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Michelle Karen Batista dos Santos 
Lucas e Silva Batista Pilau 
 (Organizadores) 
 
ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS: 
Produções Coletivas de Resistência 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porto Alegre 
OAB/RS 
2018 
Michelle Karen Batista dos Santos 
Lucas e Silva Batista Pilau 
 (Organizadores) 
 
ENSAIOS CRIMINOLÓGICOS: 
Produções Coletivas de Resistência 
 
Augusto Jobim 
Betina Warmling Barros 
Caroline Bussoloto de Brum 
Cibele de Souza 
Domenique Assis Goulart 
Fernanda Corrêa Osório 
Fernanda Martins 
Franchesca Inácio Zandavalli 
Laura Gigante Albuquerque 
Leandro da Cruz Soares 
Lucas Dall'Agnol Pedrassani 
Lucas e Silva Batista Pilau 
Michelle Karen Batista dos Santos 
Osmar Antônio Belusso Júnior 
Patrícia Martins Saraiva 
 
 
 
 
Porto Alegre 
OAB/RS 
2018 
Copyright © 2018 by autores 
Todos os direitos reservados 
Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da OABRS 
Fernanda Corrêa Osório 
 
Revisores 
Betina Warmling Barros 
Domenique Assis Goulart 
Thiago Ribeiro Rafagnin 
 
Capa 
Carlos Pivetta 
 
E52 
Ensaios Criminológicos: produções coletivas de resistência/ Michelle 
Karen Santos, Lucas e Silva Batista Pilau (Organizadores); Augusto 
Jobim [et al.]. Porto Alegre/OABRS. 2018. 241p. 
 
ISBN online: 978-85-62896-13-2 
 
1. Ensaios Criminológicos. 2. Resistência. I. Santos, Michelle Karen 
Batista dos. II. Pilau, Lucas e Silva Batista. III. Título 
 
 CDU 343.9 
 
Rua Manoelito de Ornellas,55 – Praia de Belas 
CEP: 90110-230 Porto Alegre/RS 
Telefone: (51) 3287-1838 
 
O conteúdo é de exclusiva responsabilidade dos seus autores. 
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL 
CONSELHO FEDERAL 
 
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DIRETORIA/GESTÃO 2016/2018 
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ESCOLA NACIONAL DE ADVOCACIA – ENA 
Diretor-Geral: José Alberto Simonetti Cabral 
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL 
CONSELHO SECCIONAL DO RIO GRANDE DO SUL 
 
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ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA 
 
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Diretor de Cursos Não Presenciais: Eduardo Lemos Barbosa 
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Diretora da Revista Eletrônica da ESA: Denise Pires Fincato 
 
CONSELHO PEDAGÓGICO 
Alexandre Lima Wunderlich 
Ana Paula Oliveira Ávila 
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Delton Winter de Carvalho 
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CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS 
DIRETORIA/GESTÃO 2016/2018 
 
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TRIBUNAL DE ÉTICA E DISCIPLINA 
Presidente: Cesar Souza 
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CORREGEDORIA 
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Norte Rebelo Jr 
 
OABPrev 
Presidente: Jorge Luiz Dias Fara 
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Diretor de Benefícios: Luiz Augusto Gonçalves de Gonçalves 
 
COOABCred-RS 
Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel 
Vice-Presidente: Márcia Heinen 
 
 
 
 
PALAVRA DO PRESIDENTE 
A Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/RS tem se 
notabilizado pela crescente e plural produção de conteúdo oferecida ao 
Direito brasileiro. São diferentes trabalhos elaborados a partir da 
enriquecedora contribuição de advogadas e advogados. 
A publicação da obra coletiva “Ensaios Criminológicos: 
Produções Coletivas de Resistência” é mais um desses projetos de 
fôlego. Questões relativas ao contexto do histórico de crimes no Brasil, 
discursos criminológicos vigentes e suas implicações, desdobramentos 
para a sociedade de novas realidades sociais, entre outros olhares, são 
pautas atuais que impulsionam avaliações e revisões de temas 
significativos para os brasileiros. 
A OAB/RS se coloca como uma grande fomentadora e 
plataforma impulsionadora para relevantes debates. Nesse sentido, o 
trabalho da ESA deve ser reiteradamente reconhecido, em um trabalho 
de muita qualidade e dedicação da diretora-geral Rosângela Herzer dos 
Santos. Neste particular, o trabalho da diretora de Cursos Permanentes 
da ESA, Fernanda Osório, acompanha os aplausos e elogios. 
Por fim, registro com satisfação, tantos profissionais cada vez 
mais interessados em contribuir com estudos e análises. É através dessa 
riqueza de ideias, pontos de vista e pesquisas que qualificamos o debate 
sobre pautas que fazem do Direito algo tão apaixonante e envolvente. 
A todos que colaboraram com a obra “Ensaios Criminológicos: 
Produções Coletivas de Resistência”, recebam minhas felicitações e 
reconhecimento. 
Ricardo Breier 
Presidente da OAB/RS 
 
 
 
PREFÁCIO 
Na segunda metade do ano de 2016, os organizadores dessa obra 
deram início a uma trajetória que até então desconheciam seu final e os 
possíveis resultados: passaram a compor, juntos, a coordenação do 
Grupo de Estudos em Criminologia na Escola Superior de Advocacia 
da OAB/RS. Optaram, em um primeiro momento, por um semestre 
voltado às leituras básicas do campo criminológico, retomando as 
etapas de constituição da criminologia como saber e as principais 
temáticas e pesquisas relativas às agências que compõe o sistema penal. 
Os próximos semestres, até o final de 2017, momento em que encerrou 
a coordenação em conjunto entre os organizadores (o que não 
ocasionou, por óbvio, o fim do grupo), buscou-se um olhar desde outros 
marcadores mais específicos (e por muito tempo colocados de lado pela 
epistemologia criminológica), como o de gênero e o racial. Diversos 
pesquisadores e pesquisadoras de Porto Alegre – com competência 
acadêmica reconhecida – foram convidados a contribuir com os 
debates, mas o que fez, verdadeiramente, que o grupo se constituísse e 
se mantivesse vivo foi a relutância, de diversos estudantes, 
advogadas/advogados e interessadas/interessados, em se manterem 
assíduos nas reuniões, contribuindo com suas experiências, acadêmicas 
e de vida, com os debates, e na construção do rumo que o grupo iria 
tomar a cada semestre. 
Esse livro é fruto daquelas pesquisadoras/pesquisadores que 
estavam presentes no primeiro semestre, quando o Grupo de Estudos 
em Criminologia da OAB/RS se constituiu, lá em 2016. A ideia, 
originada ao fim do semestre de trabalho, foi dar visibilidade às 
pesquisas e inquietações que os e as participantes trouxeram durante as 
reuniões, tomando como referência as temáticas e escritos que 
 
 
 
sustentaram as discussões. E por isso são chamados de ensaios, vez que 
construídos para dar vazão, através de artigos científicos, a propostas 
de pesquisas que podem ou não ter avançado no decorrer do tempo, com 
o amadurecimento acadêmico das autoras e autores. E nesse ponto, é 
preciso destacar que apesar de serem tomados como ensaios, dos 
escritos vertem muita qualidade, como os leitores e as leitoras poderão 
perceber. 
Ainda, é preciso esclarecer que o título, ao referir tratarem-se de 
produções coletivas de resistência, assim o é por dois motivos. 
Primeiro, porque a gestação e organização dos artigos foi realizada 
coletivamente, tendo pelo menos um(a) autor(a) revisado o artigo deoutro(a) autor(a), levantando dúvidas e críticas quanto ao seu conteúdo, 
com o objetivo final de tão somente qualificar os trabalhos que 
comporiam o livro. Segundo, como é mais evidente, pode-se notar que 
o fio condutor dos textos é a resistência aos discursos violentos e 
desinformados que há muito tempo dão base às políticas criminais e a 
atuação dos agentes e das agências de controle do sistema penal. Além 
disso, resistência, em um olhar mais atento, porque vive-se em um país 
onde recorrentemente – e nos últimos anos ainda mais – pesquisadores, 
até aqueles com larga trajetória acadêmica, são ameaçados com cortes 
de orçamento para suas pesquisas, assim como bolsas de iniciação 
científica, mestrado e doutorado passam a se tornar elemento raro e 
disputado nas faculdades e nos programas de pós-graduação 
(acomodando a lógica da concorrência entre pesquisadores e os efeitos 
em nível de saúde que esse estado impõe). Assim, tendo em vista que a 
maioria dos autores que compõe essa obra haviam recém iniciado sua 
caminhada no campo acadêmico, demonstraram esses estarem cientes 
de que, apesar das limitações que a profissão impõe, vale a pena lutar 
pela pesquisa e pela ciência do país. Essa publicação resiste, então, 
 
 
 
contra a redução e o encolhimento da pesquisa e mais ainda contra o 
obscurantismo que toma conta da questão criminal. 
Por fim, é preciso um agradecimento especial a professora e 
advogada Fernanda Osório, a qual contribuiu, de maneira decisiva, para 
que essa publicação fosse levada a cabo, e também aceitou o convite 
dos organizadores para realizar a apresentação da obra, assim como a 
Editora da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, por oportunizar 
que o material fosse publicado em seu catálogo. 
 
Porto Alegre, agosto de 2018. 
Lucas e Silva Batista Pilau 
Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) 
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e 
Administração da Justiça Penal (GPESC) 
Advogado do Centro de Defesa de Direitos Humanos (CDDH) de São 
Leopoldo 
 
 
Michelle Karen Batista dos Santos 
Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS) 
Coordenadora do Grupo de Estudos Direito e Criminologia (ESA-
OAB/RS) 
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas de Segurança e 
Administração da Justiça Penal (GPESC) 
Advogada 
 
 
 
 
 
 
 
APRESENTAÇÃO 
Honra-me os autores e as autoras com o convite de apresentar a 
coletânea de textos, fruto dos encontros e das discussões realizadas no 
Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior da Advocacia 
da OABRS em parceria com a Comissão Especial do Jovem Advogado 
(CEJA/OABRS), coordenado por Michelle Karen Batista dos Santos e 
por Lucas e Silva Batista Pilau, incansáveis na concretização do projeto 
de aliar academia e advocacia, e que proporcionaram aos Advogados e 
Advogadas do Rio Grande do Sul a comunicação entre o saber 
criminológico e o saber jurídico-penal. 
Ainda que preliminarmente, registro a felicidade de participar 
desse projeto conjunto que revela as inquietações de um grupo de 
profissionais que, com um potencial revolucionário, resgatam no 
Direito e no exercício da advocacia a possibilidade de transformação da 
realidade. 
Não resta dúvida que há certas épocas em que os desafios são 
maiores para uma abordagem crítica dos problemas relacionados à 
violência, ao crime e ao controle social. Porém, para o Grupo de 
Estudos em Criminologia(s), o desafio só fez aumentar a qualidade e a 
profundidade dos debates, com o permanente incentivo para que 
todos/as os/as integrantes tivessem espaço de fala e (des)construções. 
A partir de uma perspectiva interdisciplinar, o Grupo de Estudos em 
Criminologia(s), fez da Escola Superior da Advocacia um espaço 
coletivo de discussão e reflexão sobre temas criminológicos candentes: 
Criminologias Clássica, Positivista e Crítica, Crítica Criminológica ao 
Processo Penal, Política Criminal e Práticas Punitivas, Segurança 
Pública no Brasil, Criminologia Feminista, Políticas de Drogas e 
Encarceramento em Massa e, por fim, Criminalização da Juventude. 
 
 
 
As contribuições das Pesquisadoras Fernanda Martins, Betina 
Warmling Barros e do Pesquisador Augusto Jobim do Amaral nos 
encontros do Grupo enriqueceram os diálogos e permitiram questionar 
a ideia de que a adesão a uma lógica punitivista traria soluções efetivas 
para a diminuição da violência. 
A disposição para o diálogo e preocupação em diminuir os 
espaços entre a “teoria e prática” faz dessa coletânea de artigos um 
convite ao leitor para que se comprometa com os direitos e garantias 
fundamentais, tal como proclamados na Constituição da República e 
nas Declarações Internacionais. Por todos esses motivos, é um grande 
prazer e orgulho apresentar essa obra. 
 
 Porto Alegre, julho de 2018. 
 
Fernanda Osório 
Advogada 
Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da 
OABRS 
Prof. da Escola de Direito da PUCRS
 
 
 
SUMÁRIO 
PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier 
PREFÁCIO - Lucas e Silva Batista Pilau, Michelle Karen Batista 
dos Santos 
APRESENTAÇÃO – Fernanda Corrêa Osório 
(RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA 
MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO 
ADOLESCENTE .............................................................................. 15 
Betina Warmling Barros e Lucas e Silva Batista Pilau 
RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA 
CRIMINOLÓGICA ......................................................................... 35 
Caroline Bussoloto de Brum 
ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA LITERATURA NÃO 
FICCIONAL E/OU MARGINAL NA TRADUÇÃO DOS 
DISCURSOS PRODUZIDOS PELO SISTEMA PUNITIVO A 
PARTIR DO CONCEITO DE “LOCAL DE FALA” ................... 52 
Cibele de Souza 
REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DA 
CONSTRUÇÃO DE UMA LÓGICA E UMA PRÁXIS 
JURÍDICAS ANTI-RACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE ..... 78 
Domenique Goulart 
PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE MEDO ........... 100 
Fernanda Martins e Augusto Jobim 
 
 
 
A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE ESTUPRO: A 
CULPABILIZAÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE 
PATRIARCAL BRASILEIRA ...................................................... 115 
Laura Gigante Albuquerque e Fernanda Corrêa Osório 
GUERRA ÀS DROGAS: DA INEFICÁCIA DO 
PROIBICIONISMO À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA .. 133 
Franchesca Inácio Zandavalli 
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL: 
PERSPECTIVAS DOGMÁTICA E JURISPRUDENCIAL ...... 149 
Leandro da Cruz Soares 
A EXCEÇÃO COMO REGRA NA CRIMINALIZAÇÃO DA 
RESISTÊNCIA: EXPANSIONISMO PUNITIVO E O 
ABANDONO DAS JUSTIFICATIVAS JURÍDICAS NAS 
ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SOCIAL ............................... 172 
Lucas Dall'Agnol Pedrassani 
“MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”: O DISCURSO 
MIDIÁTICO COMO INSTRUMENTO DE INCENTIVO E 
SUPORTE DO POPULISMO PUNITIVO .................................. 196 
Michelle Karen Batista dos Santos e Osmar Antônio Belusso Júnior 
FACÇÕES E MARAS: ANÁLISE COMPARATIVA DA 
CONSTITUIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ..... 216 
Patrícia Martins Saraiva 
 
 
 
15 
 
 
(RES)SOCIALIZAÇÃO MILITARIZADA: A POLÍCIA 
MILITAR NO BRASIL E O ESTATUTO DA 
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 
 
Betina Warmling Barros1 
Lucas e Silva Batista Pilau2 
 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 
Desde que passou a se consolidar como área própria de 
conhecimento no Brasil, principalmente a partir da promulgação do 
Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a justiça juvenil e seus 
instrumentos socioeducativos vêm ganhando contornos teóricos cada 
vez mais robustos e interligados com a produção acadêmica 
internacional. A atuação dos profissionais a serviço do Estado que 
lidam com este público também vem sendo esmiuçada como problema 
de pesquisa, em que pese a ainda absoluta desigualdade de 
aprofundamento teórico e de quantidade de intervenções, se comparada 
 
1 Mestranda em Sociologia no Programade Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. 
Atualmente é bolsista de Mestrado CNPQ. Possui Graduação em Ciências Jurídicas e 
Sociais da Faculdade de Direito/UFRGS. Atuação na área da Sociologia da Violência, 
Criminologia, Direito Penal e Direito Penal Juvenil. E-mail: 
barros.betina3@gmail.com. 
2 Pesquisador e Advogado. Mestre em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande 
do Sul (PUCRS). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas 
(UCPel). Professor convidado na Pós-Graduação (lato senso) em Ciências Criminais 
da Faculdade Campo Real (Guarapuava/PR). Advogado do Centro de Defesa de 
Direitos Humanos (CDDH) de São Leopoldo. E-mail: lucas.pilau@hotmail.com. 
mailto:barros.betina3@gmail.com
mailto:lucas.pilau@hotmail.com
16 
 
 
com temáticas mais tradicionais da criminologia, como o 
encarceramento adulto. 
Assim, a despeito da consolidação deste “novo” campo 
científico, há ainda extrema carência de aprofundamento nas pesquisas 
na área da justiça juvenil, sobretudo em temas mais específicos como, 
por exemplo, a atuação da polícia junto aos adolescentes. Talvez seja 
justamente no processo de indiferenciação das vivências destes jovens 
- como se a atuação da polícia produzisse os mesmos efeitos em um 
adolescente de 15 anos e em um adulto de 25 - que reside a força de 
movimentos conservadores, os quais buscam o desmantelamento das 
conquistas das últimas décadas3. É necessário, pois, singularizar. 
Com este objetivo, o presente artigo busca inicialmente traçar 
um breve histórico do sistema de justiça juvenil no Brasil, delineando 
os principais pontos de mudança com a transição da Doutrina da 
Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. A virada no 
paradigma levou a promulgação de nova legislação, necessária também 
em razão das desconfianças que se instalavam a respeito das teorias 
etiológicas do crime e a reabilitação como objetivo da justiça juvenil4. 
Em paralelo a essa onda de renovação legislativa, entretanto, a polícia 
militar brasileira manteve seu funcionamento nos mesmos moldes do 
período da ditadura civil-militar, preservando um ordenamento 
 
3 Entre 1993 e 2010 tramitaram no Legislativo brasileiro 37 propostas de Emenda 
Constitucional visando a redução da maioridade penal. (CAPPI, Ricardo. Pensando 
As Respostas Estatais às Condutas Criminalizadas: um estudo empírico dos debates 
parlamentares sobre a redução da maioridade penal (1993 - 2010). Revista de Estudos 
Empíricos em Direito, 1 (1), 10-27, 2013. p. 15.) 
4 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin 
america. In: MÁXIMO, L.; TANENHAUS D. S; ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile 
Justice in Global Perspective. New York: New York University Press, 2015. p. 205. 
17 
 
 
hierárquico e militarizado, do qual o objetivo maior continua sendo o 
extermínio do inimigo. 
Assim, a despeito da inovação teórica ter produzido uma 
revolução no sistema de justiça juvenil, o primeiro contato do Estado 
com o adolescente continua sendo através de uma instituição policial 
que não passou por qualquer reformulação democrática. A polícia, se à 
época do menorismo era “provedor majoritário e habitual da clientela 
das chamadas instituições de ‘proteção’ ou de ‘bem-estar’’5, pouco se 
transformou nessas últimas décadas visando garantir a proteção integral 
destes sujeitos em desenvolvimento. Continua, na verdade, a 
representar o símbolo mais eloquente de violação aos direitos 
individuais dos adolescentes criminalizados, ainda que tal desrespeito 
não inicie através da polícia e nem por ela seja sepultado. 
 
1 SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL: ENTRE O PUNIR E O 
EDUCAR 
O campo jurídico exerce grande influência na vida daqueles a 
ele subjugados. O Direito determina, em maior ou menor medida, os 
próximos capítulos do enredo pessoal de quem a ele se curva (ou é 
curvado, sem opção de fuga). Quando o público alvo dos desmandos 
judiciais está sendo acusado do cometimento de um crime, estamos 
falando do limite máximo de que é possível ao juiz dispor - a liberdade 
individual. Evidente que, a respaldar decisões desta ingerência, há um 
 
5 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância, Lei e Democracia: Uma Questão de Justiça. In: 
e BELOFF, Mary orgs. Infância, Lei e Democracia na América Latina, p. 42., apud, 
COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processuais e o direito penal juvenil: como 
limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria 
do Advogado, 2005. p. 58. 
18 
 
 
sistema legal de comandos e proibições, eis que há tempos deixou-se de 
acreditar - explicitamente, ao menos - no juiz como homem sábio, 
detentor da verdade. 
Pela importância que essas normativas possuem na vida da 
sociedade a que se destina - não apenas como Lei a ser cumprida, mas 
como sistema legal complexo que funda instituições, determina seu 
funcionamento, e expõe suas razões de ser - acredita-se que 
compreender o processo de constituição e implementação do 
microssistema legal que respalda a realidade em análise é fundamental 
à pesquisa de qualidade. Nesse sentido, quando se escolhe o recorte da 
violência policial contra a juventude brasileira, o sistema 
socioeducativo entra em pauta e passa a ser elemento central na análise 
deste fenômeno social, dado que é somente a partir dele e para ele que 
se fundam as possibilidades e justificativas para a repressão policial. 
Passa-se, então, à análise do ECA. 
O Estatuto brasileiro inaugurou em 1990, o que depois virou 
tendência em praticamente toda a América Latina, a concretização em 
norma da Doutrina da Proteção Integral. No mesmo ano, a Convenção 
Internacional dos Direitos da Criança possibilitou o início das chamadas 
leis de segunda geração6, sendo, o caso brasileiro representativo de uma 
“verdadeira ruptura com a tradição anterior, assim como um caso de 
aplicação rigorosa do novo paradigma”7. A promulgação da lei no 
contexto de redemocratização brasileira talvez represente a segunda 
maior ruptura no recém delineado campo da justiça juvenil, após a 
 
6 MÉNDEZ, Emílio Garcia. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: 
HUCITEC, 1998. p. 34. 
7 Idem, p. 35. 
19 
 
 
incorporação do modelo norteamericano de separação entre as varas 
criminais e juvenis, ainda no início do século XX8. 
É com a mudança legislativa de 1990 que se começa a pensar a 
criança e o adolescente, no contexto brasileiro, não mais como menor 
em situação irregular - ou “mero objeto do processo”9, mas como 
sujeito de direito, principalmente a partir do princípio constitucional da 
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento10. A partir do novo 
paradigma incorporado11, se por um lado começa-se a distinguir as 
políticas para adolescentes autores de ato infracional diversos daqueles 
previstos para crianças e adolescente em situação de risco, por outro, a 
legislação se propõe a ser instrumento para todo o conjunto da categoria 
infância. 
Nesse contexto, diversas estruturas de funcionamento do 
sistema de justiça juvenil são modificadas com o intuito de adequar-se 
a um devido processo legal pautado pela limitação do poder 
jurisdicional e pelo sistema de garantias, sendo extendido aos 
adolescentes “todas as garantias que correspondem aos adultos nos 
juízos criminais, segundo as constituições e instrumentos internacionais 
 
8 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin 
america. 
9 SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e 
ato infracional. 3. ed. ampl. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 18. 
10 Constituição Federal de 1988, art. 227, parágrafo 3º, inciso V. 
11“ADoutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que 
historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto conceitual, 
metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas às 
crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos humanos, superando o paradigma 
da situação irregular para instaurar uma nova ordem paradigmática.” (SARAIVA, 
João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: adolescente e ato 
infracional. p. 18). 
 
20 
 
 
pertinentes”12. Mantém-se, todavia, a separação dos sistemas de 
julgamento e a diferenciação das sanções a serem aplicadas. De modo 
geral, portanto, o Brasil inaugurou transformação paradigmática vivida 
logo após nos demais países do continente, estabelecendo preceitos 
norteadores do sistema, conforme pontua Mary Berloff13, como o 
princípio da legalidade, mecanismos restaurativos e alternativos, idade 
mínima de responsabilidade criminal, devido processo legal, 
consequências legais para os jovens que se declaram criminalmente 
responsáveis e internação como a última medida. 
Certamente, o instrumento de maior ingerência do Estado sob a 
vida dos adolescentes, agora protegidos pelo ECA é a medida 
socioeducativa, isto é, a resposta estatal para o cometimento de ato 
infracional - o que seria considerado crime, fossem sujeitos adultos. 
Trata-se de mecanismo de duplo caráter, em que se encontram 
interligadas intrinsicamente as dimensões punitiva e pedagógica. Se o 
educar está no nome da sanção, no seu dever-ser, o punir está presente 
na prática, nos efeitos e na aparência que as medidas vão começar a 
apresentar para a sociedade a partir da vigência do Estatuto. 
A ambivalência desta nova categoria jurídica, criada juntamente 
com a responsabilização penal dos adolescentes, é confusa desde o seu 
princípio e, ao irradiar-se, continua a causar interpretações tanto em um 
sentido quanto em outro. Os técnicos responsáveis pela aplicação destas 
medidas (sejam juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais ou 
 
12 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: 
adolescente e ato infracional. p. 27. 
13 BERLOFF, Mary; MÁXIMO, Langer. Myths and realities of juvenile justice in latin 
america. p. 210. 
21 
 
 
educadores) lidam com um objeto jurídico-educacional “que ao mesmo 
tempo deve reabilitar infratores e cultivar cidadãos14”. Assim, ao 
entender o adolescente como um ser passível de correição social, se 
cristalizou um ponto intermediário de intervenção do Estado, entre 
piedade e tratamento como meio de controle social15. 
 Conforme se vê, portanto, a despeito da importância da 
promulgação do Estatuto no contexto brasileiro e latino-americano, a 
legislação não logrou romper com o chamado trinômio pobreza, desvio 
e delinquência, nas palavras de Liana de Paula16. O paradigma da 
Situação Irregular, precedente ao ECA e sustentado na ideia da divisão 
entre crianças e menores, ainda percorre os corredores das Varas da 
Infância e Juventude e dos locais de execução de medida 
socioeducativa. Compartilhando da análise realizada pela autora, ao 
apostar no poder judiciário como agente promotor de cidadania, 
ascensão social e garantidor dos direitos humanos, “a doutrina da 
proteção integral aposta na instituição de caráter mais conservador do 
Estado Moderno como propagadora de mudanças”17. Esquece, todavia, 
que o sistema socioeducativo, ao aplicar sanções, se afasta menos do 
que gostaria do sistema punitivo e, nesse sentido, segundo nos desvenda 
Foucault18, concede ao juiz nada mais do que o poder de sancionar 
 
14 FONSECA, Cláudia; SCHUCH, Patrice. Políticas de proteção à infância: um olhar 
antropológico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. p. 77. 
15 NICODEMOS, Carlos. A natureza do sistema de responsabilização do adolescente 
autor de ato infracional. In: ILANUD (Org.), Justiça Adolescente e Ato Infracional: 
Socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006, p. 62-85. 
16 PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São 
Paulo. 2011. - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de 
São Paulo, São Paulo, 2011. p. 61 
17 PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São 
Paulo, p. 61. 
18CASTRO, Françoise. Foucault par lui même. Disponível em: 
22 
 
 
aquilo que já fora muito antes decidido, quando do momento da 
apreensão do adolescente pela polícia. 
2 VIOLÊNCIA POLICIAL NO COTIDIANO BRASILEIRO 
No Brasil e no mundo, diariamente são propagadas, tanto nos 
meios tradicionais da mídia quanto nas redes sociais, fatos relacionados 
à violência19 policial. Ou seja, fatos que demonstram o aparato estatal 
interagindo com os sujeitos desde uma perspectiva autoritária e abusiva 
frente aos direitos humanos internacional e constitucionalmente 
consagrados. É a violação, pura e simples, daqueles que virtualmente 
teriam o dever de proteção. Mas, no Brasil, pensar segurança pública 
não é o mesmo que pensar segurança para todos. A Constituição 
Federal, promulgada em 1988, dedica, a partir do seu artigo 144, um 
capítulo inteiro sobre o funcionamento das forças policiais – as quais, 
como se em regimes autoritários estivessem, são consideradas, segundo 
o art. 144, inciso IV, § 6º, forças auxiliares e de reserva do exército20 – 
elencando as cinco dimensões em que a instituição é repartida para sua 
 
<https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To>. Acesso em: 19.02.2017. 
19 O termo violência é aqui utilizado no sentido atribuído por Ricardo Timm de Souza: 
“Tudo aquilo que entendemos por violência, em todos os níveis, do mais brutal e 
explícito à violência coercitiva e socialmente sancionada do direito positivo e, 
inclusive, a violência autoinfligida, repousa no fato exercido de negação de uma 
alteridade [...] A violência, no sentido aqui proposto, constitui-se na medida em que 
se exerce, desde um polo de decisão individual ou social, de forma consciente ou em 
contextos que sugerem inconsciência, atos que negam a condição de outro do outro, 
ou seja, daquele que não pertence ao polo de decisão” (SOUZA, Ricardo Timm de. 
Ética como fundamento II: pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul, RS: Educs, 
2016, p. 100). 
20 ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição 
Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da 
ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52. 
23 
 
 
atividade: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária 
federal, polícia civil e polícia militar e corpos de bombeiros. 
Diante das atribuições que a cada uma dessas estruturas é 
relegada pelo ordenamento jurídico brasileiro, para o objeto ora em 
voga, importa focar somente nas polícias militares, na medida em que 
são elas as responsáveis pelas atividades ostensivas, quer dizer, buscam 
coibir e prevenir atividades criminosas, lançando seus agentes à 
realidade dos bairros, das comunidades, das favelas. É o policial militar 
quem se apresenta num primeiro momento, inesperadamente ou quando 
convocado, aos fatos que podem (ou não) decorrer de atividades 
criminosas. 
Por isso é que, ao se falar de polícia militar, está se falando do 
bloco da instituição policial brasileira, e mesmo de forma mais ampla, 
do sistema penal como um todo, que incide diretamente sobre a 
sociedade e especificamente sobre os indivíduos (gestos, ações e 
movimentos): ora, como uma de suas faces, poder disciplinar por 
excelência, na medida em que busca docilizar corpos para que se 
tornem (economicamente) úteis21. Nesse sentido, sua estética 
(condensada em armaduras e aparatos de forte blinde) contribui para 
sua função panóptica – enxergar sem ser enxergado – em que oscontemporâneos trajes de robocop mascaram a identidade do corpo ali 
inserido. Verdadeiro efeito de viseira22. 
 
21 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Rio de 
Janeiro: Vozes, 2009, pp. 131-163. 
22 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a 
nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 
1994, p. 23. 
24 
 
 
É incontroverso que uma polícia estruturada de forma militar 
agirá como se em uma guerra estivesse (e, portanto, usará táticas 
direcionadas a inimigos), sem deixar de olvidar que os maiores 
genocídios cometidos até hoje estiveram a cargo de forças policias ou 
de forças armadas que cumpriam funções de polícia - a America Latina 
é um exemplo pulsante23. No caso do Brasil, a ausência de uma política 
de transição da ditadura civil-militar para o regime político-
democrático também contribuiu para que a estrutura militarizada da 
polícia se mantivesse intocada e, portanto, envolta em uma 
continuidade autoritária em que morte e esquecimento24 pautam o 
cotidiano dos homini sacri, ou seja, das vidas matáveis25. Dirá 
acertadamente Nilo Batista: “O militar é adestrado para o inimigo, o 
policial para o cidadão. Na estrutura militar, a obediência integra a 
legalidade; na policial, a legalidade é condição prévia da obediência. 
São formações distintas, dirigidas a realidades também distintas”26. 
Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança 
Pública, só no ano de 2015 se registraram no Brasil 3.320 mortes 
decorrentes de intervenções policiais, sendo que no período 
compreendido entre 2009 e 2015, foram auferidas 17.688 pessoas 
 
23 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas 
penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana. IN: WOLKMER, 
Antônio Carlos (org). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 
1996. p. 165 a 209. 
24 SAFATLE, Vladmir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; 
SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? - a exceção brasileira. São 
Paulo: Boitempo, 2010, p. 238. 
25 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de 
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 16. 
26 BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da 
militarização da segurança pública. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.); Ana Luiza 
Nobre [et. al]. Paz Armada. Coleção Criminologia de Cordel. Rio de Janeiro: Revan, 
2012, 1ª reimpressão, setembro de 2013, p. 51. 
25 
 
 
mortas pelas polícias. Na mesma pesquisa, estimou-se que 70% dos 
entrevistados consideram que a polícia exagera no uso da violência, 
havendo o reconhecimento de 63% de que a polícia não possui boas 
condições de trabalho27. Não é nenhuma novidade que as más condições 
da instituição policial (sucateadas no Brasil principalmente a nível 
estadual) influência no modo como essa interage com a sociedade. 
Ao contrário do que se poderia pensar, nem todas aquelas mortes 
foram investigadas. Algumas, sequer lembradas. O esquecimento 
(Amarildo vive em poucos...) vem solapando as esperanças de 
mudanças nas estruturas policiais rigidamente postas desde tempos 
sombrios que o país passou, reatualizando diariamente, nas localidades 
mais vulneráveis, a barbárie. Sem transformá-los em números, mas 
listando-os por ordem temporal, somente após a promulgação da 
Constituição de 1988 teve-se: Carandiru, em 1992 (111 mortos); 
Candelária, em 1993 (08 mortos); Vigário Geral, em 1993, (21 mortos); 
São Paulo, em 2006 (500 mortos); Grande São Paulo, em 2015 (23 
mortos); Costa Barros, em 2015 (05 mortos); Londrina, em 2016 (10 
mortos); Porto Alegre, em 2016 (04 mortos). Sem contar os recentes 
casos emblemáticos, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo 
Dias de Souza (2013), morto após ser torturado na Favela da Rocinha, 
no Rio de Janeiro. Além dele, Cláudia Silva Ferreira (2014), arrastada 
por um camburão e morta, posteriormente, com um tiro dado pela 
polícia. 
Fatores que são decisivos na compreensão dessa lógica de 
extermínio são o racismo institucional combinado com uma estrutura 
 
27 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 10º Anuário Brasileiro de 
Segurança Pública, 2016, p. 06. 
26 
 
 
punitiva onde a guerra é o elemento fundante (afinal, o Estado não fez 
cessar a guerra de uns contra outros como se havia pensado28). A guerra 
às drogas, verdadeira síntese de racismo, criminalização e polícia, 
atualmente, pode-se dizer, é o grande motor dessa máquina de moer 
gente chamada sistema penal. No Brasil, sabe-se há muito, crianças e 
adolescentes são alvejados e mortos sem sequer ter tido qualquer 
contato, para uso próprio ou para comércio, com substâncias ilícitas. 
Eduardo Ferreira, de 10 anos, assassinado em 2015 durante um 
confronto entre policiais e traficantes no Complexo do Alemão, é o 
exemplo dessa desumanização advinda de um progresso (pacificador) 
que só acumula catástrofe. Embora o quadro de Klee represente o pavor 
do anjo frente ao vento que sopra do passado29, a realidade brasileira 
estaria também representada pelo quadro de Edvard Munch30. 
Assim é que se deve destinar uma visão ampla à questão da 
militarização da polícia no Brasil, visto que sua prática cotidiana – fruto 
de diversos fatores passados e não enfrentados e de conjunturas atuais 
– acaba por impossibilitar a afirmação de direitos, antes possibilitando 
tão somente a criminalização e a violação massiva e a conta-gotas 
desses. Ao se tratar de uma parcela da população tão vulnerável como 
adolescentes, nota-se certos entraves que essa polícia militarizada, 
acostumada no Brasil a assassinar e torturar para garantir a segurança 
 
28 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France 
(19751976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 
91. 
29 Em referência à tese IX das teses “Sobre o conceito da história” de Walter Benjamin 
(BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e 
história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin 
– 8ª Ed. Revista – São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v.1, pp. 245-246). 
30 Em referência ao famoso quadro O Grito, de Edvard Munch, em que uma criatura 
demonstra, com as mãos coladas na face, angústia e desespero. 
27 
 
 
(de uns poucos), acaba impondo na concretização inclusive de 
legislações vigentes promulgadas já no regime político-democrático. 
3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E 
POLÍCIA NO BRASIL: INCOMPATIBILIDADE 
INTRANSPONÍVEL 
Nesse sentido, é preciso pontuar que a ideia de ressocializar 
através do sistema penal não é necessariamente uma novidade do ECA. 
Na criminologia, tal noção se apresenta como um dos regimes em que, 
em determinado momento histórico, a pena tornou como objetivo 
declarado. Uma breve história dos pensamentos criminológicos31 deve 
passar pelas apropriações e reelaborações de termos que o sistema penal 
se utiliza para justificar sua barbárie. Ressocializar é uma delas, entre 
todos os métodos “re” (reintegrar, readaptar, reinserir) pela qual a 
clientela desse sistema perverso teve de se submeter. 
Não faz muito tempo que uma onda – e assim é chamada pelo 
fato de vir e voltar constantemente, não tendo lugar definido – de 
ressocialização acossou os sistemas penais do mundo. Terminada a 
Segunda Guerra Mundial, parte da segunda metade do século XX, nos 
países centrais, conheceu-se o chamado welfare state, onde o Estado, 
diante de uma memória recente de terror, passou a dar assistência direta 
aos indivíduos. Para os criminalizados e encarcerados da época, o 
discurso estava centrado na busca pela ressocialização– a ideia de um 
previdenciarismo penal girava em torno da prosperidade da sociedade, 
incluindo nela os criminalizados sob cuidado agora de um Estado 
 
31 Para uma visão geral, ver: ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos 
criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca 
de Criminologia, 2008. 
28 
 
 
preocupado tanto com a reforma quanto com o bem-estar deles32. 
No mesmo período, a partir da segunda metade do século XX, a 
retórica da reabilitação encontrou lugar cativo na temática da justiça 
juvenil, não apenas na América Latina, mas nos sistemas de justiça 
juvenil ao redor de todo o mundo33. Diferentemente da lógica penal, em 
que o neoliberalismo da década de 70 em diante retoma o ideal 
retribucionista da pena, o sentimento reabilitador continua vivo ao 
redor do mundo no contexto da justiça juvenil. As razões para a 
preservação deste ideal não são propriamente a crença completa nos 
benefícios alcançados com a reabilitação, mas estão muito mais 
relacionados com o diagnóstico de que o fenômeno da especialização 
da justiça juvenil ao redor do mundo inquestionavelmente conquistou a 
garantia de menos adolescentes encarcerados e de menos tempo de 
reclusão34. 
De todo modo, o discurso legal e majoritário da doutrina 
especializada no tema é de que, a despeito da natureza sancionatória da 
medida, “a responsabilização do adolescente em conflito com a lei deve 
atender ao caráter socioeducativo”35. Legitima-se, portanto, a 
intervenção estatal na vida do sujeito para que a este sejam 
 
32 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade 
contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 110. 
33 ZIMRING, Franklin E.; LANGER, Máximo. One theme are many? The search for 
a deep structure in global juvenile justice. In: LANGER, M.; TANENHAUS D. S; 
ZIMRING, F. E. (Org.). Juvenile Justice in Global Perspective. New York: New York 
University Press, 2015. p. 389. 
34 Idem, ibidem. 
35 COSTA, A.P. M.Os direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas 
socioeducativas e sistema constitucional brasileiro. In: CRAIDY, C. M.; 
SZUCHMAN, K. (Org.). Socioeducação: Fundamentos e Práticas. Porto Alegre: 
Evangraf, 2015. p. 19. 
29 
 
 
concretizados o acesso a certos direitos sociais até então 
negligenciados, na esperança de que essa reposição estatal desencoraje 
a prática de atos infracionais pelo adolescente. Trata-se, em verdade, da 
ideia de que o resgate dos direitos constitucionais de primeiro nível36 - 
como educação, habitação, convivência familiar, cultura, saúde e 
esporte - não só é possível passados de 12 a 18 anos da vida do sujeito, 
com é fundado pedir em contrapartida o abandono da prática criminosa 
pelo adolescente. 
Ocorre que, é curioso imaginar como sustentar tal ideologia em 
que o adolescente precisa readquirir confiança no Estado - uma vez 
que o próprio assume suas falhas com o sujeito até então - quando o 
primeiro contato entre indivíduo-judiciário se realiza através da polícia. 
É difícil, portanto, que as ideias contidas no Estatuto da Criança e do 
Adolescente possam prosperar enquanto não se enfrentar o mecanismo 
que realiza o jogo de seleção entre os adolescentes a ser captados: a 
polícia militar. Aprofundada na ditadura civil-militar, a militarização, 
calcada nas formas da disciplina e do combate àquele que obstrui o 
recorrente e recorrido termo ordem pública, só reproduz violência, dor 
e sofrimento quando do contato com indivíduos vulneráveis – 
vulnerabilidade essa que se dá propriamente em função da idade, mas 
que resta alargada no Brasil em razão de classe e cor. 
Quer dizer: vulnerável pela adolescência, mas mais vulnerável 
ainda se jovem, pobre e negro. As proteções que o ECA projeta para os 
adolescentes não impedem que a polícia militar viole massivamente 
seus direitos no dia-a-dia das favelas, dos bairros pobres, das delegacias 
 
36 SARAIVA, João Batista da Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: 
adolescente e ato infracional. p. 50. 
30 
 
 
e das fundações em que mantidos segregados. Visto como inimigos, a 
eles nenhum direito cabe: visão diária e corriqueira que a polícia militar 
não cansa de reproduzir e, o pior, de ser aplaudida por segmentos 
fascistas de classes mais abastadas, despreocupadas com o destino de 
uma juventude que há muito experimenta a cilada da cidadania – 
também conhecida como ciladania37. 
O que foi trazido até então projeta, portanto, um oximoro 
chamado ressocialização militarizada. Como a ressocialização de um 
adolescente, o qual se encontra em fase da vida que justifica o 
reconhecimento especial da própria legislação vigente, pode em alguma 
medida prosperar através da violência que a militarização opera? No 
Brasil, como um adolescente pode ter seus direitos consolidados se, 
para chegar até eles, é obrigatório que seja captado por uma polícia 
operando em uma lógica de guerra, a exterminar seus inimigos? Por 
último, é possível que uma legislação como o Estatuto da Criança e do 
Adolescente consiga operar em seu máximo quando intocadas as 
garantias e prerrogativas de uma polícia militarizada desde a época da 
recente ditadura civil-militar? Questões essas que, por certo, se 
possuem resposta, tais encontram-se no plano da realidade, certamente 
mais violenta e cruel do que as elucubrações teóricas aqui explanadas. 
 
 
37 BATISTA, Vera Malaguti. Marx com Foucault: análises acerca de uma 
programação criminalizante. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.02, n.04, p. 25-
31, julho-dezembro de 2005, p. 28. 
31 
 
 
 CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A partir do exposto, candente se torna pontuar algumas breves 
reflexões finais. Na maneira como a justiça juvenil funciona, a sua 
identificação com o sistema penal torna-se inafastável, ainda que se 
tenha uma legislação que pretende realizar uma distinção teórico-
prática, mascarando o evidente. A reabilitação dos adolescentes, 
portanto, é mera ferramenta discursiva que está em completo desacordo 
com a prática da justiça juvenil no Brasil. A despeito de existirem 
razões legítimas para mantê-la, não se pode deixar de apontar as 
contradições e barreiras que essa pretenção ressocializativa encontra no 
momento da sua operacionalização. Uma polícia militarizada é a maior 
delas. 
Atuando com sua engenharia violenta de controle social, a 
instituição policial no país atua renovando, diariamente, o exército de 
corpos dóceis disponíveis ao sistema econômico e social – afinal, 
alguns grupos devem submeter-se à disciplina necessária para que se 
contentem com subempregos. No entanto, essa lógica disciplinar não 
afasta a verdadeira política de morte estatal instrumentalizada pela 
polícia militar nas zonas periféricas. Assim, em sendo pressuposto o 
entrelaçamento dessas duas esferas – legislação reabilitadora e polícia 
militarizada – para o funcionamento da justiça repressiva a 
adolescentes, difícil vislumbrar como não haver um campo de disputa 
entre elas. Seus discursos caminham em direção opostas, porém devido 
à necessidade da atuação conjunta no momento da intervenção estatal 
na vida do adolescente, suas práticas se chocam. 
32 
 
 
Choque esse inabalável, mesmo que maiores sejam os esforços 
reformistas tanto no sistema socioeducativo, quanto na polícia 
historicamente militarizada. Transpor essa lógica significaria estarem 
dispostas, sociedade e governabilidade estatal, a renunciar uma ou outra 
dessas estratégias. É por essa razão que uma ressocialização 
militarizada carrega consigo a impossibilidade de um por vir garantidor 
dos direitos fundamentais da juventude brasileira, seja ela criminalizada 
ou não. 
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Global Perspective. New York: New York University Press, 2015, p. 
383-411. 
35 
 
 
RETRATO DO ABUSO DE PODER PELA ÓTICA 
CRIMINOLÓGICA 
 
Caroline Bussoloto de Brum1 
 
INTRODUÇÃO 
A necessidade de impor limites aos poderes do Estado perfaz 
eras e civilizações. Dada a necessidade contínua de transformação 
social, uma vez que reconhecidos como cidadãos ativos e saturados do 
absolutismo, a população burguesa revoluciona-se em prol de garantir 
seus direitos, sua liberdade e igualdade. 
Nunca para os cidadãos existiram direitos absolutos na esfera 
pública antes das revoluções burguesas, exceto para o soberano, cujos 
direitos e poderes se fundiam. Os direitos públicos, como conhecidos 
atualmente, eram roupados como possibilidades de iniciativa pessoal, 
construídos como privilégios, ou mais frequentemente como status, 
concedidos às coletividades2. 
As revoluções burguesas tentaram elevar certos interesses 
fundamentais ao nível de garantias, tentando tornar tais direitos 
absolutos. Essas metas foram, em certa medida, entendidas como 
planos de ação, pelo menos na teoria inicial para a elaboração da 
 
1 Pós-Graduanda na Especialização em Direito Penal e Políticas Criminais na 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Advogada. 
2 SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of Purposiveness 
(29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental Rights. Edited by András Sajo. 
Eleven International Publishing. 2006. p. 43. 
36 
 
 
declaração resultante da revolução francesa.3 A declaração francesa dos 
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que define os direitos 
individuais e coletivos dos homens como universais, não trouxe a 
resolução desta matéria, ou seja, deixou para a legislação interna de 
cada Estado signatário prever os limites aos direitos que ali dispõe como 
mínimos. 
Para compreender melhor o contra o que se revolucionaram, é 
necessário saber o conceito trazido como “Estado” que pode ser 
entendido como “um grande conjunto de pessoas, instituições e classes 
que possuem o monopólio do poder e da força física”.4 O Estado, 
enquanto garantidor, busca suprir demandas populares, e, quanto menos 
seguras estão as pessoas, mais elas exigem um Estado policial e um 
Estado forte. Um Estado estruturalmente forte e altamente policial 
reduz o espaço da democracia e estrutura-se para garantir, a qualquer 
preço, a realização dos interesses dos sujeitos e classes que o 
controlam5. 
O Estado no modelo autoritário mais moderno, pós-
imperialistas, não pode ser encarado como algo contra as massas, mas, 
ao contrário, aceito e, geralmente, defendido por elas, uma vez que nada 
acontece sem que ocorra uma consonância com as aspirações coletivas. 
Não se pode dizer que elas concordam com um Estado de terror tal, mas 
sim, que buscam uma certa segurança que só é encontrada, nos termos 
de hoje, como sinônimo de um Estado todo-poderoso.6 
 
3 SAJÓ, András. Idem. p.43. 
4 FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica. Editora moderna, 
1987. p. 54. 
5 FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 56. 
6 FILHO, Ciro Marcondes. Idem. p. 72. 
37 
 
 
Para melhor elucidação, as massas, enquanto definição 
terminológica, somente são utilizadas neste contexto quando lidamos 
com pessoas que são, devido ao seu número ou indiferença, ou ambos, 
não integrantes de qualquer tipo de organização de interesses comuns, 
como partidos ou sindicatos. São indivíduos comuns e presentes nos 
Estados totalitários, que “não se unem pela consciência de um interesse 
e falta-lhes aquela específica articulaçãode classes que se expressa em 
objetivos determinados, limitados e atingíveis”.7Assim, a incansável 
busca pela garantia e concessão de direitos nada mais é do que a 
perquirição pela proteção dos arbítrios do Estado, que, na maioria das 
vezes, foram inclusive legitimados pelos próprios cidadãos. 
Assim, os modelos tradicionais de sociedade e Estado surgiram 
baseados na hierarquia e esta, por sua vez, no poder. Nesta linha de 
raciocínio, as normas jurídicas, as morais e as sociais emanam de um 
poder hierarquizado e seguem uma direção descendente. Desta forma, 
quem ostenta o poder, ou participa dele de alguma maneira, não só o 
detém, mas é identificado ou relacionado com a “fonte dos valores 
sociais”, culminando na impressão de que “o poderoso não somente é 
forte, mas acaba sendo visto como bom”.8 Com esta estrutura social era 
natural que a criminalidade aparecesse em sua maioria, ou até 
totalidade, representada pelos marginalizados. 
 
 
7 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e 
Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 361. 
8 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder Aspectos 
Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia 
frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano 
en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 45. 
38 
 
 
1. CRIMINOLOGIA E ABUSO DE PODER - EVOLUÇÕES 
TEÓRICAS 
Os criminólogos italianos Lombroso, Ferri e Garófalo, quando 
iniciaram o estudo empírico da criminalidade e fundaram a 
criminologia positivista, fizeram suas considerações a partir dos 
“delinquentes” que povoavam as prisões. Eles estudavam os autores de 
delitos, classificando-os e estereotipando-os através da análise suas 
personalidades, chegando à conclusão de que eram portadores de uma 
patologia.9 Hoje, já se adverte ao fato de que estas pessoas, e não outras, 
constituíam e ainda constituem a “clientela” habitual do sistema penal 
pela valoração e tomada de decisões serem realizadas por quem tem a 
capacidade (dispõe do poder) de definir o que vem a ser delito ou não, 
e de quem são os perseguidos ou não como delinquentes.10 
Mas não foi nem a valoração social ou a estrutural adotada pelos 
positivistas italianos, ou pela Criminologia tradicional. Partiu-se, ao 
contrário, do conceito natural de delito, segundo o qual este não é um 
produto de um determinado tipo de sociedade, mas sim algo intrínseco 
ao indivíduo, que o faz nocivo. A consequência disto foi que ficou 
consagrado um conceito de “delinquente” vinculado estreitamente à 
marginalização social, fazendo com que as tipologias desses elaboradas 
à época não se ajustassem à imagem de quem abusava das posições de 
 
9 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de 
Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição. p. 45/46. 
10 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder 
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 43. 
39 
 
 
privilégio tanto social, como econômico ou político.11 Esta noção 
errônea estereotipada ainda pode ser observada no pensamento 
criminológico atual, enraizado de uma forma cultural através das 
classificações hierarquizantes que se expandiram após o período 
colonialista12. 
Uma das realizações das novas teorias criminológicas foi ter 
descoberto a chamada ubiquidade da delinquência. Com esse conceito, 
quer se dizer que os delitos podem e são cometidos em todos os níveis 
da sociedade, mas gera, concomitantemente, um fenômeno onde não se 
pode identificar todos aquele que cometem crimes, ou seja, a chamada 
cifra negra da criminalidade.13 Dentre as novas teorias, surge a 
criminologia crítica, nascida em contraponto às teorias tradicionais 
positivistas, analisa o abuso de poder, explicando inicialmente que a 
adoção da teoria liberal pode ser útil para impor limites aos governos, 
tendo como característica central a prescrição de reformas, 
concentrando-se em pesquisas sociológicas para sugerir mudanças 
institucionais e sociais como meios de prevenção do comportamento 
antissocial.14 Comparando-se as teorias conservadoras e liberais, pode-
se chegar ao ponto comum de que ambas não questionam a estrutura 
social ou suas instituições jurídicas e políticas, mas se dirigem para o 
 
11 PUIG, Santiago Mir. Idem. Ibidem. 
12 BATISTA, Vera Malaguti. Idem. p. 41. 
13 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder 
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 44. 
14 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen 
Juris, 2008. p. 4. 
40 
 
 
estudo da minoria criminosa, elaborando etiologias do crime fundadas 
em estudos patológicos, psicológicos e até genéticos.15 
Para contrapor as teorias criminológicas meramente focadas em 
aspectos internos do indivíduo desviante, surge a criminologia radical, 
criada no Grupo Europeu para o Estudo do Desvio e do Controle Social, 
em Florença na Itália, em 1972. Tal vertente, denunciava os modos 
dominantes de análise do crime, que viam o criminoso como “produto 
de defeitos psicológicos ou de personalidades anormais”, e o controle 
social, que era avaliado apenas em termos de efetividade e eficiência 
através das estatísticas criminais.16 
Ou seja, as análises do que era crime e de quem era o criminoso 
eram feitas pela camada superior de poder, que não ditava suas próprias 
características como as comuns aos indivíduos criminosos, fazendo 
com que ficassem evidentes as relações entre os sistemas de controle 
social e a estrutura de classes do modo de produção capitalista.17 Tal 
vertente criminológica chega à conclusão de que os caracteres sociais 
do sujeito ativo do abuso de poder, ou seja, aquele que executa o crime 
no exercício de atividades político-administrativas, pela soma das 
complexidades legais, das cumplicidades oficiais e pela atuação de 
tribunais, às vezes especiais para tais autores, explica a imunidade 
processual e a inexistência de estigmatização criminal para estes.18 
Desta forma, a criminologia radical aponta as estatísticas 
criminais como “produtos da luta de classes nas sociedades 
 
15 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem. 
16 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 7. 
17 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem, Ibidem. 
18 ANIYAR, 1977, p. 92-93 apud SANTOS, 2008 p.13. 
41 
 
 
capitalistas”,19 afirmando que a criminalidade das classes dominantes, 
expressa pelo abuso de poder econômico e político, está excluída das 
estatísticas criminais, uma vez que sua origem estrutural e o lugar de 
classe dos autores, os quais se encontram em posição de poder 
econômico e político, são as explicações desta exclusão.20 Descobre 
também que no sistema de justiça criminal há uma disjunção concreta 
entre uma ordem social imaginária, que é difundida com noções de 
igualdade e de proteção geral, e uma ordem social real, na qual ocorrem 
desigualdade e opressão de classes.21 
Nos anos 70, surge um movimento teórico com amplo impacto 
popular conhecido como a criminologia da denúncia, que focava no 
comportamento dos poderosos, “enunciando os defeitos das elites de 
poder econômico e político da sociedade, para mostrar que os que 
fazem as leis são, também, os maiores violadores dessas leis”22. Esta 
vertente criminológica supõe que os poderosos deteriam um "direito 
moral" que os capacitaa converter força em "autoridade", por meio dos 
procedimentos legalmente estabelecidos.23 Demonstrando que a 
criminalidade do poder econômico e político não é um fenômeno 
irregular ou acidental, mas sim regular e institucionalizado, fortemente 
ligado à posição estrutural de classe na formação social. Assim, 
conforme traz Cirino em sua explicação sobre o tema, o ponto central 
 
19 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: ICPC Lumen 
Juris, 2008. p. 14. 
20 YOUNG, 1979, p.16 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 14. 
21 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p. 15. 
22 TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 25. 
23 TAYLOR et alii 1980, p. 33 e ss. apud SANTOS, 2008, p. 26 
42 
 
 
que gera consequências práticas da criminologia radical é a negação do 
mito do direito penal igualitário, ou seja 
 
a proteção geral de bens e interesses existe, realmente, 
como proteção parcial, que privilegia os interesses 
estruturais das classes dominantes; a igualdade legal, no 
sentido de igual posição em face da lei, ou de iguais 
chances de criminalização, existe, realmente, como 
desigualdade penal: os processos de criminalização 
dependem da posição social do autor e independem da 
gravidade do crime ou do dano social. 24 
 
Desse modo, a criminologia radical melhor explica as relações 
de poder e desigualdade, a fim de explicar a criminalização demasiada 
dos marginalizados, bem como a precária falta de criminalização 
daqueles que detêm o poder ou que podem dele se utilizar para 
subverter o direito em seu benefício. 
 
2. CRIMINALIDADE INCIDENTE NO ABUSO DE PODER 
Dentre os tipos de abusos estatais aos quais os indivíduos estão 
sujeitos, encontra-se o abuso de poder, que é o mais frequente e 
suscetível a todos. Pode ser estruturado de forma a supor que o autor 
deste, em uma determinada classe social alta, dispõe de um poder 
potencial ou que o permite exercê-lo de maneira especial, não 
disponível para qualquer um, e que apresenta uma influência contra os 
desejos dos outros.25 Normalmente os praticantes do abuso de poder 
 
24 BARATTA, 1978, p. 10 apud SANTOS, 2008, p. 46 e ss. 
25 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles 
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. 
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais 
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 13. 
43 
 
 
possuem uma ambição patológica, ou seja, sentem o poder como uma 
droga26. 
As causas que o motivam, geralmente, são a necessidade de 
prestígio, a ambição de poder e a excessiva aspiração de influência. É 
característico o esforço por aumentar ou reforçar a situação de poder já 
existente, a ânsia pela perpetuação do poder quando ele não pode ou 
não conseguiu desenvolver-se de maneira legal ou pelas vias 
democráticas, que tem como consequência o abuso de poder que se 
dirige à ilegalidade27. 
Dados os mais distintos sentidos possíveis para o conceito de 
poder, também são diversas as possibilidades para entender o conceito 
objetivo de delinquência relacionada com o abuso deste poder. Em uma 
análise ampla do sentido, o poder a que se alude pode alcançar não 
somente o estatal ou o político, mas também a capacidade de influência 
que tem determinados sujeitos por ocuparem posições sociais ou 
econômicas privilegiadas. Não cabe no sentido amplo de poder a 
criminalidade objetivamente relacionada com o crime, o qual se cometa 
utilizando o aparato institucional do Estado, pois este é entendido como 
uma manifestação no sentido estrito de delinquência por abuso de 
poder28. 
Comumente, a responsabilidade penal para as formas 
tradicionais do abuso do poder é reconhecida às pessoas físicas, que são 
 
26 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 14. 
27 TRIFFTERER, Otto. Idem, Ibidem. 
28 PUIG, Santiago Mir. La Delinquência Relacionada com el Abuso de Poder 
Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 46. 
44 
 
 
aquelas na primeira linha para a responsabilidade penal. Mas, há algum 
tempo, se realizam esforços a nível nacional e internacional para 
estabelecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas e inclusive 
do Estado29. Nos casos de abuso de poder cometidos por órgãos estatais, 
inclusive nos Estados democráticos, os mecanismos sancionadores 
existentes muitas vezes não funcionam corretamente, fazendo com que 
esta forma de aparição do abuso de poder seja objeto, mais que qualquer 
outro delito, de um crescente interesse internacional.30 
Esta atenção especial na esfera internacional se deve, sobretudo, 
por tais abusos de poder geralmente violarem direitos humanos. A 
mesma comunidade internacional se sente cada vez mais chamada a 
denunciar tais violações e a exercer pressão sobre o Estado agressor, se 
faltam, por exemplo, os mecanismos sancionadores ou de controle.31 O 
abuso de poder estatal ocorre quando se comete um abuso de poder 
mediante órgãos do Estado ou ao menos com seu consentimento ou sua 
tolerância tácita. Nestes casos, são inclusos também os responsáveis 
pela administração da justiça, visto que é um poder do Estado, que, 
sequer em uma democracia, se vê livre de influências externas e 
ocasionalmente pode vir a ser o autor do abuso do poder.32 
Em tempos de Estado democrático, via de regra, a probabilidade 
de alguém ser vítima de um abuso de poder estatal que restrinja sua 
liberdade, lhe cause prejuízo ou até mesmo culmine em uma fatalidade, 
 
29 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles 
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. 
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais 
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 16. 
30 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 16. 
31 TRIFFTERER, Otto. Idem. Ibidem. 
32 TRIFFTERER, Otto. Idem. p. 17. 
45 
 
 
é consideravelmente menor que em uma ditadura ou em um Estado 
absolutista. Porém, o abuso do poder costuma aparecer onde o poder 
não seja suficientemente controlado, sendo tão somente um consolo que 
em uma democracia, que geralmente funciona, se estabeleçam meios 
legais que possibilitem aos prejudicados se defenderem ou serem 
indenizados em eventuais abusos.33 
Quanto aos problemas dogmáticos encontrados na delinquência 
vinculada ao abuso de poder, pode-se dizer que esta não se limita a este 
ou àquele tipo de delito, mas sim, em qualquer dos delitos que possam 
ser cometidos abusando do poder, na medida em que estes se 
caracterizam frequentemente pela utilização de um aparato hierárquico, 
que muitas vezes obscurece a individualização dos responsáveis.34 
 
 
3. ABUSO DE PODER PELA AUTORIDADE POLICIAL - 
BREVES OBSERVAÇÕES CRIMINOLÓGICAS 
Por fim, cabe analisar a conduta de abuso de poder daquele que 
viola mais diretamente os direitos, pela sua presença na linha de frente 
representando o Estado: a autoridade policial. Neuman analisa a 
violência e o papel da polícia no contexto da América Latina, e 
 
33 TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos De Abuso De Poder Y Sus Posibles 
Respuestas Em Derecho Penal Material (11-24). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. 
(Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais 
Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 18. 
34 PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la Delinquência de 
Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La 
Criminologiafrente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. p. 113. 
46 
 
 
realizando pesquisas empíricas com policiais dos países na Argentina, 
Uruguai, Brasil e México, chega à conclusão de que 
 
Suas mentes parecem aderidas a precisos e inalteráveis 
esquemas. Se expressam e observam - talvez por omissão 
profissional - com desconfiança como se estivessem 
sempre na presença de alguém suspeito. Possuem todos 
um grande “espírito de corpo” e, muitos deles, ideias 
fixas como tatuagens de que o delinquente é perverso, 
canália, mentiroso bem armado, não tem nada a perder, é 
um refugo humano, é uma praga ou carniça, é tudo, tudo 
isso, menos ser humano. A violência que muitos 
descarregam em sua ação frente a delinquência é, para 
eles, sempre uma resposta e nunca uma provocação.35 
 
A atuação desta polícia acaba vendo com normalidade a 
presença da violência no seu cotidiano, não em seu fim, mas em seu 
meio de exercício profissional. Inclusive expressam publicamente que 
o conceito de repressão tem variado pela maior violência delitiva, 
tentando justificar a atuação truculenta, quando na realidade, querem 
dizer que a repressão violenta do crime tem se tornado uma atividade 
elementar, diária e indispensável.36 
Nos países da américa latina, ainda persiste a ideia de que o 
crime é algo avassalador, tomado de características amedrontadoras, 
fazendo com que seja útil aos discursos políticos, implantando o Estado 
de terror, que acaba por legitimar e amparar a ação policial. 37 Assim, 
 
35 NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: 
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. 
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II 
Cursos Europeos, 2001. p. 135. 
36 NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana (131-148). In: 
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. 
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San Sebastian - II 
Cursos Europeos, 2001. p. 136. 
37 NEUMAN, Elías. Idem. p.136. 
47 
 
 
surgindo a aclamada “guerra contra o crime”, que, aos moldes da ânsia 
pela vingança privada praticada pelo poder público, limita-se ao campo 
da violência como inalterável e única resposta. 
Além da constante violência nas abordagens, existe ainda a 
prática cotidiana da tortura, a qual é convertida em um método de 
trabalho e realizada por alguns que foram conscientizados para impor a 
sua função um sentido de “ordem e limpeza”.38 Os torturadores são 
geralmente recrutados nas classes sociais mais desprotegidas, por meio 
de um processo que é conhecido como policização. 
Por fim, cabe ressaltar que o abuso de autoridade, como já 
exposto, apesar de suas mais diversas facetas, quando carregado de 
violência na ação política, expressa uma visível força do domínio e do 
governo.39 Não sendo essa força um objetivo consciente do corpo 
político, ou ainda, o alvo final de qualquer ação política definida, uma 
vez que a força sem coibição gera mais força, e a violência, quando 
administrativa, em benefício da força e não da lei, “torna-se um 
princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar”40. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Como observado, o abuso de autoridade vem de uma relação 
hierárquica de poder estatal, que ao longo do tempo, com a evolução 
dos direitos, pode ser criminalizado e punido. As estruturas de poder 
são baseadas na hierarquia e dificilmente podem ser desconstituídas ou 
 
38 NEUMAN, Elías. Idem. p. 141. 
39 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo e 
Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 167. 
40 ARENDT, Hannah. Idem. p. 167. 
48 
 
 
alteradas pelas suas frequentes vítimas. Porém, a tipificação do abuso 
de poder buscou mais do que punir, mas também garantir os direitos 
básicos encontradas nas cartas de direitos humanos que hoje pautam 
internacionalmente o tema. 
No Estado brasileiro, apesar de não ser este o tema do presente 
artigo, vale observar que possui sua própria legislação sobre a temática, 
tratada na Lei 4.898 de 09 de dezembro de 1965, que traz os 
procedimentos necessários na seara cível e criminal para representação 
nos processos de abuso de autoridade. 
A lei, editada no período em que os militares se encontravam no 
poder (1964-1985), no projeto original, em sua exposição de motivos, 
justificava sua existência pois 
 
Previu a Constituição, ao instituir as regras fundamentais 
que caracterizam o estado de direito e ao inscrever no seu 
texto direitos e garantias individuais, que abusos 
poderiam ser cometidos pelas autoridades encarregadas 
de velar pela execução das leis e pela manutenção da 
vigência dos princípios asseguradores dos direitos da 
pessoa humana. Conferiu, por isso mesmo, a quem quer 
que seja, o direito de representar contra os abusos de 
autoridades e de promover a responsabilidade delas por 
tais abusos [...]41. 
 
Assim, apesar da lei ter como objetivo responsabilizar os abusos 
feitos pelas autoridades, e dentre eles, estar elencado em seu art. 4º ser 
 
41 FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de 
Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 4.898 de 9.12.65 - 4ª. 
ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de 1988 - São Paulo: Editora Revista 
dos Tribunais, 1991. p. 15-16. 
49 
 
 
o abuso de poder uma modalidade de abuso de autoridade,42 esta foi 
editada em um dos períodos onde mais ocorreram abusos pelas 
autoridades estatais no Brasil. 
O relatório conduzido pelo bispo Dom Paulo Evaristo Arns 
acerca da repressão política realizada no período da ditadura militar, 
especialmente de 1964 a 1979, averiguou, dentre as várias atrocidades 
cometidas, que eram além de comuns, incentivadas e legalizadas as 
supressões de direitos aos perseguidos políticos. Dentre elas, destaca a 
falta de submissão dos presos ao poder judiciário, afirmando que 
 
[...] Isso repercutia na pessoa do preso político de várias 
maneiras. A principal delas era que os presos ficavam 
inteiramente subordinados ao controle dos organismos 
policiais, que não submetiam seus atos a apreciação 
judicial. Nessas condições, onde os processos não 
registravam os responsáveis pelas prisões, nem o 
momento e as circunstâncias em que elas ocorriam, a 
defesa ficava bastante prejudicada. Além disso, a falta 
dessas informações implicava na ocultação das 
responsabilidades das autoridades pela custódia dos 
presos, gerando a impunidade face às violações da 
integridade física e moral [...]43. 
 
Ou seja, mesmo em um dos períodos mais sombrios da história 
brasileira, onde a regra era a imposição do medo pelo aparelho estatal, 
onde a força ideológica e até instrumental impunha a lei e a ordem na 
república, houve uma lei que buscava coibir tais abusos, ironicamente 
punidos por aqueles que os permitiam. 
 
42 Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida 
privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; 
[...] 
43 ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 16-17. 
50 
 
 
Por fim, cabe ressaltar que a análise do abuso de autoridade pela 
criminologia destaca em sua maior parte a origem do perfil criminal e 
como este por muito tempo não foi condizente aos violadores por parte 
do Estado, ou que por esse foram legitimados. Assim, demonstra a 
evidente necessidade de proteção do cidadão e da segurança jurídica na 
aplicação da lei indistintamente para todos que a violem, pois aqueles 
que abusam de seu poder, especialmente por meio do Estado,não 
apenas extrapolam seu papel de garantidor, mas viram violadores de 
direitos humanos. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, 
Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
 
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 
1987. 
 
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia 
brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, 2ª edição. 
 
FILHO, Ciro Marcondes. Violência Política. Coleção polêmica. 
Editora moderna, 1987. 
FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso 
de Autoridade: notas de legislação, doutrina e jurisprudência à Lei 
4.898 de 9.12.65 - 4ª. ed. ampl. e rev. de acordo com a Constituição de 
1988 - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991. 
 
NEUMAN, Elías. El Abuso de Poder em la Policia Latinoamericana 
(131-148). In: BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia 
frente al Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX 
Curso de Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. 
 
PUIG, Santiago Mir. Problemas Dogmáticos Generales de la 
Delinquência de Abuso de Poder (111-120). In: BERISTAIN. A.; 
51 
 
 
CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. 
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San 
Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. 
 
_______________. La Delinquência Relacionada com el Abuso de 
Poder Aspectos Criminológicos (41-50). In: BERISTAIN. A.; 
CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al Abuso de Poder. 
Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de Verano en San 
Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. 
 
SAJÓ, András. Abuse of Fundamental Rights or the Difficulties of 
Purposiveness (29-98). In: Abuse: The Dark Side of Fundamental 
Rights. Edited by András Sajo. Eleven International Publishing, 2006. 
 
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª ed. Curitiba: 
ICPC Lumen Juris, 2008. 
 
TRIFFTERER, Otto. Tipos Criminológicos de Abuso de Poder y sus 
Posibles Respuestas em Derecho Penal Material (11-24). In: 
BERISTAIN. A.; CUESTA. J. (Orgs.) La Criminologia frente al 
Abuso de Poder. Editorial Universidade del Pais Vasco. IX Curso de 
Verano en San Sebastian - II Cursos Europeos, 2001. 
 
52 
 
 
ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O PAPEL DA 
LITERATURA NÃO FICCIONAL E/OU MARGINAL 
NA TRADUÇÃO DOS DISCURSOS PRODUZIDOS 
PELO SISTEMA PUNITIVO A PARTIR DO 
CONCEITO DE “LOCAL DE FALA” 
 
Cibele de Souza1 
“LOCAL DE FALA”: PROBLEMATIZAÇÕES INICIAIS 
Algumas palavras estão entrelaçadas de modo tão contundente 
que a desconstrução de suas definições torna-se praticamente 
impossível. O discurso que as define normalmente vem arraigado de 
duplos sentidos pejorativos que inevitavelmente interligam uma a outra 
no imaginário social. A tentativa das pesquisas empíricas, com uma 
base de dados sólida, não é capaz de ultrapassar a ignorância desvelada 
nos discursos de ódio2 reproduzidos diariamente por grande parcela da 
 
1 Advogada com inscrição na OAB/RS nº 92.686. Pós-graduanda em Ciências Penais 
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016). Formou-se em 
Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do 
Sul (2012). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Penal 
Contemporâneo e Teoria do Crime, sob a coordenação do Prof. Dr. Fabio Roberto 
D'Avila, e do Grupo de Criminologias da OAB/RS; e do Grupo de Pesquisa em 
Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC - PUCRS), 
coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, e do grupo de pesquisa 
Processo Penal Contemporâneo: fundamentos, perspectivas e problemas atuais 
coordenado pelo Prof. Dr. Nereu José Giacomolli. E-mail: 
cibele_de_souza@hotmail.com 
2 DA SILVA, Rosane Leal e Outros. Discursos de ódio em redes sociais: 
Jurisprudência brasileira. Revista direito FGV, São Paulo, 7(2)|p.445-468|jul-
dez2011.Sitio em: http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de-
odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira. Acesso em 20 de fev. 2017. 
http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de-odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira
http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/discursos-de-odio-redes-sociais-jurisprudencia-brasileira
53 
 
 
população brasileira, especialmente quando o tema versa sobre 
violência, periferia, criminalidade e sistema penal. 
De outro ponto, a linguagem empregada socialmente não 
contempla a todos. Embora a língua seja a premissa básica para 
cognição e expansão de uma civilização, percebe-se que a “fala” 
permeia as glorias e as derrotas de uma sociedade. Em que pese a 
evolução comunicativa presenciada ao longo da história, o “poder” 
objetificado pela “fala” mantém-se disponível nas mãos dos mesmos 
indivíduos ao longo dos tempos, ou seja, nas mãos de alguns poucos 
homens. 
Nesse passo, o questionamento que se propõe no presente artigo 
é sobre o poder que a literatura não ficcional e/ou marginal tem como 
elemento de reprodução e conhecimento da realidade social brasileira e 
de transmutação dos estigmas intrínsecos a algumas falas. Com base na 
ideia de desconstrução dos conceitos e barreiras impostas socialmente, 
buscaremos, a partir dos fundamentos da criminologia radical3, realizar 
uma análise dos discursos envolvidos na literatura nacional não 
ficcional4 e na literatura marginal5 sobre a “cultura da punição”, 
 
3 Juarez Cirino dos Santos3 a criminologia radical visa: “contribuir para a formulação 
de políticas criminais democráticas e humanistas, opostas ao boom repressivo e 
intolerante das políticas penais próprias do período de globalização da economia 
capitalista ...”. SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia Rádical/ Juarez Cirino 
dos Santos. – 3. Ed. – Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008. 
4 FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005. 
132 p. Quarto de despejo: diário de uma favelada, na qual conta sua vida de catadora 
de lixo e a luta pela sobrevivência. (Carolina de Jesus), LINS, Paulo. Cidade de Deus. 
São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 550 p. 
5 “Numa acepção estritamente artística, marginais são as produções que afrontam o 
cânone, rompendo com as normas e os paradigmas estéticos vigentes.” OLIVEIRA. 
Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria literária. Sitio em: 
Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 
2017. 
54 
 
 
discutindo sobre a importância da observância do “local de fala” para 
conhecimento dos problemas vivenciados pelos envolvidos nestes 
processos criminalizantes. 
Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, a criminologia radical 
pretende: “contribuir para a formulação de políticas criminais 
democráticas e humanistas, opostas ao boom repressivo e intolerante 
das políticas penais próprias do período de globalização da economia 
capitalista[...]”. Tal modalidade vai ao encontro do estudo ora 
proposto, já que busca por meio de seus escritos a construção de uma 
sociedade democrática e igualitária. 
1 A LITERATURA COMO FONTE DE CONHECIMENTO 
SOCIAL 
Sabe-se que a ausência de dados específicos obsta a realização 
de pesquisas, bem como, a resposta destas não se faz suficiente para 
alinhar as “expectativas sociais” com as políticas públicas, a ponto de 
resolver os problemas relacionados ao aumento da violência e da 
criminalidade nos grandes centros urbanos.6 A literatura, 
especificamente a literatura não ficcional/marginal, demonstra-se como 
uma forma palpável de introspecção e análise da “sociedade” em suas 
diversas formas. 
Assim, pretende-se realizar aqui uma análise 
sócio/criminológica com base nos dados apresentados nas obras “O 
dono do morro: Um homem e a batalha pelo Rio”, “Ninguém é inocente 
em São Paulo”, “Capão Redondo”, “Abusado:O dono do morro Santa 
 
6 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da 
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 
55 
 
 
Marta” e “Quarto de despejo”, averiguando, assim, o papel dessas obras 
na construção de um novo caminho comunicativo, dando voz aos que 
detém a propriedade necessária sobre suas falas e suas reinvindicações, 
isto é, suas vidas. 
A questão que se apresenta inicialmente é se a literatura tem o 
poder de tecer, de modo contundente, o senso comum, provocando a 
desconstrução da lógica dos discursos autoritários7, que, de fato, as 
pesquisas e estudos realizados pela academia nem sempre conseguem 
transpor, introduzindo, por meio da literatura, os “marginalizados” na 
pauta dos que se dizem “cidadãos de bem”8. 
Nesse prisma, questiona-se se as obras não ficcionais/marginais 
atingiriam o nível necessário para transpor a barreira verificada na 
“sociedade brasileira”, qual seja, a da ignorância generalizada sobre a 
vida do outro9, dos problemas da periferia e das favelas, associada ao 
“silenciamento” e exclusão das “minorias”, sendo ocupada, de modo 
paliativo, pela voz/representação de alguns poucos homens. Observa-
se, entretanto, que quando falamos de “minorias” não estamos 
 
7 TIBURI. Marcia, 1970. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o 
cotidiano autoritário brasileiro/ Marcia Tiburi. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 
2016. 
8 Referência a crença nacional lendária que diferencia os cidadãos entre bons e maus, 
entre dignos e indignos de direitos. “No Brasil, em razão das redes de TV utilizarem 
o mesmo enquadramento jornalístico quando tratam os temas crime, criminalidade e 
criminosos, foram criadas duas categorias fixas em permanente oposição: bandidos x 
cidadãos de bem. Os primeiros deveriam ser esmagados, mas são bem tratados e 
protegidos pelos defensores dos direitos humanos. Os outros são vítimas inocentes 
cujos direitos à vida e à propriedade (não necessariamente nesta ordem) seguem sendo 
pisoteados pelos bandidos e ignorados pelos advogados deles. As Leis brasileiras 
seriam muito permissivas e o Judiciário não é tão rigoroso quando deveria.” Sitio em: 
http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos-
sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil. Acesso em 17 de fev. 2017. 
9 BAUMAN, Zygmund, Vida líquida/ Zygmund Bauman; tradução Carlos Alberto 
Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed.2007. 
http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos-sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil
http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/cidadaos-de-bem-bandidos-sintese-da-civilizacao-barbarie-produzida-no-brasil
56 
 
 
empregando o caráter quantitativo da expressão, mas sim evidenciando 
o seu caráter político. 
Segundo Heloisa Buarque de Hollanda10, a literatura marginal 
tem o condão de mostrar o ponto de vista, os pensamentos e os 
sentimentos vivenciados por autores que estiveram ou estão à margem 
da sociedade. Entretanto, parece necessária a desmistificação do 
“marginal”, já que a palavra remete a uma visão socialmente 
estereotipada, quando, em verdade, a literatura marginal compreende 
uma forma de resistência artística e cultural dos que vivem à margem 
da sociedade, ou seja, dos desde sempre excluídos e silenciados. 
No contexto brasileiro, infere-se entre as problemáticas 
envolvidas no campo do “controle social” a questão do desrespeito ao 
“local de fala” dos diferentes indivíduos, o que torna as informações 
“relatadas” sobre os pares envolvidos/recrutados pelo sistema penal 
ainda mais sensível, já que são raras as informações apresentadas sobre 
estes, enunciada por estes. 
Os dados, estudos e informações levantados e reunidos em 
diversos livros, dôssies e revistas não englobam a perspectiva do 
“apenado” sobre a situação do sistema carcerário brasileiro, cultura da 
punição, perspectivas de vida, educação, etc. A exposição que se busca 
transpor aqui é a relatada pelo próprio “marginalizado”, a partir da 
análise do conceito de “local de fala”, sendo especificamente o 
 
10 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. As fronteiras móveis da literatura. Disponível 
em http://www.heloisabuarquedehollanda. com.br/?p=67. Acesso em: 20 de fev. de 
2017. 
57 
 
 
“encarcerado” peça fundamental na produção de conhecimento sobre 
os meandros do sistema penal. 
A literatura tem a possibilidade de dar voz a estas pessoas que 
há muito foram silenciadas. Há que se observar que antes de ser parte 
do sistema prisional já eram silenciadas pela sociedade, transformando-
se o cárcere numa extensão da fábrica de exclusão social 
legislativamente reconhecida no Brasil11. 
A obra “O dono do Morro: um homem e a batalha pelo Rio” 
retrata, por meio de diversos depoimentos, as facetas de “Nem”, 
conhecido como um dos homens mais procurados do Brasil até 
novembro 2011, quando foi preso.12 Referida obra desconstrói a visão 
midiática edificada sobre Antônio Francisco Bomfim Lopes, vulgo 
“Nem” da Rocinha, bem como consegue a partir dos depoimentos de 
“Nem”, demonstrar a sua relação com a favela, a família, o tráfico e, os 
motivos que o levaram a ocupar o cargo de “traficante mais procurado 
do Brasil”. O texto, nesse ponto, tem um papel de suma importância, 
pois reúne ainda relatos e depoimentos dos moradores envolvidos direta 
ou indiretamente nos diversos confrontos vivenciados a partir de 1960, 
na Favela da Rocinha, explorando de modo brilhante a história da vida 
de “Nem” que, em alguma medida, confunde-se com a História e 
ascensão da Favela da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro. 
Embora a discussão sobre “a propriedade de fala”, 
especialmente sobre o respeito aos limites opostos pelo “local de 
 
11 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da 
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 
12 GLENNY, Misha. O dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio/ Misha 
Glenny; tradução Denise Bottman. – 1º ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 
P.22. 
58 
 
 
fala”13, venha ganhando força nos últimos tempos, não se verifica um 
diálogo sobre a percepção e comunicação dos apenados sobre o sistema 
criminal. A bandeira que se defende é a do “local de fala” das minorias, 
em contraponto à hegemonia da voz do “homem branco, heterossexual, 
cis e endinheirado na história”14 que perdurou por séculos, 
vislumbrando-se, assim, o fim da discussão quando o “indivíduo” chega 
ao cárcere. 
Quinalha defende que: “os verbos da ação política, assim, não 
podem mais ser conjugados em terceira pessoa, mas em primeira. 
Ninguém melhor do que o grupo que é portador da experiência do 
sofrimento e do preconceito para capitanear sua própria 
emancipação.”15 Nesse passo, questiona-se quem teria propriedade 
para perquirir as garantias legislativas, constitucionais e humanitárias 
devidas aos apenados se não eles mesmos. Quem melhor que os 
próprios encarcerados para relatar os meandros do sistema? A vida 
antes e depois do cárcere, justapondo as nuances que convolam a vida 
emudecida. 
 
13 O conceito representa a busca pelo fim da mediação: a pessoa que sofre preconceito 
fala por si, como protagonista da própria luta e movimento. É um mecanismo que 
surgiu como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos 
privilegiados em espaços de debate público. Ele é utilizado por grupos que 
historicamente têm menos espaço para falar. Assim, negros têm o lugar de fala - ou 
seja, a legitimidade - para falar sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo, 
transexuais sobre a transfobia e assim por diante. Sitio em: 
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate 
Acesso em: 12 fev. 2017. 
14 QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ 
Acesso em 22 jan. 2017. 
15 Ibdem. 
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/
59 
 
 
Para Rosane Borges16, lugar de fala: “é a posição de onde olho 
para o mundo para então intervir nele”. A pesquisadora observa que o 
tema deve ser tratado com muito cuidado, pois aplicado por um campo 
teórico que pratica a análise do discurso por meio da enunciação. 
Nesse aspecto, Quinalha leciona que: 
“O “lugar de fala” remete, simultaneamente, a um 
duplo movimento: tomada de um ponto de 
enunciação que deveria pertencer por 
legitimidade de experiência aos oprimidos e, ao 
mesmo tempo, despejo do titular de um lugar 
ocupado, por força da dominação, por aqueles que 
se apossaram das tradições de fala em uma 
sociedade estratificada.”17 
 
Nas palavras de Giocomonni: 
“Um sujeito, quando ocupa um lugar institucional, faz 
uso dos enunciados de determinado campo discursivo 
segundo os interesses de cada trama momentânea. [...] 
Além destes elementos, há outro central: a compreensão 
de que o discurso é uma prática, que constrói seu sentido 
nas relações e nos enunciados em pleno funcionamento.18 
 
A par do campo de enunciação dos discursos, insta referir que: 
“o local de fala esta instintivamente ligado ao mito da “verdade”, 
 
16 Matheus Moreira & Tatiana Dias. O que é ‘lugar de fala’ e como ele é aplicado no 
debate público. Sitio em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-
que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-
aplicado-no-debate-p%C3%BAblico Acesso em 12 de fev. 2017. 
17 QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/. 
Acesso em 22 jan. 2017 
18 GIACOMONI, Marcello Paniz & Vargas, Anderson Zalewski. Foucault, a 
Arqueologia do Saber e a Formação Discursiva. Veredas on line – análise do 
discurso – 2/2010, p. 119-129 – ppg linguística/ufjf – juiz de fora - issn 1982-2243. 
p.4. 
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate-p%C3%BAblico
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate-p%C3%BAblico
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lugar-de-fala%E2%80%99-e-como-ele-%C3%A9-aplicado-no-debate-p%C3%BAblico
60 
 
 
quem tem o poder de fala é credenciado como portador de verdades”.19 
Partindo da análise do autor, o questionamento que se faz é se o “mito 
da verdade” seria uma das motivações da perpetuação do descrédito 
verificado na fala das “minorias” e, consequentemente, dos apenados. 
A título exemplificativo, se colocados lado a lado, um homem 
branco e um homem negro, o homem branco sempre será ouvido com 
maior atenção pela sociedade em geral, embora quem tenha propriedade 
para perquirir as questões intrínsecas ao preconceito e outros problemas 
vivenciados seja o homem negro. Dita premissa, demonstra os fluxos 
de poder envolvidos nos discursos, bem como na manutenção de uma 
sociedade verticalmente hierarquizada. 
Foucault em sua obra “A arqueologia do saber” permite a 
análise da margem onde se encontra o mito da “verdade”, a “história” e 
nós. A partir da ideia do autor, demonstra-se necessário para a 
compreensão das questões fundantes do saber humano, a análise das 
urgências e dos limites históricos de como nos conhecemos e não nos 
reconhecemos enquanto seres inseridos numa comunidade.20 Em outra 
obra, o autor incita o questionamento sobre os jogos de verdade 
envolvidos nos discursos: 
“Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu 
ser próprio a pensar quando se percebe como louco, 
quando se olha como doente, quando reflete sobre si 
como ser vivo, ser falante e ser trabalhador, quando ele 
 
19 QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ . 
Acesso em 22 jan. 2017. 
20 MADARASZ, Norman R.; JAQUET, Gabriela M.; FÁVERO, Daniela N.; 
CENTENARO, Natasha (Orgs.). 
Foucault: leituras acontecimentais.[recurso eletrônico]/ Norman R. Madarasz, 
Gabriela M. Jaquet, Daniela N. Fávero, Natasha Centenaro (Orgs.) -Porto Alegre, RS: 
Editora Fi, 2016. p. 152. 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/
61 
 
 
se julga e se pune enquanto criminoso? Através de quais 
jogos de verdade o ser humano se reconheceu como 
homem de desejo?” 21 
 
Na formação de uma sociedade democrática, a multiplicidade 
de falas, tendo como base a diversidade de experiências constantes de 
uma vivência reconhecidamente opressora, oportuniza a acepção de 
“discursos” com contribuições ímpares para a construção de uma 
realidade mais justa e igualitária. Quinalha defende que a “política 
transformadora que almeja universalizar princípios de igualdade e de 
liberdade deve ser atividade de todxs. Por direito e por obrigação.”22. 
A partir destes dados, percebe-se a importância da compreensão 
e acepção do conceito designado pelo “local de fala”. 
Independentemente das incongruências teóricas existentes, a “fala” 
promove, em alguma medida, mudanças, oportunizando a construção 
de novos paradigmas e a desconstrução de velhos estereótipos. 
Sobre o tema, Foucault defende que os sujeitos e objetos não 
existem a priori, são construídos discursivamente sobre o que se fala 
sobre eles, sendo conhecidos e definidos discursivamente em dados 
momentos pelo próprio homem. 23 Nesse ponto, verifica-se a produção 
e perpetuação de um desconhecimento generalizado sobre os indivíduos 
e seus problemas em sociedade, uma vez que sempre definidos a partir 
 
21 FOUCAULT, Michael. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de 
Janeiro: Graal, 1984. p. 13. 
22QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/. 
Acesso em 22 jan. 2017 
23 A título exemplificativo, assim leciona Machado: ” O corpo, por exemplo, só passou 
a existir a partir das modificações discursivas da passagem da Idade Média para a 
modernidade. Com o desenvolvimento da patologia, o corpo passa a ser percebido 
como um conjunto de órgãos, e a Medicina passa a discursivizá-lo, ou seja, a formular 
práticas e efetuar dizeres sobre ele.” - Veredas on line – Análise do discurso – 2/2010, 
p. 119-129 – ppg linguística/ufjf – juiz de fora - issn 1982-2243 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/
62 
 
 
da análise de outros homens, com outras vivências e linguagens. A 
teoria do labeling approach24 ecoa suas constatações até os dias de hoje, 
já que os “discursos” socialmente reconhecidos, mantêm-se nas “falas” 
de apenas alguns homens, o que, em dada medida, retroalimenta o 
processo de rotulação e estigmatização das minorias na sociedade. 
Baratta leciona que: “ A criminalidade é – um “bem negativo”, 
distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixadas 
no sistema sócio – econômico e conforme a desigualdade social entre 
os indivíduos.”25 
 Fischer observa, entretanto, que “a descrição dos enunciados 
que nesse tempo e lugar se tornam verdade,fazem-se práticas 
cotidianas e interpelam sujeitos, produzem felicidades e dores, 
rejeições e acolhimentos, solidariedades e injustiças.” 26 
Com base na ideia de enunciado defendida por FOUCAULT, 
questiona-se ainda, a incipiente adesão, bem como responsabilidade da 
mídia sobre a reprodução da cultura da punição27. Por enunciado, tem-
se um tipo especial de ato discursivo que se separa dos contextos locais 
e dos significados cotidianos para construir um campo de sentidos que 
devem ser aceitos, seja por seus efeitos de verdade, seja pela função 
daquele que o enunciou ou pela instituição que o acolhe.28 Assim, o 
 
24 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução 
à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de 
Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 86 
25 Ibdem.P. 161. 
26 FISCHER, R. M. B. Foucault revoluciona a pesquisa em educação? Perspectiva. 
Florianópolis, v. 21, n. 2, 2003, p. 378. 
27 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da 
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 
28 VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 
113. 
63 
 
 
enunciado não tem vinculação com a “verdade”, mas sim com “as 
verdades” intrínsecas ao sujeito que o enuncia. 
A par disso, o questionamento proposto a priori volta à voga: a 
literatura não ficcional/marginal, por conjugar as diferentes falas sobre 
um mesmo fato ou individuo, contrapondo estes com a fala do próprio 
individuo, cumpriria, de modo satisfatório, o papel de oportunizar a 
“fala” destas minorias e, por conseguinte, determinaria um modo de 
empoderamento social? 
 
2 LITERATURA, REALIDADE, CRIMINOLOGIA E 
CULTURA DA PUNIÇÃO 
Na intersecção entre a literatura e a criminologia, vislumbra-se 
um dos problemas ligados à reprodução da violência nas sociedades 
modernas, objetificado pelo sistema penal através do “silenciamento” e 
exclusão da voz das “minorias”. 
De outro ponto, infere-se o questionamento sobre a relação entre 
literatura e realidade dada a complexidade da admissão da literatura 
como forma de acepção de “verdades”. Para Lobo: 
La relación entre literatura y realidad, o literatura como 
forma de verdad, es un tema recurrente en las 
discusiones. Frecuentemente se le asignan a la literatura 
atributos tales como su capacidad de presentar facetas 
ocultas de la realidad, de dar voz a quien no la tiene, de 
develar verdades...Existe entonces un problema en torno 
a la verdad que permea hasta a la institución literaria, 
sobre todo en géneros como podrían ser el testimonio, las 
memorias, la novela histórica y, claro está, la literatura 
policiaca.29 
 
29LOBO, Tatiana. Introducción: verdad, saber, poder e historia en la literatura 
policiaca. Sitio em: 
https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABE
R_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA. Acesso em 18 
de fev. 2017. 
https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABER_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA
https://www.academia.edu/10117131/INTRODUCCI%C3%93N_VERDAD_SABER_PODER_E_HISTORIA_EN_LA_LITERATURA_POLICIACA
64 
 
 
O tema do presente artigo surgiu da inquietude gerada pela 
explanação do termo “local de fala”. A expressão em questão remete 
sempre a uma cisão no meio acadêmico, bem como político, já que 
muitas vezes é utilizada para fins diversos do conceito originário. 
Guimaraes30 aduz que o falante é um sujeito da língua 
constituído em um espaço de enunciação que se define como o: “espaço 
do funcionamento de línguas que se dividem, redividem, se misturam, 
desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços 
‘habitados’ por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus 
direitos ao dizer e aos modos de dizer.” 
Nesse prisma, o espaço de enunciação considera a prática 
política, enquanto desconsidera o lado individual ou subjetivo, pois, 
para o autor, enunciar significa estar na língua em funcionamento 
no/pelo acontecimento. 
De outro ponto, Quinalha observa que não se pode desqualificar 
de pronto qualquer iniciativa dos que tentam se aliar às reinvindicações 
dos “marginalizados” e “excluídos”, seja pela literatura, seja pelo 
discurso público, uma vez que, inevitavelmente, estas vozes se fazem 
necessárias na construção de uma sociedade menos estratificada.31 
 Uma reportagem recentemente produzida por Gerivaldo Neiva, 
juiz de Direito Baiano, e publicada pelo portal de notícias Carta Capital, 
em parceria com a página Justificando32, demonstrou a dificuldade 
 
30 GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2005 p. 
18. 
31QUINALHA, Renan. “Lugares de fala” e a urgência da escuta. Sitio em: 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/ . 
Acesso em 22 jan. 2017 
32 NEIVA, Gerivaldo. Fernando Beira – mar: esse cara sou eu. 
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/
65 
 
 
vivenciada por Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como 
“Fernandinho Beira-Mar”, em encontrar um espaço onde sua “voz” seja 
respeitada e reconhecida. 
A reportagem intitulada: “Luis Fernando (Beira-mar): esse cara 
sou eu”, concede espaço a este traficante de renome nacional, 
perseguido durante os anos 2000, no Brasil. Na entrevista, 
“Fernandinho Beira-mar”, entre outras coisas, assim respondeu quando 
indagado como se sentia o “bandido” mais famoso do Brasil: 
“– Doutor, eu estou nessa vida há muito tempo. Cometi 
umas bobagens no Rio de Janeiro e depois precisei sair 
para a fronteira. Lá, o esquema era muito perigoso. 
Nossa atividade era de risco e envolvia drogas, armas e 
carros. É claro que nessa atividade havia 
desentendimentos, extorsão e conflitos de interesses. 
Logo, se matava e se morria muito. Agora, doutor, igual 
a mim, naquela época, existiam várias pessoas, inclusive 
policiais que participavam do esquema. Pior do que eu, 
existiam muito mais pessoas naquela atividade. O 
problema é que o Estado Brasileiro precisava, para se 
afirmar como eficiente e garantidor da lei, de um grande 
bandido nacional para condenar a 300 anos de cadeia e 
mantê-lo preso como exemplo dessa eficiência. O 
problema é que minha prisão e condenação não acabou 
com o tráfico, com a violência e criminalidade. Pronto! 
Estou condenado, isolado em uma penitenciária de 
segurança máxima e todos esses os problemas se 
agravaram. Na verdade, eu já nem sei por quais crimes 
fui condenado e por quais motivos tive minha pena 
agravada em presídios, pois basta que um agente 
penitenciário me acuse para que seja certa a 
condenação. Por fim, doutor, o sistema precisa desse 
grande bandido nacional e esse cara sou eu!”33 
 
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-
cara-sou-eu/ Acesso em 18 de fev. 2017. 
33 NEIVA. Gerivaldo. “Luis Fernando (Beira-mar): esse cara sou eu”. Sitio em: 
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-
cara-sou-eu/. Acesso em 17 de fev. 2017. 
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/
66 
 
 
Embora a reportagem seja sucinta, consegue transcrever com 
sabedoria e alteridade a importância de oportunizar a “fala” aos 
“apenados”. Em um relato paradigmático, Neiva assim observa: 
“Este relato que faço agora é fruto de anotações e 
lembranças, mas é impossível retratar a realidade deum 
presídio federal e, muito menos, o que deve sentir e 
pensar “o grande bandido nacional” em suas 22 horas 
diárias de isolamento e o peso da condenação em 300 
anos de reclusão. Os meandros de sua mente e de suas 
lembranças, conforme me relatou o próprio Luiz 
Fernando, serão expostos quando do lançamento de seu 
livro de memórias. Não me adiantou o conteúdo dessas 
memórias, mas observou que precisa oferecer às pessoas 
o outro lado da história oficial.”34 
 
A temática aqui discutida envolve inúmeros conceitos, 
produzindo incontáveis dúvidas quanto ao emprego do conceito de “ 
local de fala” pela sociedade, bem como do poder incutido aos discursos 
para resolução e conhecimento dos conflitos. Spivak aduz em sua obra 
“Pode o subalterno falar?” a incongruência que permeia a tentativa de 
transposição do “outro” a partir de referenciais culturais distintos, 
valendo-se do conceito de “pós-colonialismo” como argumento 
contrário aos estudos e discursos promovidos sob a perspectiva de 
alguns pensadores Europeus35. Assim exemplificando a problemática 
aventada: 
"É impossível para os intelectuais franceses 
contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que 
habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é 
apenas o fato de que tudo o que leem ― crítico ou não ― 
esteja aprisionado no debate sobre a produção desse 
 
34 Ibdem. 
35 A autora faz uma forte critica a visão empregada por Deleuze e Foucault em suas 
obras, tendo em vista o desconhecimento da realidade vivenciado pela população dos 
países de terceiro Mundo. 
67 
 
 
Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito 
como sendo a Europa" (idem, p.45-46). 
A autora define como subalterno os membros das “camadas 
mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de 
exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da 
possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social 
dominante”.36 Em contrapartida, na concepção de Ferréz, não se pode 
associar os “subalternos” de Spivak aos “marginais” da literatura 
marginal, já que entende o último a partir de uma concepção mais 
complexa. 
Assim, nas palavras de Ferréz37 a: “literatura marginal é aquela 
feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que 
derivam de partes da sociedade que não têm espaço”, ou seja, o 
“marginal” é o bandido, ou “bicho-solto”, que vive à margem da 
sociedade e que busca um espaço na série literária. 
Enquanto isso, Spivak leciona que o intelectual tem o “dever” 
de representar o subalterno, concluindo, que este percurso deve ser feito 
com atenção “para não emudecer [mais] o subalterno, e sim ser um 
veículo para que este possa falar e ser ouvido.”38 A autora é 
reconhecida ainda, pelas suas críticas às leituras feitas e produzidas por 
Foucault e Deleuze sobre a sociedade. 
 
36 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora 
da UFMG, 2010.P. 12. 
37 FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005. 
38 BRAGA FILHO, Edmar. M. Voz, agência e representação: Spivak e os sujeitos 
subalternos. Sitio em : https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-
representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/. Acesso em 10 de fev. 2017. 
https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/
https://circuitoacademico.com.br/2014/10/02/voz-agencia-e-representacao-spivak-e-os-sujeitos-subalternos/
68 
 
 
Segundo a autora: “o subalterno não deve configurar apenas 
um “objeto” a ser revelado ou conhecido pelo intelectual que deseja 
falar pelo outro.”39, desmistificando, o modelo de 
“autorrepresentação”40. A intenção evidenciada em sua obra é a de 
“desafiar os discursos hegemônicos e nossas próprias crenças como 
leitores e produtores de saber e conhecimento.”41 
 Na intersecção entre literatura e respeito ao “local de fala”, 
Oliveira aduz que a propriedade de fala: 
“seria o primeiro desafio a ser enfrentado pela teoria 
frente à atual produção literária da periferia brasileira, 
relacionado ao papel do sujeito como agente e produtor 
cultural, que muitas vezes vive sob condições de 
ilegalidade, reivindicando, no entanto, o direito de falar 
desde essa experiência.”42 
 
Para a autora: “tanto o marginal como o periférico são 
conceitos intrinsecamente ligados a modelos de representação, que 
põem em causa não apenas modos de significar o mundo, como também 
de produzir identidades.”43 Dita afirmação demonstra-se essencial 
para divagarmos sobre essa nova modalidade de “produção literária 
contemporânea originada nos morros e favelas das grandes cidades 
brasileiras”, questionando, “o modo como ela se inscreve no contexto 
 
39 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora 
da UFMG, 2010.P. 14. 
40 Entende-se por “autorrepresentação” o 
41 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o sulbaterno falar? Belo Horizonte: Editora 
da UFMG, 2010.P. 8. 
42 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria 
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. 
Acesso em 08 fev. 2017. 
43 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria 
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. 
Acesso em 08 fev. 2017. P.32. 
69 
 
 
sociocultural em que se situa, as experiências que ela traduz e as 
identidades que engendra.” 
De outro passo, Oliveira leciona que: “a condição periférica, 
marcada pela pobreza e exclusão social, econômica e cultural, sempre 
ganhou as páginas da nossa literatura.”44. Aduz ainda que a obra “Os 
pobres na literatura brasileira”, de Roberto Schwarz, tem como pano 
de fundo o retrato dessa “marginália”. Exemplificando o viés da 
literatura marginal publicado até então no Brasil: 
“... os miseráveis explorados pela metrópole nos poemas 
satíricos de Gregório de Matos, os escravos da poesia 
libertária de Castro Alves, os moradores dos cortiços de 
Aluísio Azevedo, os sertanejos de Euclides da Cunha, os 
desvalidos de Lima Barreto, o Jeca Tatu de Monteiro 
Lobato, os severinos de João Cabral, os retirantes de 
Graciliano Ramos, os pequenos trabalhadores e 
contraventores de João Antonio; os mendigos e 
criminosos das ruas do Rio de Janeiro de Rubem 
Fonseca”45 
 
Na contemporaneidade, entretanto, estas produções literárias 
vêm ganhando novos contornos. Se observarmos as condições de 
produção dessa nova modalidade literária, perceberemos as diferenças 
presentes no lugar assumido pelo escritor, bem como o vínculo presente 
em seu discurso com a comunidade onde vive.46 
Verifica-se, portanto, que a característica central da literatura 
marginal contemporânea versa sobre o fato de sua produção ser 
 
44 Ibdem. P .33. 
45 SCHWARZ, Roberto. Os pobres da literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 
1983. 246 p. Apud OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: 
questionamentos à teoria literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, 
p. 31-39, jul./dez. 2011. Acesso em 08 fev. 2017. P.33. 
46 Ibdem. p. 34. 
70 
 
 
essencialmente realizada por autores da periferia, consagrando, assim, 
uma nova visão baseada em um olhar interno, ecoando nestes escritos 
a experiência diária de viver na “condição de marginalizados sociais e 
culturais”. 47 Nesse aspecto, percebemos a literatura marginal como 
meio de resistência das minorias frente ao sistema ora estabelecido, 
valendo-se desse espaço de enunciação para denúncia e produção de 
conhecimento. 
Essa nova geração de escritores periféricos estabelecem a 
diferença crucial entre as obras literárias clássicas e a literatura 
marginal contemporânea, pois, conformeelucida Oliveira: “a maior 
parte dos escritores que povoaram suas páginas com os marginais e 
marginalizados da sociedade, salvo algumas poucas exceções, não 
pertencem a essa classe de indivíduos, senão que assumem o papel de 
porta-vozes desses sujeitos, falando em seu lugar, assumindo a sua 
voz.”48 
Vellozo exprime de modo conciso o papel da produção literária 
como meio de mudança social. Para a autora: “A produção literária é 
um fenômeno social, na medida em que resulta de convicções, crenças, 
códigos e costumes sociais (ver Oliveira, 1984). Enquanto tal exprime 
a sociedade, não ipsis litteris, mas modificando-a e até mesmo 
negando-a.”49 Em contraponto, a autora aduz que a literatura não tem 
 
47 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria 
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. 
Acesso em 08 fev. 2017. P.33. 
48 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria 
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. 
Acesso em 08 fev. 2017. P.33. 
49 VELLOSO, Mônica Pimenta. A Literatura como Espelho da Nação. Estudos 
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, P. 240. 
71 
 
 
obrigação de ser o registro fiel da realidade histórica que emerge, mas 
pode sim insurgir-se contra esta realidade, apresentando à sociedade 
uma imagem que ela, por vezes, se recusa a reconhecer. A mesma 
conclui afirmando que a produção literária se trata: “de uma relação 
necessária, contraditória e imprevisível.”50 
Não desqualificando grandes nomes da literatura nacional, 
como Machado de Assis, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Jorge 
Amado, Oswald de Andrade e Mario de Andrade, que dentro das suas 
categorias literárias retrataram de modo brilhante aspectos sociais, 
verifica-se que essas obras retratam o modo como estes percebiam a 
sociedade brasileira, mantendo assim o “poder discursivo” nas mãos 
dos homens letrados e privilegiados. 
Desse modo, a literatura marginal vem se estabelecendo como 
uma nova forma de produção cultural e literária, já que produzida pelos 
próprios “excluídos”, “marginalizados”, que produzem conhecimento 
da favela e não apenas “sobre” a favela. Nesse passo, Oliveira observa 
que: “Um traço bastante inovador da literatura marginal da periferia 
é justamente o seu caráter de voz coletiva, comprometida em contar e 
escrever a própria experiência, em contraponto à cultura oficial 
dominante.”51 A inovação parte da tentativa de dar voz a vida dos que 
vivem à margem do conceito de sociedade pré-estabelecido. 
 
 
50 Ibdem. p. 240. 
51 OLIVEIRA. Rejane Pivetta de. Literatura marginal: questionamentos à teoria 
literária. Sitio em: Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 31-39, jul./dez. 2011. 
Acesso em 08 fev. 2017. P.34. 
72 
 
 
BREVES CONCLUSÕES 
No âmbito da sociedade excludente, a literatura não ficcional 
e/ou marginal apresenta-se como uma oportunidade de dar “voz” aos 
problemas vivenciados diariamente pelas “minorias”. Os 
“marginalizados” que convivem desde sempre a par desse estereótipo 
e, na maioria das vezes, não são ouvidos ou questionados sobre as 
modificações sociais necessárias para tornar a vida em sociedade mais 
justa e igualitária, têm por meio da literatura uma fonte de 
empoderamento e resistência social. 
Urge, no entanto, repensar os conceitos envolvidos na 
reprodução de conhecimento em sociedade, bem como o poder 
ilegitimamente intitulado a poucos e parcos “homens de bem”, seguido 
pela negligência constituída à “fala”. 
A fala nos remete a potência da evolução humana, uma vez que 
somos a única espécie que detemos tal poder. Assim sendo, por que 
usamos este privilégio evolutivo de modo involutivo? Além das 
considerações já tecidas, o presente estudo não traz soluções à 
problemática aventada, entretanto, visa instigar o questionamento 
quanto ao poder que a literatura marginal e/ou não ficcional tem como 
fonte de resistência numa sociedade verticalmente hierarquizada. 
Afora todo o exposto, esses grupos52 que traduzem por meio da 
literatura marginal a voz das periferias, em certa medida, oferecem uma 
 
52 Ferréz, fundou o grupo 1DASUL; Sérgio Vaz, ficou conhecido pelos saraus que 
organiza na Zona Sul da cidade; Sacolinha, criou, em 2002, o projeto Literatura no 
Brasil, que veio a tornar-se uma Associação Cultural. Além de produzir uma revista 
especializada com o mesmo nome, a Literatura no Brasil realiza concursos literários. 
73 
 
 
nova opção aos jovens socialmente negligenciados, já que a literatura 
surge como um meio de reconhecimento e crescimento.53 
A par disso tudo e reconhecendo-se a natureza multidimensional 
dos tópicos aqui levantados, instiga-se o questionamento sobre o papel 
que a “fala” alcançaria no contexto social para fins de diminuição da 
violência e da criminalidade nos grandes centros urbanos, seja por meio 
da literatura marginal, seja por outros meios discursivos. 
Luiz Eduardo Soares alerta que: “Os direitos democráticos são 
amplamente garantidos, na letra da Constituição, mas a prática os 
distribui de acordo com idade, gênero, cor e classe social – e local de 
moradia, posto que a segregação é também espacial...” 54. A afirmação 
do pesquisador convola a perspectiva da segregação espacial narrada 
nos discursos literários ora apresentados. 
Ainda que obras não ficcionais como: “O dono do Morrro: Um 
homem e a batalha pelo rio, “Abusado - O dono do Morro Dona Marta”, 
“Estação Carandiru” e “Rota 66” apresentem suas histórias por meio da 
escrita de outros homens, como exposto ao longo do texto, estes escritos 
não devem ser negligenciados, já que por meio de testemunhos e 
 
53 Sobre o tema, Soares observa que: “Hoje, estamos diante de um genocídio de jovens 
pobres e negros, que morrem e matam em um enfrentamento autofágico e fatricida, 
sem quartel, sem bandeira e sem razão. Apesar da maioria resistir, muitos jovens sem 
perspectiva e esperança, distantes das oportunidades geradas pela educação e a 
cultura, sem lazer, esporte, afeto, reconhecimento e valorização, com suas auto-
estimas degradadas, acabam cedendo à sedução exercida pelo crime. Ao se deixarem 
recrutar, aceitam a arma como passaporte para visibilidade social e o reconhecimento, 
antes de usá-la em benefício de estratégias econômicas.” SOARES. Luiz Eduardo y 
GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da sociedade no Brasil 
Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 
54 SOARES. Luiz Eduardo y GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da 
sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad Nro. 208. Marzo- Abril 2007. 
74 
 
 
pesquisas de campo contrapõe fatos e dão “voz” a história de pessoas 
que talvez não tivessem essa oportunidade por elas mesmas. 
Em suma, qualquer meio de ocupação e empoderamento do “ 
local de fala” das minorias, justapondo a hegemonia dos discursos 
totalitários dominantes, demonstra-se como uma possibilidade de 
resistência e luta contra os preconceitos e estigmas reproduzidos na 
sociedade brasileira. A única discussão permitida nesses espaços de 
enunciação deveria ser contra a censura vivenciada diariamente na 
sociedade brasileira. 
 
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Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. ESPAÇO E 
CULTURA, UERJ, RJ, N. 34, P.291-294, JUL./DEZ. DE 2013 Sitio: 
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em 08 de fevereiro de 2018. 
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3. Ed. – Curitiba: 
ICPC: Lumen Juris, 2008. 
SCHWARZ, Roberto. Os pobres da literatura brasileira. São Paulo: 
Brasiliense, 1983. 246 p. 
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http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/14/luiz-fernando-beira-mar-esse-cara-sou-eu/
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/lugares-de-fala-e-a-urgencia-da-escuta/
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77 
 
 
SOARES. Luiz Eduardo; GUINDANI, Miriam. A violência do Estado 
e da sociedade no Brasil Contemporâneo. Nueva Sociedad nº 208. 
Marzo-Abril 2007. 
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo 
Horizonte: Editora UFMG (2010 [1985]). 
TIBURI. Marcia, 1970. Como conversar com um fascista: reflexões 
sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 7ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 
2016. 
VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: 
Autêntica, 2003. 
VELLOSO, Mônica Pimenta. A Literatura como Espelho da Nação. 
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p.239-263.
78 
 
 
REFLEXÕES E INQUIETAÇÕES SOBRE A 
NECESSIDADE DA CONSTRUÇÃO DE UMA 
LÓGICA E UMA PRÁXIS JURÍDICAS 
ANTIRRACISTAS, FEMINISTAS E DE BASE 
 
Domenique Goulart1 
 
“Hoje eu me acordei branca. 
Tomei banho, lavei o cabelo, sai para trabalhar e não 
precisei pensar quantas pessoas vão fazer comentários 
desnecessários sobre ele. Caminhei pelas ruas sem 
olhares de escárnio ou fetichização. Cheguei ao meu 
destino em tempo adequado, não tive nenhuma angústia 
sobre a cor da minha pele durante o dia todo. 
Hoje eu me acordei branca. Por nenhum segundo 
precisei refletir sobre racismo, porque me acordei 
branca e portanto pude "não ver racismo em tudo", já 
que ele não me atingiu nenhuma vez. Pude ignorar o fato 
de que todas as pessoas que me pediram dinheiro na rua 
ou um prato de comida eram negras. Não precisei pensar 
sobre o que isso significa na sociedade porque me 
acordei branca. Fui para aula na universidade, escolhi 
uma classe e ao olhar para os lados me senti acolhida, 
todas as pessoas na minha classe são parecidas comigo 
e isso é ótimo. 
Hoje eu me acordei branca, não fui parada por nenhum 
porteiro. Andei por todos os lugares segura de mim. 
Pude ignorar dados, estatísticas, fatos. Porque hoje eu 
me acordei branca e não fui impedida em absolutamente 
nada do que resolvi fazer. 
Hoje eu me acordei branca, defini isso para mim. Posso 
me acordar branca, tenho parentes que são, posso me 
sentir branca, posso ter pertença branca, me acordei 
branca me sentindo branca. 
 
1 Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal do Rio Grande 
do Sul (UFRGS). Cofundadora e integrante do Grupo Interdisciplinar de Trabalho e 
Assessoria para Mulheres (GRITAM/SAJU). Bolsista de iniciação científica (CNPq). 
E-mail: domenique.goulart@gmail.com. 
79 
 
 
Acontece que o resto do mundo acordou e olhou para 
mim também. E o mundo decidiu: eu não sou branca”2 
INTRODUÇÃO 
O que se busca nestes escritos, em linhas gerais e sem pretensão 
alguma de esgotar os assuntos, é uma breve tentativa de expor,em um 
primeiro espaço, que os marcadores de raça, classe e gênero 
influencia(ra)m profundamente os alicerces da epistemologia jurídica. 
Num segundo momento, busca-se mostrar o impacto da lógica elitista, 
masculinista e branca nos trâmites processuais e na esfera judicial, bem 
como tecer breves considerações acerca dos mecanismos considerados 
imprescindíveis para a construção de um raciocínio jurídico anti-
hegemônico e progressista. 
 
EIXO I - Uma perspectiva epistemológica: dos marcadores 
sociais de gênero, raça e classe que são estruturais e estruturantes da 
Ciência Jurídica 
 
Numa sociedade de origem patriarcal, de herança 
escravocrata, o homem, o branco, torna-se a norma, o 
totalizante, e linguagem além de designar coisas e 
objetos, será um modo de interpretação de mundo que 
atribuirá valores a determinados grupos como forma de 
(manter) poder ou de opressão.3 
 
(...) a estrutura social não foi profundamente modificada 
pela evolução da condição feminina; este mundo, que 
 
2 BUENO, Winnie. Hoje eu acordei branca, fev 2017. Disponível em: 
<https://www.facebook.com/ninebueno/posts/10208124557302698>. Consultado 
em: fev. 2017. 
3 RIBEIRO, Djamila. Linguagem, Gênero e Filosofia: Qual o mundo criado para as 
mulheres?, Periódico Sapere Aude, Revista de Filosofia - PUC Minas Gerais, v. 5, n. 
9, 2014. Disponível em: <http://periodicos. 
pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674>. Consulta em: fevereiro de 
2017. 
https://www.facebook.com/ninebueno/posts/10208124557302698
http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674
http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674
80 
 
 
sempre pertenceu aos homens, conserva ainda a forma 
que eles lhe imprimiram..4 
A Ciência Jurídica sempre foi tida como um ramo elitizado e 
muito valorizado socialmente. Semelhante às faculdades de Medicina, 
as de Direito conferiam e ainda conferem notório destaque às pessoas 
desta área. Historicamente, cursos como esses foram destinados com 
exclusividade às pessoas mais favorecidas socioeconomicamente. Nas 
paredes da Faculdade de Direito da UFRGS, por exemplo, encontram-
se pendurados muitos quadros com fotos de pessoas que ali se 
formaram. Ao direcionar a atenção às imagens ostentadas pelas 
pomposas molduras, perceptível que apenas recentemente o curso 
começou a ser composto por mulheres e por pessoas negras. 
Com efeito, a esfera jurídica é um ramo das ciências humanas e 
sociais composta por seleto grupo de pessoas majoritariamente do 
gênero masculino, brancas, ricas, com conhecimentos e vivências 
direcionados. O resultado disso é a construção de uma lógica e de um 
regime de verdade particulares e específicas, a excluir demais 
perspectivas e abordagens. Ao se referir às demais lógicas suprimidas, 
se entende por todas as outras dissonantes, divergentes, plurais e 
outsiders5. Isso quer dizer que ao serem elencados determinados fatores 
 
4 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. - Rio de 
Janeiro: Nova Fronteira, 1980, pg 450. 
5 “Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas 
circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento 
a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras 
como “erradas”. Quando uma regra é imposta,a pessoa que presumivelmente a 
infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver 
de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um 
outsider.” BECKER, Howard Saul.. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 
Tradução Maria Luiza X. de Borges; revisão técnica Karina Kushnir. - 1.ed. - Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, pg. 15. 
81 
 
 
limitantes como a regra a ser seguida, esta parte de pressupostos fixos 
que condicionam a racionalidade a ser percorrida e que consolidam uma 
única narrativa. 
Pelo âmbito das ciências jurídicas ser constituído, 
historicamente, por grupos minoritários elitizados, os quais são dotados 
de determinada ideologia, toda teoria e prática jurídicas refletem tais 
aspectos. A ausência de pluralidade de pressupostos e de olhares com 
vivências diversificadas, por meio da exclusividade do acesso à esfera 
jurídica por um grupo com determinadas demandas e formas de ver o 
mundo, acarreta a edificação dos pilares jurídicos sob um prisma de 
manter os privilégios já adquiridos. Ou seja, há um caminho percorrido 
no sentido da manutenção do status quo através desse ramo do saber, 
que tanto impacta diferentes aspectos da dinâmica social. Como expôs 
Nereu Giacomolli6, a ideologia: 
(...) é tida como um conjunto de ideias e valores 
informadores da direção do pensamento e da ação, na 
compreensão e na resolução de um problema, ou seja, 
como pensar, o que pensar, como fazer e o que fazer. 
Através da ideologia é que o poder dominante se legitima, 
o qual recebe uma identidade de pensamento (...). A 
ideologia legitima, integra e justifica uma realidade e, 
paradoxalmente, também a deforma e profana. Há um 
certo consenso de que a ideologia conduz a ação e o 
pensamento, as pré-compreensões, determinando práticas 
e apresentando resultados. 
 
Deveras, a ideologia dos grupos dominantes dá forma à (e 
deforma a) epistemologia jurídica. E no momento em que se deixa de 
tratar como relevantes as ideologias sociais que alicerçam e atravessam 
a realidade das pessoas que detêm os meios de produção do 
 
6 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a 
Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. - 3. ed. rev., atual e ampl. - 
São Paulo: Atlas, 2016, pg. 87. 
82 
 
 
conhecimento, tratamos como naturalmente legítimas tais pessoas a 
falar e produzir saberes, normas, discursos e dinâmicas sociais, em 
detrimento do silenciamento histórico de toda a coletividade. 
Também a linguagem se conforma como modo de exercício de 
poder e de estabelecimento de exclusões e monopólios, principalmente 
quando nos atentamos às especificidades do nosso “juridiquês”. Na 
análise construída por Djamila Ribeiro7, à luz do filósofo Wittgenstein, 
a linguagem seria ela mesma um modo de interpretar o mundo, que não 
é neutro, mas sim alicerçado e direcionado por exercícios de poder: 
 
a linguagem não é somente uma estrutura de 
vocabulários, não é simplesmente uma gramática com o 
objetivo de ensinar alguém a escrever ou falar, a 
linguagem é uma forma de vida que traz em si valores 
políticos e sociais formando uma visão de mundo. Esses 
valores oferecidos pela linguagem, explicitando sua não 
neutralidade, recaem sobre determinados grupos, como 
as mulheres. (...) linguagem além de designar coisas e 
objetos, será um modo de interpretação de mundo que 
atribuirá valores a determinados grupos como forma de 
(manter) poder ou de opressão. 
 
O modo como são edificados os saberes a partir das opressões 
estruturais regula a distribuição desigual de direitos e oportunidades, 
além de naturalizar violências e invisibilizações a determinados corpos. 
Face a isso, com o objetivo de romper com essa racionalidade de 
manutenção de privilégios, é indispensável que se entenda que os 
marcadores sociais estruturais atingem de modos diferentes as pessoas 
 
7 RIBEIRO, Djamila. Linguagem, Gênero e Filosofia: Qual o mundo criado para as 
mulheres?, Periódico Sapere Aude, Revista de Filosofia - PUC Minas Gerais, v. 5, n. 
9, 2014. Disponível em: <http://periodicos. 
pucminas.br/index.php/SapereAude/article/ 
 
http://periodicos./
http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/7674
83 
 
 
e podem também coexistir, devido às intersecções de condições de 
gênero, raça e classe. 
Interseccionalidade é uma maneira de entender quemais de um 
tipo de opressão pode atravessar um mesmo contexto, sem que haja uma 
hierarquia entre opressões ali existentes. Cada marcador social age e 
impacta de um modo diverso e não pode ser analisado de forma 
apartada. Ou seja, opressões tais como a LGBTTfobia8, o racismo, o 
classismo, o machismo, por exemplo, podem ser fatores conjugados, a 
atingir uma mesma pessoa ou grupo de pessoas. 
Há quem diga que tais marcadores sociais - gênero e raça, por 
exemplo - são apenas atributos pessoais que não devem ser ressaltados, 
pois cada pessoa é um conjunto de particularidades e especificidades 
que a torna única. Entretanto, esta é não somente uma forma de se 
eximir de responsabilidades enquanto sujeitos privilegiados, mas 
 
8 LGBTT é a sigla do movimento político que representa as lésbicas, os gays, as 
pessoas bissexuais, trans e travestis. De modo mais objetivo, a LGBTTfobia é a 
opressão e a violência pautadas no preconceito, na aversão, na não aceitação, na fobia 
que pessoas sentem pelas pessoas LGBTT’s. Enquanto as letras L, G e B, se referem 
à sexualidade, as letras T’s se referem à identidade de gênero. Para melhor elucidar a 
questão, à: “nível de conceituação moderna o termo trans, prefixado historicamente 
na palavra transexual, é cunhado para significar identidades de gêneros que estejam 
em oposição com a norma cultural vigente de que os órgãos genitais (pênis e vagina) 
definem o gênero (homem e mulher). Ao longo da história a palavra transexual era 
utilizada como sinônimo de homossexualidade, enquanto interpretação de que 
homens e mulheres homossexuais possuíam desejo de trocar o sexo e por conseguinte 
o gênero. Hoje, já se construiu um termo que abrange a experiência de incômodo 
existencial com o gênero ofertado pela relação sexo-gênero, o termo transgênero. Do 
latim, trans, aquilo que está em oposição, observamos que seres humanos transgêneros 
se qualificam enquanto existirem em oposição ao gênero definido somente por 
carregarem tal ou qual órgão genital. Mais tarde se popularizou o termo transexual 
masculino e feminino, para por fim definirmos, atualmente, os conceitos de homem 
transexual (gênero inicialmente ofertado foi o de mulher por possuir vagina) e mulher 
transexual (gênero inicialmente ofertado foi o de homem por possuir pênis).” 
ROVEDA, Atena Beauvoir. Transantropologia: corpos, existências e humanidades 
em oposição, fev. 2017. Disponível em: <http://atenabeauvoir.blogspot.com.br/>. 
Acesso em: fevereiro de 2017. 
http://atenabeauvoir.blogspot.com.br/
84 
 
 
também um modo de invisibilizar pautas de opressão, as quais devem 
ser cada vez mais confrontadas. 
Ciente da discussão acerca da interseccionalidade, substancial a 
retomada da reflexão sobre quem dita as normas sociais e jurídicas. 
Apenas muito recentemente a abertura política possibilitou a 
participação de mulheres em âmbitos sociais mais influentes. Apesar 
disso, a ascensão de mulheres à posições de poder ainda é escassa. 
Quando conjugamos também o marcador de raça, vemos ainda muito 
menos mulheres negras em espaços de significativa influência 
normativa. 
Um exemplo concreto disso é a ínfima quantidade de mulheres 
que participaram da Assembleia Nacional Constituinte que deu corpo 
ao texto da Constituição Federal de 1988. A Assembleia foi formada 
por apenas 24 mulheres9 das 559 pessoas que a compuseram (72 pessoas 
Senadoras e 487 pessoas Deputadas10). Ou seja, isso representa a 
irrisória porcentagem de 4,29% de mulheres que participaram da escrita 
do texto original da nossa Carta Magna. Salta ainda mais aos olhos 
quando verificamos que, destas 559 pessoas que formaram a 
Constituinte, apenas uma delas era uma mulher negra11: a parlamentar 
constituinte Benedita da Silva. 
 
9Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-
1988/mulher-constituinte>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 
10Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-
1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte>. Acesso em 05 de fevereiro 
de 2017. 
11Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/ constituicao-
cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituic
ao20anos_bioconstituintes?pk=103478>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/mulher-constituinte
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/panorama-da-constituinte
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/constituintes/parlamentaresconstituintes/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_bioconstituintes?pk=103478
85 
 
 
Por outro lado, a representatividade de mulheres e/ou de pessoas 
negras, por si só, não garante que as demandas coletivas e os fatores que 
vulnerabilizam as mulheres e a população negra sejam pautas 
reivindicadas. Nesse sentido que é demonstrado o percurso transcorrido 
nos EUA por movimentos sociais, o qual foi historicizado por Angela 
Davis, no célebre livro Mulheres, Raça e Classe. A autora narra a forma 
como o movimento de mulheres, apesar de inicialmente ter agido 
ativamente em prol da abolição da escravatura no país, depois 
apresentou reiteradas posturas racistas, a negar a participação das 
mulheres de cor nos espaços de luta pelos direitos das mulheres: 
 
A ideologia burguesa - e particularmente seus componentes 
racistas - realmente deve possuir o poder de diluir as 
imagens reais de terror em obscuridade e insignificância de 
dissipar os terríveis gritos de sofrimento dos seres humanos 
em murmúrios quase inaudíveis e, então, em silêncio. 
Com a chegada do século XX, um casamento ideológico 
sólido uniu racismo e sexismo de uma nova maneira. A 
supremacia branca e a supremacia masculina, que sempre 
se cortejaram com facilidade, estreitaram os laços e 
consolidaram abertamente o romance.12 
 
Neste contexto histórico que foi proferido o memorável discurso 
demarcado pelo questionamento feito por Sojourner Truth, uma ativista 
negra, em face ao movimento de mulheres brancas: “E não sou eu uma 
mulher?”13. Desse modo, carece haver a conscientização do 
engendramento das opressões em virtude dos recortes de classe, raça e 
gênero, dando visibilidade e atenção às especificidades de cada pauta.12 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. 
- São Paulo: Boitempo, 2016, p. 127. 
13 Disponível em: <http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-
truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0
kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks>. Acesso em: 
junho de 2017. 
http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks
http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks
http://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKEAjw387JBRDPtJePvOej8kASJADkV9TLncTWCOSezoICzX0kHIVH3RydGqm0oMzuUwE3eYGszxoCLsHw_wcB#gs.D36j1ks
86 
 
 
Quanto ao ponto, cabe trazer à tona a ideia sustentada por Sueli 
Carneiro, a qual defende a necessidade de enegrecer o feminismo14: 
Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo 
transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa 
condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do 
lugar em que estão inseridos, diversos olhares que 
desencadeiam processos particulares subjacentes na luta 
de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres 
indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, 
possuem demandas específicas que, essencialmente, não 
podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da 
questão de gênero se esta não levar em conta as 
especificidades que definem o ser mulher neste e naquele 
caso. Essas óticas particulares vêm exigindo, 
paulatinamente, práticas igualmente diversas que 
ampliem a concepção e o protagonismo feminista na 
sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. 
 
Outrossim, imperioso enfatizar o fato de que a crença e práxis 
pautadas no machismo e no racismo são vislumbradas tanto nas micro-
relações quanto nas macro-relações. O machismo e o racismo são 
ideologias dominantes também nas bases estruturais e estruturantes 
institucionais, as quais silenciam aquelas e aqueles que são 
oprimidas/os. 
De fato, as diversas formas de violência contra as mulheres15 
transcendem as relações pessoais e constituem também as lógicas 
 
14CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Disponível em: 
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142003000300008>, dezembro de 2003. Acesso em: junho de 2017. 
15 Algumas das formas de violência contra as mulheres se encontram elencadas na Lei 
Maria da Penha. Uma conquista significativa ao movimento de mulheres foi ver 
validadas enquanto violências as formas descritas no art. 7° do referido dispositivo. 
Senão vejamos: 
Lei n. 11.343/06, Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a 
mulher, entre outras: 
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou 
saúde corporal; 
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano 
emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno 
87 
 
 
institucionais. Isso ocorre seja na invisibilização e negligenciamento de 
demandas que somente as mulheres apresentam, na maior punição de 
mulheres encarceradas16, na hostilização e menosprezo às mulheres, na 
deslegitimação de suas insurgências e nos abusos morais e sexuais. A 
lista de violências às quais as mulheres são submetidas nas esferas 
institucionais é demasiadamente longa. Sob a roupagem de argumentos 
morais, religiosos e culturais, os quais se mostram sempre impregnados 
de estigma, quem apresenta o poder de ditar as normas instrumentaliza 
o patriarcalismo, a retirar a autonomia das mulheres sobre suas próprias 
vidas e sobre seus próprios corpos. No que concerne a tais posturas 
institucionais paternalistas e patriarcais, cabe transcrever fragmento do 
Informe do grupo de trabalho da ONU sobre questões das mulheres, de 
201617: 
 
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, 
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, 
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, 
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio 
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; 
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a 
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante 
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a 
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método 
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, 
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o 
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; 
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure 
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de 
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, 
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; 
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, 
difamação ou injúria. 
16 ALVES, Dina. Rés negras, Judiciário branco: uma análise da interseccionalidade 
de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Disponível 
em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640>. Acesso em: fevereiro de 2017. 
17 Recomendações do grupo de trabalho da ONU. Informe do grupo de trabalho da 
ONU sobre questões das mulheres, 2016. 
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640
88 
 
 
Ao longo de todo seu ciclo vital, o corpo da mulher é 
instrumentalizado e suas funções e necessidades 
biológicas estigmatizadas, submetidas a um programa 
patriarcal politizado. O estado trata as mulheres de forma 
instrumental, como ferramentas as quais aplica políticas 
e programas. Por vezes se recorre a sanções penais e com 
frequência com o pretexto de proteger a saúde e a 
segurança da mulher, com argumentos religiosos e 
culturais. Fins políticos, culturais, religiosos e 
econômicos para a instrumentalização do corpo das 
mulheres. 
 
Dessa forma, o que se busca demarcar é que as estruturas do 
direito foram edificadas por grupos com pressupostos patriarcais, 
racistas e elitizados, com inexistência de pluralidade e diversidade, bem 
como desatenção às demandas de segmentos denominados como 
“minorias”. Impossível mensurar o impacto desta construção histórica. 
Contudo, essencial que sejam direcionados olhares, ouvidos e vozes 
àquelas e àqueles que vêm reivindicando e finalmente tomando (apenas 
após muita luta) os espaços e os tornando cada vez mais plurais. 
 
EIXO II - Do impacto da lógica elitista, masculinista e branca 
nos trâmites processuais e na esfera judicial 
É sintomático que as causas que toquem profundamente as 
pessoas e as prioridades por elas elencadas digam bastante sobre seu 
local de fala18. Devido a isso, é latente a necessidade de conseguir 
 
18Demarcar quais são os privilégios e opressões da pessoa a qual está sendo dada a 
voz (ou que a toma com afinco) é substancial, pois são expostos quais os pressupostos 
de onde partem a pessoa para que se construa o que se quer dizer. Ao salientar isso, 
não se entende, por exemplo, que somente possa falar sobre uma opressão aquele que 
sofre com isso. Entretanto, implica dizer que se deve refletir a realidade por meio da 
própria posição de quem se manifesta em determinado contexto. Ninguém que não 
sofre com alguma opressão é legítimo para apontar o que é e o que não é uma forma 
de discriminação, uma vez que este sentimento é subjetivo e individual (ainda que 
também estrutural, porém no caso em concreto deve ser respeitadaa autonomia da 
89 
 
 
enxergar e dar visibilidades aos diversos marcadores sociais, os quais 
atravessam o contexto que atinge cada pessoa em suas particularidades. 
E essa carência se deve principalmente ao fato de que, como dito, a 
lógica jurídica foi construída por meio destes primas masculinistas, 
elitistas e brancos, acarretando que o processo, (principalmente o 
penal), acabe por negligenciar e omitir a complexidade das estruturas 
sociais que impactam os sujeitos, sobretudo, os criminalizados pelo 
sistema de controle penal. 
Ao refletir sobre a construção da racionalidade que rege a 
tramitação dos processos penais, possível enxergar haver uma 
sistemática de desumanização das pessoas julgadas. Isso ocorre em 
virtude de uma análise mecanicista dos fatos contidos nos autos, ao que 
pretere todo o contexto sócio-político que gerou aquele fato social. Em 
que pese seja crucial não cair na falácia do Direito Penal do Autor19, o 
que se vê é o paradigma oposto disso20, a ser julgada a conduta como se 
ela fosse apartada de todas as condições sociais da pessoa que a 
 
pessoa que é diretamente atingida), não cabendo a quem causa um sofrimento dar 
(in)validade ao ato ocorrido. Por outro lado, cabe a esta pessoa pensar e (des)construir 
a conduta ou disseminação de uma opressão a partir da sua posição no mundo. Nesse 
sentido é que se fala, por exemplo, que pessoas brancas devam falar sobre sua conduta 
enquanto racistas e os homens enquanto machistas, cabendo refletir e buscar formas 
de diminuir e extinguir as opressões por elas mantidas e alimentadas. 
19 “O Direito Penal do autor configura-se quando a reprovabilidade social, bem como 
a aplicação das sanções penais são baseadas não na ocorrência de um fato ilícito, mas 
sim no modo de ser do agente. A sanção deve ser aplicada, portanto, fundamentada 
na personalidade do agente, na atitude interna jurídica corrompida do agente. A 
conduta realizada seria apenas uma das características inerente aquele ser que nasceu 
para delinqüir.” MOTTA, Alessandra Costa da Silva. Uma análise sobre a aplicação 
do direito penal do autor nos dias atuais relacionada ao pensamento de Lombroso. 
Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862& 
revista_caderno=3>. Acesso em: fev. de 2017. 
20 ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Direito Penal do autor ou Direito Penal 
do fato? Disponível em <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-
do-autor-ou-direito-penal-do-fato>. Consultado em: 05 de fevereiro de 2017. 
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13862&revista_caderno=3
https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato
https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato
90 
 
 
executou, a ignorar todas as opressões estruturais que perpassam aquela 
situação. 
E isso acarreta uma desumanização da(o)s julgada(o)s, pois a 
mera qualificação prévia ao interrogatório, por exemplo, não se mostra 
suficiente para que seja enxergado o indivíduo em sua plenitude e 
complexidade. O Poder Judiciário está então a tropeçar no mito da 
igualdade21. Ao fragmentar e simplificar os sujeitos a condutas 
passíveis de mera tipificação penal, são colocados entraves a um 
exercício mínimo de empatia22. 
Nesse sentido, a alteridade é um exercício que precisa ser levado 
em conta quando da realização da atividade jurisdicional, justamente 
pela questão de análise de prova quando averiguada a credibilidade e 
verossimilhança dadas aos ditos das pessoas acusadas. E nenhuma 
dessas reflexões vão de encontro ao dever de imparcialidade da pessoa 
julgadora23. Pelo contrário, justamente devido à incapacidade de 
analisar com a mesma ausência de preconceitos as teses acusatória e 
defensiva, encontra-se a impossibilitar o alcance da esperada 
imparcialidade. Tais preconceitos se concretizam na pré-disposição a 
 
21 “Uma nova forma de hierarquia se estabelece, desta maneira, sob a forma de uma 
sociedade individualista e administrativa. Se todos se tornam juridicamente iguais, 
elas vêm a ser igualmente dominados por uma instância que lhes é superior. A 
uniformidade, a igualização e a homogeinização dos indivíduos facilita o exercício do 
poder absoluto em vez de impedi-lo.” WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso 
comum teórico dos juristas. Sequencia, 3(5): p. 40. 1992. 
22 Entendo por empatia o exercício de tentar se colocar no lugar da outra pessoa. 
Tentar “vestir” suas vivências a fim de enxergar e sentir como a pessoa vê e sente as 
experiências que a atingem. É o esforço de abdicar dos preconceitos e dos julgamentos 
morais para entender a realidade subjetiva da outra pessoa. 
23 “Mais adequado conceituar imparcialidade como um princípio supremo do processo 
(...), pois dela decorre uma vinculação da conduta dos magistrados, que devem 
comportar-se na condução do processo como terceiros alheios aos interesses das 
partes” MAYA, André. Imparcialidade e Processo Penal, da Prevenção da 
Competência ao Juiz de Garantias. São Paulo: Atlas, 2014, p. 102. 
91 
 
 
tratar como inverídicas as versões defensivas, sempre dando maior peso 
aos ditos testemunhais dos policiais militares24, os quais, por exemplo, 
na visão majoritária das pessoas julgadoras, “jamais teriam motivos 
para faltarem com a verdade”. E tal contexto, ao fim e ao cabo, fere 
frontalmente o princípio da presunção de inocência25. 
Portanto, o exercício da alteridade é um requisito necessário para 
que a atividade judicial não acabe imersa em um alheamento à realidade. 
Ocorre que a dificuldade de conseguir se colocar no lugar da outra 
pessoa se deve a algumas causas, sendo as principais: a fundação 
epistemológica do próprio direito (já exposta no eixo I), a grande 
demanda de processos, a forma do ensino jurídico e a organização da 
lógica do poder judiciário. 
Em primeiro lugar, o distanciamento entre as pessoas julgadora 
e julgada é causado pela excessiva quantidade de processos que cada 
juiz(a) compete analisar. Com isso, criam-se mecanismos de julgamento 
 
24 Sobre o assunto: “Mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas têm 
apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação. E 91% dos 
processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. O problema, para 
quem estuda a área, é que prender e condenar com base, principalmente, em 
depoimentos de agentes viola o contraditório e a ampla defesa, tornando quase 
impossível a absolvição de um acusado.”. RODAS, Sérgio. 74% das prisões por 
tráfico têm apenas policiais como testemunhas do caso. Consultor Jurídico. 
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-
policiais-testemunhas>. Acesso em: fevereiro de 2017. 
25 “Trata-se, como afirmou Luigi Lucchi, de “um corolário lógico do fim racional 
consignado ao processo” e também a “primeira e fundamental garantia que o 
procedimento assegura ao cidadão: presunção juris como sói dizer-se, isto é, até prova 
contrária”. A culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa - 
ao invés da inocência, presumida desde o início - que forma o objeto do juízo”. 
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Prefário da 1. ed. 
italiana, Norberto Bobbio. - 4. ed. rev. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 
2014, pg. 505. 
http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas
http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas92 
 
 
que buscam simplificar os contextos26, além de haver uma abstração das 
consequências concretas de cada decisão. Há também certa 
desumanização intencional das pessoas julgadas, para que seja 
humanamente possível lidar com o peso das decisões judiciais 
aplicadas, principalmente quando se está decidido sobre suas 
liberdades. Com o passar do tempo, a atividade discricionária de 
aplicação da pena27 acaba sendo unicamente uma proporção abstrata, e 
não anos de vida em que alguém permanecerá enjaulado em condições 
extremamente insalubres. 
E, com feito, isso é estruturado pela forma com que se dá o 
ensino jurídico. Para mudar tal aspecto, necessária não somente a 
revisão dos currículos dos cursos de direito, mas urge que se faça toda 
uma revolução da forma pela qual o conhecimento é construído dentro 
dos pomposos muros das faculdades de ciências jurídicas. Para 
demonstrar tal urgência, calham as valiosas reflexões de Boaventura de 
Sousa Santos28: 
 
 
26 Evidente exposição da generalização e da simplificação dos casos judiciais é a 
forma cada vez mais recorrente que os Tribunais Superiores vêm julgando casos com 
repercussão geral, limitando demais tribunais a realizarem maior análise das 
especificidades do caso em concreto. 
27 “Conceito de fixação de pena: trata-se de um processo judicial de discricionariedade 
juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e reprovação da 
infração penal. O juiz, dentro dos limites estabelecidos pelo legislador (mínimo e 
máximo, abstratamente fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se 
do seu livre convencimento (discricionariedade), embora com fundamentada 
exposição do seu raciocínio (juridicamente vinculada)”. NUCCI, Guilherme de 
Souza. Código Penal Comentado. 11. ed. rev., atual e ampl. - São Paulo: Editora 
Revista dos Tribunais, 2012, pg. 414. 
28 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. - 3. 
ed. - São Paulo: Cortez, 2011, pg. 86-87. 
93 
 
 
O paradigma jurídico-dogmático que domina o ensino 
nas faculdades de direito não tem conseguido ver que na 
sociedade circulam várias formas de poder, de direito e 
de conhecimentos que vão muito além do que cabe nos 
seus postulados. Com a tentativa de eliminação de 
qualquer elemento extranormativo, as faculdades de 
direito acabam criando uma cultura de extrema 
indiferença ou exterioridade do direito diante das 
mudanças experimentadas pela sociedade. Enquanto 
locais de circulação dos postulados da dogmática 
jurídica, têm estado distantes das preocupações sociais e 
têm servido, em regra, para a formação de profissionais 
sem um maior comprometimento com problemas sociais. 
 
Nesse prisma, é a defesa do fortalecimento das atividades de 
extensão29, as quais são justamente aquelas que possibilitam haver uma 
maior pluralidade e diversidade de saberes, além da troca de 
conhecimentos entre estudantes da academia e a sociedade como um 
todo. Primordialmente, os núcleos de assessorias jurídicas populares 
buscam que eixos socialmente marginalizados tenham acesso à justiça, 
atuando na promoção e efetivação de direitos humanos e acesso à 
justiça, a proporcionar que a Universidade cumpra sua função social. 
No Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade 
Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRGS)30, por exemplo, a 
elevada atuação das e dos estudantes na extensão direciona “seus 
 
29 Constituição Federal/1988: art. 207. As universidades gozam de autonomia 
didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão 
ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. 
30 Programa de extensão voluntário, pautado em protagonismo estudantil, em que as 
pessoas participantes atuam com o objetivo de proporcionar acesso à justiça a pessoas 
em situação de hipossuficiência socioeconômica. O SAJU/UFRGS atualmente conta 
com vinte grupos, cujas temáticas se especificam para melhor atender as demandas 
sociais. 
94 
 
 
conhecimentos para uma atividade jurídica de cunho social, reflexiva, 
crítica e transformadora da realidade.31 
 No entanto, o que se vê, em regra, é o oposto disso: o fomento 
da perpetuação de uma “bolha acadêmica”, a qual é distante e alheia à 
causas, controvérsias e reivindicações sociais. Como dito 
anteriormente, por este âmbito historicamente ser construído por 
pessoas advindas de camadas mais favorecidas social e 
economicamente, impera o esforço para manter o alheamento ao que 
Boaventura denomina de fascismo del apartheid social32. 
O ensino jurídico dialoga com casos tão simplórios que não dão 
conta da materialidade dos casos reais. Reflexo disso é que no próprio 
Poder Judiciário os conflitos sociais são simplificados à nível de meras 
demandas jurídicas, acarretando uma fragmentarização do indivíduo, o 
qual deixa de existir e de ser visto em sua humanidade e complexidade, 
passando a ser enxergado como um objeto, um case, uma lide. Da 
necessidade de se lidar com um conflito real de uma relação social, 
passa-se a trabalhar com as folhas dos autos, com números de processos. 
 
31SAJU: Breves apontamentos e suas tendências. Disponível em: 
<http://www.ufrgs.br/saju/sobre-o-saju/historia-1>,. Consulta em: 19 de fevereiro de 
2017. 
32 “Es decir, la segregación social de los excluidos a través de la división de ciudades 
en zonas salvajes y zonas civilizadas. Las zonas salvajes son las zonas del estado de 
naturaleza de Hobbes. Las zonas civilizadas son las zonas del contrato social, y viven 
bajo la amenaza constante de las zonas salvajes. Para defenderse a sí mismas, las zonas 
civilizadas se convierten en castillos neofeudales, enclaves fortificados que son 
característicos de las nuevas formas de segregación urbana: urbanizaciones privadas 
cerradas, comunidades valladas. (...) En relación al Estado, la división agrega un doble 
criterio de acción estatal en las zonas salvajes y civilizadas. En las zonas civilizadas, 
ek Estado actúa de forma democrática, como un Estado protector, incluso si en 
ocasiones es ineficiente y poco fiable. En las zonas salvajes, el Estado actúa de una 
manera fascista, como un Estado predador, sin ningún respeto, ni siquera en aparencia, 
por el Estado de derecho.” SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología jurídica 
crítica - Para un nuevo sentido común en el derecho. p. 560. 
http://www.ufrgs.br/saju/sobre-o-saju/historia-1
95 
 
 
Impera uma “cultura normativista técnico-burocrática”33. No pertine a 
esta discussão, Daniel Achutti34 assim se refere quanto à obra de Nils 
Christie: 
(...) as cortes penais, ainda segundo o autor, possuem uma 
mensagem escondida para a população: ao trabalhar por 
meio de um sistema simplificador, os tribunais 
transmitem a ideia de que “atos, bem como pessoas, 
podem e devem ser avaliados através de dicotomias 
simplistas”, com a consequente redução ao mínimo 
possível de elementos a serem considerados relevantes 
em um julgamento. 
 
 Também não há como deixar de mencionar a relevância de 
políticas públicas de inclusão social e ações afirmativas nas pautas aqui 
tocadas. Não somente no que concerne ao acesso às universidades, mas 
também nos concursos públicos, políticas de caráter de compensação 
histórica se mostram indispensáveis à acessibilidade destes espaços. 
Ou seja, devido à elitização da esfera jurídica - desde o seu 
ensino até a prática judicial -, vige um alheamento às causas sociais. Por 
restarem insuficientes e inadequados os mecanismos concretos de 
pluralização de tais meios, as e os operadoras/es do direito apresentam 
grande dificuldade de empatia com aquelas e aqueles que são 
majoritiariamente selecionadas/os pelo sistema de controle penal: 
pessoas marginalizadas econômica e socialmente. Ante a isso, urge que 
se revolucione, se politizee se humanize não somente o ensino jurídico, 
 
33 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. - 3. 
ed. - São Paulo: Cortez, 2011, pg. 85. 
34 ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal. - São Paulo: 
Saraiva, 2014, pg. 109. 
96 
 
 
mas também demais esferas do meio jurídico, o que, em verdade, 
possibilita o combate a esta dicotomia vigente: 
Por un lado, quienes encabezan secuencias de 
destrucción y de creación social - generalmente, grupos 
sociales pequenos, dominantes - se encuentran tan 
absorbidos en la mecanicidad de la secuencia, que 
perguntarse lo que hacen es, en el mejor de los casos, 
irrelevante, y en el peor, amenazante y peligroso. Por otro 
lado, la gran mayoría de la población que vive las 
consecuencias de una intensa destrucción y creación 
social está tan ocupada o pressionada para adaptarse, 
resistir, o simplemente sobrevivir, que no logra indagar y 
mucho menos responder a cuestiones complejas sobre lo 
que están haciendo y por qué. (...) éste no es un periodo 
conducente a la autorreflexión. Ésta probablemente está 
restringida a aquellos lo suficientemente privilegiados 
como para atribuirla a otros.35 
 
EIXO III - Proposições reflexivas 
Face ao emaranhado de inquietações aqui expostas, forçosa a 
consolidação de constantes questionamentos e enfrentamentos por parte 
dos segmentos de resistência. A explanação de reiterados chamamentos, 
a fim de buscar a instauração de um estado de alerta permanente, 
visando esforços para que o fluxo não seja seguido. E o fluxo, sem 
dúvida, é a perpetuação da invisibilização das demandas de segmentos 
socialmente vulneráveis e a reprodução de violências: 
 
No curso de sua afirmação, a utilização das ferramentas 
jurídicas hegemônicas e o recurso a concepções 
alternativas não hegemônicas encontrará contradições, 
avanços e recuos e a realização do potencial 
emancipatório do direito dependerá não só de 
proatividade, mas também de resiliência e constante 
vigilância epistemológica.36 
 
35 SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología Jurídica Crítica, p. 542. 
36 SANTOS, Boaventura de Souza. Para um revolução democrática do Direito, 
pg. 68. 
97 
 
 
 
Assim sendo, o combate à falácia da neutralidade do direito é 
crucial, pois, como demonstrado, este mito está a serviço de poucos, os 
quais buscam se manter em posições de poder e de privilégio. O 
questionamento e desconforto devem ser constantes face à cultura 
hegemônica jurídica. Assim, busca-se demonstrar a necessidade não 
somente de resiliência, mas também de resistência e combatividade. 
Isto posto, principalmente em momentos políticos tal como o 
atual, com retirada de direitos sociais básicos e desmantelamento do 
Estado Democrático de Direito, a construção de uma lógica e uma práxis 
jurídicas antirracistas, feministas e de base são substanciais a uma 
perspectiva progressista. Com efeito, são muitas as pessoas 
irresignadas, as quais devem superar os sectarismos e atuar de modo 
conjunto, a fim de que esse âmbito socialmente tão relevante seja 
pluralizado, humanizado e politizado, tornando-o instrumento de 
transformação sócio-política. 
 
 
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https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1599865/direito-penal-do-autor-ou-direito-penal-do-fato
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99 
 
 
 
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como testemunhas do caso. Consultor Jurídico. Disponível em: 
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SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática 
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SANTOS, Boaventura de Souza. Sociología jurídica crítica. 2. ed. - 
Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2009. 
 
 
http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas
http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas
100 
 
 
PENSAR A DEMOCRACIA EM TEMPOS DE 
MEDO 
 
 Fernanda Martins1 
Augusto Jobim2 
 
EX-POSIÇÃO 
 
Em tempos sombrios de naturalização da violência, sobretudo 
dos dispositivos de punição, em que o embrutecimento do pensamento 
toma protagonismo, orientado por uma “nova razão do mundo”3 ditada 
pelos auspícios neoliberais, a urgência radical de certa inteligência que 
enfrente a burrice do fanatismo mobilizado pelos fascismos como modo 
de vida atrofiado pelo medo se impõe. Um vazio reflexivo ganha eco, 
matraqueado pelo senso comum que, também em matéria penal, 
concretamente, não apenas franquia a morte emescala industrial 
operada pelo sistema penal, mas forja uma expansiva e permanente 
tecnologia de governo hábil à eliminação da diferença. Refletir, ainda 
que de maneira esparsa, mas comprometida com este estado de coisas, 
 
1 Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo PPGD/UFSC, doutoranda em 
Ciências Criminais pela PUCRS, professora de Direito Penal, Processo Penal e 
Criminologia da UNIVALI. 
2 Doutor em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra 
(Portugal); Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS e Professor de Criminologia 
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) da 
PUCRS. 
3 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a 
sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. 
101 
 
 
é mais que mera questão de engajamento, atualmente trata-se de ponto 
nevrálgico de sobre-vivência. 
 
1 DEMOCRACIA COMO EXPERIÊNCIA DO IM-
POSSÍVEL 
 
Diretamente ao ponto que propomos à reflexão: o que podemos 
dizer sobre o contexto de democracia que, supostamente como regime 
político, compartilhamos no ocidente? Ademais de relatar o sequestro 
que uma sociedade mercantil impinge, através de subjetividades 
arraigadas a um “ideal empreendedor de si”, aos atuais parâmetros 
democráticos, como propriamente poderíamos pensar a democracia 
através de novos impulsos? Necessário primeiramente que façamos a 
distinção tanto entre democracia real, como constituição do corpo 
político, e a democracia como mera técnica de administração das leis 
fetichistas da rentabilidade quanto também à democracia para além da 
sua subordinação à forma estatal. 
Cremos, ademais, nada auspicioso metermo-nos a apresentar 
receitas. Contudo, não podemos usar a democracia como paradigma se 
não dissermos como hoje a democracia tem-se portado. Para pensar em 
desconstruir de outro modo o conceito de democracia normalmente 
pintado, deve-se pensar uma diferença de natureza e não meramente de 
grau. Jamais se imiscuindo no deplorável espetáculo hipócrita do 
compromisso democrático falsamente despolitizado, urge (re)pensar 
neste viés uma democracia, agora por vir. Convite paradoxal, nunca 
cego ao apelo sedutor de algum regime político estreito, contudo que 
arrisca, para além da contingência de alterar as coordenadas do que 
102 
 
 
parece possível e poder dar condições a algo novo,4 sobretudo a 
resguardar como se5 possível fosse a radicalidade da abertura de um 
talvez im-possível6? Não estaríamos às voltas com tantos mal-
entendidos sobre a democracia se não houvesse mesmo uma imperativa 
complexidade desconcertante no seu trato? Em todo o terreno, as 
complicações nunca se fazem por prazer, todavia fingir estar certo de 
alguma simplicidade onde ela não existe é postura por demais 
desaconselhada.7 Concedido algum espaço a isto, por fim, qual seria em 
parte o alcance político-democrático deste pensamento? O que se apõe 
é uma experiência aporética do impossível. Um pensamento radical de 
desconstrução8 em democracia, se é que isto pode-se dar, estaria longe 
de qualquer fatalismo niilista ou outra técnica menos eficaz de 
neutralização que possa apagar seu rastro, e ainda muito distante de 
algum método analítico. Esta hipérbole, imprevisível aposta, de 
maneira geral, muito mais comprometida estaria, sim, em desestabilizar 
propriedades estruturais que mantém unidos certos esquemas 
conceituais. Noutros termos, tratar-se-ia de suspender de maneira 
argumentada as hipóteses, pressuposições e as oposições 
 
4 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Arriesgar lo imposible: Conversaciones com Glyn Daly. 
Traducción de Sonia Arribas. Madrid: Editorial Trotta, 2006. 
5 DERRIDA, Jacques. Vadios: Dois Ensaios Sobre a Razão. Coordenação, Tradução 
e Notas de Fernanda Bernardo. Coimbra: Palimage, 2003, pp. 219 e 239. 
6 DERRIDA, Jacques. “Como se fosse possível, “within such limits”...”. In: Papel-
máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, pp. 258- 
259. 
7 DERRIDA, Jacques. “Em direção a uma Ética da Discussão” In: Limited Inc.. 
Tradução Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991, p. 161. 
8 DERRIDA, Jacques. Mémories – pour Paul de Man. Paris: Galilée, 1988, p. 38 e 
DERRIDA, Jacques. Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo. In: Pensar em não 
ver: escritos sobre as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; 
BASSAS, Javier (Orgs.). Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da 
UFSC, 2012, p. 138. 
103 
 
 
diametralmente rígidas que identificam uma construção conceitual.9 
Intervenção, pois, sobre identidades homogêneas, a qual não pretende 
negociar com seu objeto em troca de algum sentido ou significação, mas 
busca traços desconstrutivos que destotalizem totalidades 
autoinclusivas (não precisamos lembrar a totalizadora lógica que 
ostenta a democracia capital-parlamentar). 
De certo modo, estamos já pulsando sob o espaço que pode vir. 
Tudo aquilo que trazemos gira em torno, a rigor, em termos 
democráticos, de uma invocação por vir [à venir] da democracia – cada 
vez de novo, à-vez [tour à tour], e de uma vez por todas [une fois pour 
toutes]10 – num cenário urgente que não ignora o motivo que isto 
implica: não se pode querer ver vir o que permanece insistentemente 
por vir.11 Algo quiçá nada latente quando se afirmam comummente os 
argumentos sobre os horizontes democráticos não realizados, mas a 
serem alcançados como metas a serem perfectibilizadas 
teleologicamente. Falseiam as boas intenções, pois ainda estaremos 
sobre a miríade do cálculo, daquilo que se antecipa. E arrancar 
efetivamente a democracia para tocá-la radicalmente é ir além do mero 
círculo econômico (antecipações, projeções programadas de ideias 
reguladoras) que ainda tal lógica acaba por remeter. 
 
9 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 251 (sobre os equívocos na sua acepção a parte da 
Destruktion heideggeriana, consultar p. 263, nota 4). 
10 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 31. 
11 DERRIDA, Jacques. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver: escritos sobre 
as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; BASSAS, Javier (Orgs.). 
Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, p. 70 e 
DERRIDA, Jacques. “Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento” 
(tradução de Piero Eyben). In: Revista Cerrados (Revista do Programa de Pós-
Graduação em Literatura da UnB). Brasília: Vol. 21, nº 33 (2012), p. 244-5. 
104 
 
 
A democracia por vir (la démocratie à venir)12 com que lidamos 
não significa, tal qual escreve Derrida – é um de seus traços mais 
marcantes, ao contrário do que se poderia pensar – ser uma democracia 
futura que um dia será presente, pois diretamente uma democracia no 
sentido levantado nunca será presente, apresentável em si mesma, e 
tampouco subordinada a uma ideia reguladora kantiana. Ter esta aporia 
como base nos leva ao epicentro do conceito de democracia, em última 
análise, não como “regime político”, mas como a instância capaz de 
acolher a possibilidade de ser contestada, de se criticar e se aperfeiçoar 
indefinidamente. Esta indecidibilidade de base, novamente, não se 
inscreve num horizonte teleológico qualquer e leva a sério a aporia do 
demos que, segundo o filósofo franco-argelino, 
 
“(...) é simultaneamente singularidade incalculável de 
qualquer um, antes de qualquer ´sujeito´, o possível 
desfazer do laço social por um segredo a ser respeitado, 
além de toda cidadania, além de todo ´Estado´, na 
verdade de todo ´povo´, na verdade além do estado 
corrente da definição de um ser vivo como ser vivo 
´humano´, e a universalidade do cálculo racional, da 
igualdade dos cidadãos perante a lei, do laço social de 
estar junto, com ou sem contrato (...).” 13 
 
Vislumbra-se uma história a ser pensada de modo 
completamente alheiade qualquer horizonte, porque acredita na 
permanência do impossível. É nesta existência do impossível que a 
promessa da democracia se inscreve, logo a ordem do possível, de um 
ideal possível, não encontra domínio. Tal recurso que os próprios meios 
 
12 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 96-7. 
13 DERRIDA, Jacques. “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo 
com Jacques Derrida”. In: Filosofia em Tempo de Terror: diálogos com Jürgen 
Habermas e Jacques Derrida. BORRADORI, Giovanna. Tradução Roberto Muggiati. 
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 130. 
105 
 
 
tons (inclusive críticos) assumem quando falam sobre democracia corre 
o risco de tornar-se um álibi. Para nós, sucintamente, Derrida14 oferece 
reservas fundamentais a ela como ideia reguladora. No contexto 
kantiano, a ideia reguladora mantém-se na ordem do que é ainda virtual 
ou potencial, um possível infinitamente postergável, dentro de uma 
fórmula de poder nada livre de fins teleológicos. Reservadamente, em 
primeiro lugar, uma democracia por vir concentra seus esforços, como 
dito, sob o título do im-possível, uma heteronomia da lei vinda do outro. 
Im-possível, frise-se, que não é o inacessível, muito menos que eu possa 
postergar indefinidamente, pois me apanha num aqui e agora urgente 
da minha decisão, que não pode aguardar simplesmente no horizonte – 
injunção premente que, enfim, não pode ser idealizada. Portanto, por 
segundo, há uma responsabilidade que verticalmente se abate para ser 
feita, assimétrica à obediência de uma norma. Mesmo quando existe 
regra, por mais problemática que seja, sabe-se o caminho a tomar, não 
se hesita mais e, a rigor, mesmo a decisão já não decide mais nada, pois 
foi desdobrada pelos automatismos – o lugar da justiça ou da 
responsabilidade não mais se entrevê. 
Consequentemente, noutras palavras, a vinda singular do outro. 
Uma força fraca (nada segura, garantida ou coberta de sucesso), dirão 
alguns (com razão), para outros, apenas restará o equívoco de acusar tal 
faceta de uma abertura inescapável à fé messiânica. Àqueles, de fato, 
esta força vulnerável da alteridade comprova o limite da ex-posição 
incondicional ao que ou a quem vem e que vem afetá-la eticamente. Aos 
últimos – àqueles que em seus pobres registros de uma apropriada 
política democrática que consente apenas sobre aquilo que se sabe deve 
 
14 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 164-168. 
106 
 
 
fazer, pelo dever e pela dívida – ressoaria sem dúvida ainda um 
chamado racional, mas de um outro lugar: o hiato de um espaço 
racional de uma fé hiper-crítica, desprovida de dogma ou religião, uma 
outra maneira de fazer a razão razoar.15 
Pensar este encontro impossível com a democracia por vir – sob 
a égide do “agir como se”16, tal qual o performativo da acusatoriedade 
o qual viemos a desenvolver (ambos convocam-se longe de quaisquer 
idealizações e realizam-se a cada instante, responsavelmente desde uma 
heterogeneidade de ordem diversa) –, além de todo o mais, em contraste 
com as ambições político-reguladoras democráticas, facilita a 
pedagogia das chamadas figuras metonímicas do incondicional. 
Naturalmente, a mais importante delas para os nossos interesses, a qual 
cabe ao menos referir (ainda que sob o preço de alguma celeridade 
prejudicial), é a heterogeneidade e indissociabilidade da justiça e do 
direito.17 Se ingressamos a fundo no respaldo filosófico que o assunto 
da democracia envia, correlato aos trâmites jurídico-penais, não é senão 
para destacar algo aparentemente comezinho, mas que funda a questão: 
se direito e justiça apelam-se mutuamente, esta excede aquele. No 
entanto, a justiça mesmo excedendo não apenas o direito, mas a própria 
política, jamais deve ser rechaçada, subtraída ou preterida nesta 
convocação. Se há um núcleo que aquela desconstrução que propomos 
 
15 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a 
nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 
1994, p. 93. 
16 O tratamento mais aprofundado do tema pode ser lido em DERRIDA, Jacques. Dar 
la muerte. Traducción de Cristina de Peretti y Paco Vidarte. Barcelona: Paidós, 2006, 
p. 94-129. 
17 Para tanto, indispensável referir o colóquio “Desconstruction and the Possibility 
of Justice” na Cardozo Law School em outubro de 1989 que dará origem, em parte, 
à obra DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. 
Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 03-58. 
107 
 
 
(tanto à democracia quanto ao direito) encontra espaço, trata-se, ao 
mesmo tempo, do intervalo do seu próprio limite: a justiça. A justiça, 
como a possibilidade mesma da desconstrução, é o que ainda dará, não 
obstante, a autoridade do direito como possível exercício 
desconstrutor.18 É o desligamento deste espaço livre que se relaciona à 
singularidade incalculável do outro que faz, incomensuravelmente, a 
justiça exceder o direito, contudo nenhum impulso maior há ao devir 
da sua própria racionalidade jurídica. Enquanto, heterogêneos, como 
dito, justiça e direito apelam a sua indissociabilidade. Por isso, aquilo 
que a uma primeira vista poderia ser visto como uma condição (de 
justiça) importante (ninguém negaria), porém apartada diretamente dos 
escaninhos do processo penal (sintoma de alguma fraqueza 
envergonhada), deve sempre ser reconhecida conjunta e 
intransigentemente como sua exigência. É preciso à razão jurídica ver-
se sempre às voltas com o cálculo e o incalculável – precisamente, é 
este transação impossível entre o condicional (direito) e o incondicional 
(justiça) que não se cansa de falar: “não há justiça sem apelo a 
determinações jurídicas e à força do direito, não há devir, 
transformação, história e perfectibilidade do direito que não apele a 
uma justiça que, não obstante, a excederá sempre”.19 Por mais que 
receemos, o cuidado nunca será demasiado diante da prudência 
necessária para que se evite a neutralização deste movimento. Nosso 
exercício sob o dispositivo inquisitivo – neste apartado em particular 
atravessado pela resistência aos blocos falsamente indesconstruíveis de 
uma democracia sequestrada pelo capitalismo – inclina-se em direção a 
 
18 DERRIDA, Jacques. Força de Lei, pp. 27-8. 
19 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 265. 
108 
 
 
este por vir, agora e urgente, de abertura radical a uma performance 
acusatória afeta a uma justiça, em seus termos, indissociavelmente 
jurídica. 
O desafio jurídico, e naturalmente da democracia, neste ponto, 
para não dizer da própria razão digna deste nome, em qualquer 
dimensão que a ela seja convocada, não poderá ter outra pedra de toque 
senão o irrenunciável momento decisivo de captar o incalculável no 
reino do cálculo. Para além da arquitetônica da razão, há racionalidades 
plurais que a põe sempre em crise, dignidade esta emprestada, 
indispensável e insuprimível de qualquer pensamento que se coloque 
incansavelmente avesso à neutralização do acontecimento, da 
alteridade singular e excepcional do que vem, incluso de quem vem, e 
sem a qual nada ocorre. Nada de idealismos e racionalismos 
transcendentes regidos sempre por teleologias – novamente, os 
entremeios democráticos e especialmente o “reino dos fins” no processo 
penal encontram-se francamente anêmicos a esta disposição –, pelo 
contrário, mas uma vinculação preocupada com o que há de mais 
concreto e radicalmente desafiador: “como articular esta justa 
incalculabilidade da dignidade com o indispensável cálculo do 
direito?”20 Como relacionar o singular com o universalizável? 
Tais considerações, para uma lógica especializada e propensa ao 
objetivismo reducionista, podem soar irresistivelmente estranhas, 
particularmentese esta racionalidade instrumental estiver rendida – 
querendo debater iludidamente com responsabilidade as questões 
candentes da esfera da política, da democracia e dos dispositivos 
criminais – às mesclas de certos pragmatismos (de perguntas e respostas 
 
20 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 238. 
109 
 
 
fáceis) com os funcionalismos das mais variadas espécies – 
catalogadas, quase que por inércia, de “impossíveis” ou de “estéreis”, 
sem qualquer fundo prático. Para dizer o menos, pouco atentos estariam 
à assimetria insubssumível das regras jurídicas, tanto a uma justiça 
quanto a uma democracia por vir em si mesmas, sem que isto deixe 
radicalmente, contudo, de impor(tar) indissociavelmente um 
movimento impostergável da sua própria racionalidade. 
Assim, o idioma de uma democracia não poderia ver sua 
gramática reduzida meramente à contabilidade, nem a algum horizonte 
programável possível. A um tal pensamento não se conjugaria uma 
categoria mais justa do que o por vir. Porque se o possível em 
democracia fosse apenas o possível – não possível, seguramente e 
certamente possível – e acessível de antemão, já seria um possível sem 
por vir (sem vida). Por assim dizer, haveria uma democracia posta de 
lado, “segura da vida” – no sentido de seu desinteresse sobre ela, como 
se a contabilização e a calculabilidade no seu regime a tivesse colocado 
sob a lógica de qualquer “seguro de vida” – um programa causal de 
desenvolvimento sem desenrolar algum.21 
Salvaguardar a democracia viria da invenção posta por uma 
escrita singular da razão democrática – instável, que incita e induz ao 
alcance da preferência do irredutível sobre o racional. Democracia 
razoável preferível ao racional – diferença frágil de uma língua precária 
– que, como aponta Derrida, se por um lado teria em conta a 
“contabilidade da justeza jurídica, (...) esforçar-se-ia também (...) em 
direcção à justiça.” O razoável da democracia não seria nada muito 
 
21 DERRIDA, Jacques. Políticas da Amizade. Seguido de O Ouvido de Heidegger. 
Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campos das Letras, 2003, p. 42. 
110 
 
 
diverso que “uma racionalidade que tem em conta o incalculável, para 
dele prestar contas, ali mesmo onde isso parece impossível, para o ter 
em conta ou para contar com ele, quer dizer, com o evento do que [ce 
qui] vem ou de quem [qui] vem.”22 Apenas uma democracia por vir, 
desafeta à banalização dos fetiches da alteridade, pode dar seu sentido 
e a sua racionalidade prática a todo e qualquer conceito de democracia, 
a toda e qualquer democraticidade, porque em sua grafia já seria o 
intervalo do outro lugar sem idade da democracia: democratic idade. 
Por isso o apelo: apelar a um pensamento do evento por vir, da 
democracia por vir, da razão por vir.23 A certeza de que deveríamos ter 
começado por aqui já não cede mais. Todavia, a tempo, haveria como 
deixar de fazê-lo, a todo custo, ao fim, como questão inicial? 
 
2 ENTRE NÓS – PARA ALÉM DO MEDO 
 
Como pensar a democracia como a tarefa do impossível, de se 
calcular o incalculável, contar com o outro, sempre antes tendo-o em 
conta? Como lidar com a imprevisível e radical experiência de uma 
democracia por vir, principalmente quando lidamos com os 
agenciamentos maquínicos de um poder punitivo ao mesmo tempo 
repressivo, estigmatizante e seletivo e, sobretudo, configurador e 
canalizador de desejos violentos, dispositivo hábil a aniquilar qualquer 
futuro que não seja ditado pelo monopólio do medo? Como desatar 
estes nós, para a construção do que há de comum entre-nós? 
 
22 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 276. 
23 DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 36. 
111 
 
 
Tal cumplicidade atravessa a partilha das angústias que tocam a 
inegociabilidade com o poder punitivo. Sendo assim, devem-se abrir 
sulcos no maciço dominante do conjunto do sistema penal. A esta 
economia que utiliza a aniquilação do outro ban(d)ido como 
combustível, opomos traços de momentos de vida e morte que se 
colocam tanto como memória inapreensível de um sofrimento surdo 
quanto inspiração ar-riscada de novos modos de viver a urgência de um 
pensamento sem medos. Este é o ritmo, a toada daquilo que procuramos 
ressoar neste trabalho, sempre premidos pelo aqui e agora das 
catástrofes que se acumulam sob a égide da violência punitiva. Ler nas 
entrelinhas as tragédias naturalizadas e su-portar o peso da 
responsabilidade ético-política é, antes de tudo, auscultar as 
estratégias capitais em seu mais rigoroso sentido. Deve-se buscar 
incessantemente, de forma mais específica, a fabricação de feixes, 
intersecções de tensores e extensores, construídos pela tentativa de 
questionar a opressão provinda e acalentada pelo poder punitivo. 
Portanto, provocar o diálogo pela perturbação da ordem punitiva fixada 
historicamente por uma lógica de segurança e medo. 
Tenhamos como convidada singular neste passo uma cena 
inspiradora de Nina Simone (documentário indicado ao Oscar do de ano 
2016 “What happened, Miss Simone?”). A entrevista com esta figura 
ímpar, no ponto que nos interessa, apresenta sua condição singular de 
mulher. A partir de uma fala despretensiosa, há a demonstração da 
potência disruptiva de uma artista que conquistou um espaço 
predominantemente masculino do jazz norte americano. Assim, crucial, 
diante do inventário de questões que poderíamos retirar para os debates 
criminológicos, antever que estamos às voltas da indizível questão do 
112 
 
 
sofrimento humano. A interrogação feita a Nina é peremptória e 
aparentemente insuperável: “O que é ser livre para você?” (What`s free 
to you?). 
Nascida Eunice Kathleen Waymon em 1933 nos E.U.A., Nina 
teve formação musical para ser pianista clássica. No entanto, com a 
recusa do seu pedido de ingresso no Instituto de Música Curtis na 
Filadélfia, a artista transforma-se em Nina Simone para tocar em bares 
noturnos sem o conhecimento de seus pais. Como negra que transita 
pelos circuitos dominados por homens, a pergunta posta já bem conduz 
ao infinito diálogo sobre a ideia de liberdade. Sua resposta é 
arrebatadora e vai diretamente ao cerne daquilo que nos importa: “Ser 
livre”, diz ela “é só um sentimento. É como explicar a alguém como é 
estar apaixonado. Como você vai explicar para alguém que nunca se 
apaixonou como é amar? Você não pode fazer nem para salvar sua 
própria vida! (…) Liberdade é para mim: não ter medo. Não ter medo, 
mesmo!” Nina, ao dizer do desafio perene de viver sem medo 
encaminha aquilo que há de mais importante na não-resolução do 
problema de liberdade em meras dimensões formais: a subjetividade 
ética que deve lhe lastrear. 
Se quisermos fazer valer a pena, de fato, o problema da 
liberdade como sugerido na fala de Nina, defendê-la para além de 
simples identidades subjetivas, de mônadas dotadas de vontades 
individuais e de meras faculdades de agir postas contratual e 
ardilosamente sob fronteiras claras, bem ao perfil de democracias 
formais – liberdade(s) que terminam onde começa(m) a(s) do outro – 
nada, absolutamente nada se movimenta para fora da falácia. Enfim, 
deixar de ver a liberdade desta forma e transformá-la, como diz Ricardo 
113 
 
 
Timm de Souza24, na “condição vital da sobrevivência supraindividual 
dos múltiplos”, ou seja, consubstanciada em atos éticos que amparem 
em si mesmos a própria razão de ser da liberdade. Daí sim sua 
concretização para além da mera ideia: responsabilidade anterior à 
liberdade. Suscetibilidades que agora nos permitem falar 
numa liberdade ética transmutada sob a forma de responsabilidade pelo 
Outro. 
Escapar da patologia da totalidade carregada pelas lógicas da 
liberdade imunes com relação ao outro pressupõe encarar que todo 
o medo é medo do outro. A convocação posta com firmeza por Ninaé 
imperativa: liberdade é não ter medo. Medo este que é sempre do outro, 
outro sem o qual apenas a indiferença e a lógica do preconceito de todas 
as ordens (racial e de gênero em especial) poderão reinar. Todavia, não 
nos iludamos. E o alerta já foi dado pelo poeta moçambicano: “há quem 
tenha medo que o medo acabe”.25 
Quiçá alguma loucura por justiça passe hoje pela libertação dos 
modos de determinação subjetiva em que nos encerramos, à condição 
de mostrar a viabilidade de se pensar um circuito de afetos que não 
tenha o medo como fundamento26. Talvez hoje, mais do que nunca, no 
mais arriscado desejo, a liberdade de não ter medo ressignifique olhares 
através das vidas que nos tocam. Resistindo em conjunto pelas lutas 
sempre urgentes e encarando radicalmente nossas autoimunidades 
medrosas, especialmente através do seu privilegiado acólito chamado 
 
24 SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento II: Pequeno tratado de ética 
radical. Caxias do Sul: Educs, 2016, p. 145-152. 
25 Intervenção “Murar o Medo” de Mia Couto nas Conferências de Estoril de 2011. 
26 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim 
do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 
114 
 
 
poder punitivo, talvez aí esteja a força motriz das oportunidades de 
viver uma vida radicalmente digna para além da violência, ainda mais 
possível sob novos tons da junção do querer viver para além do medo e 
a responsabilidade que há entre-nós. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
115 
 
 
A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO EM CASOS DE 
ESTUPRO: A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER 
NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA 
 
Laura Gigante Albuquerque1 
Fernanda Corrêa Osório2 
 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 
O presente trabalho parte de uma verdadeira inquietação das 
autoras diante da fundamentação utilizada em decisões e acórdãos 
referentes a processos criminais – especialmente de estupro – para a 
responsabilização de mulheres, na modalidade comissiva por omissão, 
por crimes de estupro. 
A pesquisa volta-se primeiramente para a análise dos crimes 
omissivos impróprios e às suas peculiaridades, a fim de compreender 
como se dá a responsabilização penal do agente a partir da omissão. A 
seguir, passa-se a investigar de que forma a omissão imprópria vem 
sendo utilizada para operar-se a criminalização de mães em casos de 
violências praticadas contra os seus próprios filhos. Além disso, 
 
1 Mestranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio 
Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Graduada em 
Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre/RS. 
Brasil. 
2 Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande 
do Sul (PUCRS). Professora da Escola de Direito da PUCRS. Diretora de Cursos 
Permanentes da Escola Superior da Advocacia da ESA/OABRS. Advogada. Porto 
Alegre/RS. Brasil. 
 
 
116 
 
 
entende-se essencial atentar para as práticas discursivas dos atores do 
sistema de justiça criminal – juízes, desembargadores, promotores, 
advogados –, e de que forma estes discursos3 refletem o pensamento de 
uma sociedade patriarcal4 em que estamos inseridos. 
No presente trabalho, a pesquisa se voltou à análise do discurso 
dos julgadores, em especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do 
Sul (TJRS), sendo analisados acórdãos publicados entre os anos de 
2000 e 2016 que tratassem da responsabilização criminal de mães 
através da figura da omissão imprópria. A fim de analisar as práticas 
discursivas, foi realizada pesquisa qualitativa de análise de discurso, 
buscando verificar de que forma o discurso e a prática do campo 
jurídico-penal reproduzem os estereótipos de gênero presentes em 
nossa sociedade. 
 
1 OS CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS: BREVES 
APONTAMENTOS SOBRE O INSTITUTO 
A responsabilidade penal a partir da omissão pode ser mais 
facilmente compreendida a partir da sua contradição em relação à 
responsabilidade pelos delitos chamados comissivos. Enquanto os 
crimes comissivos se revelam pela realização de uma ação humana, ou 
seja a realização da conduta proibida, os crimes omissivos caracterizar-
se-iam pela “não-realização” de uma ação devida. 
 
3 Na lição de Foucault (1998, p. 10), o discurso não é apenas aquilo que traduz as lutas 
ou sistemas de dominação, mas aquilo por que ou pelo que se luta: o poder do qual 
queremos nos apoderar. 
4 “Numa sociedade de origem patriarcal, de herança escravocrata, o homem, o branco, 
torna-se a norma, o totalizante, e [a] linguagem além de designar coisas e objetos, será 
um modo de interpretação de mundo que atribuirá valores a determinados grupos 
como forma de (manter) poder ou de opressão” (Ribeiro, 2014, p. 459). 
 
 
117 
 
 
Os delitos comissivos, portanto, partem de uma ação positiva, e 
só poderiam ser praticados mediante a realização de um 
comportamento. Os delitos omissivos, por sua vez, somente se 
verificam através da omissão de uma ação determinada, ou seja, de uma 
não-ação, quando o agente era capaz de realizá-la (Prado, 2007, p. 317). 
Na lição de Juarez Cirino dos Santos: 
Desse modo, a ação seria uma realidade empírica 
reconhecível pelos sentidos; a omissão de ação não seria 
uma realidade empírica, mas uma expectativa frustrada 
de ação, somente conhecível por um juízo de valor. Nesse 
sentido, omitir uma ação não significa, simplesmente, 
não fazer nada, mas não fazer algo determinado pelo 
direito. (SANTOS, 2006, p. 198) 
 
Essa distinção entre ação e omissão ocorre porque o Direito 
Penal utiliza duas técnicas para a proteção de bens jurídicos (Santos, 
2006, p. 200). A forma usual de proteção é quando a norma penal proíbe 
ações que podem lesar bens jurídicos. Excepcionalmente, no entanto, a 
norma penal ordena a realização de ações que protegem bens jurídicos. 
A omissão delituosa ocorrerá, portanto, quando da não realização de 
uma ação determinada pela norma penal, ou seja, quando houver 
violação a um comando ou dever de atuar (Prado, 2007, p. 322). Nas 
palavras de Fabio D’Avila, pode-se dizer que “enquanto nos crimes 
comissivos o agente viola uma norma proibitiva, nos crimes omissivos, 
a norma violada é preceptiva” (D’Avila, 2005, p. 202). 
Os crimes omissivos, que partem de um dever de agir, também 
se dividem em duas modalidades: a omissão própria e a omissão 
imprópria. A omissão própria é quando ocorre a violação a uma ordem 
de ação explícita, ou seja, quando o agente deixa de realizar uma 
conduta específica, como no delito de omissão de socorro: “deixar de 
 
 
118 
 
 
prestar assistência (...) à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa 
inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo (...)” 
(artigo 135 do Código Penal). 
Pela omissão imprópria, o agente contribuiria para a realização 
de uma ação proibida, prevista nos tipos penais que seriam comissivos, 
por exemplo, “matar alguém” (artigo 121 do Código Penal). A 
realização do resultado morte poderá ocorrer, portanto, por uma 
omissão, e não por uma ação, sempre que o agente tinha o dever de 
impedir o resultado. Nos crimes omissivos impróprios, a ordem de 
realizar ações protetoras de bens jurídicos encontra-se implícita 
(Santos, 2006, p. 200), e não explícita em tipos legais, como no de 
omissão de socorro. 
Os crimes omissivos impróprios, também denominados crimes 
comissivos por omissão, têm por pressuposto a existência de uma 
posição de garantidor do bem jurídico, atribuída a determinados 
indivíduos (Santos, 2006, p. 200). Denominada por Jescheck como 
“causa jurídica especial” (Jescheck, 1993, p. 564), a posição de 
garantidor é o que gera um dever jurídico especial de agir para impedir 
o resultado proibido. Como descrito por Juarez Tavares: 
Diz-se, na verdade, que os crimes omissivosimpróprios 
são crimes de omissão qualificada porque os sujeitos 
devem possuir uma qualidade específica, que não é 
inerente e nem existe nas pessoas em geral. [...] Fala-se 
que essa relação especial do sujeito (qualificado) para 
com a vítima corresponde a um dever especial de 
proteção, diferentemente do dever geral de solidariedade 
dos delitos omissivos próprios. (TAVARES, 2012, p. 
312-313) 
 
Sendo assim, os crimes omissivos impróprios são caracterizados 
por uma omissão dolosa ou imprudente de evitar um resultado previsto 
 
 
119 
 
 
como crime (morte, lesão corporal, etc), que somente pode ser atribuída 
ao agente que detinha a especial responsabilidade de evitar o resultado, 
ou seja, a pessoa que ocupa a posição de garantidor. 
O fundamento legal para a responsabilização penal por omissão 
é fornecido pelo § 2º do artigo 13 do Código Penal: 
 
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o 
omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O 
dever de agir incumbe a quem: 
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou 
vigilância; 
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir 
o resultado; 
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da 
ocorrência do resultado. 
 
Em relação à primeira hipótese, a pessoa que ocupa a posição 
de garantidor é aquela que, por lei, detém o dever de cuidado, proteção 
ou vigilância de outrem, tais como: a) superiores em relação a 
subordinados(as); b) ascendentes e descendentes entre si 
(principalmente os pais em relação a filhos(as) menores); e c) cônjuges, 
também em relação um ao outro (Tavares, 2012, p. 320-322). 
Assim, por exemplo, se os pais, mesmo sendo capazes, não 
impedem o afogamento do(a) filho(a) menor na piscina doméstica, 
responderão pelo resultado de morte (artigo 121 do Código Penal) em 
virtude da omissão, seja ela por dolo ou por imprudência (Santos, 2006, 
p. 201). 
Em tese, portanto, tanto a mãe quanto o pai encontram-se na 
posição de garantidores em relação aos(às) filhos(as) menores de idade 
para efeitos penais, pois ambos possuem dever de proteção, cuidado e 
vigilância para com a prole. A expressão “em tese” foi utilizada porque, 
 
 
120 
 
 
na prática, como procuraremos demonstrar a seguir, apenas as mães 
vêm sendo criminalizadas por este tipo de omissão de cuidado. 
Para além das diversas críticas dogmáticas que se podem fazer 
ao instituto da omissão imprópria, o enfoque aqui buscado é nas 
questões de gênero imbricadas na aplicação desta forma de 
responsabilização, em especial nas práticas discursivas reproduzidas no 
âmbito da justiça criminal. Quase exclusivamente são as mulheres que 
respondem penalmente nestes casos de delitos comissivos por omissão, 
sendo necessário analisar-se de que maneira as práticas jurídico-penais 
reproduzem discursos e estigmas relacionados aos papéis de gênero na 
sociedade. 
 
2 A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER: UMA ANÁLISE 
DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS JURÍDICO-PENAIS 
 
O local reservado à mulher na sociedade ainda é, 
predominantemente, o ambiente doméstico, familiar, privado. À mulher 
incumbem os papéis relacionados aos cuidados do lar e principalmente 
aos cuidados com os filhos, a sua educação e supervisão. Ainda que se 
tenha avançado muito em termos de igualdade de gênero, em especial 
no século XX, com os diversos movimentos feministas por igualdade, 
ainda hoje a mulher segue carregando o estigma da mãe, esposa, 
responsável pela esfera doméstica5, além de sofrer a imposição de 
padrões de feminilidade e passividade. 
 
5 De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mesmo nos países 
em que a participação das mulheres no mercado de trabalho vem aumentando, elas 
ainda são responsáveis, em média, pelo dobro do trabalho doméstico e de cuidados 
 
 
121 
 
 
No que tange aos crimes omissivos impróprios, verifica-se que 
é a mulher quem assume o papel de principal garantidora em relação 
aos filhos menores, para efeitos do artigo 13, § 2º, alínea “a”, do Código 
Penal. Raramente se ouve falar de um caso em que o pai foi 
responsabilizado, por omissão imprópria, em razão de crime praticado 
contra o seu filho. Em relação às mães, pelo contrário, identifica-se uma 
tendência de culpabilização que vai além do senso comum da sociedade 
e ingressa na esfera jurídica, ou seja, na prática de responsabilização 
criminal. Entre os acórdãos analisados6, serão reproduzidos alguns 
trechos para demonstrar o discurso dos atores do campo jurídico que 
reproduzem os estereótipos de gênero dominantes na sociedade. 
No acórdão da apelação criminal n. 70055449326 (TJRS), 
tratou-se de denúncia pelo crime de atentado violento ao pudor, em que 
D.J.D. teria abusado sexualmente das filhas de F.R.R.M., com quem 
tinha um relacionamento amoroso. A mãe das duas vítimas e 
 
(não remunerado) do que aquele realizado pelos homens. Fonte: OIT. Mulheres no 
Trabalho: tendências de 2016, p. 68. Disponível em: 
<http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---
publ/documents/ publication/wcms_457317.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2017. 
6 Notas metodológicas: Considerando os limites de espaço e tempo do presente 
estudo, a pesquisa qualitativa foi realizada apenas no âmbito do Tribunal de Justiça 
do Rio Grande do Sul. A fim de analisar as práticas discursivas em torno da 
responsabilização de mães por omissão imprópria, foram analisados acórdãos 
publicados entre os anos de 2000 e 2016, contendo a expressão “omissão imprópria” 
ou a expressão “crime comissivo por omissão”, ambas relacionadas à palavra “mãe”. 
Foram encontrados 21 acórdãos na primeira chave de pesquisa (“omissão imprópria” 
e mãe) e 6 acórdãos na segunda (“crime comissivo por omissão” e mãe), sendo 
excluídos aqueles que tratavam de outros tipos de crimes de omissão imprópria, como 
por exemplo aqueles praticados por médicos. Os acórdãos pertinentes foram 
cuidadosamente lidos e tiveram alguns trechos selecionados para serem reproduzidos 
no presente artigo. Sabe-se que toda opção do(a) pesquisador(a) implica, por outro 
lado, em uma exclusão de demais dados que poderiam ser relevantes. A seleção dos 
trechos analisados no presente artigo teve a finalidade de demonstrar alguns discursos 
oficiais, por parte do Poder Judiciário, que reproduzem estigmas e papéis de gênero 
atribuídos às mulheres. 
 
 
122 
 
 
companheira do agressor foi denunciada pelo mesmo crime – atentado 
violento ao pudor – na forma da omissão imprópria, por ter-se omitido 
do dever de garantia em relação às filhas. Ao analisar-se o acórdão, 
destaca-se primeiramente a referência ao laudo psicológico realizado, 
que demonstra a culpabilização da mãe: 
 
“O laudo psicológico realizado em N.M.C [abreviei] 
conclui que: “A mesma relatou sintomas condizentes 
com a vitimização sexual que foi submetida (atentado 
violento ao pudor) [...]. Pode-se sugerir ainda que a 
adolescente foi exposta à situação constrangedora na 
infância, ficando vulnerável ao ter sua intimidade violada 
sexualmente e pela falta de uma mãe cuidadosa que 
acreditasse em seu pedido de ajuda na época que foi 
vítima de Abuso sexual. A mãe dizia que N.M.C 
[abreviei] era mentirosa e permitiu que seu companheiro 
a desmentisse. Pode-se sugerir que a Sra. F.R.R.M. 
[abreviei] foi negligente e passiva em relação à 
dinâmica incestuosa que seu companheiro mantinha 
com suas filhas (fls. 70/71 do inquérito).” (Trecho do 
acórdão da apelação n. 70055449326) 
 
O acórdão da apelação criminal também reproduziu extensos 
trechos da decisão que condenou a mãe acusada em concurso com o 
agressor. Pode-se extrair o seguinte trecho, da sentença de primeiro 
grau, que também demonstra um discurso moralizante por parte o 
magistrado de primeiro grau: 
 
“Neste quadro, é inequívoco que a genitora das vítimas 
manteve-se indiferente ante às atitudes libidinosas do 
acusadoMárcio, e, mesmo tendo a possibilidade de 
atuação, nada fez, não se importando com a situação 
vivenciada por suas filhas, embora o Direito lhe 
impusse agir.” (Trecho do acórdão da apelação n. 
70055449326) 
 
 
 
123 
 
 
Por fim, na própria fundamentação do acórdão, destacam-se os 
seguintes trechos do voto do Desembargador relator, ao sustentar a 
responsabilidade da mãe: 
 
“Ressalte-se que a acusada, em depoimento à fl. 97, relatou 
que achou que casando ia viver, mas só foi viver mesmo 
aos 29 anos, quando foi fazer o curso supletivo e conheceu 
o réu. Disse que saía para ir ao colégio, mas, na verdade, 
ia se encontrar com o réu. O que desmente a versão do 
acusado de que não tinham nenhuma relação antes da 
separação, e corrobora o relato das vítimas de que dois ou 
três dias após a separação de seus pais, o acusado já 
estava dentro da casa das ofendidas. As vítimas 
disseram que a mãe saía muito à noite para dançar, e 
nessas ocasiões ficavam acompanhadas por babás, 
esclarecendo que Delmar a acompanhava nas festas, mas 
afirmaram que, a maior parte do tempo, quando a mãe saía, 
ficavam aos cuidados da irmã mais velha. Chama a 
atenção o comentário de Nathália ‘Minha mãe queria viver 
o tempo que ela não viveu’ (fl. 159v), o que não parece ser 
uma constatação infantil, mas uma frase muitas vezes 
ouvida. Importante referir que a pequena Vitória, irmã 
menor das ofendidas, ao ser avaliada por psicólogas disse 
‘A Nati não teve infância, porque ela teve quer cuidar de 
mim e da Jé.’ (fl. 87), confirmando o relato das vítimas de 
que, muitas vezes, ficavam sozinhas aos cuidados de 
Nathália, então com 10 anos de idade. Não se está aqui 
fazendo julgamento moralista da ré, apenas analisando a 
alegação defensiva no sentido de que Flávia era uma mãe 
zelosa e que jamais deixava as meninas sozinhas, que não 
encontra respaldo na prova dos autos. 
(...) 
Não é aceitável que uma mãe, diante de tantos indícios, 
simplesmente se recusasse a acreditar nos relatos 
uníssonos de suas filhas. A prova dos autos evidencia 
que a ré optou, livremente, em manter uma relação com 
o acusado ainda que à custa do sofrimento de suas filhas 
menores. E mais, não satisfeita em ignorar os relatos e 
súplicas das crianças, ainda as constrangia impondo-
lhes silêncio, dizendo que se contassem para o pai, o réu 
poderia matá-lo. Como conforto, as meninas apenas 
ouviram da mãe a orientação descabida de que tinham que 
esquecer, porque ‘ia passar’, e o relato de que sofrera 
tentativa de abuso na infância.” (Trechos do acórdão da 
apelação n. 70055449326) 
 
 
124 
 
 
 
Embora o próprio julgador afirme que não está realizando um 
“julgamento moralista”, percebe-se que a sua fundamentação jurídica 
não se dissocia do julgamento que faz em relação à conduta da acusada 
F.R.R.M.: parte-se, inevitavelmente, de uma avaliação do que se 
esperava dela no seu papel de mulher e de mãe. Por isso, a análise não 
recai apenas na quebra de um dever jurídico de garantia (o qual incumbe 
sempre a ambos os genitores). É necessário, para demonstrar a falha 
dessa mãe, ressaltar que ela “saía muito à noite para dançar”, que passou 
a ter um novo companheiro poucos dias após a separação, que “optou” 
por manter um relacionamento com o acusado “ainda que à custa do 
sofrimento de suas filhas menores”. Em última análise, as conclusões – 
muitas vezes disfarçadas de fundamentação jurídica – relacionam-se 
diretamente às constatações da psicóloga, ao afirmar, no laudo acima 
referido, que faltou às vítimas “uma mãe cuidadosa”. 
Na apelação criminal n. 70063826663 (TJRS), embora o 
desfecho tenha sido favorável à mãe acusada, observou-se que o voto 
divergente de um dos Desembargadores trouxe à tona algumas 
concepções morais e notadamente patriarcais, por mais que se saiba 
estarem incrustradas no imaginário social: 
 
“Com efeito, como mãe da ofendida, sua garante, era de 
se esperar que ela se pusesse de anteparo à barbárie, ao 
irracional, fosse o ombro consolador, o norte moral da 
situação. 
A culpa da ré, data vênia, afigura-se ainda maior do 
que a do padrasto, pois não foi ela movida pelo 
instinto irracional, incontido, de satisfação sexual, 
mas, diversamente, trouxe aos fatos elemento cerebral, 
pensado, racional de maldade, silenciando consciente e 
coniventemente com a sanha sexual irrefreada do réu 
(...).” (Trecho do acórdão da apelação n. 70063826663) 
 
 
125 
 
 
Para além do julgamento moral da mãe, que deveria ser “o 
ombro consolador, o norte moral da situação”, constata-se a referência 
ao “instinto irracional, incontido, de satisfação sexual” ao tratar do 
crime de estupro praticado pelo então padrasto da vítima. Trata-se de 
um discurso muito comum no âmbito do crime de estupro, o de 
relacioná-lo a um “instinto” de satisfação sexual, como uma forma de 
quase exculpar-se a conduta do agressor. De fato, como já bem 
observado por Vera Andrade (2005, p. 94), o senso comum policial e 
judicial não difere do senso comum social. Contudo, as pesquisas em 
torno dos crimes de estupro já há muito demonstraram que “não se trata 
de uma conduta voltada, prioritariamente, para a satisfação do prazer 
sexual (lascívia desenfreada)”, mas, sim, a um contexto de violência 
física, de controle e domínio (Andrade, 2005, p. 95-96). 
Na apelação n. 70050251891, houve a condenação da mãe D.M. 
por omissão imprópria em caso similar aos demais, por se tratar de 
crime de estupro praticado pelo seu então companheiro contra a sua 
filha. Ao tratar da responsabilidade penal da mãe, fundamentando a 
existência do dever de garantia que configurou o delito de estupro por 
omissão imprópria, o acórdão concluiu, em relação à conduta da mãe, 
que “mais lhe valia a companhia do criminoso do que a dignidade da 
filha”. Independente de eventual quebra do dever legal da mãe em 
relação à filha menor, verifica-se um evidente juízo moral, que 
extrapola os limites do julgamento dos fatos atinentes ao processo. 
Já no âmbito da apelação criminal n. 70011583234 (TJRS), 
houve a reforma da sentença pelo órgão colegiado e, portanto, a 
absolvição da mãe da vítima. De acordo com a denúncia, a mãe 
D.T.C.S. teria praticado o crime de atentado violento ao pudor por 
 
 
126 
 
 
omissão imprópria, em virtude dos crimes de estupro e atentado 
violento ao pudor praticados pelo seu então marido contra a sua filha 
menor de idade. Embora o Tribunal tenha absolvido a mãe, chama 
atenção no acórdão o seguinte trecho reproduzido da sentença que havia 
condenado D.T.C.S.: 
 
“A omissão da mãe não é incomum nestes casos, 
mormente quando o marido exerce forte comando 
familiar, como geralmente acontece em cidades 
interioranas. Prova disso é que ela chegou a relatar para 
uma professora que estava sendo ameaçada de morte por 
A. 
Não é crível que D. não soubesse do que estava 
ocorrendo, pois se T. chegou a comentar os fatos com os 
colegas de escola, por certo, comentava com a mãe 
também. Esta, evidentemente, era pressionada pelo 
marido ou, no mínimo, fazia de conta que nada estava 
acontecendo, pois me custa acreditar que achasse tudo 
aquilo normal, no seu papel de mãe. 
(...) 
Pois, no caso dos autos, é certo que D. tinha um especial 
dever de cuidado, proteção e vigilância em relação à T., 
posto que é sua mãe. Ainda que o agressor direto fosse o 
seu próprio marido, tinha o dever jurídico e moral de 
dar um basta àquela situação, denunciando o fato às 
autoridades competentes, o que não se fez. (...) 
As ameaças que ela diz ter sofrido de A., ao meu sentir, 
não chegam a configurar uma coação moral irresistível, 
até porque tais fatos não foram bem explorados no 
decorrer da instrução. Tem-se, é claro, aquela impressão 
do que geralmente acontece, porém insuficiente para o 
reconhecimento da exclusão da culpabilidade. 
Tenho consciência da fragilidade que certas mulheres 
ainda apresentam em relação aos maridos, porém, na 
qualidade de mãe, o esperado era que D.rompesse 
quaisquer amarras, registrasse o fato na Delegacia de 
Polícia e exigisse providências. Isso se chama 
negligência.” (Trechos do acórdão da apelação n. 
70011583234, com os nomes substituídos pela inicial). 
 
A referência expressa ao “papel de mãe” pelo magistrado de 
primeiro grau no caso acima analisado ilustra, de forma bastante 
 
 
127 
 
 
explícita, a influência dos já denominamos papéis sociais de gênero no 
pensamento e no discurso dos atores do campo jurídico. O lugar da 
mulher na sociedade (ainda) é o de zelar pelos outros, o de mãe 
“cuidadosa”, esposa dedicada. Ao ousar quebrar esses estereótipos, a 
mulher é duplamente condenada: pela sociedade e pelo Poder 
Judiciário. Os discursos jurídicos reproduzem, portanto, a opressão e 
estigmatização que as mulheres já sofrem em seu cotidiano na 
sociedade, independentemente de serem criminalizadas. Contudo, na 
esfera penal, “as opressões ficam ainda mais cruéis, pois a vida daquela 
mulher acaba por depender do olhar do julgador, que é um grande 
reprodutor de discursos patriarcais” (Castro, 2016, p. 175). 
Por outro lado, nas palavras de Rochelli Fachineto (2012, p. 
358), a mulher ré paira num “não lugar”, na invisibilidade social, uma 
vez que a incidência de crimes cometidos por mulheres é demasiado 
pequena em relação aos crimes cometidos por homens, de forma que a 
mulher na condição de ré e de encarcerada é colocada neste “não-
lugar”. De fato, uma das grandes críticas que se pode fazer ao sistema 
de justiça criminal é a ausência de atenção à mulher e às suas 
peculiaridades7. Considerando que o sistema prisional é um espaço 
essencialmente masculino, muitas vezes “as demandas básicas 
femininas são diminuídas a meros caprichos” (Souza; Santos; Mendes, 
2015, p. 9). 
Dessa forma, a utilização, dos papéis de gênero pelos atores 
jurídicos, em especial dos estigmas ligados à categoria “mulher”, não 
 
7 Como há muito já acentuado por Elena Larrauri (1994, p. 21-29) o direito penal trata 
as mulheres como os homens tratam as mulheres, pois ao próprio direito também são 
relacionadas as características do “masculino” (racional, ativo, objetivo). 
 
 
128 
 
 
se faz dissociada do meio social (Fachinetto, 2012, p. 397). Os papéis 
de gênero não são criados no campo jurídico, mas são por ele 
atualizados, ressignificados, a partir da estrutura social preexistente. 
Tampouco se pode considerar o discurso vinculado à estigmatização de 
gênero como uma prática consciente por parte do julgador, uma vez os 
preconceitos e mitos relacionados às mulheres fazem parte do habitus8 
incorporado pelos atores jurídicos. 
Por fim, é importante perceber que o discurso não apenas reflete 
e representa a sociedade. Esta, a sociedade, também é modificada e 
construída pelos discursos (Figueiredo, 2014, p. 142). Em especial, 
quando se fala em discursos produzidos no campo jurídico, percebe-se 
a enorme força com que estes discursos podem influenciar a sociedade. 
De fato, o discurso produzido pelos atores do campo jurídico contribui 
“para a desigualdade de gênero no acesso à justiça, consolidando 
relações desiguais de poder, calcada em construções de gênero, criando 
e recriando estereótipos sobre comportamentos e maneiras de se portar 
de homens ou mulheres” (Fachinetto, 2011, p. 110). 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
O presente trabalho teve como tema central a figura dos crimes 
omissivos impróprios e a responsabilização penal das mães nos casos 
de crimes cometidos contra seus filhos menores. Dessa forma, em uma 
primeira abordagem sobre o tema e considerando os limites do presente 
 
8 Habitus é conceituado por Bourdieu como “produto da incorporação de uma 
estrutura social sob a forma de uma disposição quase natural, frequentemente dotada 
de todas as aparências do que é inato, o habitus é a vis insita, a energia potencial, a 
força dormente, de onde a violência simbólica, em particular aquela exercida pelos 
performáticos, extrai sua misteriosa eficácia.” (Bourdieu, 2001, p. 205). 
 
 
129 
 
 
estudo, buscou-se demonstrar algumas práticas discursivas do Tribunal 
de Justiça do Rio Grande do Sul que evidenciam como o campo jurídico 
segue reproduzindo estereótipos de gênero a partir dos papéis e 
estigmas provenientes da sociedade em geral. 
Em pesquisas futuras, pretende-se analisar também o discurso 
dos demais atores do campo jurídico (promotores de justiça e 
defensores públicos ou privados), através da realização de estudos de 
caso. Dessa forma, ao analisarem-se os casos com maior profundidade, 
será possível evidenciar também como a opressão de gênero se 
relaciona com outros tipos de opressão. Tendo em vista a seletividade 
do sistema penal, considera-se essencial que a análise das questões de 
gênero venha acompanhada de um estudo interseccional que revele as 
demais problemáticas que perpassam o fenômeno, como as opressões 
de raça e classe. 
Ao analisarem-se as práticas discursivas do Tribunal de Justiça 
gaúcho, já foi possível perceber como os estereótipos, mitos e papéis de 
gênero ainda estão implícitos e explícitos nas decisões, e reafirmam o 
local da mulher na sociedade: o papel dócil, frágil, de cuidadora. Ainda, 
como salientado em um dos acórdãos analisados, muitas vezes o 
discurso em relação à mãe pode ser ainda mais recriminador e repressor 
do que o julgamento em relação às atitudes do próprio agressor, ainda 
que se trate de crimes terríveis como o estupro. 
Por outro lado, não causa surpresa que a quase totalidade dos 
casos de responsabilização de genitores através da figura da omissão 
imprópria recaia sobre a mãe, e não sobre o pai. Um dos dogmas ainda 
muito difíceis de superar é o da distinção entre os papéis paterno e 
 
 
130 
 
 
materno9, pois a despeito dos avanços já conquistados em termos de 
igualdade de gênero e de poder familiar, a mãe permanece como a 
principal fonte de amor e de cuidado para o bebê: “amamentar, dar 
banho e comida, vigiar os primeiros passos, consolar, cuidar, 
tranqüilizar à noite... são gestos de amor e de devotamento” que recaem 
majoritariamente sobre a mãe (Badinter, 1985, p. 338). 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema 
de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. 
Revista Sequência, n. 50, p. 71-102, jul. 2005. Disponível em: 
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185>. 
Acesso em: 05 de junho de 2018. 
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor 
materno. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 
1985. 
BISPO, Andrea Ferreira. Manifesto clitoriano: gozo, logo não sou 
idiota. In: GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (Org.). Estudos 
feministas por um direito menos machista. Florianópolis: Empório 
do Direito, 2016, p. 21-38. 
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalinas. Tradução de Sergio 
Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 
 
 
9 Nas palavras de Andrea Bispo, “(...) o arquétipo junguiano da Grande Mãe continua 
operando invicto no inconsciente coletivo e dando conteúdo às normas todas as vezes 
que as relações familiares são analisadas. Assim, se de um lado, a guarda, via de regra, 
é concedida à mulher, por outro, a mãe que abandona os filhos é extremamente 
reprovada, e uma vez que violou os estereótipos da maternidade, passa a ser 
considerada incapaz de educar a prole e indigna de conviver com ela. (...) o 
comportamento masculino semelhante, ao invés de gerar o mesmo ódio, ou no mínimo 
o mesmo furor argumentativo, é absorvido com absoluta naturalidade.” (BISPO, 
2016, p. 31). 
 
 
131 
 
 
CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O dito pelo não dito: uma 
análise da criminalização secundária das traficantes na cidade do 
Recife. 192f. Dissertação (Mestrado em CiênciasCriminais). Pontifícia 
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133 
 
 
GUERRA ÀS DROGAS: DA INEFICÁCIA DO 
PROIBICIONISMO À CRIMINALIZAÇÃO DA 
POBREZA 
 
Franchesca Inácio Zandavalli1 
 
INTRODUÇÃO 
O intuito da presente escrita nada mais é do que uma tentativa 
de ampliar o debate sobre a atual política de drogas do Brasil. Uma 
política de drogas que tem como um de seus resultados mais 
expressivos o aprofundamento da desigualdade ao afetar diretamente 
classes que já sofrem por sua posição desprivilegiada na sociedade: os 
negros e pobres. 
Apesar de toda população sofrer os efeitos dessa guerra 
descabida, não há comparação entre o impacto causado nas periferias 
e o impacto causado nas classes abonadas. Faz-se necessário destacar 
que essa não é uma guerra voltada contra a droga considerada ilícita, 
mas sim uma guerra contra cor, classe e endereço. 
Conforme dados divulgados em 2016 pelo do Sistema Integrado 
de Informação Penitenciária (InfoPen), em dezembro de 2014 a 
população carcerária brasileira atingiu o número de 622.202 presos, 
sendo que 55% tem entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% 
tem apenas o ensino fundamental completo. Dentre estes 
 
1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER). 
 
 
134 
 
 
encarcerados, 28% são devido ao tráfico de drogas e 40% ainda não 
foram condenados. 2 
Estes dados contrastam com a composição étnica brasileira, 
onde 50,7% da população é negra, ou seja, há uma visível disparidade. 
Mesmo não havendo distinção de classe entre os usuários de 
drogas ilícitas, a distinção existe nos métodos utilizados para combatê-
las. Para Vera Malagutti Batista: 
A visão seletiva do sistema penal para adolescentes 
infratores e a diferenciação no tratamento dado aos 
jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado da aceitação 
social que existe quanto ao consumo de drogas, permite-
nos afirmar que o problema do sistema não é a droga em 
si, mas o controle específico daquela parcela da 
juventude considerada perigosa. 3 
 
Esta diferenciação aumenta em demasia o número de 
encarceramentos da juventude pobre. Percebe-se, pois, a inevitabilidade 
de considerar uma mudança na legislação vigente, visto que, segundo 
Salo de Carvalho: 
Apesar do reconhecimento mundial do fracasso desse 
modelo, importantes setores dos Poderes Legislativo, 
Executivo e Judiciário reiteram a adesão ao punitivismo, 
cujos efeitos, nas últimas décadas, foram aumentar 
vertiginosamente os índices de encarceramento e criar 
barreiras à implementação de alternativas eficazes ao 
tratamento das pessoas que fazem uso problemático das 
drogas.4 
 
2 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária 
brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em: 
<http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-
de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. 
3Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de 
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.134. 
4 Carvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e 
dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 31 
 
 
135 
 
 
Enquanto assistimos muitos países considerados por alguns 
como desenvolvidos, até mesmo o que capitaneou a Guerra às Drogas5 
darem grandes avanços nesse tema, no Brasil seguimos tentando 
aumentar a repressão e o proibicionismo que se mostra ineficaz há mais 
de 40 anos. 
 
1 GUERRA ÀS DROGAS: A DISSEMINAÇÃO DO 
TERROR 
Em 1971, com a premissa de que as drogas ilícitas eram o 
“inimigo número um do país” o então presidente norte-americano, 
Richard Nixon, declarou pela primeira vez a famosa war on drugs. 
Rapidamente essa ideologia se alastrou pelo mundo e, notoriamente, 
pelo Brasil. 
A cultura de medo e terror, vendidos pela mídia e pelos 
políticos da época, fizeram a sociedade demonizar os traficantes e os 
usuários. A desumanização dos comerciantes de drogas somada com 
sensação de insegurança criou um cidadão que aceita essa guerra sem 
hesitar. Constituiu-se então uma ideologia de guerra, porém, uma 
guerra voltada às pessoas pobres e em sua maioria não-brancos, como 
bem pondera Maria Lucia Karam: 
A nociva, insana e sanguinária “guerra às drogas” não é 
efetivamente uma guerra contra as drogas. Como 
qualquer outra guerra, não se dirige contra coisas. É sim 
uma guerra contra pessoas - os produtores, comerciantes 
e consumidores das arbitrariamente selecionadas 
substâncias tornadas ilícitas. Mas, é ainda mais 
 
5 A primeira declaração de “Guerra às Drogas” foi feita em 1971 pelo então presidente 
norte-americano Richard Nixon. 
 
 
136 
 
 
propriamente uma guerra contra os mais vulneráveis 
dentre esses produtores, comerciantes e consumidores. 
Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, os 
marginalizados, os desprovidos de poder.6 
 
Não há uma justificativa plausível e corroborada por estudos 
científicos para determinação de quais drogas são consideradas lícitas 
ou não. As consideradas lícitas são tão nocivas quanto asilícitas, “todas 
são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar 
dependência e causar doenças físicas e mentais. Todas são 
potencialmente perigosas e viciantes. Todas são drogas”7. A falta de 
argumentos embasados em dados aponta que o motivo que determina 
se uma substancia é ilícita ou não é puramente político. 
Desde a declaração desta guerra vivemos um ciclo de violência 
sem fim. O número de mortes violentas aumenta a cada ano no Brasil. 
Vemos nossas comunidades pobres sangrando todos os dias, reféns da 
violência comandada pelas redes criminosas e pela polícia. Todos os 
dias pessoas perdem suas vidas por causa desta guerra. Seja porque 
foram vítimas de balas perdidas, porque foram confundidas com 
traficantes, porque de fato eram traficantes, porque eram policiais em 
serviço, e por inúmeros outros motivos relacionados à esta insana 
repressão. A guerra às drogas no Brasil já matou e continua matando 
muito mais do que qualquer droga seria capaz. 
 
6 KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement Against 
Prohibition, maio de 2012. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. 
Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 
7 KARAM, Maria Lúcia. Drogas: legalizar para respeitar os direitos humanos. Law 
Enforcement Against Prohibition, agosto de 2015. Disponível em: 
<http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 
 
 
137 
 
 
É inegável a influência midiática na disseminação dessa 
mistura de medo e ódio que mantém a guerra às drogas tão poderosa há 
tantos anos. O discurso de ódio das pessoas manipuladas por um senso 
comum faz com que esse debate tão importante permaneça inerte há 
muito tempo. Afinal, quem estamos tentando proteger? 
2 POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL 
Em 2006, no Brasil, passou a vigorar a nova Lei de Drogas 
(11.343/2006), lei essa que mesmo extinguindo a pena de prisão para 
usuários, é uma das maiores culpadas pelo encarceramento em massa, 
principalmente dos mais desprovidos de recursos. 
A atual lei antidrogas não especifica a quantidade de droga que 
diferencia o usuário do traficante, desse modo, muitos usuários acabam 
sendo condenados por tráfico de drogas. Como sempre, os pobres, não-
brancos e moradores da favela são os que mais sofrem as consequências 
desta legislação. Na prática a regra é simples: os brancos residentes de 
bairros de luxo são considerados usuários e os pobres residentes das 
favelas são considerados traficantes. São poucos os que têm o privilégio 
de serem tratados como usuários. Para a elite brasileira “as massas 
urbanas de trabalhadores, em sua maioria negros, vivendo nos morros, 
quilombados, constituem contingentes perigosos”8. 
Mesmo que a quantidade de drogas que caracterize um 
indivíduo como usuário ou traficante seja vago, a legislação prevê 
outros critérios com esse intuito, por exemplo, onde e como ocorreu a 
 
8 Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de 
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 36 
 
 
138 
 
 
ação policial, as condições sociais e pessoais e também a conduta e os 
antecedentes da pessoa, como prevê o §2° do artigo 28 da Lei 
11.343/2016. 
A ausência de critérios que especifiquem a quantidade de droga 
encontrada com a pessoa para que seja considerado o crime de tráfico é 
absurda, visto que o encarceramento em massa de usuários enquadrados 
como traficantes é uma das razões da superlotação do nosso sistema 
prisional. 
A realidade brasileira é que algumas gramas de maconha são o 
suficiente para fazer com que uma pessoa seja presa por anos. Décadas 
dessa guerra deixaram marcas profundas que não desaparecerão com 
facilidade. 
O Brasil tem hoje, em números absolutos, a quarta maior 
população carcerária do mundo, dentre eles, 40% são provisórios. O 
aumento constante do número de encarceramentos em nada diminuiu a 
violência nas ruas.9 
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Barroso 
reconhece que a atual legislação sobre o assunto causa um 
estrangulamento no sistema prisional brasileiro, apesar de não achar 
que uma simples descriminalização do consumo de drogas fosse 
resolver o problema: 
A crise no sistema penitenciário coloca agudamente na 
agenda brasileira a discussão da questão das drogas. Ela deve 
ser pensada de uma maneira mais profunda e abrangente do 
 
9 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. População carcerária 
brasileira chega a mais de 622 mil detentos, Brasília, DF, 2016. Disponível em: 
<http://www.justica.gov.br/noticias/populacao-carceraria-brasileira-chega-a-mais-
de-622-mil-detentos>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. 
 
 
139 
 
 
que a simples descriminalização do consumo pessoal, porque 
isso não resolve o problema. Um dos grandes problemas que 
as drogas têm gerado no Brasil é a prisão de milhares de 
jovens, com frequência primários e de bons antecedentes, 
que são jogados no sistema penitenciário. Pessoas que não 
são perigosas quando entram, mas que se tornaram perigosas 
quando saem. Portanto, nós temos uma política de drogas 
que é contraproducente, ela faz mal ao país.10 
 
O Brasil sempre foi um país muito conservador e atrasado se 
comparado com “países de primeiro mundo”. O que acaba gerando mais 
problemas que poderiam ser evitados. São diversos os fundamentos 
para que as drogas sejam legalizadas no país, inclusive argumentos 
defendidos por estudiosos, porém ainda há quem, com discursos 
conservadores, reprima o assunto por interesses financeiros. Conforme 
analisa Jean Willys : 
(...) a criminalização não produz qualquer benefício à 
sociedade nem sequer naquilo que implicitamente 
promete. Alguns ingenuamente ainda acreditam que a 
simples proibição impede que alguém faça uso de alguma 
substância, mas está provado que isso não acontece. O 
consumo de drogas não se reduziu pela criminalização, 
mas aconteceu o contrário. E o que temos, então, é crime 
organizado, violência, corrupção policial, insegurança, 
milhares de mortes, criminalização de jovens das favelas 
e das periferias, presídios lotados onde esses jovens têm 
seu futuro aniquilado e drogas de má qualidade vendidas 
de maneira informal, sem controle, a pessoas de qualquer 
idade, em qualquer sítio e sem pagar impostos.11 
A repressão não muda o fato de que o jovem da comunidade 
desamparado e esquecido pelo Estado verá na venda de drogas uma 
solução para mudar de vida, tampouco fará o jovem de classe média 
 
10G1, Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. Disponível em: 
<http://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-
trafico-de-drogas.ghtml>. Acesso em 13 de fevereiro de 2017. 
11 Carta Capital, Legalizar as drogas. Disponível em: 
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/legalizar-as-drogas-2566.html>. Acesso 
em 13 de fevereiro de 2017. 
https://l.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fwww.cartacapital.com.br%2Fsociedade%2Flegalizar-as-drogas-2566.html&h=ATN4F2rSUOeDSZvby2os_2M8Mv3FNrWudm2q54zlThkqr0FF8bArNXNfsczK6_iQ59ve0Ig2hx-m5dwmYHJA_ulAFnMPhwNpIOtvHEQ9RyQay72XLzCgvxt9n3z9HXbC3spXMi78
 
 
140 
 
 
parar de consumir. Com a legislação atual a tendência é que a população 
carcerária continue crescendo em ritmo acelerado, o que pode acabar 
por implodir o sistema prisional nacional, mas sem a contrapartida de 
diminuição da criminalidade, que pode até aumentar. 
Alicerçada em estereótipos e estigmas, a política de drogas no 
Brasil é um assunto que para grande parte da população deve ser tratado 
com a maior repressão possível, não havendo necessidade de debater 
sobre o assunto. 
 
3 UM MUNDO LIVRE DAS DROGAS 
Essa idealização de que algum dia teremos um mundo livre das 
drogas, que deu origem a essa destruidora políticaproibicionista, não 
passa de uma utopia, tendo em vista que “drogas têm sido usadas desde 
a origem da história da humanidade”12. Hoje muitas substancias que 
alteram a psique humana (característica comum entre todas as drogas) 
são aceitas socialmente e usadas diariamente, como, por exemplo, 
cafeína e álcool. 
Como um Estado que não consegue controlar o tráfico dentro 
das prisões pode achar que existe uma forma de erradicá-lo fora dela? 
Os presídios brasileiros atualmente são controlados não pelo Estado, 
mas pelas facções e organizações criminosas que comandam e 
comercializam drogas mesmo que apenados. A corrupção dentro do 
próprio sistema carcerário faz com que os presos tenham acesso às 
 
12 KARAM, Maria Lúcia. Drogas, é preciso legalizar. Law Enforcement Against 
Prohibition, maio de 2012. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. 
Acesso em: 05 de fevereiro de 2017. 
 
 
141 
 
 
drogas dentro da prisão. É como se tirássemos o cidadão da rua para 
agradar a quem convém, mas não nos importássemos com ele tendo a 
mesma atitude lá dentro. 
Décadas de fracasso deveriam ser o suficiente para percebermos 
que esse modelo repressivo, definitivamente, não deu e nem dará certo. 
O fato é que a droga ilícita não deixará de existir. Para cada droga 
proibida surge outra mais barata e mais nociva, vide exemplo do crack, 
droga derivada da cocaína, com um custo muito mais barato e efeitos 
muito mais nocivos. 
No começo deste ano de 2017, presídios superlotados e 
comandados por facções, tiveram rebeliões que somadas resultaram na 
morte de mais de cem pessoas. Mortes cruéis que incluíram 
decapitações, esquartejamentos e carbonizações, cultura de violência 
esta que possivelmente foi adquirida dentro do próprio cárcere e que se 
estende às ruas. Se seres humanos são seres sociais, é natural que eles 
ajam de acordo com a sociedade na qual estão inseridos. Se inseridos 
em um ambiente onde a própria vida humana é desvalorizada, incluindo 
a sua, é natural que passem a desvalorizar a dos outros. 
Essa guerra por poder não afeta apenas os envolvidos com o 
tráfico de drogas, mas sim, toda sociedade, visto que, com o aumento 
de violência nas ruas, os não usuários também estão em perigo 
constante. 
Conforme lembra Luís Carlos Valois: “O legislador sequer 
imagina que a violência atribuída ao comércio das drogas tornadas 
 
 
142 
 
 
ilícitas só existe porque estas foram tornadas ilícitas, mas que na relação 
comercial em si não há qualquer violência. ”13. 
A máquina de violência da repressão está por todos os lados, e 
parte inclusive da polícia que deveria controlá-la. Vera Malaguti 
Batista, em seu livro Difíceis Ganhos Fáceis menciona que: 
O processo de demonização do tráfico de drogas 
fortaleceu os sistemas de controle social, aprofundando 
seu caráter genocida. O número de mortos na “guerra do 
tráfico” está em todas as bancas. A violência policial é 
imediatamente legitimada se a vítima é um suposto 
traficante. O mercado de drogas ilícitas propiciou uma 
concentração de investimentos no sistema penal, uma 
concentração dos lucros decorrentes do tráfico e, 
principalmente, argumentos para uma política 
permanente de genocídio e violação dos direitos 
humanos, contra as classes sociais vulneráveis (...)14 
 
Os exorbitantes lucros obtidos com o comércio ilegal de drogas 
são um dos fatores que tiram também alguma justificativa econômica 
para o proibicionismo desta atividade. Com a ilegalidade do comércio 
de certos entorpecentes o estado provê às facções criminosas um 
monopólio com altas margens de lucro, mas sustentado por meio do uso 
de violência. Para garantir pontos de tráfico que oferecem altos 
potenciais de lucro, as redes criminosas utilizam de violência e 
investem em armamentos pesados para afastar potenciais concorrentes. 
 
13VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. IBCCRIM. Setembro, 
2016. 
14 Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de 
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 36 
 
 
 
143 
 
 
Na teoria econômica sobre oligopólios, onde existem poucos 
ofertantes de um bem em certo mercado, a guerra se dá sobre o preço 
de produtos. No caso, analisando sobre o tráfico de drogas, a guerra 
perde seu sentido figurado e toma as ruas das comunidades pobres do 
Brasil. 
Se ao contrário de ser visto como um problema de segurança 
pública, o uso de drogas, hoje ilícitas, fosse tratado como problema de 
saúde pública (como é encarado hoje, por exemplo, o uso de álcool e 
tabaco) o Estado encontraria uma alta possibilidade de arrecadação 
nesta atividade que já existe de qualquer forma, mas onde todo dinheiro 
circula somente no mercado paralelo e ilícito. Uma mudança da forma 
como é encarado o problema de drogas no país resulta em uma boa 
justificativa econômica para o tema. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A guerra às drogas é um dos principais causadores de 
criminalização da pobreza no país. O que, de fato, aumenta a violência 
policial, principalmente nas periferias. Atualmente o Brasil tem a 
polícia que mais mata e mais morre no mundo. Temos uma polícia que 
além de ser mal paga é extremamente despreparada. Os policiais são 
preparados para “eliminar” os marginalizados e não para proteger a 
sociedade. “Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve 
“combater” o “inimigo”, deve eliminá-lo. Como se espantar quando os 
policiais brasileiros torturam e matam? ”15 
 
15 KARAM, Maria Lucia. Direitos Humanos, laço social e drogas: por uma política 
solidária com o sofrimento humano. Law Enforcement Against Prohibition, 
 
 
144 
 
 
A forma com que esses crimes são retratados pela grande mídia 
faz com que a sociedade aceite essas mortes partindo da premissa que 
“bandido bom é bandido morto” não importando a circunstâncias que 
ocasionaram esses homicídios. A população tem admitido essas mortes 
como se fosse algo inevitável para o combate do crime. 
A cor da pele e o endereço voltam a ser os principais quesitos 
na hora de decidir quem deve viver ou não. A cada notícia de que um 
jovem, negro e morador de favela foi morto surgem as especulações 
sobre os antecedentes da vítima, o que mostra como temos uma 
sociedade que justifica a morte daqueles considerado indesejados por 
ela. Não há problemas se um traficante é assassinado, pois ele é 
merecedor de violência e apenas mais uma estatística. 
O Brasil tem mais números de homicídios por ano do que países 
que estão em guerra. No Brasil, em um período de 4 anos, morreram 
279 mil pessoas, enquanto que no mesmo período na Síria, país em 
guerra, morreram 256 mil16. A maioria dessas mortes tem uma relação 
direta ou indireta com a violência que a guerra às drogas proporciona. 
A abordagem policial seletiva é uma prova de como funciona a 
estigmatização das pessoas pobres, pois a ideia de que elas devem ser 
consideradas suspeitas, apenas por serem pobres e, em sua maioria 
negras, já deixa claro como a política antidrogas é seletiva e 
indefensável. Em pesquisa feita sobre drogas e a juventude pobre do 
 
novembro de 2011. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso 
em: 15 de fevereiro de 2017. 
16 G1, Número de homicídios no Brasil é maior do que o de países em guerra. 
Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/10/numero-de-
homicidios-no-brasil-e-maior-do-que-o-de-paises-em-guerra.html>. Acesso em: 13 
de fevereiro de 2017. 
 
 
145 
 
 
Rio de Janeiro, Vera Malaguti Batista menciona que as palavras 
“atitude suspeita” são sempre utilizadas pelos policiais para justificar 
as abordagens daqueles que são marginalizados pela sociedade: 
“Analisando a fala dos policiais, o que se vê é que a 
‘atitudesuspeita’ não se relaciona a nenhum ato suspeito, 
não é atributo de ‘fazer algo suspeito’ mas sim de ser, 
pertencer a um determinado grupo social; é isso que 
desperta suspeitas automáticas. Jovens pobres, pardos ou 
negros estão em atitude suspeita andando na rua, 
passando num táxi, sentados na grama do Aterro...”17 
Como pode-se perceber “a guerra às drogas legitima a violência 
e as violações aos direitos humanos cometidas pelo próprio Estado 
contra os pobres, normalizando as mortes dos traficantes, ou dos 
supostos traficantes”18. 
A criminalização da pobreza tira os direitos fundamentais destas 
pessoas que têm suas casas invadidas pela polícia, passam por revistas 
sem autorização e são humilhadas diariamente, apenas por existirem e 
morarem em lugares considerados perigosos. Muito diferente dos 
moradores de condomínios de luxo, que mesmo tendo uma parcela de 
consumidores assíduos de entorpecentes não são sujeitados a nenhum 
tipo de constrangimento. 
O que é necessário que se entenda é que ser a favor de uma 
flexibilização da política de drogas, ou até mesmo ser a favor de uma 
eventual legalização delas, não é o mesmo que ser a favor das drogas. 
Ser a favor de políticas mais liberais em relação aos entorpecentes 
 
17 Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - drogas e a juventude do Rio de 
Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 103 
18 GENRO, Luciana. Guerra às drogas. 2014. Disponível em: < 
https://lucianagenro.com.br/2014/03/guerra-as-drogas/>. Acesso em: 19 de fevereiro 
de 2017. 
 
 
146 
 
 
considerados hoje como ilegais é um dos caminhos para que haja uma 
redução da violência e um alívio no sistema carcerário. Ser a favor do 
fim desta repressão contra comerciantes e usuários é compreender que 
o consumo da droga deve ser tratado como problema de saúde pública, 
não de polícia. Conforme salienta Salo: 
Não se trata de desconsiderar ou de minimizar os riscos 
e os danos individuais e sociais que podem decorrer do 
uso de drogas. Trata-se, ao contrário, de considerá-los em 
sua complexidade, fato que nos impede de crer na 
eficácia da solução pré-fabricada do direito penal.19 
 
Afinal, quem esta guerra intenta proteger se estamos vendo 
nossa juventude morrer nas mãos de quem deveria protegê-la? Quem 
estamos tentando curar se estamos aprisionando pessoas em lugares que 
transformam suas vidas em verdadeiros infernos? Que violência 
visamos acabar se temos uma escola do crime disfarçada de prisão? 
Enquanto este assunto não for debatido até que a legalização e 
o controle sobre essas drogas passem a ser efetivos, o que nos resta é 
continuar acumulando estatísticas, famílias destruídas, vidas acabadas, 
chacinas e corrupção. A descriminalização das drogas, e a partir dela 
um estudo avançado sobre o comércio é o primeiro passo para o fim 
dessa violência descontrolada que, por enquanto, está longe de chegar 
ao fim. 
 
 
19 Carvalho, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e 
dogmático da Lei 11.343/06. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 435. 
 
 
147 
 
 
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148 
 
 
Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/textos>. Acesso em: 05 
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149 
 
 
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO INQUÉRITO 
POLICIAL: PERSPECTIVAS DOGMÁTICA E 
JURISPRUDENCIAL 
 
Leandro da Cruz Soares1 
INTRODUÇÃO 
O presente artigo tem o objetivo de apresentar, mesmo que de 
forma breve, algumas considerações acerca da razoável duração do 
inquérito policial desde duas perspectivas: uma dogmática e outra 
jurisprudencial. A importância do tema está diretamente vinculada ao 
local que o inquérito policial ocupa não só nos elementos angariados 
pela polícia para fins de investigação de determinado delito, mas 
também pela influência que possui junto ao andamento do processo 
penal. 
Em um primeiro momento, aborda-se o que se tem 
compreendido por inquérito policial e quais as suas características mais 
marcantes. Entre elas, adianta-se: a sua natureza inquisitiva, seu caráter 
sigiloso, sua indisponibilidade, sua dispensabilidade para a persecução 
penal, a obrigatoriedade de ser escrito, a sua oficiosidade e o seu 
aspecto unidirecional. Por fim, realiza-se uma crítica acerca da 
promulgação da Lei n.º 13.245/2016. 
 
1Graduação. Pós-Graduação em andamento. Advogado. E-mail: 
leandro@leandrosoaresadv.com.br 
 
 
150 
 
 
Após, o segundo capítulo dedica-se a esclarecer, buscando 
referências no ordenamento jurídico-penal brasileiro, a questão em 
torno da razoável duração do inquérito policial. Defende-se, desde já, a 
existência de incidência do princípio da razoabilidade da duração do 
processo nos procedimentos investigativos, na medida em que a 
investigação preliminar que dura um tempo prolongado viola tal 
princípio fundamental. 
Por fim, realiza-se uma breve pesquisa jurisprudencial, visando 
firmar alguns entendimentos que podem ser encontrados no Tribunal de 
Justiça do Rio Grande do Sul acerca da razoabilidade de duração de um 
inquérito policial e suas diversas implicações. 
 
1 INQUÉRITO POLICIAL BRASILEIRO: ELEMENTOS 
ESTRUTURAIS 
O inquérito policial é o conjunto de diligências comandadas por 
um delegado de polícia para a obtenção de elementos que apontem 
autoria e prova da materialidade de determinadas infrações penais. É 
um procedimento administrativo tendo em vista que a sua instauração 
prescinde de uma autoridade policial. Ademais, é um procedimento 
inquisitorial do qual se destina buscar informações para elucidar os 
mais diversos crimes. E por fim, não existe a ampla defesa2. 
Para Aury Lopes Jr., não se podenegar a necessidade do 
advogado, bem como a possibilidade de sua participação no 
 
2 AVENA, Norberto. Processopenal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 151. 
 
 
151 
 
 
interrogatório do indiciado para sua defesa, conforme consagrado nos 
arts. 185, 186, 188 e seguintes do CPP3. Em regra, como é sabido, não 
existe o contraditório no inquérito policial. A exceção seria em relação 
ao inquérito policial instaurado com o objetivo de expulsão de 
estrangeiro, conforme o Estatuto do Estrangeiro, vez que o Decreto 
86.715/1981, que regulamentou os dispositivos da Lei 6.815/1980 
(Estatuto do Estrangeiro), expõe uma sequência de etapas do qual se 
tem a possibilidade do contraditório, conforme os art. 102 a 105 do 
Decreto mencionado4. 
Nesse sentido, o inquérito policial é um conjunto de atos 
praticados pelo Estado – através da autoridade máxima da polícia civil, 
ou seja, um(a) delegado(a) de polícia – para apurar a autoria e 
materialidade (nos crimes que deixam vestígios) dando ao Parquet 
elementos que estruturariam, se necessário fosse, uma ação penal5. Ou 
seja, o inquérito policial é uma atividade realizada pelos órgãos do 
Estado após uma notícia-crime, a qual pretende averiguar a autoria e as 
circunstancias de um fato criminoso com o fim de dar início a ação 
penal ou, caso não haja elementos suficientes, seu arquivamento6. 
Nessa fase, o juiz deve permanecer alheio à qualidade da prova 
no curso do inquérito, somente intervindo para proteger violações ou 
ameaças de lesões a direitos e garantias individuais dos envolvidos, ou 
 
3 LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no 
processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 228. 
4 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 152. 
5 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
73. 
6 LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no 
processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90. 
 
 
152 
 
 
ainda para resguardar a efetividade da função jurisdicional, deste modo 
exercendo atos de natureza jurisdicional7. 
Deve-se destacar que nenhum processo penal terá início sem 
uma denúncia8 ou uma queixa9, que atende justamente o princípio da 
determinação prévia10. Esse princípio busca a verdade “sob pena de 
“navegar-se” sem rumo ou incorrer-se na maquiavélica devassa11”. Ou 
seja, para punir qualquer pessoa as sanções jurídicas devem estar 
determinadas em lei. Nesse sentido, tal princípio possibilita, com fins a 
dar limite ao poder de punir estatal, que “uma ação somente pode ser 
punida quando a punibilidade estiver determinada antes da ação a ser 
perpetrada12”. 
Colocada essas questões, sublinha-se que inquérito policial tem 
algumas características marcantes, que se lastreiam em sua natureza 
 
7 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen 
Juris, 2009. p. 43. 
8 É a existência de justa causa, onde há elementos mínimos de autoria e materialidade. 
Onde por sua vez, o Estado – Juiz menciona se existem possibilidades para dar início 
a persecução penal. (LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais. 
http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-
recebimento-denuncia-motivado acesso em 18/07/2017). 
9 É quando “o particular é titular de uma pretensão acusatória e exerce o seu direito 
de ação, sem que exista delegação de poder ou substituição processual”, ou seja, atua 
unicamente em direito próprio. (LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. 
SP: Saraiva, 2014, p. 404). 
10 Também conhecido como princípio da legalidade que é um dos princípios mais 
importantes da Constituição Federal. O referido princípio tem aplicação diferenciada 
para o Estado e para o Particular. Naquele tem o dever de fazer o que está determinado 
em Lei, para o particular esse pode fazer o que a lei não proíbe. (MARTINS, Flávio. 
Curso de direito constitucional. 1 ed. SP. Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 839). 
11 TOVO, Paulo Cláudio. Opinião sobre investigação Criminal (CPI – assunto 
momentoso). Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.º 154 – setembro 
de 2005. 
12 GIACOMOLLI, Nereu José; SILVA, Pablo Rodrigo Alflen. Direito penal e 
processo penal: estudos em homenagem ao Prof. Paulo Tovo. Porto Alegre: Sapiens, 
2010. Artigo: O princípio da Legalidade no direito penal alemão: um exemplo a ser 
seguido(?) p. 278. 
http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado
http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado
 
 
153 
 
 
inquisitiva, em seu caráter sigiloso, na sua indisponibilidade, na sua 
dispensabilidade para a persecução penal, na obrigatoriedade de ser 
escrito, na sua oficiosidade e no seu aspecto unidirecional. O 
procedimento inquisitivo do inquérito policial faz com que a figura do 
investigado fique a margem do direito de defesa, pois ainda não há uma 
acusação formal contra ele e sim uma averiguação realizada por um 
delegado de polícia13. 
Não existem regras determinadas para a instauração do inquérito 
policial. Conforme preceitua o art. 6º do Código de Processo Penal, não 
há dúvidas de que a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da 
prática de infração penal, deverá adotar uma série de procedimentos 
que tem por objetivo colher o maior número de informações sobre o 
fato delituoso ocorrido14. Quais sejam: ir ao local do crime, apreender 
objetos, colher provas, ouvir o indiciado, fazer acareações se 
necessário, enfim, uma série de procedimentos que visa a identificar a 
prova da existência do crime e o mínimo de indício de autoria. 
Importante mencionar que o art. 14 do Código de Processo 
Penal (CPP) permite que a autoridade policial, por seu próprio juízo, 
faça um valor sobre as diligências requeridas pelo indiciado, as quais, 
se consideradas impertinentes pela autoridade policial, poderão ser 
indeferidas, na medida em que a possibilidade de prejudicar o curso das 
investigações15. Com isso, reafirma-se: o inquérito policial é um 
 
13 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
100. 
14 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
100. 
15 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
100. 
 
 
154 
 
 
procedimento inquisitivo, com o fim de obter elementos que sirvam de 
baliza ao oferecimento da denúncia ou de queixa-crime16. 
Outra característica do inquérito policial é que não esse não 
aceita a existência de uma investigação através do meio de expressão 
verbal. Todas as peças do inquérito policial serão por escrito e todas 
somente em um único processo, rubricadas pela autoridade (como 
preceitua o art. 9, do CPP). Os atos do inquérito policial devem ser 
reduzidos a termo para que exista segurança em relação ao conteúdo. 
Todavia, importante mencionar que o art. 405, § 1º, do CPP, diz que o 
registro do depoimento do investigado, indiciado, testemunhas e 
ofendido, sempre que possível, será feito a gravação magnética 
(inclusive audiovisual), sem a necessidade de posteriormente efetuar a 
transcrição dos depoimentos conforme art. 405, § 2º, do CPP17. Quando 
realizadas as investigações pela autoridade policial todo o material 
colhido deve ser documentado nos autos do inquérito, para que se possa 
ter uma reconstrução probatória dos fatos18. 
Já a unidirecionalidade do inquérito policial tem uma única 
finalidade: a de apuração dos fatos, não cabendo ao represente policial 
propagar nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como por 
exemplo que o investigado agiu em legítima defesa ou movido por 
violenta emoção ao cometer o crime de homicídio. Segundo Rangel, há 
“relatórios em inquéritos policiais quesão verdadeiras denúncias e 
 
16 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 158. 
17 REIS, Alexandre Cebrian Araujo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito 
processual penal esquematizado. Coordenador Pedro Lenza. 5ª edição. SP: Saraiva, 
2016. p. 67. 
18 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
102. 
 
 
155 
 
 
sentenças. É o ranço do inquisitorialismo no seio policial”19. Essa 
característica tem como atributo impedir que tal valoração ocorra. 
Além disso, vale destacar que não existe entre a investigação 
policial e o represente do Ministério Público relação de meio e fim, mas 
apenas de progressividade funcional. A polícia civil – vinculada ao 
Poder Executivo segundo o art. 144 da Constituição Federal – não tem 
compromisso algum com a acusação ou com a defesa. Tem a função 
preparatória de juntar elementos para dar substrato a eventual denúncia 
com elementos que constituam, se houver, uma justa causa para a ação 
penal20. 
A autoridade policial assegurará no âmbito do inquérito policial 
o sigilo necessário para a solução do fato ou exigido pelo interesse da 
sociedade. O sigilo não abarca o membro do ministério público, nem a 
autoridade judiciária. O advogado pode acompanhar os autos do 
inquérito policial, porém, se estiver decretado judicialmente o sigilo na 
investigação, não poderá acompanhar a realização dos procedimentos21. 
Diferentemente do que ocorre em relação ao processo criminal, 
que rege pelo princípio da publicidade, o inquérito policial pode estar 
em sigilo no decorrer de uma determinada investigação. Muitas vezes 
o êxito das investigações está vinculado, em inúmeros casos, ao 
elemento surpresa nas diligências realizadas e ao fato de que as provas 
 
19 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
103. 
20 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro. Inquérito policial tem sido 
conceituado de forma equivocada, 2017. Disponível em: 
http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-
conceituado-forma-equivocada. Acesso em 17/07/2017. 
21 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 159. 
http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada
http://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada
 
 
156 
 
 
obtidas durante o inquérito sejam produzidas no rumor dos 
acontecimentos, quando ainda não houve a oportunidade da pessoa a 
ser investigada tentar maquiar os fatos, como acontece regularmente na 
fase judicial22. 
No entanto, por vezes, o sigilo de uma investigação não permite 
a intromissão do advogado durante a fase investigatória, que está sendo 
feita sob total sigilo, já que, do contrário, a inquisitoriedade do inquérito 
policial ficaria prejudicada, bem com a própria investigação23. 
Inúmeras vezes a divulgação pela imprensa das diligências que serão 
efetuadas no âmbito de uma investigação frustra seu objetivo principal, 
que é a descoberta de prova da materialidade e autoria do crime24. 
A questão do sigilo no inquérito policial, principalmente no 
plano da atuação dos advogados, se revela às vezes um verdadeiro 
embate entre o advogado e a autoridade policial. Aquele quer o livre 
exercício profissional enquanto esse exerce o poder do Estado25. É 
muito comum, portanto, a Comissão de Prerrogativas da Ordem dos 
Advogados do Brasil receber reclamações de advogados que foram 
impedidos, quer pela autoridade policial ou por algum agente de polícia, 
de examinar autos de inquérito policial na delegacia ou até mesmo 
conversar reservadamente com seu constituído. A súmula vinculante nº. 
 
22 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 159. 
23 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
103. 
24 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
103. 
25 D`URSO, Luiz Flávio Borges. O sigilo do inquérito policial e o exame dos autos 
por advogado, 2004. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo-
O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado. Acesso em 
17/07/2017. 
https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo-O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado
https://www.ibccrim.org.br/artigo/6889-Artigo-O-sigilo-do-inquerito-policial-e-o-exame-dos-autos-por-advogado
 
 
157 
 
 
14, do Supremo Tribunal Federal, é clara em prever que os elementos 
de prova que o advogado tem direito, no curso da investigação criminal, 
devem ser as documentadas e não aquelas que ainda serão realizadas e 
que necessitam do sigilo necessário à sua consecução26. 
De outro lado, no âmbito do inquérito policial, o delegado de 
polícia pode determinar ou postular, com discricionariedade, todas as 
diligenciais que achar necessárias aos desdobramentos dos fatos. Isso 
nos indica que após a instauração do inquérito policial, a autoridade 
judiciária possui autonomia para decidir acerca das providências que 
deseja tomar acerca da investigação27. A autoridade policial, quando 
iniciado a investigação, não fica atrelada a nenhuma forma previamente 
determinada. A autoridade tem a liberdade de agir, para a averiguação 
do fato criminoso, dentro dos ditames estabelecidos em lei. Importante 
dizer que discricionariedade não é arbitrariedade. Essa última é a 
capacidade agir sem qualquer abrigo da lei28. 
Por fim, no ano de 2016 foi promulgada a Lei n.º 13.245/2016. 
Com ela, ao contrário do que se pensou, o inquérito policial não deixou 
de ser inquisitivo. A nova lei não conferiu caráter acusatório ao 
inquérito policial. A falta de poder requisitório do advogado na fase 
investigativa intensifica a continuidade da característica inquisitorial do 
 
26 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
105. 
27 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 159. 
28 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas, 2017. P. 
106. 
 
 
158 
 
 
inquérito. Da mesma forma não se pode ignorar que a eficácia da polícia 
civil em grande parte está ligada ao fator surpresa29. 
Aury Lopes Jr. diz que mesmo com o aumento da presença do 
advogado no inquérito policial, fortalecendo a defesa e o contraditório, 
não há supressão do caráter inquisitório do inquérito. A presença do 
advogado no interrogatório do indiciado é em geral pacífica por parte 
das autoridades policiais. Assim, a Lei 13.245/2016 veio apenas 
reforçar essa prerrogativa já prevendo a 'nulidade absoluta' dos atos 
quando barrada pela autoridade policial30. 
 
2 RAZOABILIDADE NA CONCLUSÃO DO INQUÉRITO 
POLICIAL NO BRASIL: ELEMENTOS DOGMÁTICOS 
Sabe-se que a Emenda Constitucional n.º 45 de 30 de dezembro 
de 2004 criou, explicitamente, no ordenamento jurídico brasileiro, a 
garantia da duração razoável do processo31. Essa emenda foi imposta 
pelo legislador constituinte através do inciso LXXVIII, do artigo 5º da 
Constituição Federal: “[...] a todos, no âmbito judicial e administrativo, 
são assegurados a razoável duração do processo e os meios que 
garantam a celeridade de sua tramitação”. 
 
29 COUTRIM, Eujecio Lima Filho. Lei nº. 13.245/16 e o caráter inquisitivo do 
Inquérito Policial,2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no-
13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial. Acesso em 22/05/2017. 
30LOPES, Aury Jr. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter“inquisitório” da 
investigação, 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-
penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao. Acesso 
em 17/07/2017. 
31 BARBOSA, Ruchester Medeiros. Investigação criminal também deve cumprir 
prazo de duração razoável, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-
nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-
razoavel#_edn2, acesso em 27/06/2017. 
https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no-13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial.%20Acesso%20em%2022/05/2017
https://canalcienciascriminais.com.br/lei-no-13-24516-e-o-carater-inquisitivo-do-inquerito-policial.%20Acesso%20em%2022/05/2017
http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao
http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao
http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-razoavel#_edn2
http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-razoavel#_edn2
http://www.conjur.com.br/2015-nov-03/academia-policia-investigacao-criminal-tambem-cumprir-prazo-duracao-razoavel#_edn2
 
 
159 
 
 
Para Alexandre Morais da Rosa, a garantia da duração razoável 
do processo consagrada na Emenda Constitucional nº 45 não se trata de 
algo inédito, dado que já discutida em diversos âmbitos, especialmente 
na Europa32: “Na verdade, prometer-se a duração razoável sem medidas 
compensatórias é o mesmo que se prometer amor. Para além do Direito 
(ao amor ou à duração razoável do processo) é preciso estabelecer-se as 
garantias”33. 
Para Aury Lopes Jr., em que pese, o Código de Processo Penal 
fazer menção a diversos limites de duração dos atos (arts. 400,412, 531 
etc.), infelizmente não retira a crítica, pois, são prazos sem nenhum tipo 
sanção.34 Sem contar que essa garantia constitucional, consagrada agora 
no ordenamento jurídico brasileiro, vem mencionada na Convenção 
Americana dos Direitos Humanos (CADH)35 do qual o Brasil ratificou 
e assumiu o compromisso de cumprir em todo território nacional, bem 
como todas as instituições, poderes, todos os agentes públicos e os 
cidadãos36. 
Deste modo, importante registrar o artigo 8.1 da Convenção 
Americana de Direitos Humanos: 
 
32 ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é 
como promessa de amor, 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-
18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor. Acesso em 
27/06/2017. 
33 ROSA, Alexandre Morais da. Duração razoável do processo sem contrapartida é 
como promessa de amor, 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-
18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor, acesso em 
27/06/2017. 
34 LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 188. 
35 LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 187. 
36 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo pemal. Abordagem conforme a 
Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. Cases da Corte 
Interamericana, do Tribunal Europeu e do STF. SP: Atlas, 2014, p. 07. 
http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor
http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor
http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor
http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor
 
 
160 
 
 
Artigo 8º – Garantias judiciais: 
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as 
devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um 
juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, 
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de 
qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na 
determinação de seus direitos e obrigações de caráter 
civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 
Sem grifos no original. 
 
Nesse sentido, Lechenakoski diz que existe a incidência da 
razoável duração do processo nos procedimentos investigativos com 
base na Emenda Constitucional nº. 45/2004, a Constituição da 
República Federativa do Brasil de 1988 trouxe referência expressa ao 
referido princípio da razoável duração do processo, consagrado no art. 
5º, LXXVIII37. Por fim, a investigação criminal que dura um tempo 
demasiadamente prolongado pode não incidir no prazo da prescrição do 
crime, porém ocorrendo a violação do preceito fundamental da razoável 
duração do processo38. 
No ordenamento infraconstitucional brasileiro consta que o 
inquérito policial deverá ser encerrado e encaminhado ao juiz 
competente no tempo hábil de 10 (dez dias) estando o indiciado preso 
em flagrante ou preventivamente e, quando solto, mediante fiança ou 
 
37 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, 
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do 
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos 
seguintes: LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a 
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 
38 LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A razoável duração do processo X prescrição 
retroativa após alteração da Lei 12.234/2010, 2016. Disponível em: 
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-
retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-
lechenakoski/#_ftnref3, acesso em 27/06/2017. 
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3
 
 
161 
 
 
sem ela, terá a autoridade o prazo de 30 (trinta) dias. Segundo o Código 
de Processo Penal: 
Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, 
se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver 
preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, 
a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou 
no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança 
ou sem ela. 
 
Algumas variações da regra geral: no âmbito da Justiça Federal, 
o prazo é de 15 dias, se o acusado estiver preso, podendo ser prorrogado 
por mais 15 dias, conforme art. 66 da Lei 5.010/66. Sendo o acusado 
solto, o prazo segue a regra geral do qual será de 30 dias39, ou seja, 
seguindo o dispositivo do art. 10 do Código de Processo Penal. Com o 
advento da Lei nº. 11.343/2006, que trata sobre o tráfico ilícito de 
entorpecentes, o prazo de conclusão do inquérito policial é de 30 dias, 
conforme art. 51 da referida lei, quando o acusado estiver preso. 
Independentemente se o crime ocorreu em território brasileiro ou no 
exterior o prazo se manterá40. E de 90 dias se o acusado estiver solto. 
Conforme o parágrafo primeiro do art. 51 os prazos podem ser 
duplicados mediante pedido justificado41. 
Quando tratamos de crimes dos artigos 28, 33, § 3º e 38 da Lei 
11.342/2006, não existe o inquérito policial, tendo em vista que são 
infrações de menor potencial ofensivo, tornando-se assim objeto da 
 
39 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen 
Juris, 2009. p. 48. 
40 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25 ed. ver. E atual. SP: Atlas,2017. P. 
115. 
41 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11 ed. RJ. Editora Lumen 
Juris, 2009. p. 48. 
 
 
 
162 
 
 
lavratura de termo circunstanciado42. O termo circunstanciado está 
regulamentado no art. 69 da Lei nº. 9.099/95, a qual preceitua: 
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da 
ocorrência lavrará termo circunstanciado e o 
encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do 
fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos 
exames periciais necessários. 
 
No âmbito dos crimes contra a economia popular – Lei n.º 
1.521/1951 – a previsão é que inquérito policial seja finalizado em 10 
dias, não importando se o investigado está preso ou solto (art. 10, § 
1º)43. Já no inquérito policial militar, em consonância com o Código de 
Processo Penal Militar, o prazo de finalização é de 20 dias, se preso o 
investigado, e de 40 dias, prorrogáveis por mais 20 dias, se solto (art. 
20 do Decreto-lei 1.002/1969)44. 
Lembrando que se o indiciado estiver solto o prazo tem como 
termo inicial a portaria de instauração do inquérito policial. Porém, se 
o indiciado estiver preso, o prazo terá como data inicial a dia efetivação 
da prisão. Por fim, inclui-se o dia do começo na contagem, não se 
prorrogando o prazo em hipótese alguma. Os prazos materiais têm a sua 
forma de contagem regrada pelo art. 10 do Código Penal, incluindo-se 
o dia do começo45. Estando o indiciado preso dentro do prazo previsto 
 
42 RANGEL, Paulo; BACILA, Carlos Roberto. Lei de drogas: comentários penais e 
processuais. 2. Ed. SP: Atlas, 2014, p. 179. 
43 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 193. 
44 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 193. 
45 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 190. 
 
 
163 
 
 
para a conclusão do inquérito policial e este ainda não concluído, é 
necessária sua soltura por constrangimento ilegal46. 
Não obstante, existe uma lacuna ainda não dirimida na lei 
processual penal quanto a finalização do prazo fixado em lei e sobre a 
existência de alguma sanção aplicada quando do prazo não for 
correspondido. Para Lopes Jr., quando o prazo não possui nenhuma 
sanção, tem-se a ineficácia do direito fundamental da razoável duração 
do procedimento47. E esses direitos são normas de conteúdo 
declaratório, previstos e consagrados na Constituição Federal. 
 
3 RAZOABILIDADE PELA LENTE DO JUDICIÁRIO: 
UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL 
DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL 
É consabido que a jurisprudência está presente para os 
advogados, juristas, doutrinadores e a sociedade de forma geral para 
fins de uma sensibilidade mais aguçada em torno da formação de uma 
mentalidade julgadora, norteando a todos, por vezes, a apuração de 
determinados casos concretos. Seu objetivo, na medida em que traz 
julgamentos já realizados, é dar embasamento para evitar que novas 
discussões acerca do tema sejam iniciadas. Por óbvio, vários casos têm 
decisões divergentes. Sendo assim, o Estado-Juiz, analisando o caso 
concreto, dará a melhor solução pela sua livre convicção e pelas provas 
produzidas durante a instrução processual. 
 
46 AVENA, Norberto. Processo penal: esquematizado. 6ª ed. RJ: Forense; São Paulo: 
método, 2014. p. 191. 
47 LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11ª ed. SP: Saraiva, 2014, p. 193. 
 
 
164 
 
 
Na Sétima Câmara Criminal do TJRS pode-se encontrar a 
seguinte decisão acerca da razoável duração do inquérito policial: 
HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O 
PATRIMÔNIO. ROUBO MAJORADO. Excesso de 
prazo na formação da culpa do paciente. Ausência de 
conclusão do inquérito policial dentro do prazo previsto 
no código de processo penal que configura 
constrangimento ilegal. Soltura do paciente que se 
impõe. A contagem dos prazos processuais para a 
formação da culpa do paciente no processo penal pátrio é 
global e não por etapas, devendo eventual ilegalidade da 
prisão cautelar por excesso de prazo ser analisada à luz 
do princípio da proporcionalidade. O art. 10 do Código 
de Processo Penal prevê que o prazo para a conclusão do 
inquérito policial é de 10 (dez) dias nos casos em que o 
investigado estiver preso preventivamente, iniciando-se 
o prazo a partir do dia em que se executar a ordem de 
prisão. Nestes temos, estando o paciente preso desde a 
data de 25/04/2017 e não tendo sido remetido o inquérito 
policial ao Juízo Criminal dentro do prazo previsto na 
legislação processual penal pátria, a situação constitui 
constrangimento legal, havendo manifesta ofensa ao 
princípio da razoável duração do processo, de estatura 
constitucional, de forma que imperiosa a soltura do 
paciente, com aplicação de outras medidas cautelares, 
dada a ocorrência de excesso de prazo para a formação 
de culpa. ORDEM CONCEDIDA, EM PARTE. (Habeas 
Corpus Nº 70073591844, Sétima Câmara Criminal, 
Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz 
de Souza, Julgado em 18/05/2017). 
 
No despacho acima o desembargador-relator menciona que não 
tendo sido o inquérito policial remetido ao juízo dentro do prazo 
estabelecido no art. 10 do CPP, ou seja, 10 (dez) dias e estando o 
investigado preso preventivamente, do qual o prazo inicia-se a partir da 
data em que se executar a ordem de prisão, sendo assim, o paciente 
estará preso preventivamente por um tempo maior do que o prazo 
estabelecido no mencionado artigo, de modo que a situação do caso 
 
 
165 
 
 
concreto constitui constrangimento ilegal, concluindo ainda o Relator 
que é uma ofensa ao princípio da razoável duração do processo. Por 
fim, determinou a soltura do paciente por excesso de prazo para a 
formação da culpa. 
No mesmo sentido vai a Terceira Câmara Criminal: 
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. 
ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. EXCESSO DE 
PRAZO VERIFICADO. 1. A averiguação da ocorrência 
de violação à razoável duração do processo demanda 
análise, em concreto, da presença - ou não - das 
exigências da proporcionalidade. 2. No caso dos autos, o 
paciente encontra-se preso preventivamente desde 11 de 
setembro de 2016, e o feito encontra-se parado há 70 
(setenta) dias sem a remessa do inquérito policial ao 
juízo, importando destacar que não se trata de fatos 
complexos. Porém, tendo em vista a gravidade concreta 
do delito e os antecedentes do paciente, adequada a 
fixação de medidas cautelares diversas. ORDEM 
PARCIALMENTE CONCEDIDA. (Habeas Corpus Nº 
70072016769, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de 
Justiça do RS, Relator: Ingo Wolfgang Sarlet, Julgado em 
14/12/2016). 
 
Na decisão acima foi concedida a revogação da prisão 
preventiva tendo em vista que a autoridade policial estava a 70 (setenta) 
dias sem findar o inquérito policial. Ainda, deve-se destacar que não 
existia nenhum elemento nos autos do processo que indicava 
complexidade do feito a justificar tal morosidade. Por fim, o 
desembargador-relator conclui que restou evidenciada desídia por parte 
da autoridade policial, desta forma impondo a revogação da medida 
gravosa. 
No entanto, tais entendimentos não são unânimes. Em sentido 
contrário se manifestou a Primeira Câmera Criminal: 
 
 
166 
 
 
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. 
PRISÃO PREVENTIVA. MANUTENÇÃO DA 
SEGREGAÇÃO. EXCESSO DE PRAZO. 
INOCORRÊNCIA. 1. Considerados os poucos 
elementos juntados, não se observa constrangimento 
ilegal na manutenção da prisão, pois presentes os 
requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal. 
Conforme informações da autoridade apontada coatora, 
há indicativo da participação do paciente nos crimes 
imputados nos elementos colhidos no Inquérito Policial 
nº 20/2016/200850/A. O Magistrado mencionou que o 
triplo homicídio qualificado decorreria da rivalidade 
existente entre as facções“Bala na Cara” e “Os Vila 
Jardim”, circunstância que indica a gravidade concreta da 
conduta. A prudência recomenda, portanto, a 
manutenção da segregação cautelar, não sendo suficiente, 
no presente contexto, a aplicação de medidas cautelares 
diversas. 2. A duração do processo, nos exatos termos da 
norma constitucional (art. 5º, inciso LXXVIII, da CF), 
deve ser razoável, impondo-se a interpretação da demora 
no curso da instrução através da ponderação com o 
princípio da proporcionalidade, que em seu sentido 
estrito autoriza a maior dilação dos prazos processuais 
quando a ação penal apresentar maior complexidade. 
Embora o paciente esteja preso desde 21 de março de 
2016, a complexidade do feito, que conta com nove réus 
e quatro fatos, autoriza maior dilação dos prazos 
processuais. Encontra-se pendente apenas a resposta à 
acusação de um dos réus, de forma que a instrução poderá 
se iniciar em breve. Não se identifica, por ora, inércia do 
aparelho judiciário, não podendo eventual demora ser 
atribuída ao Juízo condutor da ação. ORDEM 
DENEGADA. (Habeas Corpus Nº 70071384523, 
Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, 
Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 
14/12/2016). 
 
Na decisão acima o desembargador-relator menciona que a 
duração do processo deve ser razoável, porém tendo em vista que a ação 
penal apresentou maior complexidade, e mesmo que o paciente 
estivesse segregado há nove meses sem avistar o início da instrução, em 
virtude da complexidade do caso e do número extensivo de réus – nove 
 
 
167 
 
 
(09) e dos quatro (04) fatos delituosos – não foi configurado o excesso 
de prazo na formação da culpa. 
No mesmo sentido assim novamente a Terceira Câmara 
Criminal decidiu: 
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE 
QUALIFICADO. COAÇÃO NO CURSO DO 
PROCESSO. DESNECESSIDADE DE 
MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO 
ACUSADO. INOCORRÊNCIA. EXCESSO DE 
PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. 
INEXISTÊNCIA. SEGREGAÇÃO CAUTELAR 
MANTIDA. A prisão preventiva, no caso concreto, não 
configura antecipação da punição penal. Caso em que o 
decreto de prisão encontra-se adequadamente 
fundamentado – na garantia da ordem pública e 
conveniência da instrução criminal – e embasado em 
circunstâncias específicas do caso concreto, havendo 
comprovação da materialidade e suficientes indícios da 
autoria delitiva em nome do paciente. Embora primário o 
paciente, as circunstâncias fáticas, diante do contido nos 
autos – evidente, no caso, o periculum libertatis, ante a 
ameaça do paciente à vítima sobrevivente, bem como as 
testemunhas, o que tem dificultado o andamento do feito, 
inclusive, para seu encerramento já que as testemunhas 
em razão do temor que sentem não compareceram em 
duas solenidades aprazadas –, são desfavoráveis e pesam 
contra o acusado, pelo que não há ilegalidade na 
manutenção da prisão preventiva. 
a razoável duração do processo deve ter em consideração 
as circunstâncias específicas do caso concreto, como a 
complexidade do feito e o comportamento das partes e do 
magistrado. Nesta linha, o excesso de prazo na formação 
da culpa não decorre do simples descumprimento de 
prazos processuais isolados, como simples operação 
aritmética. Embora o paciente esteja preso há 
aproximadamente nove meses, não há qualquer retardo 
provocado pelo juízo ou ministério público na condução 
do processo, pelo que, no momento, não se vislumbra o 
alegado excesso de prazo sustentado. Excesso de prazo 
não configurado. ORDEM DENEGADA. (Habeas 
corpus nº 70073832867, terceira câmara criminal, 
tribunal de justiça do rs, relator: Sérgio Miguel Achutti 
Blattes, julgado em 05/07/2017). 
 
 
 
168 
 
 
Na decisão acima, para o desembargador-relator, mesmo que o 
paciente estivesse preso preventivamente a 09 (nove) meses, por si só, 
não configuraria excesso de prazo. Acrescenta ainda, que embora esteja 
assegurado o direito de ser julgado em um prazo razoável, o tempo não 
vem expresso. Diz ainda que a simples ultrapassagem dos prazos legais 
não configura a ilegalidade da custódia. Por fim, acrescenta o relator de 
que a alegação de excesso de prazo, não é suficiente para a concessão 
de liberdade do paciente, tendo em vista a periculosidade do agente em 
frente às circunstâncias do caso concreto. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Por tudo que foi exposto, a análise realizada aponta que o 
inquérito policial é um procedimento de investigação com o viés de 
apurar indícios de autoria e a prova da materialidade de um crime, 
fornecendo substratos mínimos para a propositura da ação penal. Em 
um primeiro momento foram analisados os conceitos básicos sobre o 
inquérito policial sobre a ótica de alguns autores. Posteriormente, foram 
analisadas algumas características principais do inquérito policial, 
sendo que se trata de um procedimento inquisitorial, ou seja, o indiciado 
fica afastado do direito de defesa; a característica formal é que todos os 
atos do inquérito policial serão por escrito; é sistemático, quando todo 
o material colhido deve ser documentado; unidirecional significa dizer 
que o inquérito policial tem a única finalidade de apuração do fato 
criminoso; e também é sigiloso, pois a autoridade assegurará o sigilo 
necessário para a concretização do inquérito em decorrência do fato 
criminoso; e discricionário, vez que concentra toda a carga do inquérito 
policial ao seu representante, que é o/a delegado(a) de polícia. 
 
 
169 
 
 
Ainda foi feito uma análise, mesmo que breve, sobre o prazo 
para a conclusão do inquérito policial que, em regra geral, se guia pelo 
o que está consagrado no art. 10 do CPP. Se por ventura o indiciado 
estando preso e a autoridade policial não concluiu o inquérito policial é 
necessário à sua soltura por constrangimento ilegal. As características 
estudadas estão em consonância com a finalidade do inquérito policial, 
e aos princípios fundamentais que garantem a preservação da dignidade 
do indivíduo consagrada na constituição federal. 
Por fim, diante dos acórdãos colhidos no Tribunal de Justiça do 
Rio Grande do Sul, cumpre destacar que não existe uma uniformização 
acerca da razoável duração do inquérito policial. Há decisões que 
concedem o excesso de prazo e outras não configuram o excesso de 
prazo para a formação da culpa. O parecer, quando não é favorável 
acerca do excesso de prazo, atrela-se principalmente a da complexidade 
do fato, muitas vezes caracterizado pelo número abundante de réus e 
outras vezes pela quantidade de fatos constantes na denúncia. Percebe-
se que está longe de termos uma uniformização sobre o tema. Enquanto 
isso os presídios estão cada vez mais abarrotados de pessoas que por 
muitas vezes não precisariam estar segregados no sistema penitenciário. 
 
 
 
170 
 
 
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Revista dos Tribunais, 2017. 
http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3
http://emporiododireito.com.br/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-2342010-por-bryan-bueno-lechenakoski/#_ftnref3
http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor
http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor
 
 
172 
 
 
A EXCEÇÃO COMO REGRA NA 
CRIMINALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA: 
EXPANSIONISMO PUNITIVO E O ABANDONO 
DAS JUSTIFICATIVAS JURÍDICAS NAS 
ESTRATÉGIAS DE CONTROLE SOCIAL 
 
Lucas Dall’Agnol Pedrassani1 
 
 O ENSINO DO MEDO 
 Num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada 
vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar 
da segurança. Nas ruas das cidades são celebradas 
cerimônias. Cada vez que um delinquente cai varado de 
balas, a sociedade sente um alívio da doença que a 
atormenta. A morte de cada malvivente surte efeitos 
farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia 
vem de phármakos, o nome que os gregos davam as 
vítimas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos 
de crise2. 
INTRODUÇÃO 
Com os levantes de junho de 2013, a aproximação dos 
denominados “megaeventos” como a Copa do Mundo FIFA de 2014 e 
as Olimpíadas de 2016, houve uma intensificação nos mecanismos de 
controle social, também no intuito de vender melhor a imagem do país 
 
1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 
(PUCRS). Integrante do G10- Assessoria à Juventude Criminalizada (SAJU/UFRGS). 
Graduando em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 
Advogado. E-mail: lucasdpedrassani@gmail.com. 
2 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo avesso. Porto Alegre: 
L&PM, 1999, p. 81 
 
 
173 
 
 
na mídia internacional, bem como no sentido de reforçar as posições 
sociais em que cada segmento deve se postar segundo a lógica 
dominante e os caminhos institucionalizados para sua esparsa variação 
segundo a ordem capitalista. A busca de novos mercados segue a lógica 
da globalização predatória - já anunciada nos slogans das grandes 
empresas - nos termos desenvolvidos pelo militante, geógrafo e 
advogado Milton Santos3: 
Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma 
dupla tirania, a do dinheiro e a da informação, 
intimamente relacionadas. Ambas, juntas, fornecem as 
bases do sistema ideológico que legitima as ações mais 
características da época e, ao mesmo tempo, buscam 
conformar segundo um novo ethos as relações sociais e 
interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A 
competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, 
é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos 
graças à confusão dos espíritos que se instala. Tem as 
mesmas origens a produção, na base mesma da vida 
social, de uma violência estrutural, facilmente visível nas 
formas de agir dos Estados, das empresas e dos 
indivíduos. A perversidade sistêmica é um dos seus 
corolários. 
 
A partir desta demanda, em atenção aos interesses de 
investidores, ainda de proteção patrimonial da classe média e alta – e 
de seu “poder” de consumo – houve uma investida contra segmentos 
populacionais organizados e ocupantes segregados de parcelas do 
território outrora esquecidas. Estes, se viram tocados pelo poder estatal 
apenas quando surgiu a demanda do setor econômico na sua exploração, 
 
3 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único a consciência 
universal. Record: Rio de Janeiro/São Paulo, 2000a, p. 19. 
 
 
174 
 
 
tendo tais populações anteriormente se habituado a sobreviver perante 
o abandono e a inércia estatal em face de sua condição. 
Os elevados “investimentos” em infraestrutura em contraste 
com a precarização dos serviços básicos que supostamente visariam 
assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, 
bem como a privatização dos espaços públicos, a expulsão de 
comunidades inteiras em direção à periferia e a segmentação do espaço 
urbano culminaram por desvelar, de forma drástica, a sobreposição dos 
interesses de uma classe sobre a outra. O marco da guerreira defesa dos 
agentes repressores em nomedos fulecos, ao longo do Brasil em 
detrimento da população, deram a tônica do que estava por vir4. 
Eis que, quando se apresenta o tal agir estatal, não bastasse a 
não observância em assegurar as garantias fundamentais e condições 
dignas de vida, subverte a lógica apregoada pelo ordenamento jurídico, 
ignorando a fragmentariedade do Direito Penal e, ainda, invertendo 
princípios basilares do Estado Democrático de Direito, como os 
consolidados “in dúbio pro reo”, o direito ao julgamento, a presunção 
de inocência dentre outras garantias constitucionais, ao praticar 
verdadeiro direito penal do inimigo5 em relação a determinadas frações 
da população na escusa de se tratar de uma situação atípica. 
 
4 OLIVEIRA, Samir. Protesto envolvendo Tatu-Bola segue repercutindo entre 
policiais e ativistas de Porto Alegre. Sul21, Porto Alegre, 6 de fev. 2013. (Disponível 
em: <http://www.sul21.com.br/jornal/protesto-envolvendo-tatu-bola-segue-
repercutindo-entre-policiais-e-ativistas-de-porto-alegre/>. Acesso em: 28 set. 2015). 
5 Eugênio Raul Zaffaroni que assim dispõe: “O direito penal [do inimigo] tem como 
uma de suas marcantes características o combate a perigos, isso representa, em muitos 
casos, a antecipação de punibilidade, na qual o inimigo é interceptado, em um estado 
inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade. Para ele 
não é mais o homem o centro de todo o Direito, mas sim o sistema, puramente 
 
 
175 
 
 
Ocorre, em verdade, que a única excepcionalidade destes 
abusos é a sua magnitude que vem tomando contornos cada vez mais 
desavergonhados, dignos de nota dos teóricos do terceiro reich, 
consolidando, na exceção à regra, um mecanismo de controle que paira 
com permanência. Dito isto, o artigo pretende questionar a legitimidade 
do discurso da política de conciliação de classes e do Estado de Direito, 
que cai por terra sempre que se enfrentam questões em que há choque 
de forma mais direta entre os direitos e privilégios de uma e de outra 
classe, recorrendo-se a verdadeiro estado de exceção para manter a torta 
coesão social e as posições de funcionamento da organização social 
vigente. Como pode o Direito burlar a si próprio para assegurar a 
implementação de determinada vontade do poder dominante? E mais, 
ao fazer isso, como mantém sua legitimidade de assegurar as próprias 
leis que viola? 
 
 A EXPANSÃO DAS PRÁTICAS E TÁTICAS DE UM 
ESTADO TERRORISTA 
 
Abandonemos, de início, a noção mais comumente difundida da 
associação do terrorismo enquanto categoria relativa ao sujeito ou 
organização que comete atentados pelo uso de violência direta. A ideia 
que o título busca remeter é justamente mais próxima a definição 
primeira de aterrorizar, causar medo, impor vontade pelo uso 
sistemático de práticas de terror. Essa vem sendo a tônica da postura do 
aparato repressivo estatal para lidar com os movimentos sociais de 
 
socionormativo” ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo do Direito Penal. Ed. 
Revan 2007, p. 76. 
 
 
176 
 
 
contestação da ordem que vem surgindo ao longo da formação do nosso 
país, recorrendo a práticas e táticas notoriamente ilegais em nome da 
manutenção da legalidade, situação cujo exemplo mais difundido têm 
sido o período da ditadura civil-militar. 
A premissa neoliberal que dominou a política posteriormente, 
como bem assevera Loic Waquant6 é constantemente reapresentada 
como solução para o “monstro da criminalidade” tão alimentado pela 
mídia hegemônica, aduzindo o seguinte paradoxo: “Remediar com um 
“mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e 
social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança 
objetiva e subjetiva [...]”. Assim, o denominado Direito Penal do 
Inimigo de Gunther Jakobs toma força no norteamento da política 
interna de combate aos sujeitos tidos por perigosos através de seus 
simbólicos Robocops7 e caveirões8 dirigindo-lhes um olhar desprovido 
da noção de cidadania e dignidade. De acordo com Jakobs9: 
 
 
6 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 7. 
7 ELY, Débora. Robocop na Copa: o traje que os policiais usarão no Mundial. Para 
atuar em possíveis protestos durante os jogos, Brigada Militar receberá 300 
exoesqueletos do governo federal. Zero Hora, Porto Alegre, 21 de mai. 2014. 
Disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/copa-
2014/noticia/2014/05/robocop-na-copa-o-traje-que-os-policiais-usarao-no-mundial-
4505977.html>. Acesso em: 28 set. 2015. 
8 CONTRA protestos em SP, PM compra 'supercaveirão'. Estadão, São Paulo, 
12 de mar. 2015. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
estado/2015/03/12/contra-protestos-em-sp-pm-compra-supercaveirao.htm>. Acesso 
em: 28 set. 2015. 
9 JAKOBS, Ghunter; MELIÁ, Manuel Câncio. Direito Penal do Inimigo: 
noções e críticas. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2005, p. 37. 
 
 
177 
 
 
O direito penal conhece dois pólos ou tendências em suas 
regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, 
esperando-se até que se exteriorize a sua conduta para 
reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da 
sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que 
é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por 
sua periculosidade. 
Amparados pelas proposições de Walter Benjamin e de 
Giorgio Agamben pretende-se desencobrir uma parcela desta 
intimidade cadavérica entre os regimes totalitários e as democracias 
modernas10. A atualidade de seus pensamentos conjugados com o 
conhecimento de Zaffaroni acerca dos Estados Latinos pode dar as 
pistas para melhor compreender as estratégias de formação de um 
estereótipo de indivíduo a ser combatido como nas categorias de 
“subversivo”, “terrorista”, “bandido”, “vândalo” entre outras, para 
justificar o recrudescimento das políticas repressivas fazendo valer o 
slogan fascista da “ordem e progresso” (ou o atual, “Não pense em 
crise, trabalhe”) a custo dos sujeitos dispensáveis, ou seja, através do 
paradigmático conceito do protagonista da obra de Giorgio Agamben: 
A Vida Nua11. Na perseguição de seus inimigos o sob o mote do 
desenvolvimentismo, as forças repressivas se pautam pela ação da força 
 
10No início da obra o Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua I,Agamben nos 
antecipa o que virá a ser objeto de seu dedicado olhar:“A tese de uma íntima 
solidariedade entre democracia e totalitarismo (que aqui devemos, mesmo com toda 
prudência,adiantar) não é, obviamente (como,por outra,aquela de Strauss sobre a 
secreta convergência entre liberalismo e comunismo quanto à meta final),uma tese 
historiográfica, que autorize a liquidação e o achatamento das enormes diferenças que 
caracterizam sua história e seu antagonismo; não obstante isto, no plano histórico-
filosófico que lhe é próprio, deve ser mantida com firmeza, porque somente ela poderá 
permitir que orientemo-no diante das novas realidades e das convergências 
imprevistas do fim de milênio, desobstruindo o campo em direção àquela nova política 
que ainda resta em grande parte inventar.”AGAMBEN, Giorgio.Homo sacer: o poder 
soberano e a vida nua.Belo Horizonte:UFMG,2002,p. 18. 
11 Ibidem, p. 16. 
 
 
178 
 
 
de lei12 sem lei, que suspende as garantias legais em nome da sua própria 
manutenção. Ora, não tem sido exatamente esse o paradigma central do 
discurso predominante na política nacional, em especial naquilo que 
remete a (in)segurança pública? 
Para tanto é necessário retomar ideia primordial de Walter 
Benjamin acerca da exceção. É através da intensificação dos 
mecanismos de controle e pela criminalização da pobreza e dos 
movimentos sociais que se verifica de forma mais visível a correlação 
de forças que desemboca naquilo que chamaram estado de exceção,razão pela qual temos a necessidade de nos situarmos perante esse 
paradigma, senão vejamos13: 
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “Estado de 
Exceção”, no qual nós vivemos, é a regra. Precisamos 
atingir um conceito de história que corresponda a isto. 
Então teremos diante de nós como nossa tarefa provocar 
o efetivo Estado de Exceção; e deste modo melhorará a 
nossa posição na luta contra o fascismo. A sorte deste 
depende não em última instância, que seus opositores 
lutem contra ele em nome do progresso como uma norma 
histórica. – A admiração de que as coisas que nós 
vivenciamos ‘ainda’ são possíveis no século XX, não é 
filosófica. Ela não esta no início de um conhecimento, a 
não ser de que a idéia de história, de onde ela provém, 
não pode mais ser sustentada. 
A ideia da neutralidade do estado tão fortemente criticada 
pelos mais variados setores da esquerda nacional e internacional de 
 
12 Conforme Agamben O sintagma “força de lei” vincula-se a uma longa tradição do 
direito romano e no medieval, [...] tem o sentido geral de eficácia, de capacidade de 
obrigar. [...] O conceito “força de lei”, enquanto termo técnico do direito define, pois 
uma separação entre vis obligandi ou aplicabilidade da norma e sua essência formal, 
pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, 
entretanto, sua “força’. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: 
Boitempo, 2004, p.60. 
13 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas; v. 1. São 
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226. 
 
 
179 
 
 
Marilena Chauí14 a Meszáros15, segue intocável fora dos bastidores 
decisórios do poder. Da mesma forma, a confiança em uma justiça 
suprema ou em uma verdade prevalecente que deriva do argumento de 
autoridade é tanta, que o apego às formalidades ou consistências 
jurídicas e argumentativas das decisões e ações que derivam no 
exercício do poder de polícia vem sendo notoriamente abandonadas. 
Dessa forma retomamos a problematização de Benjamin, quando nos 
deparamos com as bizarras decisões e ações dos agentes repressivos: A 
admiração (ou o espanto) de que as coisas que nós vivenciamos ainda 
são possíveis atualmente em pleno século XXI não é filosófica, porque 
a “história” de onde esse espanto provém não pode mais ser sustentada. 
 
 WALTER BENJAMIN, CONTROLE SOCIAL E 
LEGITIMAÇÕES. 
Walter Benjamin traz a margem um questionamento de 
espantosa atualidade, se pensado com atenção voltada ao cenário 
político brasileiro. Diante da crise da representatividade que permeia o 
cenário atual, inclusive relativo ao período anterior ao atual regime 
 
14 A crítica referida pode ser analisada de forma mais explícita no seguinte trecho do 
livro O que é Ideologia: “O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena 
e regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e 
acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses 
particulares da classe que domina a sociedade. [...]O papel do Direito ou das leis é o 
de fazer com que a dominação não seja ti da como uma violência, mas como legal, e 
por ser legal e não violenta deve ser aceita. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São 
Paulo: Brasiliense, 1984. p. 90. 
15 A passagem de Meszáros a que se refere a menção pode ser compreendida a partir 
da obra O poder da Ideologia: “A verdade prosaica de que o Estado na verdade não é 
a encarnação do “princípio da legitimidade”, mas das relações de poder prevalecentes, 
e que não é constituído a partir de decisões individuais soberanas, mas em resposta 
aos contínuos antagonismos de classe, permanece oculta sob o véu da impressionante 
fachada teórica da ideologia dominante.” MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. 
São Paulo: Boitempo, 2004. p. 26. 
 
 
180 
 
 
vampiresco que carece ainda mais de legitimidade, a brutalidade 
policial vêm sendo a resposta estatal para os anseios sociais que, na 
derrocada da estratégia do pão e circo, retomou pelos mecanismos mais 
tradicionais a “ordem pública” necessária ao “progresso”. Calcada em 
nome do interesse público, tal ação repressiva, lança mão de inúmeros 
subterfúgios (i)legais de modo a pressionar e coagir os contestadores da 
política implantada. Após a caracterização do poder enquanto 
instituinte e mantenedor do Direito, do âmago de sua violência criadora 
e conservadora, Benjamin dispara: 
[...] Poder-se-ia dizer que um sistema de fins jurídicos é 
insustentável quando, em algum lugar, fins naturais ainda 
podem ser perseguidos pelo meio da violência. Mas isso, 
por enquanto, é um simples dogma. Por outro lado, talvez 
deva se levar em consideração a surpreendente 
possibilidade de que o interesse do direito em 
monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica 
pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir 
o próprio direito [...]16 
Com essa afirmativa em mente torna-se possível desferir um 
olhar mais apurado para os fatos públicos que ocorreram não só no 
Brasil, mas em diversos outros país, mais especificamente os latinos 
que vêm tendo constantes interferências de origem externa 
corroborando significativas alterações políticas em nome da expansão 
do capital na história recente. A hipocrisia do progresso seletivo e do 
agravamento da segmentação social, geraram (e geram) uma 
resistência, não raro violenta, através de uma LEGÍTIMA defesa, de 
uma casa, de uma escola, de um bairro, de uma renda, de um amigo: de 
 
16 BENJAMIN, Walter. Crítica da violência – crítica do poder. ___. Documentos de 
cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. (Trad.: Willi Bolle). São Paulo: 
Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo 1986, p. 162. 
 
 
181 
 
 
dignidade. Assim, o recrudescimento do aparato repressor, 
compreendido desde o policiamento ostensivo, passando pelas 
inquisitórias denúncias criminais, constante vigilância (inclusive por 
informantes infiltrados e com utilização de drones), abordagens 
infundadas, flagrantes forjados, tudo amparado pela proteção 
normativa, convenientemente interpretada por seus pares, pode ser 
recordada no destacamento do poder amorfo da instituição policial em 
mais uma passagem das teses benjaminianas: 
A infâmia dessa instituição - sentida por poucos, porque 
raramente a competência da polícia é suficiente para 
praticar inter·venções mais grosseiras, podendo, no 
entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e 
contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra 
eles o Estado não é protegido pelas leis - consiste em que 
ali se encontra suspensa e separação entre poder* 
instituinte e poder* mantenedor do direito. Do primeiro 
se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a 
restrição de não se proporem novos fins. O poder* da 
polícia se emancipou dessas duas condições. É um 
poder* instituinte do direito - cuja função característica 
não é promulgar leis, mas baixar decretos com 
expectativa de direito - e um poder* mantenedor do 
direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A 
afirmação de que os fins do poder* policial seriam 
sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos 
ligados a eles, é falsa. Na verdade, o "direito" da polícia 
é o ponto em que o Estado - ou por impotência ou devido 
às inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária - 
não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus 
fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço17. 
O desvelamento das relações de poder ocultadas pelo aparato 
teórico que justifica a força de lei enquanto instrumento de garantia de 
privilégios deve ser, nas formulações de Benjamin (definitivamente não 
só dele), exposta18. Essa violência - que define pura, ou criadora - seria 
 
17 Ibidem. p. 166. 
18 Ibidem. p. 226.182 
 
 
única capaz de provocar fim a esse movimento oscilante da violência 
instituinte e mantenedora do Direito. Em oposição à teoria do Soberano 
de Carl Schmitt, a exceção de fato não poderia ser fundada na premissa 
de conservar o próprio direito, mas em uma dimensão que destruiria o 
próprio reino que o jurista do Terceiro Reich visa assegurar. Para tanto, 
deve-se primeiramente expor os meandros dessa relação tiranizante, 
identificá-la, revelá-la, para aí então destruí-la, esse é o desafio acerca 
da reconstrução da história, sobre o conceito de história, ou, como 
propõe de forma brilhante Reyes Matte, no catar dos dejetos19. Assim, 
nos termos propostos por Neto: 
Essa violência inerente e oculta do direito é o que 
legitima a injustiça em que vivemos e por vezes se torna 
visível em episódios como os campos de concentração, 
aeroportos rejeitam refugiados, favelas em que a vida 
está exposta à morte, zonas rurais dominadas por 
coronéis. Nesses locais a vida está nua, ou seja, 
totalmente exposta, totalmente submissa a um poder que 
pode a descartar livremente. Então a conclusão dessa 
primeira perte é: o estado de exceção não é “exceção”, 
mas a regra sobre o qual o estado de direito se ergue como 
uma espécie de mito que encobre as relações de poder 
reais que existem20. 
Nesse caminho adentramos a conceituação de Agamben acerca 
dos corpos disponíveis ao bel prazer do fazer político. Aliás, como 
ponto de contato entre a resistência afirmada anteriormente e os 
matáveis do cotidiano nacional, é simbólico o recorrente drama das 
abordagens policiais na defesa da “paz social” das praias cariocas em 
 
19 MATTE, Reyes. Meia-noite na história: Comentários sobre às teses de Walter 
Benjamin. Sobre o conceito de história. Ed. Unisinos.2010. p. 125. 
20 NETO, Moysés Pinto. A matriz oculta do Direito Moderno: crítica do 
constitucionalismo contemporâneo. Cadernos de ética e filosofia política, São Paulo, 
n. 17, p.131 – 152, jan./jun. 2010. 
 
 
183 
 
 
que se é preciso reafirmar obviedades em tempos de bárbarie21. A 
suspensão de direitos daqueles que subvertem a hegemonia branca dos 
calçadões e trazem à superfície o sintoma da perversa coesão social que 
lhes é imposta, evidencia o caráter eugenista da ideia de “cidade 
maravilhosa”. Este local, onde um mês do salário de muitos de seus 
habitantes é consumido em apenas um dia de capricho dos que detém 
esse privilégio, reproduz o conflito inarredável decorrente dessas 
contradições. A resposta estatal recorrente é a repressão na forma de 
retirada das garantias daqueles a quem se quer combater, dos nossos 
próprios “inimigos” internos, através da batalha diária dos Capitães do 
Mato contra os Capitães de Areia 22. 
Essa ficção jurídica da suspensão do tempo, da invocação de 
artifícios não legais em nome da ordem e do progresso, é instrumento 
de constante aplicação no cotidiano, tanto das democracias, quanto dos 
absolutismos atuais. Seus alvos, em geral os corpos negros que as balas 
policiais insistem em achar 23, sentem todo peso da lógica de 
 
21 A menção se refere à ação impetrada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro 
para ver declarado o raríssimo Direito dos adolescentes de não serem presos a não ser 
que estivessem cometendo algum delito. OUCHANA, Giselle. Vara da Infância e 
Juventude proíbe PM de apreender adolescentes sem flagrante Decisão foi tomada 
após adolescentes serem retirados de ônibus a caminho das praias da Zona Sul no mês 
passado. O Globo, 10 de nov. 2015. Disponível em: 
<http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender-
adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL>. Acesso em: 10 de out. 
2015. 
22 VICE, Marie Declercq da. “PM do Rio impede adolescentes da periferia de ir às 
praias da zona sul”, Folha de São Paulo, 25 de ago. 2015. Disponível em: 
<http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-
adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml>. Acesso em: 07 de out. 
2015. 
23 A menção faz referência ao brilhante artigo escrito por Eliane Brum em que expõe 
a matabilidade e ausência completa de empatia, de emocionabilidade com o que já se 
tornou tão corriqueiro no cenário (bio)político nacional. Intitulado “ECA do B”, busca 
explicitar com uma ironia ácida a lei real (ou a força de lei sem lei) que é a exceção 
http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender-adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL
http://oglobo.globo.com/rio/vara-da-infancia-juventude-proibe-pm-de-apreender-adolescentes-sem-flagrante-17456925#ixzz3mpSv8gQL
http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml
 
 
184 
 
 
dispensabilidade de suas vidas perante a organização social que lhes é 
imposta. A gestão da miséria como bem assevera Loic Wacquant 
através da globalização da lógica da tolerância zero24 introduz uma 
condição do que Agamben vem a denominar campo decorrente da não 
provisoriedade da lógica da exceção, na menção ao nazismo e suas 
concentrações de morte. Essa parcela territorial que, por sua vez, se 
encontra desamparada pelo ordenamento jurídico do qual está inserida 
é o elemento através do qual são dirigidas as políticas públicas de 
extermínio dos indesejáveis nacionais que, tampouco possuem acesso 
aos direitos básicos, bem como, sequer as garantias constitucionais de 
presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, e mesmo, da vida. 
A lei, ainda que assegure suas liberdades e garantias, lhes sujeita, 
enquanto que a prática dá conta de impossibilitar a sua efetivação de 
todas as maneiras. Se, como refere BAUMAN, o holocausto é fruto da 
própria racionalidade da civilização moderna, da lógica do consumo, do 
descarte25, a fabricação de cadáveres não cessou ao findar a segunda 
guerra, mas persiste nas inúmeras Auschwitz nacionais26. 
Não obstante às exigências do cumprimento de certos 
requisitos para sua decretação, o que se verifica na realidade do Estado 
brasileiro é a presença constante da exceção enquanto paradigma de 
 
permanente na lida com a pobreza e os ban(d)idos perpassando os recorrentes 
comentários que dão a tônica do pensamento “comum” vomitado pela pela mídia 
hegemônica. BRUM, Eliane. ECA do B. El País, 28 de set. 2015. Disponível em: 
<http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html>. 
Acesso em: 8 de out. 2015. 
24 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 
25 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução de Marcus Penchel. 
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.32. 
26 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. . São 
Paulo: Boitempo, 2008, p. 79. 
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html
 
 
185 
 
 
governo. A partir desta constatação traçamos um panorama da 
convivência do ordenamento jurídico com as violações às suas garantias 
de parte de seus órgãos promotores, e a serviço de que(m) estão tais 
práticas que atuam na construção da figura do inimigo, e na 
corporificação de toda a culpa das frustrações sociais vividas em 
indivíduos, costas disponíveis ao açoite da chibata do capital. 
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, 
como a instauração por meio do estado de exceção, de 
uma guerra civil legal que permite a eliminação física não 
só dos adversários políticos, mas também de categorias 
inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não 
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de 
um estado de emergência permanente (ainda que, 
eventualmente, não declarada no sentido técnico) tornou-
seuma das práticas essenciais dos Estados 
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos 
27. 
 
A supressão temporária dos direitos, derivada do conceito de 
iustititum deu margem à brutalidade policial vista nas repressões e 
criminalizações dos manifestantes, posta em prática sob argumentos 
estigmatizantes, visando retirar a humanidade dos indivíduos que a 
compunham. Os vândalos, comunistas, anarquistas, subversivos, 
baderneiros travaram uma dura batalha para irromper o abismo que 
separa o governo do povo que, rapidamente, tratou de restabelecer a 
distância rotineira por meio da (i)legitimidade do artifício jurídico-
policial. 
As prisões (i)legais se multiplicaram no intuito de fazer cessar 
à base da força o resquício de contestação que persiste em meio à 
 
27 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13. 
 
 
186 
 
 
naturalização da opressão, da desigualdade e da pobreza. Novas 
formulações legislativas trataram de ser imediatamente propostas e 
impostas, de modo a inserir em um aspecto de maior legitimidade as 
violações rotineiras praticadas contra os manifestantes. A qualificação 
dos sujeitos enquanto inimigos, os tão citados black blocs, serviram, 
assim como qualquer designação exposta pelo quarto poder, para tentar 
justificar as brutalidades do aparato repressivo que estaria combatendo 
um inimigo interno. Não obstante as reiteradas utilizações das forças 
armadas contra a própria população por meio das invasões às 
comunidades periféricas, o núcleo duro da ausência de legitimidade, da 
regra, retomando Benjamin, enquanto consolidação de vontade de uma 
classe sobre a outra, foi largamente expandido de modo a calar a 
crescente discórdia que transborda. 
 
 TEORIAS ANTIGAS DE ATUALIDADE ALARMANTE 
Sob o assombro de constantes inovações legislativas, que 
fornecem o aparato “legítimo” dando instrumentos aos orquestrantes do 
permanente governo de exceção, o Brasil, que antes se deparou com a 
edição da chamada Lei de Segurança Nacional, definida por Heleno 
Cláudio Fragoso enquanto instrumento de perseguição e atemorização 
dos trabalhadores que poderiam reivindicar melhores condições de 
trabalho, agora se vê assombrado por reinterpretações de direitos 
fundamentais em nome da “flexibilização de estruturas arcaicas”. Na 
esfera penal o pensamento derivado da lógica de pensamento no 
combate ao inimigo, que pode estar infiltrado em solo nacional sob a 
carapaça de qualquer cidadão comum, ainda assombra os movimentos 
 
 
187 
 
 
sociais brasileiros como no inquérito que ensejou a detenção prévia da 
estudante de 19 anos em São Paulo por supostos atos preparatórios que 
visavam a depredação de uma viatura, há inúmeras inovações 
legislativas que almejam atualizar ou (re)oficializar as práticas 
repressivas em nome da ‘Segurança Nacional” 28. 
É o caso de inúmeros projetos de Lei, em especial o 
2016/2015, aprovado pela câmara dos deputados que visa a 
regulamentação do terrorismo no Brasil(?), tipificando condutas como 
a sabotagem de bancos de dados de informática, bem como depredação 
de meios de transporte e bens públicos ou privados com sanções de 
reclusão que variam entre doze e trinta anos, nas mesmas penas 
daqueles que usariam conteúdos nucleares ou biológicos capazes de 
promover destruição em massa. A barbaridade ainda segue com pena 
de quatro a oito anos para quem “fizer publicamente apologia de fato 
tipificado como crime nesta Lei” e ainda, ao que parece uma sátira de 
fazer inveja ao artigo 33 da Lei de Drogas, aduz: 
Art. 6º Receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter 
em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta 
ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores 
ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a 
preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei: 
Pena - reclusão, de quinze a trinta anos. Parágrafo único. 
Incorre na mesma pena quem oferecer ou receber, 
obtiver, guardar, mantiver em depósito, solicitar, investir 
ou de qualquer modo contribuir para a obtenção de ativo, 
bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, 
total ou parcialmente, pessoa, grupo de pessoas, 
associação, entidade, organização criminosa que tenha 
 
28 JUSTIÇA paulista livra ativista de ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional. 
Rede Brasil Atual, 1 de jul. 2014. Disponível em: 
<http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista-
de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html>. Acesso em: 12 de out. 
2015. 
http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista-de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html
http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/justica-paulista-livra-ativista-de-ser-enquadrada-na-lei-de-seguranca-nacional-4018.html
 
 
188 
 
 
como atividade principal ou secundária, mesmo em 
caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei. 
29 
O poder executivo pretendeu garantir um instrumento legal 
que torne mais crível a associação ao estigma de sujeito desprovido de 
direitos e garantias face ao tratamento já dispensado pela sua polícia. 
Não obstante os resquícios estruturais do período ditatorial, vivemos 
sob uma crescente punitivista que retoma o saudosismo daquilo que 
houve de mais podre dentre as importações (ou imposições) norte-
americanas, a ideia da Doutrina de Segurança Nacional, logo após o 
“livre-mercado”. Aliás, nesta lógica de estado de guerra em “tempos de 
paz”, de uma liberdade (estritamente de consumo), bem como da 
influência do quarto poder em tempos de populismo penal, é de 
espantosa atualidade as prelusões da obra literária de George Orwell, 
1984: Guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força, 
respectivamente.30 
Em sua Nota aos leitores brasileiros, cujo subtítulo é Rumo a 
uma ditadura sobre os pobres?, Loic Wacquant traça um panorama da 
influência ideológica advinda do Norte, em que a classe miserável, ou 
retomando Marx, o subproletariado, se vê combatida e subjugada ao 
clamor dos pânicos orquestrados pela máquina midiática que alardeia 
os medos da classe média. A insegurança criminal no Brasil, aponta, é 
nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem, expressa 
na letalidade e brutalidade das polícias nacionais que advém de uma 
 
29A íntegra da Redação Final pode está disponível em 
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegracodteor=1373970
&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015>. Acesso em: 12 de out. 2015. 
30 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1373970&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1373970&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2016/2015
 
 
189 
 
 
tradição multissecular de controle da miséria pela força perpassando a 
escravidão, os conflitos agrários e as duas décadas de Ditadura civil-
militar em que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da 
ordem pública se confundem31. 
Profundamente marcada pelo autoritarismo e pela ideia de que a 
defesa de direitos é coisa de vagabundos, subversivos, de quem quer se 
esquivar ao bem, vez que, quem não deve não teme, o Estado Penal 
Brasileiro está posto para responder às desordens suscitadas pelas 
contradições inerentes à lógica da sociedade contemporânea ditada pelo 
consumo, pela falácia da meritocracia, e pela desigualdade material 32. 
Nessa esteira o francês, conclui: 
Em suma, a adoção das medidas norte-americanas de 
limpeza policial das ruas e de aprisionamento maciço dos 
pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do 
mercado desregulamentado só ira agravar os males de 
que já sofre a sociedade brasileira em seudifícil caminho 
rumo ao estabelecimento de uma democracia que não 
seja de fachada, quais sejam, “a deslegitimização das 
instituições legais e judiciárias, a escalada da 
criminalidade violenta e dos abusos policiais, a 
criminalização dos pobres, o crescimento significativo da 
defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução 
generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição 
desigual e não equitativa dos direitos do cidadão”. A 
despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a 
urgência, no Brasil como na maioria dos países do 
planeta, é lutar em todas as direções não contra os 
criminosos, mas contra a pobreza e a desigualdade, isto 
é, contra a insegurança social que, em todo lugar, impele 
ao crime e normatiza a economia informal de predação 
que alimenta a violência 33. 
 
31 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro. ED. Jorge Zahar 2001. 
P. 8. 
32 Ibidem. p. 10. 
33 Ibidem. p.. 13. 
 
 
190 
 
 
 
Conforme nos recorda Taiguara, a criminalização não se 
restringe à gestão da miséria, mas atua visivelmente no controle dos 
atos contestatórios à ordem vigente34. A rotulação, derivada da teoria 
do labelling approach, é fator que conduz ao estigma do homo sacer 
destinado às novas classes perigosas ou aos inimigos públicos. Como o 
foco no trato do inimigo, conforme referido anteriormente, não é, 
propriamente, o de punir ou readequar um sujeito desviante, mas de 
neutralizar uma ameaça à ordem, as mais variadas arbitrariedades 
passam a serem exercidas por meio de armas letais e menos letais de 
parte dos agentes públicos. O processo de construção do Estado 
brasileiro é profundamente tatuado pela tinta da obediência e da 
submissão em que a repactuação do contrato social repete a fórmula do 
coronelismo, do absolutismo e da escravidão, prestando veracidade às 
palavras do rapper paulista Eduardo Taddeo: 
 "Ainda vivemos em temos de chibatas. Senhor de 
escravos virou patrão, capitão do mato virou polícia, 
homem branco virou playboy, escravo virou cidadão de 
renda modesta; casa grande virou mansão; senzala virou 
favela; tronco e pelourinho se transformaram em sistema 
carcerário e navio negreiro se transformou em viaturas da 
polícia." 35. 
 
34 SOUZA, Taiguara Libano Soares e. Estado Policial e Criminalização dos 
Movimentos Sociais: Notas sobre a Iconstitucionalidade do Decreto nº 44.302/13 do 
Governo do Estado do Rio de Janeiro. \R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 
185 - 205, jan - fev. 2015, p. 193. 
35 A frase se deu em postagem em sua página pessoal nas redes sociais. Disponível 
em: <https://pt-
br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792
207>. Acesso em: 11 de out. 2015. 
https://pt-br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792207
https://pt-br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792207
https://pt-br.facebook.com/permalink.php?story_fbid=303931759743679&id=280113148792207
 
 
191 
 
 
O teor criminalizatório dirigido contra os movimentos sociais 
que reivindicam, em suma, a instauração plena das próprias previsões 
constitucionais, acusados não raro de atentarem contra a própria 
democracia, são falácias estratégicas daqueles que estão satisfeitos com 
o desenrolar das coisas. O Brasil, talvez em uma escala maior que 
muitos países, têm gravado no seu cerne o trato aos movimentos sociais 
enquanto casos de polícia, notadamente dada a origem destes no campo 
da esquerda e a histórica caça aos comunistas patrocinada pelo ideário 
do sonho americano, agravada pelo contexto da guerra fria. 
As violações estatais típicas da lógica da exceção culminaram 
por estender o campo exposto por Agamben, das periferias para o 
asfalto, sendo que o absoluto vazio legal instaurado a partir da lacuna 
de poder delegado em que podem atuar as policiais decorre da lógica de 
guerra instaurada do Estado (e seus defendidos) contra sua própria 
população: “Nas zonas indiscerníveis de indistinção entre espaço 
político e vida nua é que a força policial se dá, abrindo o campo de vidas 
matáveis o qual se habita.” 36. As vidas nuas, portanto, também 
passaram a marchar pelas ruas da cidade. 
Que os movimentos sociais sigam a profanar o improfanável, 
como sugere Giorgio Agamben37, de modo a abrir o percurso do novo, 
de modo a manter a humanidade caminhando em busca da utopia como 
sugere Galeano38 para que talvez possa encontrar a justiça social que 
 
36 AMARAL, Augusto Jobim Do. Polícia e democracia: o tempo que resta das 
jornadas de junho de 2013. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 
174-195, jul.-dez. 2014. p. 38 
37 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 79. 
38 GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 1994. 
 
 
192 
 
 
buscam os segmentos historicamente esquecidos, pois, como bem 
lembra o falecido escritor uruguaio: “Em certo sentido, a direita tem 
razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem 
é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem — a 
tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta.”39. 
Libertem Rafael Braga Vieira! 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
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AMARAL, Augusto Jobim do. Polícia e democracia: o tempo que 
resta das jornadas de junho de 2013. Sistema Penal & Violência, Porto 
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39 MELCHIONNA, Fernanda. Milhões nas ruas, mais de 20 motivos e uma 
prisão. Sul 21. Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/milhoes-nas-ruas-
mais-de-20-motivos-e-uma-prisao/>. Acesso em: 13 de out. 2015. 
http://www.sul21.com.br/jornal/milhoes-nas-ruas-mais-de-20-motivos-e-uma-prisao/
http://www.sul21.com.br/jornal/milhoes-nas-ruas-mais-de-20-motivos-e-uma-prisao/
 
 
193 
 
 
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Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v. 1) 
 
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 2016/2015. 
Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição 
Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições 
investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização 
terrorista; e altera as Leis nºs 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 
12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: 
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro
posicao=1514014>. Acesso em 15 de out. 2015. 
 
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Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003. 
 
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo do Direito Penal. Ed. Revan, 
2007. 
 
 
196 
 
 
“MAIS SEGURANÇA E MENOS IMPUNIDADE”: 
O DISCURSO MIDIÁTICO COMO 
INSTRUMENTO DE INCENTIVO E SUPORTE 
DO POPULISMO PUNITIVO 
 
 
Michelle Karen Batista dos Santos1 
Osmar Antônio Belusso Júnior2 
 
INTRODUÇÃO 
O cenário atual dos veículos de comunicação é marcado por 
discursos dominantes que buscam através do endurecimento de penas, 
da criminalização de condutas e da redução de garantias processuais, 
utilizar o sistema penal como solução para o problema da criminalidade 
e da violência, agravando imensamente o problema do encarceramento 
em massa e retroalimentando as condições que possibilitaram e 
legitimam esse fenômeno. 
 
1 Mestranda em Ciências Criminais (PPGCCRIM/PUCRS). Pós-Graduanda em 
Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 
(PUCRS). Graduada em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB/DF). 
Coordenadora do Grupo de Estudos em Criminologia(s) da Escola Superior de 
Advocacia (ESA/OAB-RS). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em 
Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS), 
coordenado pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.. 
2 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Assessor Jurídico do Projeto 
Cada Jovem Conta! – Centro de Prevenção às Violências. Advogado do Grupo de 
Estudos e Intervenção em Matéria Penal (GEIP-SAJU/UFRGS). Integrante do Grupo 
de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal 
(GPESC/PUCRS). 
 
 
197 
 
 
Assim, o presente trabalho pretende trazer à discussão o papel 
desempenhado pela mídia no que se denomina populismo punitivo. 
Para tanto, abordaremos em um primeiro momento aspectos que dizem 
respeito diretamente sobre o funcionamento estrutural das agências de 
comunicação, isto é, quais são seus métodos de atuação e fins almejados 
dentro de uma sociedade intimamente marcada pela violência. 
Após verificarmos quais são os discursos presentes nos meios 
de comunicação, debateremos a sua capacidade de propagar o medo e 
o sentimento de insegurança na população, ensejando, por 
consequência, a defesa de meros slogans, tão vagos quanto ineficazes 
aos fins propostos, mas que produzem efeitos reais e cruéis para aqueles 
selecionados pelo poder punitivo. 
 
 A MÍDIA, O CRIME E O CRIMINOSO 
Antes de tratar especificamente sobre os mecanismos 
utilizados pela mídia a partir da íntima relação que guarda com o 
sistema penal, abordaremos brevemente alguns pressupostos que 
consideramos importantes para compreender esse ente abstrato. Da 
mesma maneira como o século XX trouxe consigo uma série de 
transformações rápidas e radicais nas formas de transportes, a 
metamorfose dos meios de comunicação igualmente representa um 
aspecto essencial dos fatores de mobilidade. Acontece que a 
comunicação é, também, um meio de transporte - que não envolve o 
deslocamento de corpos físicos em si, senão de informação3. 
 
3 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: 
Zahar, 1999. p. 17. 
 
 
198 
 
 
Assim, as mudanças estruturais nas redes comunicacionais 
alteraram profundamente a forma como as relações sociais se 
estabelecem dentro e entre comunidades, através, principalmente, do 
fator velocidade. As informações de terras distantes são limites que se 
quebram na medida em que a velocidade permite o rompimento das 
fronteiras geográficas. Com o surgimento e popularização da internet, 
modificam-se os próprios significados conferidos às noções de 
“viagem”, “distância” e “longe”, uma vez que se traz à tona um novo 
conceito temporal fundamental para a nova configuração dos meios de 
comunicação: a instantaneidade4. 
De acordo com Paul Virilio, esse novo espaço - virtual - é 
desprovido de dimensões espaciais, ao mesmo passo em que é inscrito 
em uma temporalidade muito singular. Inexistem obstáculos físicos ou 
distâncias temporais. Com a variada gama de aparelhos eletrônicos à 
disposição dos indivíduos - computadores, tablets, smartphones, etc. -, 
distinções entre “aqui” e “lá” esvaziam-se ou tornam-se puramente 
artificiais5. O distante fica próximo, o velho torna-se novo. 
Essa velocidade, reduzida ao instante, permite a sensação de 
um “espaço comunitário virtual”, rápido e público. Essa ideia - de que 
compartilhamos uma vida em rede - perpassa pela percepção dos 
acontecimentos pelos indivíduos em circunstâncias simuladas da 
experiência real, ou seja, a mídia possibilita um espaço onde episódios 
distantes no tempo e no espaço se apresentem como um simulacro4 BAUMAN. Ibidem. p. 18. 
5 VIRILIO, Paul apud BAUMAN. Ibidem. p. 20. 
 
 
199 
 
 
simbólico de vivência simultânea, tornando episódios individuais 
imediatamente públicos6 7. 
Entre os acontecimentos sociais que, mais do que se tornarem 
públicos, ascendem à condição de problemas públicos a serem tratados 
pelas narrativas jornalísticas, está o crime - ou melhor: alguns crimes, 
pois como veremos adiante, não são todos os delitos que ingressam na 
agenda de fatos noticiáveis, assumindo maior ou menor enfoque de 
acordo com o caldo cultural da sociedade em que estão inseridos. 
Crime, mídia e cultura, assim, se entrelaçam fortemente: “o fascínio 
contemporâneo da imprensa noticiar a ação violenta relaciona o medo 
dos indivíduos de serem vítimas de um crime e o imperativo da 
modernidade de promoção de entretenimento”8. 
As decisões tomadas pela mídia para a escolha de quais temas 
são ou não inseridos no debate público, bem como em qual intensidade, 
diz respeito à estrutura de seu funcionamento, onde a seleção do que 
vira notícia passa por um conjunto de diretrizes pré-estabelecido, 
configurando o que se denomina agenda-setting9. Desse modo, o 
 
6 MELO, Patricia Bandeira de. Criminologia e teorias da comunicação. In: LIMA, R. 
S.; RATTON, L. L.; AZEVEDO, R. G. (Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. 
São Paulo: Contexto, 2014. p. 165. 
7 No entanto, em que pese as redes sociais digitais tenham possibilitado um ambiente 
em que é possível o estabelecimento de diversas discussões que dizem respeito a 
questões sociais ou das agendas políticas, não conseguiram garantir, ainda, a sua 
inclusão no debate público, onde as chamadas "velhas mídias" - televisão, jornal, 
rádio, etc. - ainda detêm o monopólio de "tornar as coisas públicas", dando 
visibilidade a determinados assuntos em um espaço formador de opinião pública. 
LIMA, Venício de A. Mídia, rebeldia urbana e crise de representação. In: Cidades 
rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: 
Boitempo, 2013. p. 90. 
8 MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 165-166. 
9 MELO, Patricia Bandeira de. Histórias que a mídia conta: o discurso sobre o crime 
violento e o trauma cultural do medo. Tese (Doutorado em Sociologia) - PPGS, 
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2010. p. 154. 
 
 
200 
 
 
processo de absorção de informação por parte do público não está 
condicionado apenas às seleções realizadas pela mídia sobre quais 
temas são apresentados, como também pela ênfase dada a cada tópico, 
acarretando na variação da carga de relevância depositada nas notícias. 
Nas palavras de Maxwell McCombs, a partir de tradução livre dos 
autores: 
 
Os jornais fornecem uma série de sugestões sobre a 
relevância dos tópicos nas notícias diárias: história 
principal na primeira página, capa diferenciada, grandes 
manchetes, etc. As notícias na televisão também 
oferecem numerosas sugestões sobre essa relevância: a 
história de abertura do noticiário, o tempo dedicado a 
cada história, etc. Essas sugestões repetidas dia após dia 
efetivamente comunicam a importância de cada tópico10. 
 
Assim, é possível afirmar que o discurso dos meios de 
comunicação produz efeitos de sentido, isto é, indicam para o indivíduo 
receptor da notícia - leitor/telespectador - o caminho de significações 
para os acontecimentos narrados, bem como a linha de construção da 
sua agenda pessoal de preocupações11. Os critérios para a 
noticiabilidade de um determinado acontecimento são, como mostra 
Patricia Bandeira de Melo, os denominados valores-notícia: 
constituem-se a partir de alguns medidores de relevância, como a 
importância do evento, quais os agentes envolvidos e a existência de 
conflito. Busca-se aquilo que é novo, inusitado, controverso, incomum, 
bárbaro12. 
 
10 MCCOMBS, Maxwell. The Agenda-Setting Role of the Mass Media in the Shaping 
of Public Opinion. Austin: University of Texas at Austin, 2003. p. 1. 
11 MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 155. 
12 MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 158. 
 
 
201 
 
 
Segundo Elihu Katz, “o elemento de grande drama ou ritual é 
essencial: o processo tem de estar carregado de emoções ou símbolos, 
e o resultado repleto de consequências”13. Por essa razão, o crime 
assume papel protagonista nos veículos de comunicação, configurando 
um tema capaz de elevar drasticamente os índices de audiência. 
Arquiteta-se calculadamente a forma mais dramática e emocional de se 
expor um fato delitivo para manter a atenção do público. A narrativa 
apelativa requer a cerimônia, necessita de vilões, heróis e vítimas e 
deseja a culpa e a punição14 15. 
Entretanto, tais explicações, por si só, não compõem uma gama 
completa que dá conta de explicar um fenômeno tão complexo como o 
que ocorre no interior dos meios de comunicação. Se por um lado existe 
uma forte relação de interesse entre violência e audiência, também é 
certo que essa equação não encerra a questão criminal na mídia, sob 
pena de incorrermos em ingenuidade. Mais que isso, as agências de 
comunicação procuram constituir-se como os instrumentos de análise 
dos conflitos e dos problemas sociais por excelência, necessitando, para 
isso, de uma racionalidade bastante funcional para a sua performance. 
Essa estrutura de pensamento é o discurso criminológico midiático - tão 
distante daquele produzido no âmago da academia. Os demais discursos 
devem ser ignorados ou no mínimo menosprezados, como forma de se 
fortalecer uma mentalidade una e homogênea16. 
 
13 KATZ, Elihu apud MELO. Histórias que a mídia conta. Ibidem, p. 161. 
14 MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 170. 
15 A incompreensão do “herói” sendo punido como se “vilão” fosse: "Homem preso 
por balear criminosos desabafa: 'Tratado como vagabundo'", In: G1, 26/02/2015. 
Disponível em <http://glo.bo/1833dXd>. Acesso em 15/02/2017. 
16 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Biblioteca On-line 
de Ciências da Comunicação. ISSN: 1646-3137. 2003 Disponível em 
http://glo.bo/1833dXd
 
 
202 
 
 
Faz-se uso de profissionais, ditos especialistas, para que as 
afirmações desse discurso - que jamais encontrariam uma comprovação 
empírica -, validem seus enunciados, por mais vagos que sejam. Nilo 
Batista traz exemplos de slogans conhecidos - que possuem tanto um 
grau elevado de introjeção, quanto de inverdade: "a impunidade 
aumenta o número de crimes", "nas drogas é como uma escada, passa-
se das mais leves para as mais pesadas", "penas elevadas dissuadem”, 
etc. A regra oculta está na não-dissidência, ou seja, só se concede um 
espaço para que um profissional tenha voz quando a sua fala converge 
com o discurso criminológico homogêneo da mídia. O especialista 
complementa e legitima a informação, principalmente quando suas 
ideias não são a notícia. É a figura do argumento de autoridade17. 
Os relatos diários das narrativas delitivas não são imparciais e 
tampouco meramente descritivos. Vêm à tona já em formato de 
acusação - por vezes mais severas que a própria acusação formal, pois 
ausentes quaisquer possibilidades de defesa - e é marcada por um tom 
moralizante e maniqueísta: nós contra eles, cidadãos de bem contra 
delinquentes, o bem contra o mal.1819 Ocorre nesse meio a (nem sempre 
mascarada) estigmatização, onde enquadram-se indivíduos e grupos em 
um perfil estereótipo delinquente. A identificação de sinais - e quanto 
 
<http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em 
09/02/2017. p. 6-7. 
17 BATISTA. Ibidem, p. 9. 
18 BATISTA. Ibidem, p. 14. 
19 Ainda, sobre a violência dos bons: "Marconi: Entre o cidadão de bem e o bandido, 
nós todos estamos ao lado do cidadão de bem", In: Jornal Opção,06/04/2016. 
Disponível em <http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-
cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-
63018/>. Acesso em 15/02/2017. 
http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf
http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-63018/
http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-63018/
http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/marconi-entre-o-cidadao-de-bem-e-o-bandido-nos-todos-estamos-ao-lado-do-cidadao-de-bem-63018/
 
 
203 
 
 
mais visíveis melhor - atua na vinculação da pessoa a uma determinada 
condição, a de perigosa20. 
A ideia do “bandido”, do indivíduo perigoso, dá base para a 
criação do inimigo no imaginário social. Eugenio Raúl Zaffaroni 
compreende que essa conceituação surge da separação entre cidadãos 
(pessoas) e inimigos (não-pessoas), onde este último possuirá um 
tratamento diferenciado por parte do Estado, em virtude de sua suposta 
periculosidade. Ao retirar-lhe a condição de pessoa, coisifica-se a 
pessoa e permite-se toda espécie de neutralização21. 
A tendência dentro desse espectro, embora não seja uma norma 
rígida, seja que a conduta dos “cidadãos de bem” seja via de regra 
compreendida como positiva, enquanto a conduta dos “inimigos”, em 
regra de modo negativo. O paradoxo se instala quando se percebe que 
existem comportamentos destrutivos e que causam danos há inúmeras 
pessoas que não são vistos como movimentos violentos, como é o caso 
das demissões em massa, do uso de métodos exploratórios no mercado 
de trabalho, etc., em detrimento de condutas menos danosas, mas que 
são duramente criminalizadas, como o vandalismo ou o furto. 
Esse tratamento diferenciado se faz vividamente presente nas 
agências de comunicação, através de uma seletividade que opera 
através de filtros de raça, classe e outros marcadores sociais.22 Segundo 
 
20 FOSCARINI, Léia Tatiana. O discurso midiático nos meandros da criminalização: 
contemporaneidade e movimentos sociais. 2008. Disponível em: 
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33559-43484-1-PB.pdf>. 
Acesso em 15/02/2017. p. 4. 
21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: 
Revan, 2007. p. 18. 
22 Impossível não trazer o clássico exemplo da discrepância entre duas manchetes do 
mesmo jornal de grande circulação nacional: "Polícia prende jovens de classe média 
com 300 kg de maconha no Rio", In: G1, 27/03/2015. Disponível em 
<http://glo.bo/1NhRaoR>. Acesso em 15/02/2017; e "Polícia prende traficante com 
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33559-43484-1-PB.pdf
http://glo.bo/1NhRaoR
 
 
204 
 
 
Melo, “crimes de ordem tributária, por exemplo, estão nas páginas de 
economia ou política dos jornais, enquanto os crimes violentos ocupam 
as páginas policiais”23, quando não toda a primeira página. Notícias 
relacionadas a violência geralmente aparecem vinculadas aos setores 
mais pobres da sociedade. Como já foi exaustivamente exposto pelas 
edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o jovem pobre, 
negro e da periferia é a vítima número um, seja da prisão, seja da morte 
violenta, realizando a mídia um acompanhamento quase em tempo real, 
como um reality show, distante de qualquer postura crítica24. 
Léia Tatiana Foscarini escolhe muito bem as palavras quando 
afirma que a mídia não expõe simplesmente um fato, mas que "vende a 
notícia, cuidadosamente recortada e selecionada, exibindo um discurso 
parcial, dotado de pré-conceitos e de tratamentos diferenciados”25. 
Uma mídia que detenha um poder tal que, além de funcionar da maneira 
exposta, ainda seja capaz de pautar a atividade das agências executivas 
do próprio sistema penal26, merece, no mínimo, atenção redobrada. 
 DO MEDO DO CRIME AO POPULISMO PUNITIVO 
No Brasil, a utilização da concepção abrangente de educação, 
voltada para o desenvolvimento da pessoa humana e para o exercício 
 
10 quilos de maconha em Fortaleza", In: G1, 17/03/2015. Disponível em 
<http://glo.bo/1MIwOmK>. Acesso em 15/02/2017. 
23 MELO. Criminologia e teorias da comunicação. Ibidem. p. 168. 
24 Sobre tratamento diverso para diferentes pessoas em diferentes classes sociais: "No 
aeroporto de NY, Eike é parado por brasileiros para selfies", In: O Globo, 30/01/2017. 
Disponível em <http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por-
brasileiros-para-selfies-20841665>. Acesso em 15/02/2017; enquanto, por outro lado: 
"Assaltante é linchado após arrombar casa em Caruaru", In: Folha de Caruaru, 
16/12/2016. Disponível em: <http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e-
linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/>. Acesso em 15/02/2017. 
25 FOSCARINI. Ibidem, p. 11. 
26 BATISTA. Ibidem, p. 13. 
http://glo.bo/1MIwOmK
http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por-brasileiros-para-selfies-20841665
http://oglobo.globo.com/brasil/no-aeroporto-de-ny-eike-parado-por-brasileiros-para-selfies-20841665
http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e-linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/
http://www.folhadecaruaru.com.br/assaltante-e-linchado-apos-arrombar-casa-em-caruaru/
 
 
205 
 
 
da cidadania, garantiu com que a Constituição da República 
prescrevesse que os conteúdos das programações dos meios de 
comunicação social devem atender às finalidades educativas, artísticas, 
culturais e informativas27. O radio e a televisão, por constituírem formas 
de serviços públicos, devem se submeter à regulação adequada, 
cumprindo com as devidas obrigações, tal como o atendimento ao fim 
educacional. De forma que, quando se fala da importância da regulação 
do setor de comunicação, não se trata de censura, mas de resultado do 
processo de juridicização da atividade de radiofusão28, onde se busca a 
proteção dos bens e valores, difusos e coletivos, mais vulneráveis. 
O comprometimento finalístico com delimitados valores 
públicos e sociais estabelece existência de compatibilidade entre o 
exercício das liberdades e a obtenção desses fins. No entanto, os 
grandes empresários do setor de radiofusão, preocupados apenas com 
seus interesses, se mostram contrários a qualquer tipo de regulação ou 
de controle29, alegando “defesa da liberdade de expressão”, utilizada 
muitas vezes para mascarar atuações arbitrárias que entram em choque 
com outros direitos, tais como o direito à honra e à intimidade. 
No fenômeno da indústria cultural30, os responsáveis pela 
cultura de massa oferecem produtos de baixa qualidade em razão dos 
seus interesses particulares baseados exclusivamente no lucro, de 
 
27 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: 
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. 
Acesso em 07/02/2017. 
28 ANDRÉA, Fernando de. O protagonismo dos meios de comunicação social: 
algumas reflexões. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de 
Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 464. 
29 ANDRÉA. Idem. 
30 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, 1984. p. 57. 
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
 
 
206 
 
 
maneira que o sucesso está nas práticas de manipulação adotadas, estas 
que garantem altos índices de audiência. Pensar em espectador como 
consumidor é ignorar inúmeras demandas, motivo pelo qual se faz 
necessária a regulação do setor, a fim de impulsionar o 
desenvolvimento de uma cidadania social, política e cultural31. E, 
também, no que tange ao pluralismo e à participação de grupos 
minoritários e excluídos, há que se perceber o problema da 
concentraçãovertical e de seus reflexos nocivos32. 
Tratando da necessidade de regulação dos meios de 
comunicação, há que se falar que a política cultural tem relação 
estratégica com as políticas de educação, comunicação social e mesmo 
com as de segurança pública, sendo essas relações elementos essenciais 
para o processo de transformação social. No entanto, 
especificadamente, no que tange à relação com a segurança pública, 
apresenta-se um problema denominado de “ideologia do repressivismo 
saneador”33, questão propagada pela mídia que, mediante a 
espetacularização, dissemina o medo na sociedade34, fazendo com que 
a criminalidade apareça como o problema social mais relevante. 
É o discurso punitivo, difundido pelos meios de comunicação 
em massa, que busca o aumento das penas e o cerceamento das 
garantias fundamentais, colocando a criminalidade como maior mal a 
ser combatido. Frisa-se, aqui, a importância do que Nilo Batista35 
 
31 ANDRÉA. Ibidem, p. 465. 
32 ANDRÉA. Ibidem, p. 467. 
33 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos de 
instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 15. 
34 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: Comentários sobre a Sociedade do 
Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. p. 28. 
35 BATISTA. Ibidem. p. 3. 
 
 
207 
 
 
denominou de “novo credo criminológico da mídia”, cujo núcleo reside 
na ideia de glorificação da pena. A vinculação entre mídia e o sistema 
penal apresenta uma disputa desigual entre o discurso criminológico 
acadêmico e o discurso criminológico midiático, de caráter 
hegemônico36, haja vista que este demonstra ter as melhores soluções 
para o exercício do controle penal dos contingentes humanos, por ele 
marginalizados37. 
Os meios de comunicação atuam como agentes políticos, 
idôneos para moldar a opinião pública. Noticiam fatos a partir de 
formas próprias de percepção do real, defendendo um Estado Penal 
máximo, em detrimento do Estado social, garantindo uma “onda 
punitiva” que por onde passa leva as consequências terríveis da miséria 
e persegue os inconvenientes sociais38. E, longe de apresentar qualquer 
hipótese de redução ou alteração das condições que atingem a 
população marginalizada, toda solução é depositada na prisão, ali aonde 
irá se conter, controlar e confinar os elementos considerados 
perigosos39. 
Temos na mídia fontes de percepção do delito e dos “caminhos 
necessários para solução dos problemas da segurança pública”, sendo 
essas informações, muitas vezes, transmitidas de forma abstrata e 
confusa. Nessas sociedades da informação, há a transformação de fatos 
que ocorrem em âmbitos mais reduzidos da coletividade em 
 
36 ANDRÉA. Ibidem, p. 468. 
37 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 
21. 
38 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Neoliberalismo, mídia e movimento de lei e 
ordem: rumo ao Estado de Polícia. In: Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, 
n° 15/16, 262. 
39 ANDRÉA. Ibidem, p. 469. 
 
 
208 
 
 
acontecimentos públicos e, a partir desses alarmismos, os cidadãos 
adquirem uma dimensão social que dificilmente pode ser construída 
sem essas ações midiáticas40. 
As indústrias da comunicação surgem como as grandes 
mediadoras entre a cidadania e o mundo do delito, no sentido de que 
boa parte do que os indivíduos sabem e imaginam do crime é baseado 
nas imagens divulgadas na televisão, nas informações radiofônicas e 
nos discursos da imprensa escrita41. E, talvez, nem possam ser 
consideradas mediadoras, pois são elas que elaboram a mensagem 
transmitida. Essa forma de atuação alarmista, insistente e 
sensacionalista, mostra o forte papel da mídia na transformação dos 
imaginários coletivos da (in)segurança42 e na ampliação da cultura do 
medo. Precisando entender que o discurso do medo produz a imagem 
necessária do terror social, e é transferido de forma tão natural ao senso 
comum que se torna mais espontânea a exigência de uma ação estatal 
cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos estados 
totalitários43. 
Baierl44 entende que na nossa sociedade e na história da 
humanidade, o medo é usado como instrumento de manipulação, 
tornando as pessoas escravas e dominadas por determinados grupos, 
indivíduos ou situações. Assim, o poder de manipular as pessoas através 
 
40 BARATA, Francesc. A midiatização do direito penal. In: Discursos sediciosos - 
crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 471. 
41 BARATA. Ibidem, p. 476. 
42 BARATA. Idem. 
43 SOBRINHO, Sergio Francisco Carlos Graziano. Reflexões sobre os fundamentos 
de uma sociedade de controle. In: Discursos sediciosos - crime, direito e sociedade. 
Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, n° 21/22, p. 333. 
44 BAIERL, Luzia Fátima. Medo social: da violência visível ao invisível da violência. 
São Paulo: Cortez, 2004. p. 39. 
 
 
209 
 
 
do medo não é uma novidade, no entanto, o poder da mídia trouxe 
amplitude à essa manipulação45. O medo passou a ser usado de forma 
consciente para manipular as forças populares, revelando-se uma 
importante ferramenta para se alcançar o consenso na sociedade para o 
recrudescimento penal46. Bauman47 traz que esse medo tem caráter 
difuso, pois eles 
 
podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares 
e de nosso planeta. Das ruas escuras ou de telas luminosas 
dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. 
De nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos 
para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas 
que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e 
de algo com o qual nossos corpos entram em contato. Do 
que chamamos “natureza” (pronta, como dificilmente 
antes em nossa memória, a devastar nossos lares e 
empregos e ameaçando destruir nossos corpos com 
proliferação de terremotos, inundações, furacões, 
deslizamentos, secar e ondas de calor) ou de outras 
pessoas (prontas, como dificilmente antes em nossa 
memória, a devastar nossos lares e empregos e 
ameaçando destruir nossos corpos com a súbita 
abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos, 
agressões sexuais, comida envenenada, água ou ar 
poluídos). 
 
O medo sentido e a criação desse pânico social, muitas vezes 
pela maximização operada pelos meios de comunicação, criam 
condições necessárias para que a população legitime o recrudescimento 
penal, aceite a redução de direitos e garantias, e se torne consumidora 
dos produtos de segurança. Ressaltando-se que esse recrudescimento é 
 
45 FELETTI, Vanessa Maria. Vende-se segurança: a relação entre o controle penal da 
força de trabalho e a transformação do direito social à segurança em mercadoria. Rio 
de Janeiro: Revan, 2014. p. 125. 
46 FELETTI. Ibidem, p. 126. 
47 BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 11. 
 
 
210 
 
 
voltado para os delitos pelos quais os trabalhadores pobres são mais 
perseguidos, já a redução de direitos e garantias é para todos - mas 
principalmente para esses indivíduos, pois eles são o principal alvo do 
controle penal e os que são mais criminalizados pela mídia48. O 
consumo dos produtos de segurança, dessa forma, é consequência do 
medo de ser vítima de um crime. 
Essa cultura de propagar o medo e as pulsões repressivas 
presentes na sociedade, foi justamente chamada de “populismo penal”, 
expressão que caracteriza 
 
qualquer estratégia referente ao tema da segurança 
voltada para obter demagogicamente o consenso popular, 
respondendo ao medo da criminalidade com um uso 
conjuntural do direito penal tão duramente repressivo e 
antigarantista quando ineficaz a respeito das finalidades 
declaradas de prevenção49. 
 
As emoções coletivas passaram a ser um fator essencial nas 
políticascriminais, um fenômeno semelhante à sua inclusão no discurso 
político. Não é por acaso que o tema da (in)segurança vem ganhando 
amplo destaque nos debates eleitorais50. Apoiada nos alarmismos 
midiáticos, fortalece-se uma criminologia que comercializa “com 
imagens, arquétipos e ansiedades, em lugar de estar fundamentada em 
uma análise meticulosa e nos descobrimentos da investigação 
científica.”51. E é assim que muitas medidas abrangidas pelo populismo 
 
48 FELETTI. Ibidem, p. 127. 
49 SALAS, Denis apud FERRAJOLI, Luigi. Democracia e medo. Discursos 
sediciosos - crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, Ano 19, nº 21/22. p. 
118. 
50 BARATA. Ibidem, p. 485. 
51 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad 
contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005. p. 93-94. 
 
 
211 
 
 
punitivo são colocadas em prática depois de uma cobertura midiática 
intensiva, quando não sensacionalista, a respeito de determinados 
problemas sociais52. 
Amaral53 ressalta que “a paixão por punir, alimentada pelo 
populismo penal, é imposta, sobretudo, pelo afeto. Quebra-se qualquer 
olhar compreensível quanto ao acusado, na medida em que a 
indignação coletiva relega este olhar ao mal personificado”. A 
mudança de sentido do papel do direito penal e do conceito de 
segurança, somada ao alarme social, à dramatização do medo e ao 
populismo punitivo, formam a palavra de ordem “tolerância zero”, esta 
que é muito admirada, no entanto, nos custa a transformação das 
sociedades em regimes disciplinares, submetidos à vigilância invasiva 
e (nem sempre) sutil da polícia54. 
É preocupante a verificação de como as mensagens midiáticas 
estão se transformando nos melhores aliados das políticas 
conservadoras em matéria penal, já que suas informações favorecem a 
indignação e é sobre ela que as ações de “tolerância zero” são 
legitimadas55. Como afirma Garland, o sentimento que perpassa a 
política criminal “é agora, com mais frequência, uma irritação coletiva 
e uma exigência moral de retribuição, ao invés do compromisso de 
buscar uma solução justa, de caráter social”56. As políticas criminais 
estão sendo guiadas pelo discurso midiático de alarmismo e 
disseminação da cultura do medo. Há uma grande influência da mídia 
 
52 BARATA. Ibidem, p. 486. 
53 AMARAL, Augusto Jobim do e ROSA, Alexandre Morais da. Cultura da punição: 
a ostentação do horror. 2º ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 71. 
54 FERRAJOLI. Ibidem, p. 124-125. 
55 BARATA. Ibidem, p. 487. 
56 GARLAND. Ibidem, p. 45. 
 
 
212 
 
 
na agenda penal, isto fica mais claro quando constatamos que os meios 
de comunicação estão atuando como o ator principal nas dinâmicas 
atuais das políticas criminais57. Sem a mídia, restaria uma grande 
dificuldade de compreender o auge do populismo punitivo e a 
consolidação do Estado Penal. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
As reflexões, dentro das perspectivas aqui apontadas, 
apresentaram os profundos laços existentes entre os meios de 
comunicação social e as políticas populistas de sustentação do medo, 
estas que são inúteis, restringem liberdades e enfraquecem a luta por 
uma sociedade justa e solidária. O medo propagado consegue romper 
relações sociais, alimenta tensões, gera ódios e aumenta o desejo de 
vingança, envenenando a população, a fim de garantir um bom espaço 
para a cultura punitiva que ameaça a democracia. 
Compreendemos que os alarmismos midiáticos se tornam 
alarmismos sociais quando a mídia consegue, através de seu discurso 
desproporcional, insistente e sensacionalista, atingir a emoção pública 
e ser determinante para a formação da opinião dos cidadãos. E, assim, 
os meios de comunicação deixam de ser agentes de transmissão de 
informações, para se transformarem em instrumento de incentivo e 
suporte do populismo punitivo. 
Contestar esses processos é desenvolver novas formas de 
enxergar o outro e a justiça. O agora urge pela regulação da mídia, por 
novas formas de solidariedade e pela defesa da luta contra as políticas 
 
57 BARATA. Ibidem, p. 487. 
 
 
213 
 
 
populistas de punição. Que o caminho seja de liberdades, igualdades e 
pluralidade. 
 
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