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Linguagens da arte e regionalidades
Aula 02: Os limites do fazer artístico
Apresentação
Nessa aula, você identi�cará os conceitos “cânone” e “censura”, reconhecerá a atuação da censura religiosa e da censura
política sobre o fazer artístico, bem como conhecerá os principais artistas censurados na história da humanidade e,
especi�camente, do Brasil. Além disso, reconhecerá os mecanismos de resistência à censura política e religiosa.
Objetivo
Compreender os conceitos de cânone e censura;
identi�car os processos de formação do cânone e as modalidades de censura;
Desenvolver uma re�exão crítica sobre a in�uência do cânone e as intervenções da censura no fazer artístico.
Limites do fazer artístico: o cânone e a censura
Todos os artistas, em todos os tempos, preocuparam-se, fundamentalmente, com dois fenômenos que atuavam sobre o seu
processo de criação: o cânone e a censura.
o cânone
O cânone forma-se a partir da consolidação de ideias e
estilos propostos por determinado artista. Os que o
sucedem di�cilmente libertam-se plenamente do modelo
inspirador.
Não se trata de plágio, conceito que infere uma produção a
partir da cópia mecânica e intencional, mas de in�uências
culturais.
É o que argumentam diversos autores como Mikhail Bakhtin
— o qual introduz nos estudos literários o conceito de
dialogismo —, Julia Kristeva — que propõe o conceito de
intertextualidade — e Linda Hutcheon — autora que estende
as ideias anteriores a todos os campos do saber pela
compreensão de que todo produto humano refere-se a algo
que o antecede.
O cânone se estabelece a partir do momento em que a
recepção crítica e ou pública de uma obra intelectual ou
artística reconhece tanto a originalidade quanto a
capacidade de expansão das ideias propostas.
Cânone (do gr. kánon, regra) é, portanto, um padrão a ser seguido, muitas vezes, de forma involuntária. Todos nós conhecemos
obras que fazem referência a outras obras, ideias que são recuperadas, estilos que se repetem.
Platão fundamentou o pensamento ocidental; Shakespeare é constantemente referenciado, seja em releituras de suas obras,
como Romeu e Julieta, seguramente a mais retomada, seja em dizeres cotidianos; e cita-se muito Fernando Pessoa: Tudo vale
a pena, se a alma não é pequena.
Censura Religiosa
O tribunal inquisitorial surgiu em 1183, no Concílio de
Verona, a �m de combater ideias consideradas heresias.
Inicialmente, o objetivo era inibir que os cátaros, povo do sul
da França, consolidassem sua crença na metempsicose, ou
seja, transmigração da alma de um corpo físico para outro,
fosse humano, animal ou vegetal.
As penas aplicadas contra os hereges podiam ser: a
suspensão dos sacramentos religiosos como o batismo, a
con�ssão e a eucaristia; os castigos físicos; a
excomunhão. No século XV, os reis de Castela e Aragão,
Isabel e Fernando, que haviam conquistado terras
pertencentes aos mouros na Península Ibérica, conseguem
que o Papa autorize a formação de um Tribunal do Santo
Ofício na Espanha.
Nesse tribunal inquisitorial, muçulmanos e judeus foram convertidos ao cristianismo, recebendo a denominação de “cristãos
novos”. Alguns, no entanto, continuavam a exercer suas prática religiosas clandestinamente.
O Tribunal do Santo Ofício da Espanha não se limitou a julgamentos religiosos, pois os reis usaram esse poder como
instrumento de coação e força para submissão de quaisquer inimigos políticos.
Os reinos de Portugal e Itália também conseguiram permissão para instituir um Tribunal do Santo Ofício.
Além de crenças não cristãs, eram julgados e condenados
práticas e comportamentos não aceitos pela monarquia e
pelo poder eclesiástico, entre os quais a bigamia, a
homossexualidade, a sodomia e a bruxaria, acusação (não
comprovada) que condenou milhões de mulheres durante o
período inquisitorial.
A morte na fogueira, mais conhecido processo de
condenação pelo Tribunal do Santo Ofício, tem sentido
religioso, visto que o fogo simboliza a puri�cação, além de
construir a imagem do Inferno, forma de ameaça contra as
heresias.
O Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos),
criado em 1559, no Concílio de Trento, constitui-se de uma
lista de livros considerados hereges.
A trigésima segunda edição do Índex, publicada em 1948,
possui uma lista de 4 000 livros proibidos.
Constam do Índex trabalhos de cientistas e pensadores como Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Giordano Bruno, Maquiavel,
Erasmo de Roterdão, Baruch de Espinosa, John Locke, Denis Diderot, Blaise Pascal, René Descartes, Rousseau, Montesquieu,
Immanuel Kant, Simone de Beauvoir sendo que alguns desses nomes foram removidos mais tarde.
Famosos escritores foram incluídos na lista, entre eles: Laurence Sterne, Heinrich Heine, Alexandre Dumas (pai e �lho), Voltaire,
Daniel Defoe, Vitor Hugo, Emile Zola, Stendhal, Gustave Flaubert, Anatole France, Honoré de Balzac, Jean-Paul Sartre e Níkos
Kazantzákis.
O poder inquisitorial foi a forma mais contundente de censura da história da Humanidade.
O desejo humano de criação e descoberta foi coibido pela ameaça ou condenação à prisão, tortura ou morte na fogueira.
Durante a Idade Média e o Renascimento, os tribunais do Santo Ofício perseguiram artistas e intelectuais, e exigiram que toda
obra fosse submetida aos censores eclesiásticos.
"Não me sinto obrigado a acreditar que o mesmo Deus que nos dotou de sentidos, razão
e inteligência, pretenda que não os utilizemos."
- Galileu Galilei
Giordano Bruno, queimado na fogueira  em 17 de fevereiro
de 1600. Giordano Bruno (1548-1600) foi morto por suas
ideias relacionadas à cosmologia.
Galileu Galilei (1564-1642) entrou na lista do Index Librorum Prohibitorum por suas teorias sobre o heliocentrismo, teses
aceitas pela Astronomia.
Ao longo dos séculos, cerca de 8.000 publicações foram
incluídas no índice, entre elas Madame Bovary, de Gustave
Flaubert, O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir,
romances de Honoré de Balzac e obras de �lósofos como
René Descartes e Emanuel Kant.
A censura também pode ser exercida apenas pela interpretação que se impõe a uma determinada obra, alterando-lhe os
conceitos iniciais ou a forma original.
Substitui-se, assim, a mensagem por uma proposta que se concilie com os ideais impostos.
O exemplo mais evidente dessa ação é o texto “Cântico dos Cânticos” (ou “Cantares de Salomão”) que, apesar da expressiva
sensualidade amorosa, foi aceito nos Evangelhos por ser uma possível produção salomônica (séc. IX).
Julia Kristeva elabora um estudo sobre o “Cântico dos Cânticos” no livro Histórias de Amor. Segundo a autora, o texto recebeu
duas célebres interpretações censórias ainda na Idade Média: a judaica, que entendeu ser o amor descrito uma “relação entre
Jeová e o povo eleito”, e a cristã, que identi�cou nos famosos versos o “amor mútuo do Cristo e da Igreja”.
Em praticamente todos os países e em todos os tempos, a censura religiosa atuou sobre o intelecto humano. Em Portugal, país
de forte tradição religiosa, vários casos se tornaram célebres:
O jugalmento do Padre António
Vieira  (1608-1697), por defender
os cristãos-novos (judeus
convertidos ao cristianismo, mas
que continuavam sendo
perseguidos pelo poder
inquisitorial);
A condenação à morte na
fogueira de António José da Silva,
«O Judeu» (Rio de Janeiro, 1705
– Lisboa, 1739), autor de obras
com temáticas pagãs;
Luís Vaz de Camões (1525-1580)
foi obrigado a ler e explicar para
os censores da Igreja cada um
dos 8.816 versos que compõem
a obra Os Lusíadas, publicada em
1572.
A Censura Política
A censura política separa-se da censura religiosa apenas quando a  República se instaura de�nitivamente, mas, ainda assim,
registram-se longos períodos de associação de poderes em torno da mesma prática.
Após o Ato Institucional nº 5 (AI-5), todo veículo de comunicação deveria ter sua pauta previamente aprovada por censores da
ditadura militar.
Algumas publicações apresentavam grandes lacunas, outras preenchiam espaços — antes destinados a editoriaise colunas
políticas — com receitas culinárias.
O Jornal do Brasil, em sua edição de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, data do AI-5, a despeito do imenso calor de um
típico dia de verão, publica em sua primeira página: “Tempo negro, temperatura sufocante, o ar está irrespirável. O país está
sendo varrido por fortes ventos.”
No Brasil, a censura fez-se presente com sua face mais violenta durante o regime militar. Os meios de comunicação de massa
sofreram graves ataques de silenciamento. Coube, então, à literatura, o papel de continuar propondo ideias e consolidando
ideais na mente do leitor. Flora Sussekind faz a análise: “Se nos jornais e meios de comunicação de massa a informação era
controlada, cabia à literatura exercer uma função parajornalística”./p>
Mensagens o�ciais eram divulgadas de todas as formas,
procurando incutir na mente do brasileiro a ideia de
prosperidade e ordem social e política, como o slogan
“Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Contra essa proposta, os artistas reagiam de todas as
formas, do que é exemplo a tira de Ziraldo.
Apesar de nas rádios proliferarem as músicas norte-americanas, única maneira de preencher a grade dos programas e de
resistir ao peso da ditadura, sempre chegavam aos ouvintes músicas de protesto, fosse pela ousadia dos comunicadores,
fosse pelo som ensurdecedor dos teatros onde se realizavam festivais de canções.
Em alguns casos, os problemas advindos da coragem dos
jovens músicos acabaram tornando-se lenda, como no caso
da música “Cálice”, de Chico Buarque de Holanda que,
impedido de cantar em uma apresentação, teve o som do
microfone cortado pela própria produção do show,
preocupada com a polícia política, transformando a
metáfora no que ela de fato representava: “Cale-se”.
Durante a ditadura, foram censurados, entre outros, os artistas: Caetano Veloso, Chico Buarque (que precisou usar o
pseudônimo Julinho da Adelaide para ter suas músicas liberadas), Elis Regina, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Kid Abelha (pela
música “Como eu Quero”, por não atender os padrões morais da época em que foi produzida), Milton Nascimento, Raul Seixas,
Taiguara, Toquinho e Odair José (por falar abertamente de questões sociais cotidianas).
Caso extremado de censura política foi o de Adoniran Barbosa, perseguido por utilizar um linguajar caipira em suas músicas.
Calabar, ou o Elogio à Traição, peça de Chico Buarque e Ruy
Guerra encenada em 1973, teve quase todas as suas
músicas censuradas, inclusive a capa do disco, considerada
subversiva. Em protesto, Chico Buarque lançou novo disco
com a capa totalmente em branco. São da peça as músicas:
“Bárbara”, “Partido Alto”, “Não Existe Pecado ao Sul do
Equador” e “Fado Tropical”.
Os artistas são expulsos de cena, os teatros fechados, o povo assiste ao espetáculo da censura sem mesmo compreender os
motivos da proibição. São censuradas as peças Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams; Senhora da Boca do Lixo,
de Jorge de Andrade, e Poder Negro, de Le Roy Jones. Os atores Maria Fernanda e Oscar Araripe �cam suspensos de suas
atividades artísticas por trinta dias.
Referências
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e �loso�a da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.
BOSI, Alfredo. Re�exões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1991.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2005.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1986.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2007.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. São Paulo: Papirus Editora, 2009.
ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002.
SANTIAGO, Silviano. Literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de história da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003.
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2005.
VIANNA, Hermano. Mistério do samba. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004.
Próxima aula
As relações entre o artista e a História;
As relações entre o artista e a História;
As características ideológicas e estéticas dos movimentos artísticos, da Antiguidade Clássica ao período Barroco.
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