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DESCRIÇÃO Contexto do surgimento da literatura portuguesa e seu processo construtivo a partir da lírica e da prosa medievais. PROPÓSITO Conhecer o contexto histórico-cultural do surgimento da literatura portuguesa para o entendimento da origem e da identidade da expressão estética em língua portuguesa. PREPARAÇÃO Tenha à mão um dicionário de literatura para compreender o vocabulário específico da área. Na internet, você pode acessar gratuitamente o E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, e o Dicionário de cultura básica, de Salvatore D’Onofrio. OBJETIVOS MÓDULO 1 Reconhecer o contexto histórico-cultural da origem da literatura portuguesa MÓDULO 2 Identificar as características das cantigas na poética medieval MÓDULO 3 Identificar as características das novelas de cavalaria e das crônicas na prosa medieval INTRODUÇÃO Você sabe quando e como se inicia a produção literária em língua portuguesa? Já imaginou quantas questões culturais e identitárias estão implicadas no surgimento e no desenvolvimento dessa literatura? Agora você terá a oportunidade de estudar alguns aspectos históricos e culturais pertinentes a esses questionamentos. Além disso, analisaremos as diferentes cantigas que surgiram na Baixa Idade Média e que tiveram demasiada importância para o caráter literário ibérico. Em seguida, faremos um percurso pelas novelas de cavalaria, apresentando, para isso, duas das mais famosas do gênero: A demanda do Santo Graal e O Amadis de Gaula. Por fim, estabelecermos uma compreensão acerca do papel das crônicas na sociedade portuguesa enquanto importante elemento da historiografia antiga. MÓDULO 1 Reconhecer o contexto histórico-cultural da origem da literatura portuguesa INDEPENDÊNCIA E ORGANIZAÇÃO DE PORTUGAL Comecemos este módulo com uma panorâmica da independência e da organização de Portugal como Estado. A independência portuguesa foi sendo forjada ao longo de um processo que se dividiu em várias etapas. Conforme aponta Saraiva (1996, p. 45-46), podemos registrar os momentos mais decisivos da seguinte forma e sequência: A BATALHA DE SÃO MAMEDE Foto: Gianluca Campanella / Wikimedia Commons / CC BY 2.0. Castelo de Guimarães, sobranceiro ao Campo de São Mamede, Portugal. Imperador da Península Ibérica, Afonso VI (1040-1109), rei de Leão, deu a Teresa, sua filha ilegítima, o Condado Portucalense, enquanto Urraca, que era sua filha legítima, herdou os reinos de Leão e Castela. Teresa tentou anexar o Condado Portucalense à Galícia. Isso gerou descontentamento entre os nobres de Portucale, tradicionais rivais da nobreza galega. Filho de Teresa, Afonso Henriques (que nasceu provavelmente em 1109 e faleceu em 1185) tomou partido, aos 21 anos, dos nobres do Condado e ficou contra sua mãe. Em função disso, em 1128, no Campo de São Mamede, Afonso Henriques, ao lado dos nobres portucalenses, expulsou Teresa e o Conde de Borgonha, seu pai. Com isso, teve início a saga de Afonso Henriques, o futuro rei de Portugal. Para compreender melhor os próximos itens desta seção, verifique a seguir a árvore genealógica do imperador Afonso VI e de seus descendentes: Fonte: EnsineMe. Árvore genealógica de Afonso VI. A BATALHA DE OURIQUE Imagem: Joseolgon / Wikimedia Commons / CC BY 3.0. Batalha de Ourique de Jorge Colaço no Centro Cultural Rodrigues de Faria, Portugal. Neto do rei Afonso VI, Afonso Henriques era de linhagem nobre. Apesar de ele ter assinado como rei em diversas situações, seu “título de rei era uma dignidade pessoal”, explica Saraiva. (1996, p. 47). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal/Wikimedia Commons / Domínio Público. Afonso Henriques. Isso não implicava por si só a independência do reino. Um fato célebre, porém, fez com que Afonso Henriques passasse a usar direto o título de rei: a batalha de Ourique, que foi travada em 25 de julho de 1139. Sabe-se que os portugueses faziam incursões (fossados) nas terras ocupadas pelos mouros, apreendendo gado, escravos e outros despojos. Em um desses fossados, eles se depararam com um exército de mouros. COMENTÁRIO Não podemos afirmar com segurança o que é mito e o que é história nesse confronto, mas tudo nos leva a crer que os mouros eram numericamente superiores. Isso alimentou o mito do milagre de Ourique, que passou a fazer parte de um dos muitos milagres do ciclo de Santiago de Compostela. De acordo com o mito, a vitória foi obtida com o auxílio divino. O milagre tem seu primeiro relato completo na crônica dos sete primeiros reis em Portugal, em 1419. D. Afonso Henriques procurava encorajar os seus afirmando que eles seriam ajudados por Deus. E Santiago, cujo dia se celebrava, seria o conde do povo. A história depois foi desenvolvida atribuindo-se o milagre exclusivamente a Cristo. Essa versão de 1419 é a fonte das outras versões que virão depois, mas nelas Santiago deixa de intervir, frisa Saraiva (1996, p. 57). De qualquer modo, sendo o milagre atribuído a Cristo ou a Santiago, diz o mito que, no momento da batalha, Afonso Henriques foi ungido como rei de Portugal. A INDEPENDÊNCIA Imagem: Roque Gameiro / Wikimedia Commons / Domínio Público. Cerco de Lisboa, por Roque Gameiro, Portugal. Após a morte de Afonso VII (1105-1157), neto legítimo de Afonso VI, o título de imperador da Península Ibérica se extinguiu. As relações de Afonso Henriques e Afonso VII, que era seu primo, sempre foram tensas. Henriques dilatou o território do condado, conquistando, entre outras terras, Coimbra, Lisboa e Santarém. Dessas conquistas, a mais polêmica foi o “cerco de Lisboa” pelo caráter sangrento da ocupação. SAIBA MAIS Há um romance famoso do escritor português José Saramago (1922-2010) que faz alusão a esse fato. O título do livro é A História do cerco de Lisboa. Sabemos que, além das conquistas, ele buscou o apoio do Papa Inocêncio II (1081-1143), embora o reconhecimento do reino e sua oficialização só tenham sido obtidos quase no final do seu reinado. Até esse momento derradeiro, os diplomatas de Roma procuravam evitar o reconhecimento de Afonso Henriques como rei. A mudança nessa situação foi adquirida por mil moedas de ouro, mas isso parece não ter influenciado muito na consolidação da independência de Portugal, algo que já se tornara fato consumado. Aliás, nem mesmo havia mais imperador, destaca Saraiva (1996). Afonso Henriques morreu em 6 de dezembro de 1185 na cidade de Coimbra, dando origem à primeira dinastia de Portugal (conhecida como “Afonsina” ou “Dinastia de Borgonha”). A sua biografia se confunde com os mitos e a história da própria independência de Portugal. O SURGIMENTO DA CAVALARIA E O AMOR CORTÊS Imagem: Edmund Leighton / Wikimedia Commons / Domínio Público. God Speed, por Edmund Leighton, 1900. UM NOVO TIPO DE ECONOMIA MONETÁRIA O feudalismo sofreu, na Europa no século XI, uma transição. Era o início de uma economia comercial monetária. De acordo com Hauser (1972, p. 269), os mosteiros foram os precursores da administração racional dos negócios, emprestando dinheiro a juros. Com o passar dos anos, eles cederam o lugar às cidades, que passaram a ser os centros de administração das trocas comerciais. Com isso, o capital estéril do mundo medieval foi posto em movimento: a economia financeira das cidades passou a ameaçar de extinção todo o sistema feudal. O RESSURGIMENTO DA BURGUESIA A partir daí, observou-se o aumento do nível de vida e o gosto dos homens por tudo que fosse vestuário, armaduras e alojamentos. As pessoas já não se satisfaziam mais com o que era simples e útil. Imagem: Shutterstock.com Burgueses. Com o aluguel das terras produtivas, os camponeses passaram a receber dinheiro em vez de gêneros, pontua Hauser (1972). Os senhores feudais se tornavam endividados e acabavam vendendo suas terras a homens da cidade, cujas origens eram plebeias. A situação da burguesia emergente a colocava como intermediária entre a nobreza e os camponeses. Desenraizados, os burgueses, a partir do século XIII, formaram umaclasse social própria. A BURGUESIA, ASSIM, TOMOU A DIANTEIRA DO PROCESSO HISTÓRICO. O APARECIMENTO DA CAVALARIA Os príncipes, os barões, os condes e os grandes senhores tinham conseguido feudos como recompensas de seus serviços de guerra, porém o número de senhores peritos em guerras pouco a pouco se tornou escasso! Havia senhores militares que nunca conseguiram feudos; por conta disso, seus descendentes se tornaram soldados mercenários: a cavalaria. No século XI, segundo Hauser (1972), houve finalmente a concessão de feudos aos “cavaleiros”. Com isso, formava-se uma classe hereditária de cavaleiros, uma nobreza de segunda classe na qual se enraizou o espírito do servilismo. Na nobreza feudal, tal espírito era diferente: todos se enxergavam como pretendentes ao trono. ATENÇÃO Para Hauser (1972), o idealismo romântico e o heroísmo consciente da cavalaria eram idealismos e heroísmos de segunda mão. Os zelos da cavalaria eram sinais da falta de segurança e das fraquezas que a velha nobreza não tinha. Fora isso, a Igreja encorajou a formação da nobreza da cavalaria, tentando anular o processo de secularização que provinha das cidades. Ela passou a reconhecer a cavalaria como o exército de Cristo. As virtudes dos cavaleiros se assemelhavam às cristãs e pressupunham esforço e treino físico. A CULTURA DA CORTE A cultura da corte da Idade Média distinguiu-se de qualquer outra cultura palaciana anterior pelo seu caráter feminino. Ao contrário do que ocorria com as canções de gestas francesas, as canções de amor provençais e os romances de cavalaria do ciclo arturiano foram essencialmente escritos para mulheres. CICLO ARTURIANO Ciclo literário vinculado à lenda do rei Artur e seus cavaleiros na Idade Média. Ainda é muito famosa a versão de Rei Arthur e os cavaleiros da távola redonda, escrita e ilustrada pelo norte-americano Howard Pile (1853-1911). Elas participavam ativamente da educação dos jovens; os homens, portanto, deviam-lhes sua educação moral e estética. Diferentemente do que ocorreu na época clássica e na Idade Média, a concepção cavaleiresca desenvolvida nas cortes era um sintoma de uma nova posição ocupada pelas mulheres. O AMOR TROVADORESCO Imagem: Shutterstock.com O FEMININO E UMA NOVA CONCEPÇÃO DE AMOR No século XII, surgiu uma nova concepção de amor baseada no destaque da figura da mulher. Tratava-se do amor trovadoresco como caracterização de um novo código de amor. Há sobretudo algo de original nessa temática, até porque ela ocorreu numa sociedade teocrática (Divindade do rei.) de origem misógina (Aversão à mulher.) . Segundo Bloch (1995, p. 55-60), nos primórdios do cristianismo, houve uma nítida estetização dos sexos, marcando as distinções entre homem e mulher. Isso partiu de uma interpretação do Gênesis, cuja narrativa apresenta a mulher surgindo da costela de Adão. javascript:void(0) No início da Idade Média, o corpo dela estava associado não apenas à carne, enquanto fonte de pecados, mas também aos ornamentos e aos cosméticos tidos como pecaminosos e prostituintes. Havia um nexo econômico na relação estreita entre: Imagem: Shutterstock.com O OURO. Imagem: Shutterstock.com O PRODUTO DO TRABALHO EM DEMASIA. Imagem: Shutterstock.com AS ARTES. Imagem: Shutterstock.com AS MULHERES. A natureza de cada um desses elementos seria não essencial e não natural, pois eles estariam relacionados com um excesso escandaloso e ofensivo, pontua Bloch (1995). Para os primeiros padres da Igreja, a mulher que utilizasse artifícios estéticos se aproximava do caráter enganador da arte e se mostrava como um objeto demoníaco de sedução. Tal posicionamento estava em sintonia com o entendimento religioso de que o ser humano perde parte de sua dignidade ao ter admiração por qualquer coisa além de Deus, completa Bloch (1995). COMENTÁRIO É surpreendente que, no século XII, tenha surgido – principalmente no Sul da França – um culto ao feminino. O SURGIMENTO DA LÍRICA PROVENÇAL E AS TRÊS TESES Imagem: Shutterstock.com Falaremos agora sobre as possíveis influências presentes no surgimento da lírica provençal (lírica trovadoresca). Para isso, apresentaremos três teses: TESE MÉDIO-LATINA Natália Correia (1978, p. 16) afirma que o conhecimento dos trovadores do Languedócio (região costeira do Sul da França) acerca dos elegíacos latinos pode sugerir uma influência no aparecimento da lírica trovadoresca. Nesse sentido, suas influências seriam sobretudo de Catulo, Ovídio, Propércio e Tíbulo. Mas talvez elas não tenham excedido o caráter decorativo estilístico, porque os antigos consideravam o amor uma enfermidade dos sentidos. No caso dos trovadores, o amor era visto como: Um transporte espiritual que sobrevoa a realidade física. Uma via de salvação. TESE ÁRABE Os poetas árabes da Andaluzia, segundo Correia (1978, p. 16), deram aos trovadores occitânicos os temas primordiais para a sua poética. Os poetas árabes desenvolviam os acentos de um amor platônico que se expandiu entre as elites muçulmanas depois das traduções de sírios cristãos nos séculos VIII e IX. O platonismo árabe coincidiu com a ascese amorosa da poética provençal. TESE FOLCLÓRICA A tese folclórica, na perspectiva de Correia (1978, p. 18), oferece um fundamento para a erótica provençal, cuja exaltação sensual se encaminha para uma mística do amor. Nesse caso, admite-se o trânsito de uma poesia popular jogralesca (feita pelo jogral) para um produto requintado de lirismo cortês. javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) O amor adulterino, tão glorificado pelos cantos eróticos, trazia as marcas da euforia orgiástica das Florálias, as antigas festas romanas da primavera. TROVADORES O termo “trovador” é originário do provençal trobador e geralmente designa um artista que compunha letras e melodias de suas canções (as cantigas). O trovador tinha uma posição social privilegiada, muitas vezes pertencendo à nobreza. O artista proveniente da vila (o vilão), de classe social inferior, seria designado como “jogral”. ELEGÍACOS LATINOS Poetas ligados à elegia, gênero literário de origem grega. Inicialmente, a elegia era um canto fúnebre; depois, ela deixou de ser apenas um canto triste para tratar de temas como a pátria, a guerra, a dor, o amor e a amizade. Já os elegíacos latinos cantavam motivos eróticos e o amor relacionados com suas experiências de vida. OCCITÂNICOS Referente à língua occitana ou occitânica, que é uma língua românica (com suas raízes no latim) falada no Sul da França. Ela também é chamada de provençal ou langue d’oc (literalmente “língua de Oc”). Vem daí o nome dado para uma região no Sul da França: Languedoc. A INFLUÊNCIA CÁTARA Imagem: Oficina do mestre de Boucicaut / Wikimedia Commons / Domínio Público. Expulsão dos cátaros de Carcassonne em 1209, oficina do mestre de Boucicaut, 1415. Aproximadamente na mesma época do surgimento da poesia provençal, existia, no Sul da França, a cultura cátara. Segundo Correia (1978), a forma de conhecimento cátara tirava todas as suas conclusões lógicas de um antagonismo entre o espírito e a matéria. CÁTARA Doutrina considerada herege pela Igreja e muito difundida no Sul da França e no Norte da Itália no século XII. Os adeptos da cultura e das ideias cátaras também são chamados de Albigenses em referência a um importante centro de difusão dessa cultura: a cidade francesa de Albi. Partindo do pressuposto de que a bondade de Deus não comportava no mundo a criação da matéria, os cátaros defendiam que matéria era obra de um segundo deus, um deus do mal. Eles também acreditavam na bissexualidade celeste dos corpos espirituais. Desse modo, aparição da amada – cuja imagem o amante já conhecia por se tratar da sua outra metade espiritual – libertava-o do desejo e o fazia esquecer seu corpo. Nesse sentido, a abstinência de caráter metafísico dos cátaros era semelhante ao amor puro dos trovadores. INFLUÊNCIAS DO PLATONISMO A lírica provençal está inserida numa dialética do amor no mundo ocidental,destacando-se, conforme aponta Correia (1978), sobretudo o platonismo. Há uma distinção platônica entre o amor popular e sensual e o amor espiritual. Confira: AMOR POPULAR E SENSUAL Seria uma prerrogativa dos homens vulgares, que são escravos da atração feminina. javascript:void(0) AMOR ESPIRITUAL Corresponderia à comunhão espiritual, sendo o amor dos sábios, ou seja, daqueles que estimam as virtudes espirituais do homem. Tal distinção ou dicotomia se transmitiu no cristianismo na forma de uma conflituosa antítese entre carne e espírito. Mas, no caso da lírica trovadoresca, esse culto dos dons do espírito se revestiu de um caráter pré-helênico pertencente a uma estrutura matriarcal em forte oposição a uma tradição ocidental de superioridade viril. O CRISTIANISMO E A CISÃO ENTRE CORPO E ALMA O cristianismo agravou uma cisão ocidental, dividindo o homem entre espírito e carne, acrescentando a noção de pecado. Houve um aviltamento do corpo e uma exaltação do espírito. Com isso, um dos dois acaba saindo prejudicado. A voz do instinto leva o homem à angústia do pecado, sendo “a fantasmagoria de um amor celeste que repudia o sexo e o desespero de uma natureza insatisfeita”, explica Correia (1978, p. 24). ATENÇÃO O amor cortês, embora tenha se dado na Idade Média, inseriu-se, por seu caráter herético, em um complexo ideológico que determinou a Renascença e a Reforma. O RACIONALISMO DIALÉTICO CRISTÃO Ainda de acordo com a perspectiva de Correia (1978, p. 24-25), no século XII, a lenta elaboração iniciada com o humanismo de Carlos Magno propiciou uma renovação da cultura da Antiguidade, propiciando, assim, o surgimento da força libertária do “individualismo”. EXEMPLO Com o filósofo e teólogo francês Pedro Abelardo (1079-1142), que fundou o racionalismo medieval, desabrochou o exercício apaixonado da dialética. Com isso, certos dogmas passaram a ser questões problemáticas. OS CLERICI VAGANTES Cabe ressaltar ainda a poesia dos clerici vagantes (clérigos errantes) no século XII. Esses poetas tiveram sua formação nos quadros da Igreja, porém se tornaram autônomos em relação a ela. Eles eram homens eruditos que: Cantavam os prazeres terrestres livres do estigma do pecado. Parodiavam os evangelhos. Criticavam a venalidade e hipocrisia do clero. Imagem: Autor desconhecido* / Wikimedia Commons / Domínio Público Clerici vagantes, com vara e manto. UMA CONTROVÉRSIA EM TORNO DO ESPÍRITO SANTO Para finalizar essa panorâmica do contexto histórico, social e cultural do surgimento da arte literária na região da Europa da qual Portugal fazia parte em seu início, devemos destacar também um tema controverso que surgiu como forma de heresia popular. O povo de então passou a crer que o Espírito Santo, anunciado pela Igreja para 1260, encarnaria numa mulher, afrontando, com isso, o “antifeminismo” do dogma oficial. Esse foi um dos elementos que provavelmente influenciou o surgimento, no Sul da França, de um culto literário do feminismo. CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL E ORIGEM DA LITERATURA PORTUGUESA Assista ao vídeo com o professor Mário Bruno explicando os aspectos históricos e culturais que fazem parte do contexto de origem e formação da literatura portuguesa. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. ASSINALE A ALTERNATIVA EM QUE É POSSÍVEL RECONHECER CORRETAMENTE UM ELEMENTO DO CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DA ORIGEM DA LITERATURA PORTUGUESA. A) Uma nova concepção de amor, o amor trovadoresco, que tem sua base no destaque conferido à figura feminina. B) A superação de antagonismos ou dicotomias, como, por exemplo, corpo e alma, puro e impuro. C) A destruição da sociedade teocrática e a eliminação completa de qualquer vestígio de misoginia. D) Eliminação do culto ao feminino em virtude da impossibilidade de destaque da mulher numa sociedade altamente influenciada pelo cristianismo. E) A submissão política e cultural de Portugal ao império de povos vizinhos e sua tentativa frustrada de independência. 2. (UNESP – 2014 – ADAPTADO) O CAVALEIRO É UM DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS NAS NARRATIVAS DIFUNDIDAS DURANTE A IDADE MÉDIA. ESSE CAVALEIRO É PRINCIPALMENTE UM: A) Camponês, que usa sua montaria no trabalho cotidiano e participa de combates e guerras. B) Nobre, que conta com equipamentos adequados à montaria e participa de treinamentos militares, torneios e jogos. C) Camponês, que consegue obter ascensão social por meio da demonstração de coragem e valentia nas guerras. D) Nobre, que conquista novas terras por meio de sua ação em torneios e jogos contra outros nobres. E) Trovador, que compunha suas cantigas após retornar das batalhas como cavaleiro homenageado. GABARITO 1. Assinale a alternativa em que é possível reconhecer corretamente um elemento do contexto histórico-cultural da origem da literatura portuguesa. A alternativa "A " está correta. Apesar de um contexto marcado pela teocracia e pelas posturas misóginas, no século XII uma concepção de amor é construída a partir de uma posição de destaque da figura da mulher. Surge, com isso, um novo código de amor, o amor trovadoresco, que influenciará as composições poéticas medievais em regiões ligadas à história da formação do povo e do Estado portugueses. 2. (Unesp – 2014 – adaptado) O cavaleiro é um dos principais personagens nas narrativas difundidas durante a Idade Média. Esse cavaleiro é principalmente um: A alternativa "B " está correta. A cavalaria era, diferentemente da nobreza feudal, considerada uma nobreza de segunda classe. Essa classe, entretanto, não disputava novas terras “contra outros nobres”: elas eram dadas por meio de concessões. MÓDULO 2 Identificar as características das cantigas na poética medieval OS CANTARES EM PORTUGAL Imagem: Autor desconhecido* / Wikimedia Commons / Domínio Público. Uma das cantigas de amigo de Martim Codax, século XIII. CONCEITOS E CONTEXTUALIZAÇÃO A primitiva poesia lírica – geralmente chamada de “galego-portuguesa” por ter sido produzida em galego-português – surgiu de forma quase simultânea à formação da nação portuguesa. Os poetas que deram início à poesia portuguesa trovadoresca eram provavelmente ligados à corte de D. Sancho I (1185-1211), o segundo rei de Portugal. Inclusive o próprio rei talvez tenha escrito a canção Ai eu coitada, uma cantiga de amigo. NÃO PODEMOS, PORÉM, CONSIDERAR A POESIA LÍRICA PRIMITIVA DOTADA DE UM CARÁTER NACIONAL. As fronteiras políticas e culturais na Península Ibérica, dos fins do século XII até meados do século XIV, eram muito permeáveis e de contato estreito entre os reinos de Leão, Castela, Aragão, Catalunha, Navarra e Portugal. Esses contatos eram mantidos por meio dos laços matrimoniais entre os nobres da Península, argumenta Vieira (1992, p. 25). A internacionalização dessa poesia se deu pela escolha do galego-português como língua de expressão para a poesia lírica. Sabemos que Guilherme IX, da Aquitânia (1071-1127), primeiro trovador em língua provençal, teve contatos e trocas culturais com a Galícia. Há muitas dificuldades para estabelecer o início da poesia trovadoresca galego-portuguesa. As duas obras consideradas pelos pesquisadores como inaugurais dessas manifestações líricas são: Ora faz ost’o senhor de Navarra, de Joam Soares de Paiva. Cantiga de guarvaia, de Pai Soares de Taveirós. ATENÇÃO Os problemas relativos à sua datação se complicam quando damos conta de que só os poetas de alta posição social possuíam registros biográficos. Os “segréis” e “jograis”, poetas de classes inferiores, só podiam ser identificados quando: Havia referências em poemas de outros autores. Participavam de desafios poéticos ou ciclos de poemas. O maior número desses poetas está localizado nas cortes de Fernando III (1217-1252) e Afonso X (1252-1284), de Leão e Castela, e na do rei português D. Afonso III (1245-1279). CARACTERÍSTICAS As cantigas desses trovadores tinham como interlocutores um pequeno grupo. Muitas vezes, elas eram feitas em parcerias e na forma de tenção, ou seja, no formato de um desafioou debate poético. Era muito comum uma cantiga provocar a resposta de um ou mais poetas. Por isso, as composições acabavam tendo o aspecto de apartes que ocorrem em um debate, “passando a constituir um ciclo” (VIEIRA, 1992, p. 29). Depois do reinado de Afonso X, houve um declínio da produção poética ibérica e castelhana, mas, com a ascensão do rei português D. Dinis (1261-1325), sua corte passava a contar com um novo centro trovadoresco. A morte de D. Dinis, em 1325, poderia ser considerada como a data final do lirismo trovadoresco galego-português. Entretanto, Pedro Afonso (1287-1350), conde de Barcelos e filho de D. Dinis, chegou a doar, em testamento, um livro de cantigas a Afonso XI de Castela (1311-1350). ORIGENS A lírica galego-portuguesa sofreu a influência da poesia provençal e tinha um lastro de caráter popular feminino voltado ou não para a própria terra. Sabemos que o impacto do lirismo provençal no Ocidente europeu foi mais imediato nas regiões mais próximas, ou seja, no Norte da Itália e na Catalunha. Já áreas como a Sicília e a Península Ibérica, mais distantes da Europa central, receberam uma influência atenuada ou modificada da poesia do Sul da França. PRESERVAÇÃO A preservação da poesia trovadoresca galego-portuguesa se deu por meio do: CANCIONEIRO DA AJUDA Recebeu esse nome por ter sido descoberto exatamente na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa. Ele reúne 310 cantigas de amor. CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA Anteriormente chamado de Cancioneiro Colocci-Brancuti, ele deve seu atual nome por ter sido depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa em 1924 depois de adquirido pelo Estado português. Nesse cancioneiro, estavam compiladas originalmente 1664 composições, mas atualmente permanecem 1560. CANCIONEIRO DA VATICANA Seu nome deriva do fato de estar depositado na Biblioteca do Vaticano, sendo uma coletânea medieval de aproximadamente 1200 cantigas. Pode-se dizer que, comparados numericamente aos manuscritos provençais, os três cancioneiros constituem uma tradição “pobre”. Confira: CANCIONEIRO DA AJUDA CANCIONEIRO DA VATICANA CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA CANCIONEIRO DA AJUDA O Cancioneiro da ajuda foi copiado provavelmente na corte de Afonso X, sendo um manuscrito rico que deveria conter miniaturas coloridas e pautas musicais das cantigas. Interrompida, sua confecção ficou incompleta. Ele contém as cantigas de amor dos trovadores mais antigos. CANCIONEIRO DA VATICANA O Cancioneiro da Vaticana foi copiado pelo filólogo e humanista italiano Angelo Colocci (1467-1549), no século XVI, a partir de um manuscrito mais antigo. Possui cantigas de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer dos poetas galego-portugueses. CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA O Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa também foi obra de Angelo Colocci, sendo oriunda do mesmo manuscrito que deu origem ao Cancioneiro da Vaticana. Além de ser o mais completo, ele possui um pequeno tratado de poética trovadoresca. GÊNEROS TROVADORESCOS EM PORTUGAL Agora conheceremos melhor os gêneros trovadorescos em Portugal. Para isso, apresentaremos brevemente as características das cantigas descritas a seguir, examinando pelo menos um exemplo de cada uma delas. Imagem: Shutterstock.com CANTIGAS DE AMOR Com nítida inspiração nas canções provençais, o poeta expressa seu amor pela “senhor”. Havia um código de amor cortês a ser seguido por ele. Porém, mesmo seguindo o código da poesia do Sul da França, as trovas galego-portuguesas eram menos variadas na expressão da sintomatologia das alegrias do amor cortês. As estruturas socioculturais da França e da Península Ibérica eram centralizadas em valores diferentes. Um aspecto dessa diferença é que o amor cortês galego-português enfatizava a renúncia – e não a recompensa do amor. Não havia nessa poesia da Península Ibérica o fin’amors (O verdadeiro amor ou o amor cortês.) como esperança da recompensa. Podemos até dizer que a coita (sofrimento) do amor ibérico é distinta do joi (alegria) occitânica. Dessa forma, o amor é percebido como uma fatalidade inevitável e tem seu fundamento na excelência da senhora. Ela, por sua vez, também é fatalmente altiva e inacessível. “SENHOR” O uso de “senhor” se deve ao fato de o substantivo ser invariável para os dois gêneros em galego-português. Diante disso, amar é um tipo de exercício de “gestão” do sofrimento, que chega ao auge no desejo de morte, explica Vieira (1992, p. 39). A dama das poesias galego-portuguesas inspira um amor absoluto em virtude de suas qualidades físicas e morais. Chega-se a falar em “vassalagem amorosa”, ou seja, a mulher é tratada como senhora, enquanto o homem se coloca na posição de servo do seu amor. Mas é evidente que falta sinceridade nos trovadores. javascript:void(0) Imagem: Shutterstock.com A poesia medieval é uma forma codificada na qual não existe uma preocupação em expressar sentimentos, cabendo a ela expressar-se dentro de uma forma adequada e aceita socialmente. TRATA-SE, ASSIM, DE UM LIRISMO ARTIFICIAL QUE EXIGE UMA HABILIDADE ARGUMENTATIVA NA QUAL O POETA DEMONSTRA UMA COITA QUE DERIVA DA VONTADE DE DEUS. Veremos agora um exemplo de cantiga de amor. Apresentaremos ainda uma versão para o português contemporâneo do texto de João Garcia de Guilhade e sua posterior análise: CANTIGA D’AMOR DE REFRAN Vy oj’ eu donas mui bem parecer e de muy bom prez e de muy bom sen e muyt’ amigas son de todo bem, mays d’ũa moça vos quero dizer: de parecer venceu quantas achou hũa moça que x’ agora chegou. Cuydava-m’ eu que non avyam par de parecer as donas que eu vi, atan bem me parecian ali, mays, po(i)’ la moça filhou seu loguar, de parecer venceu quantas achou hũa moça que x’ agora chegou. Que feramente as todas venceu a moçelina em pouca sazon! de parecer todas vençudas son! mays, poy’ la moça hi pareceu, de parecer venceu quantas achou hũa moça que x’ agora chegou. Clique aqui para ler a tradução desta cantiga. CANTIGA DE AMOR DE REFRÃO Tinham todas belíssima aparência as donas que hoje eu vi, donas prendadas devotadas ao bem, ajuizadas mas de uma moça vos faço a confidência: em beleza venceu quantas achou uma moça que agora aqui chegou. Julgava eu que não teria par a formosura das donas que ali estavam; tão belas a meus olhos se mostravam; mas apenas a moça vi chegar: em beleza venceu quantas achou uma moça que agora aqui chegou. Da mocinha, a linda aparição deixou as outras donas apagadas. Formosas são mas quando comparadas com a moça, vencidas se acharão: em beleza venceu quantas achou uma moça que agora aqui chegou. (CORREIA, 1978, p. 126-127) Análise Perceba que, nessa cantiga de amor, sobressai uma característica formal presente em muitas cantigas medievais: a ideia, a informação ou o sentimento apresentado na primeira estrofe acaba se repetindo nas estrofes seguintes, ainda que com palavras e construções variadas. De certo modo, as demais estrofes repetem ou aprofundam a impressão inicial da primeira. O poema nos permite reconhecer o tema do amor vinculado à excelência da senhora, ou seja, da mulher que se destaca por sua beleza em relação às demais. A dama ou a senhora alvo da admiração e fervor do poeta inspira a canção e o sentimento dele em virtude de suas qualidades físicas e de sua beleza ímpar. COMENTÁRIO O poeta brasileiro Manuel Bandeira (1886-1968) apresenta em sua escrita uma inspiração medieval na qual valoriza a influência e a estética das cantigas trovadorescas portuguesas. O poema Cantiga de amor, por exemplo, nos remete ao tema e à forma da cantiga de amigo composta por Guilhade. javascript:void(0) javascript:void(0) CANTIGA DE AMOR Mulheres neste mundo de meu Deus Tenho visto muitas — grandes, pequenas, Ruivas, castanhas, brancas e morenas. E amei-as, por mal dos pecadosmeus! Mas em parte alguma vi, ai de mim, Nenhuma que fosse bonita assim! Andei por São Paulo e pelo Ceará (Não falo em Pernambuco, onde nasci) Bahia, Minas, Belém do Pará... De muito olhar de mulher já sofri! Mas em parte alguma vi, ai de mim, Nenhuma que fosse bonita assim! Atravessei o mar e, no estrangeiro, Em Paris, Basileia e nos Grisões, Lugano, Gênova por derradeiro, Vi mulheres de todas as nações. Mas em parte alguma vi, ai de mim, Nenhuma que fosse bonita assim! Mulher bonita não falta, ai de mim! Nenhuma porém, tão bonita assim! (BANDEIRA, 1986) CANTIGA D’AMIGO (TENÇON) — Responde, filha, formosa filha, porque tardaste na fonte fria? Amores eu tenho! Filha, formosa filha, responde: porque tardaste na fria fonte? Amores eu tenho! — Tardei, minha mãe, na fonte fria, cervos do monte e água volviam. Amores eu tenho! Tardei, minha mãe, na fria fonte; volviam a água cervos do monte. mores eu tenho! — Que escondes, filha, por teu amigo? cervos do monte não volvem o rio. Amores eu tenho! Por teu amado, filha, que escondes? o mar não volvem cervos do monte. Amores eu tenho! (CORREIA, 1978, p. 158-159) CANTIGAS DE AMIGO São cantigas cujo eu lírico, que é feminino, se dirige ao seu amigo (namorado), à sua mãe ou às suas irmãs. Embora postas na voz de uma mulher, as cantigas de amigo eram escritas por trovadores. Seus poetas foram os mesmos que compuseram as cantigas de amor, de escárnio e de maldizer. Há uma relação muito próxima entre a cantiga de amigo e a de amor em muitas canções, com a apresentação de uma visão supostamente feminina do “amor cortês”. Por isso, é possível identificar um certo diálogo entre esses dois tipos de cantigas. Em algumas cantigas, a identidade é tamanha que se houvesse “a substituição do vocábulo ‘amigo’ por ‘mia senhor’ seria suficiente para transformá-las em cantigas de amor”, frisa Vieira (1992, p. 44) Veremos agora uma cantiga de amigo escrita por Pero Meogo. Em seguida, daremos sua tradução para o português contemporâneo: CANTIGA D’AMIGO (TENÇON) — Digades, filha, mia filha velida: porque tardastes na fontana fria? os amores ei. Digades, filha, mia filha louçana: porque tardastes na fria fontana? os amores ei. — Tardei, mia madre, na fontana fria, cervos do monte a augua volvian: os amores ei. Tardei, mia madre, na fria fontana, cervos do monte volvian a augua: os amores ei. — Mentir, mia filha, mentir por amigo; nunca vi cervo que volvess’o rio: os amores ei. Mentir, mia filha, mentir por amado; nunca vi cervo que volvess’o alto: os amores ei. Clique aqui para ler a tradução desta cantiga. CANTIGA D’AMIGO (TENÇON) — Responde, filha, formosa filha, porque tardaste na fonte fria? Amores eu tenho! Filha, formosa filha, responde: porque tardaste na fria fonte? Amores eu tenho! — Tardei, minha mãe, na fonte fria, cervos do monte e água volviam. Amores eu tenho! Tardei, minha mãe, na fria fonte; volviam a água cervos do monte. mores eu tenho! — Que escondes, filha, por teu amigo? cervos do monte não volvem o rio. Amores eu tenho! Por teu amado, filha, que escondes? o mar não volvem cervos do monte. Amores eu tenho! (CORREIA, 1978, p. 158-159) CANTIGAS DE ESCÁRNIO E DE MALDIZER javascript:void(0) Imagem: Autor desconhecido* / Wikimedia Commons / Domínio Público. O rei Afonso X, o Sábio, escreveu cantigas satíricas. As cantigas de escárnio e de maldizer possuem elementos em comum e distintos. O que há de comum em ambas é a intenção de dizer mal de alguém. Já sua diferença está no modo de dizer: Nas cantigas de escárnio, por palavras cubertas, de forma mais velada. Nas cantigas de maldizer, por palavras descubertas, de um modo mais transparente. As cantigas de escárnio e de maldizer possuem um caráter satírico, o qual por vezes acaba sendo burlesco e obsceno. Ambas eram cantigas muito valorizadas pelos trovadores galego-portugueses. SAIBA MAIS O filólogo português Rodrigues Lapa (1897-1989) chegou a editar 428 cantigas de escárnio e de maldizer. Elas eram composições de diferentes poetas pertencentes a diversos níveis sociais. O leque de compositores incluía desde reis, como D. Afonso X, até jograis, trovadores de classes sociais inferiores. As cantigas de escárnio e de maldizer também tiveram seus representantes provençais. Guilherme IX da Aquitânia, considerado o primeiro trovador, foi um deles. Esse trovador foi denominado no século passado como “trovador bifronte”, já que suas cantigas possuíam uma dupla natureza: [...] ENQUANTO ALGUNS EXALTAM A DEPURAÇÃO DO AMOR CORTÊS OUTROS CANTAM OS PRAZERES DO AMOR CARNAL DE FORMA ÀS VEZES APENAS SUGESTIVA, OUTRAS, CLARA E MESMO CARICATA. O GÊNERO SATÍRICO NOBRE, PORÉM, ERA O “SIRVENTÊS”, EMPREGADO PARA A CRÍTICA SOCIAL, MORAL E POLÍTICA. (VIEIRA, 1992, p. 50) Observaremos agora uma cantiga de escárnio escrita por D. Afonso X em galego-português, além de sua tradução para o português contemporâneo. Em seguida, faremos uma análise desse texto: CANTIGA D’ESCANEO Non me posso pagar tanto do canto das aves nen de seu son, nen d’amor nen de mixon nen d’armas — ca ei espanto, por quanto mui perigo(o)sas son, — come dun bon galeon, que mi alongue muit’ aginha deste demo da campinha, u os alacrães son; ca dentro no coraçon senti neles a espinhal E juro par Deus lo santo que manto non tragerei nen granhon nen terrei d’amor razon nen d’armas, por que quebranto e chanto ven delas toda sazon; mais tragerei un dormon, e irei pela marinha vendend’ azeit’ e farinha; e fugirei do poçon do alacran, ca eu non lhi sei outra meezinha. Nen de lançar a taviado pagado non sõo, se Deus m’ampar aqui, nen de bafordar; e andar de noute armado. sen grado o faço, e a roldar; ca mais me pago do mar que de seer cavaleiro; ca eu foi já marinheiro e quero-m’ ôi-mais guardar do alacran, e tornar ao que me foi primeiro. E direi-vos un recado: pecado nunca me pod’ enganar que me faça já falar en armas, ca non m’é dado (doado m’é de as eu razoar, pois-las non ei a provar); ante quer’ andar sinlheiro e ir come mercadeiro algũa terra buscar, u me non possan culpar alacran negro nem veiro. Clique aqui para ler a tradução desta cantiga. CANTIGA DE ESCÁRNIO Não me posso agradar tanto do canto das aves nem de ambição nem de canseira ou paixão nem de armas com que me espanto, por quanto perigosas elas são como de um bom galeão que me arrebate à vizinha maldição desta campina onde vive o escorpião; pois dentro, no coração dele senti a espinha. Não mais trazer barba e manto garanto; tampouco me enredarão do amor e inquietação ou armas que só quebranto e pranto são o fruto que elas dão. Antes quero embarcação que me leve e na marinha vendendo azeite e farinha fugirei do escorpião, já que para a peçonha não javascript:void(0) conheço melhor mezinha. De lançar a tavolado agrado não tenho ou de bafordar; e se obrigado a rondar o faço de noite armado, enfado é o que tenho a lucrar. Partir e fazer-me ao mar prefiro a ser cavaleiro eu que já fui marinheiro e me quero resguardar de escorpiões e voltar àquilo que fui primeiro. Sabei que do inimigo o perigo já me não pode enganar fazendo-me armas tomar. Pelejar não é comigo. Castigo não me vale imaginar se não o hei-de aplicar. Antes sozinho onde for como qualquer mercador outras terras procurar onde não me há-de acusar escorpião de vária cor! (CORREIA, 1978, p. 188-191) Análise Nessa cantiga de escárnio, pode-se perceber uma crítica mais implícita àquilo que rodeia D. Afonso X. O poeta descreve diversas situações perigosas e outras consideradas – em alguns momentos – ruins para afirmar que elas são preferíveis ao “escorpião” que o ronda.A referência ao escorpião pode ser entendida como uma metáfora da ação ou do caráter de uma pessoa, pois evitava-se dizer o nome de quem era alvo de uma crítica. Conheceremos também um exemplo de uma cantiga de maldizer escrita pelo trovador português Gil Pérez Condes (sem data de nascimento confirmada e falecido em 1286), seguida de sua tradução para o português contemporâneo. No final, ainda analisaremos o poema: CANTIGA DE MALDIZER Já eu non ei por quen trobar e já non ei em coraçon, por que non sei já quen amar; poren mi míngua razon, ca mi filhou Deus mia senhor, a que filh’o Demo maior quantas cousas que suas son, Como lh’ outra vez já filhou a cadeira u siia o Filh’; e por que mi filhou bõa senhora que avia? E diz el que non á molher; se a non á, pera que quer pois tant’ a bõa Maria? Deus nunca mi a mi nada deu e tolhe-me bõa senhor: por esto, non creo en el eu nen me tenh’ em pecador, ca me fez mia senhor perder. Catad’o o que mi foi fazer, confiand’ eu no seu amor! Clique aqui para ler a tradução desta cantiga. CANTIGA DE MALDIZER Já dona por quem trovar não tenho, nem me apetece: proibido estou de amar e a razão me desfalece. Roubou-me Deus meu amor. Leve o demônio ao Senhor tudo quanto lhe pertence! Como a cadeira levou outrora que pertencia ao Filho. Por que roubou Deus quem feliz me fazia? Diz Deus que não tem mulher Se a não tem porque quer tanto à bondosa Maria? Nunca bem de Deus me veio antes do amor me privou. Por isso, se hoje descreio, por pecador não me dou. A amada fez-me perder. Vede o que Deus foi fazer a quem nele confiou! javascript:void(0) (CORREIA, 1978, p. 110-111) Análise Nessa cantiga de maldizer, o poeta é explícito em sua heresia e deboche para com a figura de Deus, que teria tomado sua amada, fonte de sua felicidade. Ele até cita um “querer” do Criador com uma mulher, Maria. O poeta também diz que não se considera pecador, pois é culpa de Deus essa descrença criada em relação a Ele. Diferentemente do exemplo da cantiga de escárnio, em que a crítica era implícita, na de maldizer vê-se uma afronta e crítica explícitas. É A PARTIR DA DISTINÇÃO ENTRE O DIZER DIRETO E O INDIRETO QUE RESIDE A PRINCIPAL DIFERENÇA ENTRE ESSES DOIS TIPOS DE CANTIGA. TROVADORISMO EM PORTUGAL Assista ao vídeo com o professor Mário Bruno apresentando comentários e exemplos de cantigas trovadorescas em Portugal. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. AS CANTIGAS DE AMOR FAZEM PARTE DAS MANIFESTAÇÕES DAS CANÇÕES TROVADORESCAS. EM RELAÇÃO À SUA TEMÁTICA OU AO SEU ESTILO, APONTE A ALTERNATIVA NA QUAL É POSSÍVEL RECONHECER CORRETAMENTE UMA CARACTERÍSTICA DAS CANTIGAS DE AMOR. A) O poeta canta a mulher amada e a descreve como algo acessível e um anseio de simples realização. B) O trovador satiriza ou ironiza implícita ou explicitamente pessoas, eventos, fatos e pessoas de sua época. C) O “eu lírico” se apresenta claramente como feminino e canta a perda ou a distância do amado. D) O trovador canta um amor absoluto e serviçal dedicado à mulher amada, numa postura de vassalagem amorosa. E) O “eu lírico” se apresenta explicitamente como um homem e celebra o amor conquistado e a mulher acessível. 2. LEIA O FRAGMENTO DO POEMA A SEGUIR: UMA DAMA NÃO DIGO QUAL NÃO AGOIROU ESTE ANO MAL PELAS OITAVAS DE NATAL: IA ELA A MISSA OUVIR E OUVINDO UM CORVO CARNIÇAL JÁ DE CASA NÃO QUIS SAIR. IA A DAMA COM DEVOÇÃO OUVIR A MISSA E O SERMÃO. MAS NÃO PODENDO À TENTAÇÃO CARNAL DO CORVO RESISTIR, LOGO MUDOU DE OPINIÃO: JÁ DE CASA NÃO QUIS SAIR. [...] (CORREIA, 1978, P. 237) CONSIDERANDO O FRAGMENTO E AS CARACTERÍSTICAS DAS CANTIGAS NA POÉTICA MEDIEVAL, MARQUE A ALTERNATIVA QUE IDENTIFICA CORRETAMENTE O TIPO DE CANTIGA E SUA JUSTIFICATIVA. A) Cantiga de escárnio, pois é escrita de forma implícita em relação ao seu objeto crítico. B) Cantiga de maldizer, pois é escrita de forma explícita em relação ao seu objeto crítico. C) Cantiga de escárnio, pois é escrita de forma explícita em relação ao seu objeto crítico. D) Cantiga de maldizer, pois é escrita de forma implícita em relação ao seu objeto crítico. E) Cantiga de amigo, pois é escrita de forma explícita em louvor a uma dama, seu objeto de contemplação. GABARITO 1. As cantigas de amor fazem parte das manifestações das canções trovadorescas. Em relação à sua temática ou ao seu estilo, aponte a alternativa na qual é possível reconhecer corretamente uma característica das cantigas de amor. A alternativa "D " está correta. Nas cantigas de amor, o poeta enfatiza seu sofrimento pela amada, que é sempre tida como altiva e inacessível. O trovador a canta numa posição de dedicação fervorosa, devotando seu sentimento à mulher como se dela fosse um escravo ou servo. 2. Leia o fragmento do poema a seguir: Uma dama não digo qual não agoirou este ano mal pelas oitavas de Natal: ia ela a missa ouvir e ouvindo um corvo carniçal já de casa não quis sair. Ia a dama com devoção ouvir a missa e o sermão. Mas não podendo à tentação carnal do corvo resistir, logo mudou de opinião: já de casa não quis sair. [...] (CORREIA, 1978, p. 237) Considerando o fragmento e as características das cantigas na poética medieval, marque a alternativa que identifica corretamente o tipo de cantiga e sua justificativa. A alternativa "A " está correta. A cantiga é satírica e se refere a uma dama cujo poeta não diz quem é, caracterizando-a, assim, como uma cantiga implícita. Desse modo, ela pode ser considerada uma cantiga de escárnio, pois esse tipo tem como particularidade o fato de ser escrito por intermédio de palavras cubertas. MÓDULO 3 Identificar as características das novelas de cavalaria e das crônicas na prosa medieval NOVELAS DE CAVALARIA Trataremos agora da prosa medieval a partir das novelas de cavalaria. Apoiando-nos principalmente no trabalho de Vieira (1992), começaremos nossa análise conhecendo um pouco mais sobre: O contexto do surgimento das novelas de cavalaria. As características dessa interessante manifestação cultural e literária. Imagem: Dante Gabriel Rossetti/ Wikimedia Commons / Domínio Público Como Sir Galahad, Sir Bors e Sir Percival foram alimentados com o Santo Graal, por Dante Gabriel Rossetti, 1864. A DEMANDA DO SANTO GRAAL A ficção em torno da lenda do rei Artur ficou conhecida entre os estudiosos pela denominação “matéria de Bretanha”. Tal lenda é considerada um assunto difícil devido à quantidade de textos e às numerosas versões escritas ao gosto do copista. Em virtude disso, as opiniões divergentes e as discussões genéticas são intermináveis. A demanda do Santo Graal portuguesa não foge a essas querelas. O único original existente é o códice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena, que, por sua vez, foi traduzido de um outro original francês, cuja produção é situada no século XIII. Talvez movidos pela necessidade de estabelecer uma ordem, os pesquisadores organizaram essa matéria em ciclos, distinguindo- os das canções de gesta. Nesse sentido, A Demanda passou a pertencer ao ciclo “bretão” ou “arturiano”. DISCUSSÕES GENÉTICAS Debates filológicos sobre a origem ou a gênese da obra. CANÇÕES DE GESTA Poemas épicos medievais que surgem no início da literatura francesa. EXEMPLO As obras do trovador francês Chrétien de Troyes (1135-1191 aproximadamente) são o mais significativo repositório desse ciclo. QUANTO AOS LAÇOS ENTRE A LENDA DE ARTUR E O MITO DO GRAAL, O TEMA DO GRAAL É MUITO MAIS ANTIGO DO QUE A LENDA DE ARTUR. A figura histórica de Artur tem sido identificada por especialistas como um chefe guerreiro das Ilhas Britânicas, o dux bellorum (líder da guerra) dos bretões, que se destacou entre os séculos VI e VII em confrontos contra os inimigos saxões. Na outra ponta está o mito do Graal, cuja essência nos remete aos objetos célticos, às crenças judaico-cristãs e até ao evangelho apócrifo de Nicodemos. javascript:void(0) javascript:void(0) Imagem: Howard Pyle/ Wikimedia Commons / Domínio Público Rei Artur (Ciclo Arturiano) Existem referênciasanteriores à história de Artur, mas foi com o clérigo galês Geoffrey de Monmouth (nascido em 1095 e morto em aproximadamente 1155), com sua obra Historia regum Britannie, de 1135, que tal personagem ganhou seus contornos heroicos. Devemos destacar ainda Chrétien de Troyes, que escreveu sete novelas em versos sobre a “matéria Bretanha”, entre 1162 e 1182. No entanto, foi a partir da morte de Chrétien que os dois motivos (a lenda de Artur e o Graal) se uniram. Também podemos apontar o trabalho do cavaleiro e poeta alemão Wolfram von Eschenbach (1170-1220) com sua Parzifal, escrita entre 1200 e 1212. Essa obra, dividida em dezesseis livros, traz a famosa localização do Castelo do Graal no Mont Sauvage. O primeiro texto conhecido como pertencente ao “ciclo do Graal” foi escrito pelo poeta francês Robert de Boron (que viveu entre os séculos XII e XIII) na forma de uma tetralogia. No entanto, o início mais significativo desse ciclo se deu com os cinco livros atribuídos ao clérigo e escritor inglês Gautier Map (1140-1210). Rodrigues Lapa (1981) assinala a existência de duas versões da Demanda: uma portuguesa e outra castelhana. Apesar de se certificar de que uma foi traduzida da outra, ele expõe dúvidas sobre qual delas é a original. SAIBA MAIS Há uma hipótese – não confirmada – de que a “matéria de Bretanha” tenha circulado primeiramente em Portugal, indo depois para Castela. A DEMANDA E SEUS SIMBOLISMOS A Demanda é uma novela mística e simbólica. Na Demanda, precisamente após 453 anos da morte de Jesus Cristo, no Pentecostes, Galaaz, o cavaleiro puro, entra no castelo em Camalote. Galaaz ocupa um lugar vago entre 150 cadeiras da távola redonda. Logo a seguir, conduzido por Artur, Galaaz retira a espada enfiada numa pedra de mármore. Com isso, fica indicado que ele seria o cavaleiro escolhido para encontrar o Cálice Sagrado (o Graal). Na versão da Demanda, não é o ingênuo Percival que encontra o Cálice, e sim Galaaz, o cavaleiro puro. A INVESTIDURA DE GALAAZ A ordenação ou a investidura de um cavaleiro significava na Idade Média um ato nobre, uma cerimônia ritual com a iniciação do dignitário na dignidade de cavaleiro. Na ordenação de Galaaz, Lancelote do Lago é chamado, por uma donzela, de Camalote para a abadia onde seu filho fora educado. Imagem: George Frederic Watts/Wikimedia Commons / Domínio Público. Galaaz numa pintura de George Frederick Watts, 1888. Não é um dia qualquer: trata-se da véspera de Pentecostes. Galaaz passa a noite vigiando e orando acompanhado do ermitão, o seu aio. Lancelote faz o seu filho cavaleiro e o ermitão pede para segui-lo, pois pretende registrar por escrito todas as maravilhas que Galaaz viverá em nome de Deus. Investido cavaleiro, Galaaz parte para Camalote no dia de Pentecostes. Artur é chamado à ribeira, onde a espada cravada na pedra está flutuando nas águas por encanto de Merlim. Artur diz então que só o melhor cavaleiro do mundo conseguirá retirá-la da pedra. Imagem: Ladyofthelake1.jpg: Alfred Kappesderivative work: Themadchopper/ Wikimedia Commons / Domínio Público. A Dama do Lago oferecendo a Arthur a espada Excalibur. Nesse momento, Galaaz chega à corte de Artur e é apresentado pelo ermitão. Galaaz era o cavaleiro que Merlim havia profetizado. Artur conduz Galaaz ao ribeiro e o convida a retirar a espada cravada na pedra. Galaaz retira a espada com facilidade, metendo-a depois à cinta. Dá-se então início à demanda, ou seja, à busca do Cálice Sagrado. O PRIMEIRO SURGIMENTO DO GRAAL A primeira aparição dele ocorre quando Tristão, sobrinho do rei Marcos, muito querido de Artur, chega à távola redonda. Com todos sentados à mesa, o Santo Graal surge misteriosamente. Após a aparição do Cálice, todos ficam mais belos, enquanto a sala enche-se de maravilhosos odores e ofuscante luz. Já sobre a mesa, surgem maravilhosos manjares. O Graal, por fim, desaparece tão misteriosamente como surgira. O ESCUDO DE GALAAZ Galaaz foi armado de espada, mas não tinha ainda o escudo (a ser recebido do rei Bangemaguz). O escudo que lhe é dado tem a cor branca com uma cruz vermelha representando o próprio Cristo. Nesse momento, o ermitão revela a “sinefiança” das aventuras de Galaaz. As três sinefianças de sua aventura representavam a paixão de Jesus Cristo. GALAAZ NO CASTELO DO REI BRUTUS Esse episódio pôs à prova a virgindade e a pureza de Galaaz. Ele e Boors, dois cavaleiros, caminhavam juntos e chegaram ao castelo do rei Brutus. O rei os recebe. Seduzida pela beleza de Galaaz, a princesa entra na câmara onde o cavaleiro dormia para possuí-lo. Ele acorda e aconselha-a a partir. A donzela, irada, ameaça matar-se e acaba por cravar a espada de Galaaz no próprio peito. A princípio, o rei crê que ela teria sido morta por Galaaz, porém acaba se convencendo de que ela se matara pelas próprias mãos. GALAAZ EM CORBENIC: O GRAAL DESCOBERTO Imagem: Sir Edward Burne-Jones/ Wikimedia Commons / Domínio Público. Os cavaleiros Galahad, Bors (o filho) e Percival acham o Graal. N’A demanda, são muitas as aventuras, inclusive havendo uma perseguição da “besta ladrador”, filha de uma donzela com um demônio. Galaaz, por fim, encontra o Santo Graal no Castelo de Corbenic. A condição para entrar em tal castelo era ter fé e pertencer à Igreja. Na câmara do rei Peles, que jazia doente, Galaaz vê o cálice. Além de encontrá-lo, Galaaz e os outros cavaleiros escolhidos, Boors e Percival, recebem do próprio Jesus Cristo um manjar e a hóstia. MORTE DE ARTUR A demanda acaba, porém, ainda assim, a história se desdobra no confronto de Artur com Lancelote, que havia raptado sua esposa, Genebra, e em outro confronto de Artur com o seu filho, Morderet, fruto de uma relação incestuosa com a sua meia-irmã Morgana. Morderet quer se apoderar do reino de Logres e luta com Artur. Morderet é morto, mas Artur também acaba sendo ferido mortalmente. O corpo de Artur desaparece; assim, ninguém sabe se ele está vivo ou morto. Após o seu desaparecimento, Lancelote se torna ermitão e Genebra entra para um convento. O AMADIS DE GAULA Imagem: Giovanni Antonio Nicolini da Sabbio, BNE / Wikimedia Commons / Domínio Público. Amadis de Gaula, edição de 1533. APRESENTAÇÃO E QUESTIONAMENTOS Consideraremos agora outra tradição do romance ou da novela de cavalaria – dessa vez, no contexto da Península Ibérica. Para isso, nos apoiaremos nas considerações feitas por Lapa (1981). O romance Amadis de Gaula provavelmente foi escrito em português e aparece pela primeira vez em 1508 numa edição castelhana. Isso suscita, portanto, uma questão: o Amadis é de autoria portuguesa? Tudo indica que tal obra teria sido escrita, no século XIII, por um trovador da corte de Afonso III e de D. Dinis. Esse trovador seria Vasco Lobeira (sem data de nascimento confirmada e morto em 1403). Parece que Vasco Lobeira escreveu os três primeiros livros, enquanto um parente seu teria retomado o fio da narrativa por volta de 1370. A FIGURA DE AMADIS A personagem Amadis, em torno da qual gira toda a obra, nem sempre possui um tratamento psicológico adequado. Aos 16 anos, ele já se comporta como um cavaleiro, demonstrando uma infatigável perfeição, mesura e sanha de leão nas batalhas. Amadis, portanto, vai do voluntário comedimento de maneiras até a brutalidade inaudita. Entretanto, o que cria um aspecto de destaque para ele é seu tipo sentimental, que está adequado ao cultivo do amor na poesia dos trovadores. EXEMPLO O herói se consome em dores e lágrimas pela ausência da amada, a personagem Oriana. O donzel do mar (Amadis) sofre por ela grandes coitas. Por outro lado, o romance de Amadis não se caracteriza pela sublimação do amor; em vez disso, aproxima-se das cantigas de amigo ao abordar o aspecto carnal de um amor que se concretiza fisicamente. EXEMPLO Em uma das cenas, Oriana se mostra ousada e se entrega ao amado em um encontro ardentíssimo de amor, ainda que ele seja timidamente confessado. AS NOVELAS DE CAVALARIA Assista ao vídeo com o professor MárioBruno apresentando comentários e exemplos das características das novelas de cavalaria. AS CRÔNICAS Finalizaremos nossa abordagem da prosa medieval tratando das crônicas produzidas em Portugal. Foto: Shutterstock.com A PROSA HISTORIOGRÁFICA No período anterior ao de Fernão Lopes (nascido em 1380 e morto em cerca de 1460), escrivão e cronista oficial de Portugal no século XIII, os pesquisadores da historiografia portuguesa concordam que as principais fontes da prosa historiográfica são as seguintes: CRÔNICAS BREVES DO MOSTEIRO DE SANTA CRUZ DE COIMBRA LIVROS DE LINHAGEM CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344 O trabalho de análise desses textos apresenta muitas dificuldades, já que houve neles acréscimos e supressões feitas por mãos anônimas, existindo ainda versões distintas dos originais. FERNÃO LOPES Fernão Lopes inscreve-se na literatura portuguesa por seu papel como historiador e primeiro grande prosador. De origem incerta e humilde, Lopes atravessou as crises que vão da morte de D. Fernando até o governo de Afonso V. Ele ocupou-se dos seguintes ofícios: Escrivão do Infante D. Fernando Guardião-mor da Torre do Tombo Tabelião-geral do reino Imagem: Pollini/ Wikimedia Commons / Domínio Público. Possível retrato de Fernão Lopes, nos Painéis de São Vicente de Nuno Gonçalves. Quanto às suas crônicas, Fernão Lopes mostrava-se parcial, pois era simpatizante do povo e da revolução financiada pela burguesia. Isso, entretanto, não o impediu de registrar uma visão muito ampla e concreta da realidade social, quando comparado ao dos cronistas de seu tempo. As crônicas de Fernão Lopes, de acordo com Maleval et al. (1992), estavam baseadas em: Sua noção de verdade relativa. Documentos criteriosamente selecionados por ele. Para Teresa Amado (1993), a experiência profissional de Fernão Lopes como notário e arquivista contribui para ele escrever crônicas fundadas numa verdade histórica, trabalhando tanto com narrativas quanto com registros oficiais. Sua convivência na corte ao longo de quase trinta anos também permitiu o acesso a várias informações sigilosas. São de autoria de Fernão Lopes as Crônicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I (primeira e segunda partes). Também fazem parte de sua lavra as crônicas dos primeiros afonsinos (posteriormente reescritas por Duarte Galvão e Rui de Pina). Muitas outras lhe foram atribuídas, embora sua autoria seja contestável. Imagem: Fernão Lopes/ Wikimedia Commons / Domínio Público. Primeira página de uma cópia manuscrita das Crônicas de Dom Pedro I, Dom Fernando e Dom João I. Além disso, os manuscritos da Crônica de Portugal – texto de 1419 encontrado somente em meados do século XX – têm sido considerados por alguns autores como representantes da primeira fase das crônicas de Fernão Lopes. Cabem ainda algumas observações sobre as qualidades estilísticas de Fernão Lopes. Ele aglutinava fragmentos narrativos aos documentos e às citações de obras de diferente teor no interior de um texto, mas sem que, com isso, as fontes utilizadas se confundissem. Essa originalidade do texto era fruto da intervenção do cronista na: Composição de frases e trechos próprios. Escolha de sentenças ou fragmentos de outras fontes combinados em sua própria redação. Amado (1993, p. 273) considera isso “uma técnica híbrida de escrita, por vezes hoje difícil de apreciar, mas que permite ao autor um domínio perfeito dos seus efeitos, e a composição duma narrativa que produz o seu próprio sentido”. Não só pelo labor dele enquanto escrivão e historiador, mas também por sua aprimorada técnica narrativa, Fernão Lopes é considerado o mais importante cronista da historiografia portuguesa. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. CONSIDERE AS AFIRMATIVAS A SEGUIR: I. O TEMA DO GRAAL É MUITO MAIS ANTIGO QUE A LENDA DE ARTUR. A FIGURA DE ARTUR TEM SIDO IDENTIFICADA COMO DE DESTAQUE NOS SÉCULOS VI E VII, ENQUANTO O MITO DO GRAAL NOS REMETE AOS OBJETOS CÉLTICOS E A UMA VERSÃO NÃO CANÔNICA DO EVANGELHO. II. EXISTE APENAS UMA VERSÃO DA DEMANDA NA PENÍNSULA IBÉRICA, SENDO ELA CASTELHANA E COMPROVADAMENTE NÃO PORTUGUESA. III. A LENDA DO REI ARTUR É CONSIDERADA UMA OBRA DE DIFÍCIL MENSURAÇÃO DEVIDO ÀS NUMEROSAS VERSÕES ESCRITAS, COM O PASSAR DOS ANOS, POR COPISTAS. SENDO ASSIM, AS OPINIÕES DIVERGENTES ACERCA DA OBRA SÃO INTERMINÁVEIS. IV. A LENDA DO REI ARTUR E O MITO DO GRAAL SURGEM NO MESMO PERÍODO HISTÓRICO, O QUE JUSTIFICA A JUNÇÃO DE TAIS OBRAS COMO COMPLEMENTARES. V. DE ACORDO COM PESQUISADORES, AS CANÇÕES DE GESTA SÃO APENAS VERSÕES MAIS ANTIGAS DAS NOVELAS DO CICLO ARTURIANO. ESTÃO CORRETAS APENAS AS AFIRMATIVAS: A) I e II B) I e III C) I, II e III D) II, III e IV E) III, IV e V 2. AS NOVELAS DE CAVALARIA SÃO CENTRAIS NA PROSA LITERÁRIA MEDIEVAL NA EUROPA. PODE-SE DIZER QUE ELAS DESEMPENHARAM O PAPEL DE PROPAGANDA DAS CRUZADAS. NESSE SENTIDO, MARQUE A ALTERNATIVA COM UMA CARACTERÍSTICA CORRETA DAS NOVELAS DE CAVALARIA. A) A amada é retratada a partir de seu sofrimento e de seu apelo erótico para conquistar o cavaleiro. B) Há uma sublimação do amor e de sua concretização física ou carnal. C) Existe um predomínio absoluto de narrativas pagãs sem uma influência do simbolismo cristão ao longo do tempo. D) Ocorre a presença tanto de aspectos místicos e simbólicos quanto de motivos ou alusões ao cristianismo. E) Contém uma tematização histórica e documental na forma de crônicas das grandes batalhas vividas pelos heróis cavaleiros. GABARITO 1. Considere as afirmativas a seguir: I. O tema do Graal é muito mais antigo que a lenda de Artur. A figura de Artur tem sido identificada como de destaque nos séculos VI e VII, enquanto o mito do Graal nos remete aos objetos célticos e a uma versão não canônica do evangelho. II. Existe apenas uma versão da Demanda na Península Ibérica, sendo ela castelhana e comprovadamente não portuguesa. III. A lenda do rei Artur é considerada uma obra de difícil mensuração devido às numerosas versões escritas, com o passar dos anos, por copistas. Sendo assim, as opiniões divergentes acerca da obra são intermináveis. IV. A lenda do rei Artur e o mito do Graal surgem no mesmo período histórico, o que justifica a junção de tais obras como complementares. V. De acordo com pesquisadores, as canções de gesta são apenas versões mais antigas das novelas do ciclo arturiano. Estão corretas apenas as afirmativas: A alternativa "B " está correta. O mito do Graal é muito mais antigo que o ciclo arturiano. Entretanto, a lenda do rei Artur é uma obra que foi modificada diversas vezes ao longo do tempo. Sendo assim, em muitas dessas modificações posteriores, ela aparece ao lado do mito do Graal, mesmo que ambas inicialmente não tivessem qualquer correlação. 2. As novelas de cavalaria são centrais na prosa literária medieval na Europa. Pode-se dizer que elas desempenharam o papel de propaganda das Cruzadas. Nesse sentido, marque a alternativa com uma característica correta das novelas de cavalaria. A alternativa "D " está correta. Embora as canções de gesta e o ciclo arturiano (algumas das principais novelas de cavalaria) sejam consideradas novelas pagãs, esse ciclo sofreu uma cristianização ao longo do tempo, dando origem à Demanda do Graal. Sendo assim, pode-se dizer que os cavaleiros medievais das novelas eram concebidos segundo os padrões da Igreja. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentamos o contexto do surgimento da literatura portuguesa, procurando estabelecer as relações entre o início do nascimento da identidade do povo português e as suas primeiras manifestações literárias. Fomos, assim, do universo das cantigas trovadorescas até o surgimento da historiografia e das primeiras crônicas, passando pelas novelas de cavalaria. Com isso, procuramos cobrir os principais aspectos da escrita literária portuguesa na Baixa Idade Média. Desse modo, vimos que tanto na lírica quanto na prosa medievais existem importantes aspectos que devem ser considerados nos estudos literários que procuram retomar o surgimento da literaturaem língua portuguesa. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS AMADO, T. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 1993. BANDEIRA, M. Lira do brigadeiro. In: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. BLOCH, R. H. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. CORREIA, N. Cantares dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. HAUSER, A. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1972. LAPA, M. R. Lições de literatura portuguesa: época medieval. Coimbra: Coimbra Editora, 1981. MALEVAL, M. A. T. et al. A literatura portuguesa em perspectiva: volume 1. São Paulo: Atlas, 1992. SARAIVA, J. H. História concisa de Portugal. Sintra: Publicações Europa-América, 1996. VIEIRA, Y. F. A poesia lírica galego-portuguesa. In: MONGELLI, L. M. M. et al. A literatura portuguesa em perspectiva: trovadorismo e humanismo. v. I. São Paulo: Atlas, 1992. p. 25-54. EXPLORE+ Navegue pelos textos de diversas cantigas trovadorescas no acervo disponibilizado pela página da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Aprofunde seu estudo sobre os aspectos históricos e sociais do trovadorismo lendo o texto O trovadorismo galego-português e a Europa, de José Carlos Ribeiro Miranda, disponível no Google Acadêmico. Assista a estes filmes: a) O incrível exército de Brancaleone Essa obra do diretor Mario Monicelli ajudará você a compreender melhor o período histórico em que se deram as novelas de cavalaria. b) Excalibur Esse filme do diretor John Boorman ilustra o ciclo arturiano e a procura pelo Graal. c) Indiana Jones e a última cruzada A película do diretor Steven Spielberg é uma forma de entretenimento que aborda a busca do Cálice Sagrado. CONTEUDISTA Elaine Zeranze Bruno CURRÍCULO LATTES DIREITO DE USO DE IMAGEM * A EnsineMe reserva ao autor o direito de se manifestar. javascript:void(0);
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