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LLPT_LiteraturaPortuguesaI_impresso-104

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cuidei me sobejavam. Mas em isto como em as outras cousas também me 
enganei: que agora já ha dous anos que estou aqui e não sei ainda tão 
somente determinar para quando me aguarda a derradeira hora.
Não pode já vir longe. Isto me pôs em dúvida de começar a escrever as 
cousas que vi e ouvi. Mas depois, cuidando comigo, disse eu que arrecear 
de não acabar de escrever o que vi, não era cousa para o deixar de fazer, 
pois não havia de escrever para ninguém senão para mim sou, ante quem 
cousas não acabadas não havia de ser novo: que, quando vi eu prazer 
acabado ou mal que tivesse fim? Antes me pareceu que este tempo que hei-
de estar assi em este ermo (como ao meu mal aprouve), não o podia 
empregar em cousa que mais de minha vontade fosse. Pois Deus quis, assi 
minha vontade seja. Se em algum tempo se achar este libro de essoas 
alegres, não o levam: que por aventura parecendo-lhe que seus casos serão 
mudáveis como os aqui contados, o seu prazer lhes será menos prazer. Isto, 
onde eu estivesse, me doeria; porque assaz [abastava] nascer eu para 
minhas mágoas senão ainda para as doutrem. Os tristes o poder em ler, 
mas ai não os ouve mais, depois que nas mulheres ouve piedade. Nas 
mulheres, sim, porque sempre nos homens ouve desamor. Mas para elas 
não o faço eu; que pois que o seu mal é tamanho, que se não pode confortar 
com outro nenhum, é para as mais entristecer. Sem-razão seria querer eu 
que o lessem elas; mas antes lhes peço muito que fujam dele e de toda as 
cousas de tristeza; que ainda com isto poucos serão os dias que hão-de 
poder ser ledas, porque assi está ordenado pela desventura com que elas 
nascem. Para há só pessoa podia ele ser; mas desta não soube eu mais 
parte, depois que suas desditas e minhas o levaram para longes terras e 
estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possui a terra sem prazer 
nenhum.
Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vos comigo 
e eu convosco, sós, só íamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos 
para os de depois! A vos contava eu tudo. Como vos fostes, tudo se tornou 
tristeza; nem parece ainda senão que estava espreitando já que vos fosses. 
E por que tudo ainda mais me magoasse, tão somente não me foi deixado 
em vossa partida o conforto de saber para que parte de terra ies, que 
descansaram meus olhos em levarem para lá a vista. Tudo me foi tirado no 
meu mal, nem remédio nem conforto ouve ai. Para morrer, azinha me 
pudera isto aproveitar; mas para isto não me aproveitou. Inda convosco 
ousou desaventura algum modo de piedade en vos alongar desta terra: pois 
que para não sentirdes mágoas não havia remédio, para as não ouvirdes 
vo-lo deu.
Coitada de mim, que estou falando e não vejo ora eu que leva o vento 
as minhas palavras, en que me não pode ouvir a quem falo. Bem sei que 
não era eu para isto. Aqui me quero ora por, porque escrever alga cousa 
pede alto repouso, e a mim as minhas mágoas oras me levam para um cabo 
oras para outro e trazem-me assi, que me é forçado tomar as palavras que 
me elas dão, porque não são tão constrangida servir ao engenho como à 
minha dor. Destas culpas me acharam muitas neste livrinho, mas da minha 
ventura foram elas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpas 
nem desculpas, que o livro há-de ser do que vai escrito nele?
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