Buscar

A Falta da Falta

Prévia do material em texto

101101101101101
A
 FA
LTA
 D
A
 FA
LTA
 E O
 O
BJETO
 D
A
 A
N
G
Ú
STIA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro - março 2009
11111 Universidade Católica de Petrópolis, Faculdade de Psicologia. R. Br do Amazonas, 124, Centro, 25645-045, Petrópolis, RJ, Brasil. E-mail:
<angelica.pisetta@ucp.br>.
▼ ▼ ▼ ▼ ▼
A falta da falta e o objeto da angústia
The lack of lack and the object of anguish
Maria Angélica Augusto de Mello PISETTA1
Resumo
Pretende-se, com este artigo, discutir a especificidade do objeto da angústia, declarado como inexistente por Freud. Com a
formulação teórica estabelecida por Lacan em 1962/1963 de um objeto conceitual que escapa a toda significação e apreensão
imaginária, essa discussão tomou novos contornos. Trata-se do conceito de objeto a, um objeto constituído de pura falta, decor-
rente de uma insatisfação. Este texto desenvolveu-se a partir da concepção da perda do objeto de satisfação, citada por Freud
como mítica. Intenta-se também aproximar o conceito de objeto a dos conceitos de “estranho” e “familiar”, relacionados por
Freud em 1919 ao conceito da angústia, considerando-se a declaração lacaniana da proximidade do que é familiar na vivência
deste conceito.
Unitermos: Ansiedade. Freud. Psicanálise.
Abstract
In this paper we intend to discuss the specific nature of the object of anguish, stated by Freud as something that does not exist. With the
theoretical formulation established by Lacan (in 1962-1963), of a conceptual object that escapes every significance and imaginary
apprehension, this discussion has adopted new outlines. It is all about the concept of “object a”, an object composed of pure lack, arising from
dissatisfaction. We will start with the idea of the loss of the object of satisfaction, quoted by Freud as a myth. We also intend to approximate
the concept of the” object a” of the concepts of “strange” and “familiar”, espoused by Freud in 1919, to the concept of anguish, prompted by
Lacan’s statement about the proximity of what is familiar in the anguish experience.
Uniterms: Anxiety. Freud. Psychoanalysis.
A angústia tem inegável relação com a expectativa: é
angústia por algo. Tem uma qualidade de indefinição e
falta de objeto (Freud, 1926/1976, p.189, grifo nosso).
Esse objeto a, é sempre dele que se trata quando Freud
fala de objeto a propósito da angústia (Lacan,
1962/2005, p.50).
A angústia apresenta-se como um imperativo
na clínica e convoca à análise. Não apenas sua definição
como, acima de tudo, seu manejo, apresentam-se a partir
de impasses que demandam sempre análise e aprofun-
damento. Lacan (1962/2005, p.13) não deixa de sublinhar
que retomar o estatuto privilegiado da angústia junto
aos conceitos da psicanálise demarca que os analistas
são colocados à prova a todo momento na identificação
do quanto de angústia os pacientes podem suportar.
Para articular essas questões; pretende-se discutir os
conceitos de angústia e objeto a, a partir da interlocução
com os textos de Freud sobre o conceito de angústia.
102102102102102
M
.A
.A
.M
. PISETTA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro -.março 2009
Desta maneira, acredita-se ser possível avançar na dis-
cussão do que causa angústia.
Existe uma alteração importante na teorização
da angústia em Freud. Na primeira teoria (compreendida
até 1926), com as proposições de Inibições, sintomas e
ansiedade), a angústia é considerada um destino do
afeto que fora desligado da ideia pela incidência do
recalque (Freud, 1926/1976). Portanto, a angústia nesta
concepção é posterior ao recalque. A partir da retomada
da análise do caso clínico da fobia de Hans, em 1926,
Freud acentuou proposições básicas que redimen-
sionaram o estatuto da angústia.
Em primeiro lugar, ressalta-se a noção do perigo
de castração que incide “de fora” do aparelho psíquico
(diretamente do agente repressor, o pai), compreendido
então como um “perigo real”. Contudo, a indicação de
um real no perigo de que se trata o da castração não
remete logicamente a um evento objetivo qualquer,
mas à própria pulsão, que é tomada como se atuasse
“de fora” para que alguma forma de defesa pudesse se
constituir. Assim, o interno-externo que a pulsão denota
surge na teorização da angústia como indicativo de
uma equivalência entre a pulsão e a castração, demar-
cando uma estratégia neurótica inicial no confronto
com o perigo traumático.
A indicação freudiana do “real” no perigo da
castração remete diretamente a um trauma psíquico.
Freud (1926/1976, p.145) destaca que não se pode inferir
a existência do princípio do prazer atuante neste mo-
mento traumático, já que não há preparação alguma
para tal. Nesse sentido, a postulação do conceito de
recalcamento primário dá conta deste momento mítico
de causação do sujeito, já que é por este (o recalque
primário) que haverá uma primeira apropriação do
sujeito em relação ao trauma.
Com a pressuposição do momento traumático
como fundamento do primeiro recalque, a sustentação
da angústia como secundária em relação a ele perde
sentido, e ela é então pensada como a alavanca afetiva
que promove a inscrição do primeiro recalque. Nesse
sentido, ela é defesa contra o traumático.
A angústia seria, neste ponto de vista, anterior à
própria regulação dada pelo princípio do prazer, que se
instauraria por meio do recalque. Em Além do princípio
do prazer, Freud (1920/1976, p.60), Freud antecipa um
pouco essa concepção, quando se pergunta que relações
haveria entre a compulsão à repetição (principal motor
da construção do conceito de pulsão de morte), tão
evidente na clínica, e o princípio do prazer, sobre o qual
repousava, até então, sua teorização. Em virtude do
caráter conservador da pulsão, ele admite momentos
míticos em que o princípio do prazer nem sequer estaria
em jogo. Nesse sentido, a angústia encontra sua inscri-
ção antes do recalque originário.
A angústia enquanto “mecanismo” situa-se antes
do princípio do prazer. Produzi-la, como proteção ao
encontro com o traumático, é o objetivo dos sonhos
traumáticos. Desta forma, diz Freud, na neurose traumá-
tica os sonhos reproduzem uma situação de extremo
sofrimento e repetição do trauma, e não podem estar,
portanto, referidos ao princípio do prazer. Tal repetição
poderia ser assim pensada como uma tentativa de
estabelecê-lo por meio do desenvolvimento da angústia,
porque não houve possibilidade de sua atuação como
sinal no momento da vivência traumática. Indicam
assim, via de regra, uma tentativa de estabelecimento
do prazer, o que indica que ele o princípio do prazer não
estaria estabelecido a priori.
Não se pode mais considerar, então, que é a
libido não utilizada que causa a angústia, mas, em função
da teoria do trauma, Freud indica duas origens da
angústia: uma consequente do momento traumático e
outra como sinal que ameaça com uma repetição de
um determinado momento. Aqui transparece a necessi-
dade lógica de a instância egoica ser considerada a
produtora e a sede real da angústia.
O conceito de recalque primário é fundamental
na análise da angústia. Freud mesmo o considera um
dos conceitos imprescindíveis de sua teorização. A
concepção de 1926, que fala da anterioridade da angústia
em relação ao recalque, coloca este pressuposto em
xeque. Se a divisão psíquica é inaugurada pelo recalque
primário (e, nesse sentido, todos os objetos também o
são), como conceber um objeto anterior a ele? Freud o
faz indiretamente com a angústia, quando indica que
algo a causa. O conceito de objeto sofre uma variação
a partir desta remodelação, colocando à mostra um
impasse metapsicológico. De que objeto suscitador da
experiência angustiante se pode falar neste momento
considerado por Freud como anterior ao recalque? Se
há um objeto que representa perigo para o psiquismo,103103103103103
A
 FA
LTA
 D
A
 FA
LTA
 E O
 O
BJETO
 D
A
 A
N
G
Ú
STIA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro - março 2009
e que, portanto, desencadearia a reação de angústia,
como pode ser este objeto compreendido em relação
ao psiquismo, se não for visto como uma consequência
do recalque? Essas questões estão abordadas na deli-
mitação do objeto da angústia.
Freud avança na discussão da questão da an-
gústia, que toma toda sua obra, delimitando que o
rochedo da castração instala para todo ser vivente uma
falta constitucional sinalizada pela angústia. Nesse
sentido, a angústia surge ante a castração e, assim sendo,
ela é teorizada como anterior ao recalque, marca da
reação inicial ao perigo - que, contudo, não é eliminado,
permanecendo atuante no sinal de angústia (Freud,
1926/1976).
Embora a angústia esteja referida à falta de objeto
para Freud, ele ressalta que, se há angústia, deve haver
algo que se teme (Freud, 1976/1916). O impasse em torno
de um objeto para a angústia se mantém, já que o objeto,
como conceito, é pensado como posterior ao recalque,
mediante o desenvolvimento da libido, que culmina na
escolha heterossexual.
Pode-se dizer que há uma contradição em Freud
quando ele afirma não haver falta de um objeto para a
angústia, já que sua manifestação clínica é tão evidente.
A leitura lacaniana da teoria da angústia freudiana
apresenta-se, então, como uma ferramenta necessária
para se discutir acerca da existência de um objeto que
suscite aquilo que é conhecido como angústia.
Nota-se uma intensa modificação na abordagem
lacaniana da existência de um objeto para a angústia. A
investigação aqui realizada centrou-se nos Seminários
4 (A relação de objeto, Lacan (1956/1995) e 10 A angústia,
Lacan (1962/2005). Em 1956, Lacan, destacando a análise
da fobia infantil de Hans e concordando com Freud,
afirmava a inexistência de tal objeto:
A criança tem medo de que aconteça alguma coisa
de real, duas coisas, nos diz ela: que os cavalos mordam,
que os cavalos caiam. A fobia não é de modo algum a
angústia. A angústia - e aí não faço mais que repetir
Freud, que o articulou com perfeição - é algo que é
sem objeto. Os cavalos saem da angústia, mas o que
eles portam é o medo (Lacan, 1956/1995, p. 252).
Estabelecer os limites entre a fobia e a angústia
delimita também a distância entre o objeto da angústia
e o objeto fóbico. Lacan considera o primeiro como
inexistente, seguindo Freud. Já em 1962 ele trata a
questão de forma radicalmente diferente, dedicando a
ela um seminário, que serviu como referência principal
nesta discussão. Neste seminário, Lacan afirma que
considerar a angústia sem objeto é falso. O que ele
propõe é uma releitura de sua própria tematização,
trazendo para a discussão um novo estatuto para o
objeto da angústia.
Não se pretende desenvolver o percurso laca-
niano entre essas duas afirmações, somente marcar que
neste percurso apresenta-se uma saída teórica para o
impasse freudiano da constituição do objeto da
angústia(2).
Existe um conceito freudiano que indica uma
proximidade entre as teorias freudiana e lacaniana:
trata-se do conceito de “estranho” (Unheimlich), ao qual
Freud dedicou um artigo em 1919.
O estranho e o familiar: enquadramento da angústia
O “estranho” é aquela categoria do assustador que
remete ao que é conhecido, de velho, e há muito
‘familiar (Freud, 1919/1976, p. 277).
É enquadrado que se situa o campo da angústia”
(Lacan, 1962/2005, p. 86).
O fenômeno do estranho e suas relações com a
angústia destacam-se como pontos nodais do texto
freudiano de 1919, O estranho. Analisando o tema do
que causa estranheza ao homem, Freud assegura que o
antecedente lógico para este fenômeno é o recalque. A
análise de neuróticos, bem como a literatura e os contos
de fada, produzem material para as articulações deste
tema. Após uma incursão linguística pelo termo
Unheimlich, Freud afirmou que tudo o que é percebido
como “estranho” foi, um dia, extremamente “familiar”,
destacando uma anterioridade do familiar no fenômeno
da angústia.
Circunscrevendo as mais variadas significações
para a palavra Unheimlich, em diferentes línguas, Freud
22222 Cabe esclarecer que Lacan também avança no sentido da delimitação do objeto da angústia. Foram abordados seus seminários sobre a relação de objeto
(1956/1997) e sobre a angústia (1962/2005), mas um pouco mais tarde, em 1974, Lacan relaciona a angústia ao real, enfatizando que a primeira parte do
segundo.
▼ ▼ ▼ ▼ ▼
104104104104104
M
.A
.A
.M
. PISETTA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro -.março 2009
procurou acentuar a relação do fenômeno do estranho
com o processo do recalque. Nesse sentido, Schelling o
auxilia: “‘Unheimlich’ é o nome de tudo que deveria ter
permanecido ... secreto e oculto mas veio à luz” (Freud,
1919/1976, p.277). O escondido, o oculto, contido no
que se manifesta como estranho, caracteriza o recal-
cado. Outro ponto interessante a destacar aqui é a consi-
deração de que o estranho representa o que deveria ter
permanecido oculto. Nesse sentido, o que aí aparece,
forçosamente, é o que deveria faltar (Harari, 1997).
Na perspectiva freudiana do que constitui o
recalque, Freud acentua a relação entre o estranho e a
castração, destacando que na fase fálica, com a introdu-
ção do Édipo, é o pai quem passa a fornecer a interdição
à satisfação, marca inaugural da castração. A análise
freudiana está centrada na angústia de castração e, pelo
Édipo, relacionada ao agente castrador, o pai.
O perigo suscitador de angústia é visto essencial-
mente como provindo do pai, agente da lei. O perigo
de que se trata, tanto no caso Hans (analisado pelo autor),
quanto no conto O Homem da Areia, de Hoffmann
(utilizado por Freud em 1909 na análise do “estranho”) é
o perigo da castração, que remete ao perigo real de ser
castrado pelo pai. Esta “realidade” é criada porque a
criança acredita nela, e introduz a lei à medida que
representa a castração simbólica. O que se pretende
destacar é o caráter de “estranho”, de “perturbador do
amor” atribuído ao pai, do qual se espera a castração. É
dele que incide a castração que “perturba” o amor
incestuoso pela mãe, transformando o que era tão
familiar - “os impulsos plenos de desejos edípicos” (Freud,
1909/1976, p.108) - em estranhos desejos inconscientes.
Deste modo, Freud sustenta que a angústia aponta para
uma falta, versão edípica da castração, repetida nas
experiências que causam estranhamento.
Desta forma, promove-se a partir do recalque
um efeito de duplicação do eu. Este efeito, do duplo, é
analisado por Freud como mais um dos motivos para o
surgimento do “estranho”. Temos personagens que
devem ser considerados idênticos porque parecem
semelhantes, iguais ... Essa relação ... é marcada pelo
fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de
tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu, ou
substitui o seu próprio eu por um estranho. Em outras
palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do
eu (Freud, 1919/1976, p.293).
A substituição do eu no fenômeno do “estranho”
proporciona um não reconhecimento. A estratégia da
duplicação pode ser percebida, na proposta freudiana,
como uma proteção ao eu, uma segurança contra sua
destruição (Freud, 1909/1976, p.293), um recuo à
castração. Por outro lado, o duplo torna-se um anun-
ciador da morte, na medida em que indica a incom-
pletude própria do sujeito. Como bem assevera Lacan,
a duplicação do eu, acompanhada pela angústia, não
deixa de marcar a não autonomia do sujeito, já que faz
aparecer sua condição de objeto, marcando o lugar da
ausência de que o ser humano é feito (Lacan, 1962/2005,
p.58). Pela articulação que vai além da angústia de cas-
tração, Lacan relaciona a angústia ao real da ausência
de significações que constituem o sujeito.Ainda que orientado pela perspectiva de que a
angústia seria fruto do recalque, em O estranho Freud
destaca a angústia como primordial, e considera que
ela é o afeto ligado à percepção do “estranho”, antes
mesmo do recalque. Vale lembrar que a angústia apa-
recia sempre após o recalque, como um destino do
afeto primordial ligado a uma ideia que fora recalcada.
Assim, raiva, temor e outras emoções transformavam-
-se em angústia. Isto até 1926, quando então retomou
as questões da angústia, no texto Inibições, sintomas e
ansiedade. O que se tornou “estranho”, pela incidência
do recalque, passou a ter a angústia como afeto inicial.
Ou, ao menos, perdeu a importância saber se havia
outro afeto ligado a tal ideia.
Deve ser indiferente a questão de saber se o que é
estranho era, em si, originalmente assustador ou se
trazia algum outro afeto ... esse estranho não é nada
novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito
estabelecido na mente, e que somente se alienou
desta através do processo de recalque (Freud, 1919/
1976, p.298).
Como o recalque é a condição básica para a
efetuação da castração, todos os exemplos que Freud
oferece como incidências do “estranho” estão ligados a
vivências de castração para o sujeito. Freud assevera
que o recalque “é condição necessária de um sentimento
primitivo que retorna em forma de algo estranho” (Freud,
1919/1976, p.302, grifo nosso).
Se o “estranho” requer o recalque e a angústia
lhe é anterior, não é ele o objeto da angústia, mas
encontra-se no cerne deste fenômeno, já que este conta
com o reconhecimento de algo que é reconhecido
105105105105105
A
 FA
LTA
 D
A
 FA
LTA
 E O
 O
BJETO
 D
A
 A
N
G
Ú
STIA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro - março 2009
como estranho, anteriormente vivido como familiar. O
estudo das relações entre o que é familiar e a falta
constituinte pode indicar um avanço na circunscrição
do objeto da angústia.
(Un)heimlich: estranho/familiar
A relação do “estranho” com o recalcado é mais
marcadamente estabelecida por Freud quando ele
destaca a estranheza que o órgão sexual feminino
desperta nos neuróticos. O fenômeno demarca a res-
significação fálica que o complexo de castração vem
imputar em relação aos demais perigos anteriores a ele.
Evidencia-se mais uma vez uma relação entre a cas-
tração - como alavanca da entrada e da saída do
Édipo - e o efeito de estranhamento, que a falta de pênis
na mulher direciona ao recalcamento. Exatamente na
questão do reconhecimento da diferença anatômica
entre os sexos, a premissa fálica retoma a impossibilidade
de reconhecimento da vagina enquanto “outro” sexo,
introduzindo, definitivamente, a falta como represen-
tação deste vazio.
Acontece com frequência que os neuróticos do sexo
masculino declaram que sentem haver algo estranho
no órgão genital feminino. Esse lugar Unheimlich, no
entanto, é a entrada para o antigo Heim [lar] de todos
os seres humanos .... Nesse caso, também, o unheimlich
é o que uma vez foi heimisch, “familiar”; o prefixo ‘un’
[‘in-’] é o sinal do recalque (Freud, 1919/1976,
p.305).
Freud destaca que se trata de algo “familiar” que
retorna como “estranho”. Há uma anterioridade lógica
do “familiar” em relação ao “estranho”, no qual se trans-
forma. O jogo contido no estranho-familiar e no fami-
liar-estranho, que o prefixo Un em alemão anuncia,
também serve para pensar esta proximidade entre o
interno e o externo. Nesse sentido, há uma não disjunção
entre o familiar e o estranho. Pode-se dizer que o familiar
para o qual a angústia aponta é um familiar não re-
conhecido como tal. Deste modo, a experiência que se
pode ter a partir do encontro com ele é mais próxima
do estranha-mento e da angústia.
O que é Heim, o que é Geheimnis, [segredo, mistério]
nunca passou por estes desvios, pelas redes, pelas
peneiras do reconhecimento. Manteve-se unheimlich,
menos não habituável do que não habitante, menos
inabitual do que inabitado (Lacan, 1962/2005, p.87).
Apenas considerando uma não separação linear
entre o estranho e o familiar, Lacan define que o que é
mais familiar ao sujeito (Heim) manteve-se o mais
estranho (Unheimlich), não habitante e inabitado. Essa
estrutura pode ser pensada como um vazio radical, que
nada habita nem é habitado por qualquer objeto. A
aparente dicotomia entre o familiar e o estranho, apre-
sentada por intermédio dos efeitos do recalque, não se
sustenta, tendo em vista a proximidade ontológica entre
o interno e o externo. A angústia aparece como um
sinal de que este lugar vazio pode ter sido obturado. De
que objeto se trata, no entanto, na oclusão desta falta
primordial?
O objeto a e a falta da falta
A conceituação do objeto a ocorreu no ano da
exposição do seminário de Lacan aqui abordado
(1962/63), e representa uma resposta à necessidade
lógica da teoria da angústia. A notação a, porém,
apresenta-se em seus trabalhos desde o princípio,
relacionando-se com a definição dos objetos de desejo
e identificação. Já o objeto a, posterior, é radicalmente
diferente. Não se trata de uma vertente imaginária, tam-
pouco simbólica. Sua estrutura remete ao resto da
operação significante, àquilo que não é passível de
qualquer sentido, resistindo às identificações com o
outro. Harari (1997) sustenta, inclusive, que a angústia é
o único modo de apropriação subjetiva deste objeto.
Freud considera característica do objeto a condi-
ção de sempre ser reencontrado (Freud, 1900/1976,
p.235), havendo aí um limite muito próprio ao objeto. O
limite define-se na própria impossibilidade da supe-
ração da perda do objeto de satisfação. É também no
movimento interminável em torno deste buraco da não
satisfação estrutural que a pulsão se estabelece, havendo
aí outra relação a ser estabelecida com o objeto a. É o
objeto a que vem nesse lugar, para evidenciar que não
há resposta para a pressão da pulsão. A essa insistência
premente de satisfação responde uma falta radical,
produtora do desejo. Nesse sentido, o furo da pulsão é o
lugar do objeto a enquanto marca indelével de sua
eterna busca. Em função dessa impossibilidade de satis-
fação, a pulsão será sempre parcial.
O objeto a encontra-se isento de total significa-
ção, aliás, de qualquer significação, desde que ele está
106106106106106
M
.A
.A
.M
. PISETTA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro -.março 2009
presente em um lugar de falta por excelência, que não
encontra sua base nem no imaginário, nem no simbó-
lico. Este conceito refere-se, assim, a uma categoria
formal por excelência, não se amoldando a qualquer
tentativa descritiva. Por esta característica, nada de empi-
ricamente comprovado refere-se ao objeto a. Ele remete
ao real, fora da trama significante que institui a cadeia
simbólica. No entanto, a rede de significantes é pensada
em suas relações com esta estrutura.
A proximidade lógica entre o objeto a e a angús-
tia é demarcada por Lacan quando ele destaca que a
angústia sinaliza sua intervenção. Porém, o autor alerta:
“isso não equivale a dizer que esse objeto seja apenas o
avesso da angústia, mas que ele só intervém, só funciona,
em correlação com a angústia” (Lacan, 1962/2005, p.98).
Nesse sentido, a experiência subjetiva da angústia
aponta para o surgimento do que não deveria surgir, o
objeto de pura falta, que ali surge para indicar que este
lugar lógico deve permanecer vazio. É, então, da consti-
tuição do sujeito que aqui se fala, tanto na angústia
quanto em relação ao objeto a.
Lacan mostra que a angústia escancara a falta
constitutiva do sujeito. Não é ela - como fenômeno - que
surge desta falta, já que se apresenta logicamente como
indicadora e portadora da verdade desta falta. Seu apa-
recimento se dá quando a própria falta pode faltar. É
importante aqui a referência à linguagem e a conside-
raçãode que a falta de que se trata propicia a dubiedade
de significações que o discurso promove.
Deste modo, as ligações entre o conceito de
angústia e o conceito de sintoma logo se fazem notar.
O sintoma se vincula à angústia, quando compreendido
como testemunha de que o recalque falhou, e ainda
quando compreendido como uma suplência no eu a
toda impossibilidade de satisfação (Freud, 1926/1976).
Suas relações com a angústia aprofundam-se neste
ponto, e por meio delas ele mascara também seu apare-
cimento, já que ele (o sintoma) vem velar a realidade da
angústia. Freud disse na Conferência XXXII que o sinto-
ma e a angústia se representam; contudo, a angústia é
anterior ao sintoma e a constituição deste vem como
mecanismo egoico para limitar a aparição daquela
(Freud, 1933/1976, p.114).
Se o sintoma tenta preencher esta falta primor-
dial, mascarando a verdade da angústia, esta surge para
reclamar seu lugar de constituição da verdade no su-
jeito - de que há falta. A angústia aponta um mascara-
mento da verdade, da qual ela é representante. Assim, a
angústia não é o indicativo do aparecimento da falta,
mas o indicativo de um perigo primordial: de que a
falta que constitui o sujeito venha a faltar. É possível
vislumbrar isto mais claramente com a frase lacaniana
que diz: “Aquilo diante de que o neurótico recua não é a
castração, é fazer de sua castração, o que falta ao Outro.
É fazer de sua castração algo positivo, ou seja, a garantia
da função do Outro (Lacan, 1962/2005, p.56).
A falta promove um apoio ao sujeito, a possibili-
dade da alteridade, que torna possível a construção de
um saber sobre si e sobre o outro. Lacan afirma que
quando este apoio falha, obscurecendo os contornos
do objeto e do sujeito, surge a angústia. É por causa de
uma certa insuficiência que o sujeito se estrutura, na
medida em que o outro também porta esta mesma
estrutura falha. Assim, o surgimento da angústia está
ligado a uma pretensa completude do outro.
O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos
anuncia, que nos permite entrever que voltaremos
ao colo. Não é, ao contrário do que se diz, o ritmo
nem a alternância da presença-ausência da mãe. ... A
possibilidade da ausência, eis a segurança da
presença (Lacan, 1962/2005, p.64).
A angústia aponta para a tentação de que não
haja falta no outro. Porém, desta forma, a alteridade não
está mais assegurada, e a angústia, com sua certeza que
não se deixa reduzir pelos significantes (Harari, 1997,
p.49), reclama sua reinstalação.
Retomando Freud, Lacan vai além da castração
como último limite do neurótico. Ele recua diante da
não separação e da indiferenciação, que tornaria o outro
completo, e a angústia é o sinal deste recuo. O neurótico
fragiliza-se diante da necessidade de fazer com a sua
castração o outro como completo; a partir disso, a
alteridade - tanto do outro quanto de si - está aniquilada.
Nesse sentido, o resto não especularizável da libido tem
a função de garantir a existência para além da imagem
autenticada pelo outro. A falta, pois, é a marca desta
alteridade, e é quando esta se encontra ameaçada que
a angústia dá o alarme.
Referências
Freud, S. (1976). A interpretação dos sonhos (Vol. 10). Rio de
Janeiro: Edição Standard Brasileira. Imago Editora,
(Originalmente publicado em 1900).
107107107107107
A
 FA
LTA
 D
A
 FA
LTA
 E O
 O
BJETO
 D
A
 A
N
G
Ú
STIA
Estudos de Psicologia I Campinas I 26(1) I 101-107 I janeiro - março 2009
Freud, S. (1976). Análise de uma fobia em um menino de
cinco anos (Vol. 10). Rio de Janeiro: Edição Standard
Brasileira. Imago Editora. (Originalmente publicado em
1909).
Freud, S. (1976). O estranho (Vol. 17). Rio de Janeiro: Edição
Standard Brasileira. Imago Editora. (Originalmente
publicado em 1919).
Freud, S. (1976). Além do princípio de prazer (Vol. 18). Rio de
Janeiro: Edição Standard Brasileira. Imago Editora.
(Originalmente publicado em 1920).
Freud, S. (1976). Inibições, sintomas e ansiedade (Vol. 20). Rio
de Janeiro: Edição Standard Brasileira. Imago Editora.
(Originalmente publicado em 1926).
Freud, S. (1976). Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise (Vol. 10). Rio de Janeiro: Edição Standard
Brasileira. Imago Editora. (Originalmente publicado em
1933).
Harari, R. (1997). O seminário, a angústia de Lacan: uma
introdução. Buenos Aires: Artes e ofícios editora.
Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar editora. (Originalmente
publicado em 1956).
Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar editora. (Originalmente publicado
em 1962).
Recebido em: 7/3/2007
Versão final reapresentada em: 17/5/2007
Aprovado em: 15/6/2007