 
Previu a Constituição, ao instituir as regras fundamentais 
que caracterizam o estado de direito e ao inscrever no seu 
texto direitos e garantias individuais, que abusos 
poderiam ser cometidos pelas autoridades encarregadas 
de velar pela execução das leis e pela manutenção da 
vigência dos princípios asseguradores dos direitos da 
pessoa humana. Conferiu, por isso mesmo, a quem quer 
que seja, o direito de representar contra os abusos de 
autoridades e de promover a responsabilidade delas por 
tais abusos [...]41. 
 
Assim, apesar da lei ter como objetivo responsabilizar os abusos 
feitos pelas autoridades, e dentre eles, estar elencado em seu art. 4º ser 
 
41 FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de 
Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898 de 9.12.65 - 4ª. 
ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de 1988 - São Paulo: Editora Revista 
dos Tribunais, 1991. p. 15-16. 
49 
 
 
o abuso de poder uma modalidade de abuso de autoridade,42 esta foi 
editada em um dos períodos onde mais ocorreram abusos pelas 
autoridades estatais no Brasil. 
O relatório conduzido pelo bispo Dom Paulo Evaristo Arns 
acerca da repressão política realizada no período da ditadura militar, 
especialmente de 1964 a 1979, averiguou, dentre as várias atrocidades 
cometidas, que eram além de comuns, incentivadas e legalizadas as 
supressões de direitos aos perseguidos políticos. Dentre elas, destaca a 
falta de submissão dos presos ao poder judiciário, afirmando que 
 
[...] Isso repercutia na pessoa do preso político de várias 
maneiras. A principal delas era que os presos ficavam 
inteiramente subordinados ao controle dos organismos 
policiais, que não submetiam seus atos a apreciação 
judicial. Nessas condições, onde os processos não 
registravam os responsáveis pelas prisões, nem o 
momento e as circunstâncias em que elas ocorriam, a 
defesa ficava bastante prejudicada. Além disso, a falta 
dessas informações implicava na ocultação das 
responsabilidades das autoridades pela custódia dos 
presos, gerando a impunidade face às violações da 
integridade física e moral [...]43. 
 
Ou seja, mesmo em um dos períodos mais sombrios da história 
brasileira, onde a regra era a imposição do medo pelo aparelho estatal, 
onde a força ideológica e até instrumental impunha a lei e a ordem na 
república, houve uma lei que buscava coibir tais abusos, ironicamente 
punidos por aqueles que os permitiam. 
 
42 Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida 
privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; 
[...] 
43 ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 16-17. 
50 
 
 
Por fim, cabe ressaltar que a análise do abuso de autoridade pela 
criminologia destaca em sua maior parte a origem do perfil criminal e 
como este por muito tempo não foi condizente aos violadores por parte 
do Estado, ou que por esse foram legitimados. Assim, demonstra a 
evidente necessidade de proteção do cidadão e da segurança jurídica na 
aplicação da lei indistintamente para todos que a violem, pois aqueles 
que abusam de seu poder, especialmente por meio do Estado,

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