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O Navio Negreiro

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C A S T R O A L V E S
 
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O NAVIO
Primórdios do Fantástico Brasileiro
EX! Editora
2016
Castro Alves, 1869
Revisão e notas
Alec Silva
Capa e editoração digital
Samuel Cardeal
Imagem da Capa
Johann Moritz Rugendas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ­ CIP:
Castro Alves, 1857 ­ 1871
Al474n O navio negreiro / Castro Alves – Luís Eduardo Magalhães, EX!
Editora/2016
1. Poesia brasileira 2. Castro Alves, 1869
CDD B869.1
CDU 82­1/49 (81)
 
Esta obra encontra­se em domínio público, de acordo com a lei nº 9.610 ­ de 19
de fevereiro de 1998, art. 41.
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ABOLIÇÃO
PRIMÓRDIOS DO FANTÁSTICO BRASILEIRO
APÊNDICES
BIOGRAFIA DE CASTRO ALVESSOBREAIMAGEMDACAPA
VI
IIIIVV
PREFÁCIO
O NAVIO NEGREIRO
I
II
SUMÁRIO
PREFÁCIO
No ano de 1585, na Bahia, o número de africanos era
estimado entre três a quatro mil. Em 1714, a cada vinte e uma
pessoas, aproximadamente vinte eram negras. Em 1807, o número
de negros era igual ao de brancos e mestiços reunidos. Quase
todos, contudo, eram escravos, trazidos para os trabalhos severos
da plantação. A princípio, os portugueses tentaram escravizar os
índios, que não se adaptavam à condição tanto quanto era o
esperado pelos colonizadores. Portugal, desde 1433, já fazia tráfico
de escravos; a proximidade da costa ocidental africana facilitava
essa prática desumana. Guiné, Ilha de São Tomé, Congo, Angola e
Moçambique eram os mercados mais procurados. E isso durou por
mais de 400 anos, com seu auge nos séculos XVIII e XIX, devido
à procura de mão de obra para a mineração em geral e o
desenvolvimento da lavoura de cana­de­açúcar e café. Com isso,
milhões de escravos africanos chegaram ao Brasil. Em 1781, havia
cinquenta navios negreiros — em 1800, só para a Bahia eram
empregados vinte. Ainda que muitos morressem durante a viagem,
um escravo negro era lucrativo: em Pernambuco, por exemplo, no
começo do século XIX, cada indivíduo era avaliado em 32 libras
esterlinas (um boi valia 31 libras, para nível de comparação).
Depois de um tratado entre a Grã­Bretanha e o Brasil ter sido
assinado, em 1831, que deveria abolir o mercado escravagista,
ainda foram trazidos quase meio milhão de africanos para terras
brasileiras. Os fazendeiros não queriam perder a mão de obra, e os
brancos consideravam humilhante o trabalho da terra, sendo
comum o ditado “Trabalho é para negro e cachorros”. Mas já
havia, nesse cenário, reações contra o escravagismo. José
Bonifácio, em 1823, e Feijó, em 1831, haviam proposto medidas a
favor dos negros — medidas estas conhecidas como “leis para
inglês ver”. Alforrias começaram a acontecer, tanto por dinheiro
quanto por testamento, revoltas e brados eram erguidos em todos
os cantos; os senhores de engenho e os fazendeiros, todavia,
resistiam, encontrando apoio no Império. Foi neste contexto
histórico turbulento que nasceu o maior dos abolicionistas, que fez
de sua luta contra o regime escravagista o tema constante não
apenas de sua vida, como de suas obras: Castro Alves.{1}
As poesias mais conhecidas de Castro Alves são marcadas
pelo combate à escravidão, o que lhe rendeu a alcunha de “Poeta
dos Escravos”. Diferente de outros autores da época, que tomaram
o índio como herói, Alves tomou o negro, tido como casta inferior
na sociedade e, na época, sem nenhum valor mítico. Na tenra idade
de vinte e dois anos, em 1869, escreveu O Navio Negreiro. Apesar
de vinte anos passados da promulgação da Lei Eusébio de Queirós,
que proibiu o tráfico de escravos, em 4 de setembro de 1850, a
prática ainda era frequente.
O Navio Negreiro é divido em seis partes. A primeira é
composta onze estrofes de quatro versos, onde rimam os segundos
e quartos versos; aqui, o autor descreve as belezas do alto­mar,
desde o lugar que reluz a dourada borboleta até o vento que nas
cordas assobia. Na segunda — composta por quatro estrofes de dez
versos, cujas rimas se encontram entre os versos: primeiro e
terceiro; segundo e quarto; quinto e sexto; sétimo e décimo, e
oitavo e nono — Alves segue retratando a vida a bordo e a glória
dos marinheiros.
A terceira parte é composta de estrofe única, mais sombria,
que marca a transição das primeiras partes, mais amenas e
românticas, para as seguintes, mais duras; é como se o poeta
pegasse na mão do leitor e o encaminhasse em direção ao porão do
navio. A quarta parte — seis estrofes de seis versos, rimando
primeiro e segundo, terceiro e sexto, e quarto e quinto — é onde se
ultrapassa o limiar, onde o leitor, de fato, adentra o porão escuro
onde os negros estão amontoados como peças de carne. Aqui,
Castro Alves retrata os horrores sofridos pelos escravos como a
fome, a dor e as violências física e psicológica.
A parte cinco do poema apresenta noves estrofes de dez
versos — as rimas seguem a métrica da segunda parte, excluindo­
se os versos primeiro e terceiro, que não rimam. Essa parte soa
como o lamento do negro, com o questionamento a Deus e o
desejo que todo aquele horror não passe de um pesadelo.
Última parte do poema, a sexta divisão possui apenas três
estrofes de oito versos — rimam: primeira, terceira e quinta;
segunda, quarta e sexta; e sétima e oitava. Carregada de um
otimismo peculiar do brasileiro, encerra a obra com esperança, mas
com o realismo de quem tem clareza do quão dura e longa a
batalha será.
Bem vindos ao Navio Negreiro.
Vida longa a Castro Alves!
Samuel Cardeal
O NAVIO NEGREIRO
I
‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
‘Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz­me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos{2} profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
 
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar­te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan{3} do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá­me estas asas.
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena{4}
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas{5}
Requebradas de langor{6},
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
—Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso{7},
Junto às lavas do vulcão!
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deusna Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson{8} e de Aboukir{9}...
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos{10},
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses{11} cortou,
Homens que Fídias{12} talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero{13} gemeu...
Nautas{14} de todas as plagas{15},
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d’amarguras!
É canto funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a sebanhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri­se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem­se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrairijo o chicote, marinheiros!
Fazei­os mais dançar!...”
E ri­se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri­se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei­me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize­o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...
São mulheres desgraçadas,
Como Agar{16} o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael{17}.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm’lo de maldade,
Nem são livres p’ra morrer...
Prende­os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei­me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa­a transformar­se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!... Da etérea plaga
Levantai­vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
 
APÊNDICES
BIOGRAFIA DE CASTRO ALVES
Antônio de Castro Alves nasceu no dia 14 de
março de 1847, domingo, às 10 horas da manhã,
na Fazenda Cabaceiras, banhada pelo Rio
Paraguaçu. O pai era o médico Antônio José
Alves, filho de português e de baiana; em 1837,
lutou na Sabinada, a favor do governo. A mãe era
D. Célia Brasília da Silva Castro, cujo pai foi o
sargento­mor José Antônio da Silva Castro, um
dos heróis da Independência Baiana (com data
magna em 2 de julho de 1823). Segundo filho do
casal, Castro Alves perdeu a mãe em 10 de abril de 1859; o pai se casou
três anos depois, com a viúva Maria Ramos Guimarães.
Sua mãe de criação, Leopoldina, uma mucama, foi uma das
impressões de infância que o fez ter simpatia pelos negros e horror à
escravidão. O irmão mais novo o chamava­se de Cecéu, “irmão que veio
do céu”. Realizou os primeiros estudos no Colégio Sebrão; em 1858,
cursou o Colégio Baiano, de Abílio César Borges, Barão de Macaúbas, o
Aristarco de Raul Pompeia, em O Ateneu. Aos 14 anos, já apaixonado
pela poesia, já escrevia fragmentos do que seria sua filosofia de vida:
Se o índio, o negro africano,
e mesmo o perito hispano
têm sofrido escravidão:
Ah! não pode ser escravo
quem nasceu no solo bravo
da brasília região!
Victor Hugo era seu escritor predileto, de quem lia no idioma
original, o francês (que aprendeu ainda criança), e o traduziu para o
português. Mas lia Virgílio, Camões e os românticos da época; mais
tarde, conheceu Dante, Musset, Byron, Álvares de Azevedo, entre outros,
cada um numa faceta de sua vida. Segundo Jorge Amado, a leitura de
 
Victor Hugo permitiu que Castro Alves avançasse sobre os demais
jovens de sua época, libertando­se da influência de Byron; aprendeu o
sentido literário e heroico da poesia. Precoce na literatura, sofreu duas
reprovações em geometria, nos preparatórios para ingressar na Faculdade
de Direito do Recife, que só ingressou em 1864. Entre fins deste ano e
março do ano seguinte, contudo, esteve na Bahia, com sintomas de
tuberculose; ao se recuperar, retorna para Recife, tornando­se amigo de
Fagundes Varela, a quem admirava, e quem provavelmente o convenceu
a ir para São Paulo.
Em 1866, com Rui Barbosa, Augusto Guimarães e Regueira Costa,
funda uma sociedade abolicionista. Cursava o 2º ano de Direito, quase
indo ao 3º, quando encontrou a atriz portuguesa Eugênia Infante da
Câmara, que se tornaria seu grande amor. Já haviam se visto três anos
antes, no Teatro Santa Isabel, quando Eugênia atuava em Dalila, de
Otávio Feuillet; Castro Alves declamou­lheversos e fez a plateia delirar.
No mesmo teatro, em 1867, o poeta fez a primeira leitura de Gonzaga,
para os críticos e professores da faculdade, sob aplausos.
Quando se casou com Eugênia, em 1866, tinha 19 anos; a atriz, 29.
Em 1º de janeiro de 1867, mudaram­se para Bahia, tendo ela abandonado
a companhia de teatro na qual atuava. Em fevereiro de 1868, mudaram­
se para o Rio de Janeiro, com uma carta de apresentação do parlamentar
e tribuno Fernandes da Cunha para José de Alencar, que estava em seu
apogeu; Castro Alves recebeu elogios não apenas do romancista
cearense, como também de Machado de Assis. No mesmo ano, o casal
seguiu para São Paulo, na época uma cidade provinciana; hospedaram­se
no Hotel Itália.
Foi em São Paulo que o poeta escreveu O Navio Negreiro e Vozes
d’África, além de muitos outros poemas, embora menos conhecidos. Em
seus versos, previu a Lei do Ventre Livre, de 1871:
Senhor Deus! dá que a boca da inocência
Possa ao menos sorrir.
Como a flor da granada abrindo as pétalas
Da alvorada do surgir!
E saudava o raiar da liberdade dos negros, que só viria em 1888,
com a Lei Áurea:
Moços, creiamos, não tarda
A Aurora da redenção!
Republicano, culpava a monarquia por tolerar a escravidão, previu
a queda da Coroa com a abolição e sonhava com um mundo diferença,
constituído por uma nação única, uma grande nação, e não uma liga das
nações.
Castro Alves passava a maior parte do tempo na pensão em que
morava; o relacionamento com Eugênia era constituído de ciúmes,
conflitos e reconciliações, até que romperam por definitivo. Apático, o
poeta fumava compulsivamente e mantinha­se solitário, sobretudo
porque São Paulo oferecia poucas distrações e lugares para passeios;
quando saía para caçar, passava horas nas matas sem disparar um único
tiro, retornando de mãos vazias. Numa dessas caçadas, próximo de uma
chácara entre o Brás e a Mooca, ao saltar de um fosso, a espingarda que
carregava disparou acidentalmente, atingindo o pé esquerdo; após o
choque da dor, que durou algum tempo, arrastou­se até uma casa
próxima, onde conseguiu ajuda.
Abandonado por Eugênia, com o pé ferido e problemas
pulmonares, Castro Alves contou com os amigos apenas. Em 21 de maio
de 1869, chegava à Guanabara, no Rio de Janeiro, bastante debilitado
pela gangrena e tuberculose; a carga de chumbo da espingarda ainda
estava alojada no pé. Por mais de seis meses evitaram a amputação,
porém tornou­se o único meio de evitar que a gangrena se espalhasse e a
dor pudesse ser cessada. O estado debilitado impossibilitou o uso de
clorofórmio; corajoso, o poeta, corajoso, ainda teve ânimo para dizer ao
operador: “Corte­o, corte­o, doutor! Ficarei com menos matéria que o
resto da humanidade”. Numa operação de quase dois minutos, com
golpes rápidos, amputaram o pé pelo terço inferior da tíbia.
Antes de retornar à Bahia, compareceu ao Teatro Fênix Dramática,
onde Eugênia se apresentava; chegou cedo, para que ela não o visse
amparado por muletas. Falaram­se pela última vez. A atriz morreria ali
no Rio, em 20 de maio de 1874, três anos depois de a morte de Castro
Alves.
Em 20 de novembro, retornou à terra natal. De fevereiro a julho de
1870, esteve em Curralinho, onde lutou para acabar com o mercado de
escravos ali existente; mas sua saúde estava cada dia mais abalada. Em
29 de julho, a conselho médico, viajou para Cachoeirinha; até setembro
esteve na Fazenda Santa Isabel, retornando à Curralinho em setembro do
mesmo ano. Como distração, recorreu aos desenhos, deixando vários
deles como legado: Autorretrato, Um Tabaréu, Alegoria...
Às 15h30, do dia 6 de julho de 1871, numa sexta­feira, na casa nº
20 da Rua do Sodré, morreu Castro Alves, o defensor dos escravos, o
propagandista da República, aquele que viveu do amor e para o amor.
Sua última vontade se tornou célebre: “Assim que eu morrer, cubram­me
de flores e fechem logo o meu caixão!”.
Em vida, teve várias obras conhecidas e publicadas; após a morte,
outras também foram, na seguinte ordem: Gonzaga e A Cachoeira de
Paulo Afonso (1876), Vozes d´África e O Navio Negreiro (1880), Os
Escravos (1883). Em 1921, Afrânio Peixoto organizou Obras Completas
de Castro Alves, em dois volumes: no primeiro, Espumas Flutuantes e
Hinos do Equador; e no segundo, Os Escravos, Gonzaga ou a Revolução
de Minas, Relíquias e Correspondências. Os originais da novela
Mazaccio e os das traduções da comédia Clarinha e Clarim e Os Pomos
de Meu Amor foram perdidos.
SOBRE A IMAGEM DA CAPA
Johann Moritz Rugendas (1802 – 1858) foi um
pintor alemão de grande renome. Chegou ao
Brasil em 1821; embora vindo em virtude da
missão científica financiada pelo Barão de
Langsdorff, na qual desempenhava a função de
desenhista documentarista, acabou por se
dedicar ao estudo dos costumes brasileiros.
Após abandonar a missão em 1824, Rugendas
continuou efetuando registros das paisagens,
tipos humanos e sobre a fauna e flora brasileiras, visitando
diversos estados do país. Seus estudos resultaram no livro Voyage
Pittoresque dans le Brésil (Viagem pitoresca no Brasil), publicado
no ano de 1835.
A ilustração Nègres a fond de cale de un bateau d'esclaves
— no português, Negros no fundo do porão — é parte integrante
de Voyage Pittoresque dans le Brésil, juntamente com outras
dezenas de imagens que, entre outros temas, denunciam o horror
da escravidão no Brasil.
 
 
ABOLIÇÃO
Falecido em julho de 1871, Castro Alves não testemunhou parte de
seus sonhos ser realizada: em 28 de setembro daquele ano entrou em
vigor a Lei do Ventre Livre, graças aos esforços do também baiano
Visconde de Rio Branco; e a partir da data não nasceram mais escravos
no Brasil. Em 28 de setembro de 1885, veio a Lei dos Sexagenários (ou
Saraiva­Cotegipe), que dava liberdade aos escravos maiores de 60 anos.
A Lei Áurea, que declarava extinta a escravidão no país, só foi
assinada em 13 de maio de 1888, pela Princesa Regente, Isabel, que se
encontrava no trono devido à ausência do pai, Dom Pedro II. Duas
províncias já haviam emancipado os negros antes da Lei Áurea: Ceará,
em 23 de março de 1884, quando o abolicionista Sátiro Dias assumia a
presidência provincial, e Amazonas, em 20 de julho de 1884, pelo
presidente provincial Teodureto Souto, outro abolicionista.
PRIMÓRDIOS DO FANTÁSTICO BRASILEIRO
Primórdios do Fantástico Brasileiro é um projeto da EX!
Editora que visa resgatar obras já em domínio público,
especialmente de cunho fantástico. Muitas delas caíram no
esquecimento, a despeito de sua qualidade literária e valor
histórico inestimável.
O Navio Negreiro é a primeira publicação da série.
Saiba mais acessando: https://exeditora.blogspot.com/
{1}
Informações extraídas de Trópico – Enciclopédia Ilustrada em Cores,
Livraria Martins Editora, 1956.
{2}
Do grego, mares profundos, longe das costas; oceanos.
{3}Monstro marinho do caos primitivo, de origem fenícia, mencionado na
Bíblia. O poeta refere­se ao tamanho da ave, cujas asas podem atingir quase 4m
de envergadura.
{4}
Mastro da ré, mastro mais próximo da popa do navio.
{5}
Canções breves.
{6}
Languidez, apatia, abatimento.
{7}
Torquato Tasso (1544 – 1595), poeta italiano.
{8}
Horatio Nelson, 1º Visconde Nelson (1758 – 1805), oficial da Marinha
Real Britânica, famoso pelas intervenções das Guerras Napoleônicas, nas quais
ganhou várias batalhas, incluindo a Batalha de Trafalgar, embora tenha neste
perdido a vida.
{9}
Referência a Batalha da Baía de Aboukir (costa mediterrânea do
Egito), ocorrida entre 1 e 3 de agosto de 1798.
{10}
Gregos.
{11}
Protagonista de A Odisseia.
{12}
Famoso escultor grego que viveu no século V a.C.
{13}
Lendário poeta grego a quem se atribui dois poemas épicos famosos,
Ilíada, sobre a Guerra de Troia, e A Odisseia, que narrava o retorno de Odisseu
(Ulisses, para os romanos) para Ítaca, após dez anos de ausência durante a
guerra.
{14}
Navegantes.
{15}
Regiões, países.
{16}
Personagem bíblica, serva egípcia de Sara, esposa de Abraão,
segundoos capítulos 16 e 21 de Gênesis.
{17}
Filho de Agar e Abraão, segundo o Livro de Gênesis.
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