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Tema 3 - Curriculo Escolar

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DESCRIÇÃO
Estudo das relações entre currículo e cultura demonstrando que não existe proposição curricular
que imobilize a relação com as culturas e tradições locais.
PROPÓSITO
Instrumentalizar os profissionais de educação de acerca da construção curricular, considerando
sua necessária adaptação às culturas e às demandas dos grupos envolvidos.
OBJETIVOS
MÓDULO 1
Relacionar as noções de cultura e suas relações com o currículo no contexto atual da educação
MÓDULO 2
Reconhecer a perspectiva do multiculturalismo crítico em Currículo como área pedagógica
MÓDULO 3
Identificar o papel da cultura na constituição do currículo
MÓDULO 4
Identificar os impactos das dinâmicas sociais contemporâneas no campo do Currículo
INTRODUÇÃO
As relações entre os currículos e a cultura devem ser estudadas para que se compreendam
muitos dos debates que envolvem esse campo. Entre as muitas concepções de cultura e de
relações entre diferentes culturas, cabe destacar a chamada noção antropológica de cultura: além
de ser hoje a mais aceita, defende a ideia das culturas como modos de transformação da
natureza pelo homem e formação de comportamentos sociais específicos de povos, momentos
históricos e situações diferentes. Essa concepção supera formulações e compreensões mais
antigas que entendiam a diferença cultural como derivada de herança genética.
Currículo é um campo da Pedagogia que trata da seleção de conhecimentos, práticas e
direcionamentos para a organização dos ambientes de aprendizagem. Tais seleções são
necessariamente marcadas pelas sociedades em que vivemos e, por consequência, pela cultura,
seja por meio de ações humanas ou de suas interpretações. Juntando as duas pontas,
afirmamos: currículo e cultura são indissociáveis.
Se currículo e cultura estão inscritos no mundo e são inseparáveis, como se dá essa operação?
Nas Ciências Sociais, em particular na Sociologia, o que se considera diferenciador é a ação
social. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a
observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significação
(linguagens) utilizados para definir o sentido das coisas e para codificar, organizar e regular sua
conduta uns em relação aos outros.
Vamos a um exemplo: se eu estender a mão a um aluno em um ambiente escolar, é uma ação
que é reconhecida como valor em meio aquele conjunto. Os resultados são muitos: evitar por
conta do medo do contágio de alguma doença, apertar com força, recusar o aperto de mão. Todo
esse conjunto de códigos só tem sentido em um meio social. Tanto dar a mão quando a ação do
outro são imprevisíveis, ainda que existam algumas tendências. Estudar a relação entre currículo
e cultura é ofertar a mão em um aperto. Vamos pensar sobre quantos efeitos e interpretações são
possíveis e fortalecer nosso olhar sobre cultura.
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Assista agora a um vídeo que apresenta o conceito de cultura.
MÓDULO 1
A CULTURA E SUAS RELAÇÕES COM O
CURRÍCULO
 Relacionar as noções de cultura e suas relações
com o currículo no contexto atual da educação
AÇÃO SOCIAL
Comportamento distinto daqueles parte da programação genética, biológica ou instintiva. A ação
social significa uma opinião, uma compreensão de mundo, uma vontade ou possibilidade. Os
seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido — o que é parte de cada cultura
e algo que os distingue dos demais animais, já que humanos criam símbolos e se expressam
coletivamente por meio deles.
O CAMPO PEDAGÓGICO DO CURRÍCULO E
A CULTURA
A preocupação que habita o campo do Currículo, do ponto de vista cultural, repousa sobre o
entendimento das ações sociais nele e por ele engendradas. As propostas e práticas curriculares,
como ação social que constituem, devem trazer significados que possam ser compartilhados
entre os diferentes sujeitos das escolas.
Ao mesmo tempo, devemos evitar nos devolver à concepção de cultura que separa o que pode
ser considerado válido, cultural e socialmente, do que é percebido como “ignorância”.
Vivemos um novo mundo com tantos incrementos que o debate passa pelo seguinte
questionamento: será que vivemos uma nova “aldeia global” homogênea ou uma cultura tão
individual que o mundo se tornou totalmente heterogêneo?
Assim, é preciso refletir sobre as consequências, na sociedade e nos currículos, dessas
transformações. Deve-se lembrar sempre que, ao mesmo tempo em que esse estreitamento de
relações reduz diferenças, a reafirmação identitária e a hegemonia da cultura branca, ocidental e
europeia mantém as relações culturais perigosamente excludentes. Os preconceitos derivados da
valorização excessiva de culturas europeias em detrimento de outras culturas importantes na
formação social do Brasil, como as culturas africanas, afrodescendentes e indígenas, segue
operando na sociedade brasileira, nas práticas sociais e nos currículos.
Vamos contrapor o pensamento colonial e o pensamento decolonial
Tradição colonial
Linha de tempo europeia
Cultura erudita
Civilidade
Centro
� Atenção! Para visualização completa da tabela utilize a rolagem horizontal

Proposição decolonial
Regionalismos
Cultura popular
Identidade
Periferias
 Atenção! Para visualização completa da tabela utilize a rolagem horizontal
DECOLONIAL
Utilizado para fazer referência à ruptura com as tradições culturais e as estruturas de
interpretação do mundo dos colonizadores. Aparece fortemente nas Américas e na África.
Há um leque de movimentos sociais que se abrem e se fecham a todo instante,
impedindo que o mundo se torne um espaço culturalmente uniforme e homogêneo, ao
reagirem e reafirmarem suas especificidades, mesmo sem rejeitar interações e mudanças
mútuas.
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 RESUMINDO
Podemos dizer, portanto, que há uma cultura global gerada pela ampliação das
interações e pela globalização, mas que esta acabou apresentando ao mundo diferenças
culturais, que fazem esse movimento globalizante prosperar paralelamente aos
movimentos sociais locais. Isso exige dos “participantes” a reafirmação de si e a
aceitação do outro e daquilo que ele nos modifica. Em outras palavras, talvez esses
movimentos culturais produzam, até de maneira contraditória, simultaneamente novas
identificações "globais" e novas identificações “locais”.
É evidente que o efeito leque, para funcionar e ter sentido, necessita de um abrir e fechar,
ou seja, de um vai e vem em que mudanças dialogam com permanências, tradições são
atualizadas e novidades emergem, mas não linearmente, são gestadas nesse processo
complexo de hibridização e reafirmação de si.
O PROBLEMA CULTURAL DOS
CURRÍCULOS ESCOLARES
Com relação aos currículos escolares e os modos como se relacionam com essa
pluralidade cultural e processos de hibridização — recentes e antigos — infelizmente,
ainda se tem hoje no Brasil a predominância de propostas centradas na ideia de uma
escola que transmita os conhecimentos acumulados pela humanidade. Nesses
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currículos, não se questiona a seleção de certos conhecimentos dentre muitos possíveis
e a parte da humanidade envolvida nessa produção e acumulação de conhecimentos.
HIBRIDIZAÇÃO
Currículos híbridos reúnem tendências, modalidades, metodologias diversas na
construção das práticas. Podem ser vistos desde tempos antigos, mas são repensados e
reapresentados como novidades educacionais.
Como o conhecimento precisa ser pensado:
Então, como perceber a relação entre as culturas e entre as culturas e os currículos
escolares, para compreendermos os critérios de escolha do que será ensinado ou não?
Para tratar desse problema, é preciso ir mais longe, já que essas escolhas dependem da
estrutura que se pretenda contemplar, da lógica com a qual se pretende trabalhar na
estruturação da proposta e dos próprios objetivos da educação definidos antes dessas
escolhas.
Naturalizando a estruturação disciplinar da proposta curricular e assumindo as
disciplinas tradicionalmenteministradas como ponto de partida, mesmo quando a elas se
acrescentam “temas transversais” ou “integradores”, as relações entre as culturas e a
pluralidade delas já está comprometida, uma vez que tais disciplinas e propostas sempre
foram baseadas nos conhecimentos produzidos no campo da ciência moderna, a partir
da visão cultural eurocêntrica.
O que defendemos é que, antes de pensar em conteúdos curriculares e em sua
distribuição por disciplinas ou períodos de escolarização, é preciso pensar no que
pretendemos com a educação escolar. Antes de definirmos “objetivos de aprendizagem”,
é preciso definir os objetivos da educação e, para tal, é preciso saber de que modo a
proposta curricular considera o respeito à pluralidade necessário e de as diferentes
contribuições das culturas para a formação do Brasil.
OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO
Para pensar os objetivos da educação, Oliveira propõe algumas questões centrais: “O
que pretendemos alcançar como nação quando tornamos obrigatório para todas as
crianças do país a escolarização entre os quatro e os quinze anos de idade? O que
queremos que se tornem essas crianças? Como entendemos que isso é possível? Com
que estrutura institucional e curricular das escolas?” (OLIVEIRA, 2017, p. 293).
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QUE BRASIL NÓS QUEREMOS?
UNIDO? FORTE? GIGANTE? PODEROSO?
??????
QUEREMOS MENOS UM BRASIL QUE NOS ENSINE O
QUE DEVEMOS SER...
O CURRÍCULO PRECISA URGENTEMENTE SER O
LAR, O ESPAÇO DE ACOLHIMENTO DE TODOS.
NÃO É O BRASIL QUE ME FORMA. NÓS FORMAMOS
O BRASIL.
NÃO É A ESCOLA QUE ME FORMA. NÓS FORMAMOS
A ESCOLA.
É essencial lembrar que nem tudo o que acontece nas escolas depende apenas das
escolas, uma vez que esses objetivos dependem de políticas de viabilização, tais como:
condições físicas, materiais, de transporte; salários, docentes e equipes de apoio;
políticas de atendimento aos estudantes, entre outras. Isto é, nem tudo que concerne as
escolas e os processos de escolarização se resolve, decide ou acontece nas escolas e
nos processos de escolarização.
Ressalta-se a necessidade de reconhecimento e consideração de outras matrizes
culturais formadoras do Brasil, para pensar currículos em sua perspectiva formadora de
cidadãos e com responsabilidade inclusiva.
Nem sempre tem sido assim, entretanto. Com base nos conhecimentos “acumulados”
pela parte da humanidade branca e europeia — predominantemente masculina —, a
estrutura escolar e curricular do Brasil segue o mais estrito eurocentrismo: parte de e se
baseia no olhar dos colonizadores. Definido como o processo por meio do qual a Europa
se constitui como o centro de poder no mundo, principalmente com a colonização, essa
visão de mundo eurocêntrica privilegia o conhecimento ocidental europeu, construído
sob o mito da universalidade desses conhecimentos, considerados como os únicos
válidos e legítimos a partir do lócus de enunciação do sujeito europeu, “civilizado,
desenvolvido, descorporificado, dessubjetivado, neutro, objetivo e universal” (SANTOS,
2002).
 ATENÇÃO
Devido a essa visão, toda a gama de experiências e conhecimentos produzidos em
outros contextos e por outros sujeitos, formados em outras tradições culturais, é
desconsiderada. Por isso, acredita-se que não deve entrar nas escolas oficialmente,
devendo ser repelida fortemente e ignorada.
O conhecimento eurocêntrico é, assim, um conhecimento intrinsecamente atrelado à
modernidade/colonialidade do poder, do ser e do saber, mas é afirmado como “neutro,
objetivo e universal”, negando o passado e o presente de genocídios e epistemicídios
cometidos sob sua lógica (SANTOS, 2002).
Não parece ser necessário avançar muito para perceber o quanto a formação para a
democracia, para a justiça e para a cidadania — metas explícitas da educação brasileira,
registradas em diferentes documentos — exige considerar as questões culturais e o
modo como interferem nas definições dos currículos e, portanto, na inclusão ou exclusão
de diferentes grupos sociais.
No Brasil atual, quanto mais distante da cultura europeia um estudante estiver, menores
são suas chances de sucesso, uma vez que sua compreensão de mundo não dialoga
com aquela que lhe é imposta pelos currículos do modo como a escola gostaria.
DEMOCRACIA
Contemporaneamente, significa ambiente democrático, de liberdade de troca e ações
políticas do povo, fundado em princípios de convivência e equilíbrio social.
JUSTIÇA
Substituta do ideal de igualdade da Revolução Francesa, significa ter a garantia de ser
protegido pelo Estado e pleitear seus direitos.
CIDADANIA
Substituto de fraternidade da Revolução Francesa, é um valor de reconhecimento do
outro, ofertando-o condições de ser efetivamente reconhecido como alguém em um
ambiente democrático e justo.
DOCUMENTOS
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Alguns exemplos desses documentos são: Constituição da República Federativa do
Brasil, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Plano Nacional da Educação,
Parâmetros Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum Curricular.
Apesar do modelo de pensamento europeu presidir as escolhas de conteúdos e as
formas de ensino, os alunos e docentes, oriundos de outras tradições culturais,
interferem nessas propostas e modificam-nas, incorporando a elas suas próprias
experiências, dialogando com aquilo que lhes é estranho, a partir daquilo que lhes é
familiar, como as culturas locais, com origem nos povos colonizados, suas crenças e
conhecimentos.
Por isso, é possível dizer que, mesmo quando há a perspectiva de um currículo
democrático, fortemente vinculado às tradições coloniais, a ação humana tem deixado
marcas e adaptações que não o permitem agir plenamente.
Assista agora a um vídeo que apresenta de forma lúdica as tradições brasileiras.
Para que a educação básica se torne de fato inclusiva, formadora para a democracia e
para a igualdade, além de ensinar conteúdos formais, é necessário oferecer a todos a
oportunidade de alcançar e manter um padrão mínimo de qualidade da aprendizagem, o
que, como vimos, depende dos modos como as propostas e práticas curriculares
incluem, ou não, conhecimentos e valores multiculturais.
A preocupação com a qualidade do ensino deve, portanto, ser expressa por meio da luta
pela superação de todos os obstáculos que impeçam as diferentes culturas de se
expressarem e serem consideradas ao longo dos processos educativos. Os
preconceitos e estereótipos de qualquer natureza devem ser combatidos, em nome de
uma educação para todos, que esteja em conformidade com os princípios da democracia
e do reconhecimento mútuo.
Cabe ressaltar que as vítimas preferenciais dos processos de discriminação e
inferiorização curricular são os grupos sociais subalternizados que, conforme o art. 3 da
Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1991), devem ter recuperados seus
direitos à educação.
UM COMPROMISSO EFETIVO PARA SUPERAR AS
DISPARIDADES EDUCACIONAIS DEVE SER
ASSUMIDO. OS GRUPOS EXCLUÍDOS — OS POBRES;
OS MENINOS E MENINAS DE RUA OU
TRABALHADORES; AS POPULAÇÕES DAS
PERIFERIAS URBANAS E ZONAS RURAIS; OS
NÔMADES E OS TRABALHADORES MIGRANTES; OS
POVOS INDÍGENAS; AS MINORIAS ÉTNICAS,
RACIAIS E LINGUÍSTICAS; OS REFUGIADOS; OS
DESLOCADOS PELA GUERRA; E OS POVOS
SUBMETIDOS A UM REGIME DE OCUPAÇÃO — NÃO
DEVEM SOFRER QUALQUER TIPO DE
DISCRIMINAÇÃO NO ACESSO ÀS OPORTUNIDADES
EDUCACIONAIS.
(DECLARAÇÃO..., 1991)
São tais grupos que as propostas de unificação curricular baseadas nos saberes formais
da cultura europeia mais excluem, e esse é um dos principais problemas da política
curricular brasileira neste momento.
O PROBLEMA CULTURAL NAS POLÍTICAS
CURRICULARES NO BRASIL ATUAL
Quando nos dedicamos a refletir sobre o modelo educacional brasileiro e os valores que
lhe são subjacentes — fundamentalmente ligados à tradição cultural europeia —,
percebemos o quanto muitos segmentos sociais do país, formados por populações
subalternizadas econômica e culturalmente, permanecemexcluídos mesmo quando
estão dentro das escolas.
PERMANECEM EXCLUÍDOS
A professora Inês Oliveira apresenta um exemplo dessa condição:
“Isso se evidencia numa história vivenciada por uma professora ligada ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que me esclareceu a plateia, em um evento da
área, ‘porque parecia fundamental ao movimento propor sua própria pedagogia e colocá-
la em prática com professores ligados ao movimento’. O objetivo era evitar a repetição da
opressão praticada por professores advindos da cidade. Era comum, segundo ela,
alunos em dificuldades de aprendizagem ouvirem de suas professoras, em tom de
ameaça, que se não se dedicassem ao estudo poderiam ‘acabar como os pais’, ou seja,
trabalhadores rurais sem terra! Além de culpar as vítimas de um sistema social produtor e
realimentador de iniquidades pela situação econômica em que se encontram, a prática
desrespeita o local, a cultura e os saberes que o caracterizam, assumindo o padrão
urbano e pequeno burguês como o único desejável” (OLIVEIRA, 2017, p. 294).
 ATENÇÃO
Demonstra-se, assim, a incompatibilidade entre currículos únicos — uma das críticas que
se faz à Base Nacional Comum Curricular —, tanto que significa para o sucesso da
escolarização o respeito à pluralidade social e à diversidade do país, de modo a evitar
que haja prejuízos aos diferentes grupos sociais, especialmente aos grupos
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subalternizados. Logo, torna-se necessário desnaturalizar os conteúdos que sempre
estiveram presentes nos currículos, produzindo e legitimando a ausência de outros
tantos, e refletir sobre quem define os conteúdos necessários, como e por quê.
POR QUÊ
“A essa reflexão devemos acrescentar, com base em que valores, em que critérios e em
que concepção de educação, de currículo e de formação. Nenhuma dessas questões
pode ser respondida por meio de uma política curricular conteudista e disciplinarista.
Isso porque é necessário refletir sobre que proposta curricular que busque respeitar a
diversidade e evitar a naturalização de certas particularidades é possível” (OLIVEIRA,
2017, p. 294-295).
Cabe ressaltar que, ao excluirmos determinados conhecimentos dos currículos,
excluímos também seus portadores. Frauda-se, desse modo, aquilo que defendem os
formuladores de nossas políticas curriculares, a ideia de meritocracia que não passa, na
verdade, do reconhecimento daqueles que possuem o perfil cultural e social equivalente
ao desejado pela escola pensada no nível das autoridades que definem “o que entra e o
que sai” (ARROYO apud OLIVEIRA, 2000) nas propostas. As vítimas dessas escolhas são
responsabilizadas pelo próprio fracasso, produzido antes e para além de suas
possibilidades de evitá-. Trata-se, portanto,
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(...) DE UM DISCURSO FALACIOSO DE IGUALDADE
DE OPORTUNIDADES, POR MEIO DA SELEÇÃO DE
CONTEÚDOS ESCOLARES E DAS AVALIAÇÕES EM
LARGA ESCALA PENSADAS E PROPOSTAS PARA
ATESTAR A “POSSE” DOS CONHECIMENTOS
SOCIALMENTE VALORIZADOS, PRESENTES NAS
PROPOSTAS CURRICULARES SOB A ALEGAÇÃO DE
QUE SÃO CIENTIFICAMENTE SUPERIORES. A
PERGUNTA QUE FICA É A DE SE SABER A QUEM
INTERESSA ESSA DESIGUALDADE E SUA
REPRODUÇÃO LEGITIMADA PELO SISTEMA
ESCOLAR QUE LEVA UNS AO SUCESSO E OUTROS
AO FRACASSO.
(OLIVEIRA, 2017, p. 296)
Além dessas ponderações, é fundamental destacar que há muitos exemplos e outros
argumentos que permitem compreender que é impossível para uma proposta única dar
conta da imensa pluralidade epistemológica, social, cultural e pessoal do Brasil em suas
diferentes regiões, grupos sociais, municípios e escolas.
REFLEXÃO:
Poderia ser proposta uma base curricular única como a atual, que pretende ensinar as
mesmas coisas e no mesmo ritmo a estudantes tão díspares, em escolas tão diferentes,
em condições de trabalho tão desiguais, desconsiderando, além da pluralidade cultural
que caracteriza o país, as múltiplas realidades vividas nos cotidianos das diferentes
escolas?
Vejamos a questão sob dois pontos de vista.
VEM QUE TE EXPLICO
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 2
A PERSPECTIVA DO MULTICULTURALISMO
CRÍTICO EM CURRÍCULO COMO ÁREA
PEDAGÓGICA
 Reconhecer a perspectiva do multiculturalismo
crítico em Currículo como área pedagógica
CONCEITOS DE MULTICULTURALISMO
A noção de multiculturalismo crítico surge no início dos anos 1990 quando, diante do
crescimento das discussões sobre o tema, Peter McLaren (1994) publica seu livro
Multiculturalismo Crítico, no qual apresenta uma discussão sobre as diferentes
concepções de multiculturalismo. O autor destaca quatro tipos de multiculturalismo:
multiculturalismo conservador ou empresarial; multiculturalismo liberal humanista;
multiculturalismo liberal de esquerda; e multiculturalismo crítico.
MULTICULTURALISMO CONSERVADOR
Para o autor, o multiculturalismo conservador está baseado no projeto de
universalização da cultura branca, respaldado pelas teorias evolucionistas do século XIX
que defendiam a tese de que negros e indígenas eram raças inferiores à branca. Nessa
perspectiva, a África é representada como um grande e misterioso continente selvagem.
Uma visão típica da corrente imperialista, uma das primeiras vertentes desse tipo de
multiculturalismo que, “mesmo quando reconhece outras culturas, assenta-se sempre na
incidência, na prioridade a uma língua normalizada e, portanto, é um multiculturalismo
que de fato não permite que haja um reconhecimento efetivo das outras culturas”
(SANTOS, 2002, p. 12).
Como símbolo maior do pensamento racista que caracteriza essa visão, McLaren conta
que, na virada do século XIX, Joseph Moller, um menino negro de 10 anos, chegou a ser
exibido em um zoológico na Europa como um legítimo descendente do “homunculus
africano”.
MULTICULTURALISMO HUMANISTA LIBERAL
O multiculturalismo humanista liberal reveste-se de certas apropriações humanísticas,
respaldadas na crença no princípio de igualdade, independentemente de questões de
etnia, gênero ou sexualidade. Esse multiculturalismo acusa o sistema capitalista de
promover restrições econômicas a determinados grupos sociais, defendendo, pois, uma
mudança dessas condições, baseado no discurso da equivalência intelectual entre as
raças, afirmando que todas podem competir “igualmente” em uma sociedade capitalista.
MULTICULTURALISMO LIBERAL DE ESQUERDA
Esse tipo de multiculturalismo reconhece que há diferenças culturais entre as raças,
afirmando que a crença na igualdade universal acaba por “camuflar” as diferenças entre
raça, gênero, classe e sexualidade. Nesse sentido, essa proposta investe na
compreensão de que a diversidade existe e na necessidade de respeitar as diferenças
culturais, entretanto, deixa de lado a participação de diferentes grupos nas discussões
multiculturais e abdica de refletir e propor alternativas integradoras entre essas diferentes
culturas, o que, de certa forma, compromete as possibilidades de ruptura das
discriminações e desigualdades.
MULTICULTURALISMO CRÍTICO
Entendendo-a como uma alternativa mais viável, o autor apresenta o multiculturalismo
crítico a partir do que define como uma abordagem pós-moderna de resistência. Nas
palavras de McLaren: “a perspectiva que chamo de multiculturalismo crítico compreende
a representação da raça, classe e gênero como resultado de lutas sociais sobre signos e
significações e enfatiza não apenas o jogo textual, mas a tarefa de transformar as
relações sociais” (p. 123).
Para o autor, o pensamento ocidental é construído como um sistema de diferenças
organizado por lógicas binárias: branco/preto, bom/ruim. Quando os binarismos se
tornam racial e culturalmente identificados, o branco acaba por assumir a posição do ele
ou do tu, em que a “branquidade” é percebida como neutra. Os signos são assim
compreendidos como parte de uma luta ideológica.
Para um currículo multiculturalista crítico, McLaren sugere que os educadores levantem
questões da diferença, de maneira a superar o essencialismo monocultural dos
“centrismos” — anglocentrismo,afrocentrismo e assim por diante —, pois um
multiculturalismo de resistência entende a cultura como não harmoniosa e consensual.
Essa proposição pensa o mundo mais assim:
CONSENSUAL
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Silva e Brandim (2008, p. 64), em consonância com McLaren e outros, afirmam que:
“O multiculturalismo crítico levanta a bandeira da pluralidade de identidades culturais, a
heterogeneidade como marca de cada grupo e opõe-se à padronização e uniformização
definidas pelos grupos dominantes. Celebrar o direito à diferença nas relações sociais
como forma de assegurar a convivência pacífica e tolerante entre os indivíduos
caracteriza o compromisso com a democracia e a justiça social, em meio às relações de
poder em que tais diferenças são construídas. Conceber, enfim, o multiculturalismo numa
perspectiva crítica e de resistência pode contribuir para desencadear e fortalecer ações
articuladas a uma prática social cotidiana em defesa da diversidade cultural, da vida
humana, acima de qualquer forma discriminatória, preconceituosa ou excludente”.
 Binarismo entre cultura dominante e as culturas dominadas.
 Pesos diferentes atribuídos às múltiplas culturas são resultados das relações de
poder.
O MULTICULTURALISMO CRÍTICO NA
EDUCAÇÃO
Falar de multiculturalismo é, portanto, falar da existência de muitas culturas e das
relações entre elas, desiguais nas sociedades contemporâneas, compondo o que se
poderia perceber como um arco-íris cultural, segundo proposta do pensador português
Boaventura de Sousa Santos (2003). Ele aponta o multiculturalismo como uma nova
forma de globalização. Ele compara o mundo como um "arco-íris”: “arco-íris de
culturas", ou seja, o mundo é composto por uma infinidade de culturas e outra infinidade
de combinações entre culturas.
Continuando na analogia do arco-íris, admite-se que é importante ser capaz de “ver”
esses e outros conjuntos de cores (culturas), mas algumas pessoas, apesar de disporem
de um aparelho visual morfologicamente bem constituído, não são capazes de distinguir
tons e cores que compõem o arco-íris. Alguns ficam com uma capacidade reduzida de
identificação de tons, reconhecendo apenas os cinzentos: são os daltônicos.
A analogia proposta aqui é a de que a não conscientização da diversidade cultural que
nos rodeia em múltiplas situações constitui uma espécie de daltonismo cultural.
ARCO-ÍRIS DE CULTURAS
Não confundir com as cores visíveis, mas com a decomposição da luz que manifesta um
conjunto muito maior de possibilidades de cores.
Romper com esse daltonismo cultural e ter presente o “arco-íris das culturas” nas
práticas educativas supõem todo um processo de desconstrução de práticas
naturalizadas e enraizadas no trabalho docente para sermos educadores capazes de
criar maneiras de nos situar e intervir no dia a dia de nossas escolas e salas de aula.
Aos poucos, esse conceito se torna uma proposta pedagógica no campo do Currículo,
entendido como a inter-relação de várias culturas em um mesmo ambiente. É também
chamado de pluralismo cultural, e é um conceito da Sociologia que vem sendo usado em
estudos no campo das Ciências Sociais e Humanas. É uma teoria que defende a
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valorização da cultura dos diversos grupos que compõem a humanidade, propondo
compreender que ser diferente não significa ser melhor nem pior do que ninguém. Surge
em contraposição à uniformização ou padronização do ser humano, de viés mais
conservador.
DALTONISMO CULTURAL
O multiculturalismo emerge das manifestações e conquistas das chamadas minorias
(movimentos negros, indígenas, das mulheres, dos homossexuais, entre outros) desde o
século XIX e está intimamente relacionado com elas. Liga-se ao conceito de “História dos
Vencidos”, quando no final dos anos de 1970 a história dos povos colonizados, como a
dos povos africanos, sociedades ameríndias, entre outros, ganham novos espaços no
meio acadêmico. Nos anos 1980 e 1990, pensadores e intelectuais mergulham no tema e
passam a apontar a necessidade do diálogo intercultural, o que vai, necessariamente,
impactar a Educação e os currículos.
 ATENÇÃO
Seguindo com McLaren, a perspectiva multicultural crítica busca reconhecer as ideias de
que tais culturas minoritárias precisam se expressar e serem reconhecidas em seus
modos de estar no mundo, valores e conhecimentos. Nesse sentido, esse tipo de
multiculturalismo opõe-se ao que ele julga ser uma forma de etnocentrismo, vem como
contrarresposta à homogeneidade cultural construída a partir da cultura europeia,
principalmente quando essa homogeneidade é considerada única e legítima,
submetendo outras culturas aos rótulos de particularismos e dependência.
Pode-se dizer, nesse contexto, que uma educação multicultural será aquela que valoriza
as diferentes culturas em presença, local e nacionalmente. Ainda, é a responsável pela
formação do cidadão que o prepara para incluir-se e receber os “outros” na sociedade,
aceitando a validade das diferentes culturas e, portanto, respeitando aqueles que as
representam.
Esse multiculturalismo na educação pode ser definido como uma proposta educacional
que visa garantir o conhecimento das mais diversas culturas, além do respeito a todas
elas. Compromete-se, inclusive, com a compreensão e transformação das relações
desiguais entre as culturas estabelecidas na sociedade, levando cada sujeito a perceber
que as pessoas possuem diferentes valores e conhecimentos e, com base neles, se
manifestam de diversas formas.
O multiculturalismo crítico valoriza as diversas culturas ao mesmo tempo e a diversidade
dos grupos fortalece o multiculturalismo como movimento social e como parte do
processo educativo, definindo, portanto, a sua participação efetiva no próprio currículo
escolar.
A escola tem um papel fundamental nesse processo, pois ali estão presentes no dia a dia
muitos atores que expressam a complexidade cultural brasileira. Por isso, a escola torna-
se um espaço em que convivem estudantes de diferentes origens, assim como é um dos
lugares em que são ensinadas as regras do espaço público para o melhor convívio com a
diferença.
Desse modo, o multiculturalismo crítico é uma estratégia política de reconhecimento e de
representação da diversidade cultural, não podendo ser concebido dissociado dos
contextos das lutas dos grupos culturalmente oprimidos.
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OPRIMIDOS
De acordo com Vera Candau (2002b, p. 51), “o multiculturalismo reflete a necessidade de
redefinir conceitos como cidadania e democracia, relacionando-os à afirmação e à
representação política das identidades culturais subordinadas. Como corpo teórico,
questiona os conhecimentos produzidos e transmitidos pelas instituições escolares,
evidenciando etnocentrismos e estereótipos criados pelos grupos sociais dominantes,
silenciadores de outras visões de mundo. Busca, ainda, construir e conquistar espaços
para que essas vozes se manifestem, recuperando histórias e desafiando a lógica dos
discursos culturais hegemônicos”.
O MULTICULTURALISMO CRÍTICO NAS
ESCOLAS E NOS CURRÍCULOS
Num primeiro plano, o multiculturalismo na escola deve ser entendido como a inclusão
de todos e todas na educação, compreendendo-a como um direito independentemente
das diversidades e do lugar social subalternizado dos grupos ditos minoritários. Por
outro lado, o multiculturalismo como característica da sociedade também deve ser
incluído no currículo, ampliando o reconhecimento cultural dos grupos minoritários e
reconhecendo a singularidade dos indivíduos no seio das diferentes culturas.
 ATENÇÃO
Complementarmente, é necessário refletir sobre o que é e pode ser um currículo
multicultural. Tal currículo deve buscar reverter a ideia de neutralidade e homogeneidade
predominante nos espaços escolares: fazer com que todo o processo de construção
cultural do país seja compreendido por meio de seus conflitos e contradições, além de
ouvir as vozes de movimentos sociais e de lutassilenciadas. Normalmente, a história é
escrita pelos vencedores, em detrimento dos vencidos. O multiculturalismo deve trazer a
história tal qual ela foi vivida, como visto acima.
Nessa perspectiva, a inclusão de um currículo multicultural no ambiente escolar
possibilitará a todos o conhecimento de outras culturas; ao mesmo tempo, auxiliará no
processo ensino-aprendizagem, à medida que os professores utilizem a cultura dos
próprios alunos em suas aulas e em projetos da escola. Isso porque a cultura traz
consigo o íntimo de cada um de seus membros (de cada um dos alunos, dos professores
e de seus entornos).
Para Vera Candau (2002b), a cultura é um fenômeno plural, multiforme, não estático e que
está em constante transformação. Ela envolve um contínuo processo de criar e recriar e,
talvez de uma maneira imperceptível, um componente ativo na vida do ser humano e nas
manifestações mesmo nos atos do indivíduo mais corriqueiros. A autora vai ainda mais
longe quando afirma que “não há indivíduo que não possua cultura, pelo contrário, cada
um é criador e propagador de cultura” (CANDAU, 2002b, p. 12). Cai por terra, pois, a
expressão “fulano não tem cultura”, pelo menos nesse sentido amplo da cultura.
Para o antropólogo Darcy Ribeiro, no seu livro O Povo Brasileiro,
[...] CULTURA É A HERANÇA SOCIAL DE UMA
COMUNIDADE HUMANA, REPRESENTADA PELO
ACERVO COPARTICIPADO DE MODOS
PADRONIZADOS DE ADAPTAÇÃO À NATUREZA PARA
O PROVIMENTO DA SUBSISTÊNCIA, DE NORMAS E
INSTITUIÇÕES REGULADORAS DAS REAÇÕES
SOCIAIS E DE CORPOS DE SABER, DE VALORES E
DE CRENÇAS COM QUE EXPLICAM SUA
EXPERIÊNCIA, EXPRIMEM SUA CRIATIVIDADE
ARTÍSTICA E SE MOTIVAM PARA AÇÃO..
(RIBEIRO, 1995, p. 72)
Nesse contexto, e ainda dentro do pensamento de Vera Candau, a escola é uma
instituição educacional e uma instituição cultural por excelência ao mesmo tempo:
comporta dentro dela grupos sociais diversos, que não devem ser ignorados pela
instituição, muito menos pelo currículo que a orienta. Isto é, num mesmo espaço estão a
Escola — de forma privilegiada — e dentro dela mesma e de seu entorno a cultura, como
lugar e fonte de que se nutre o processo educacional para formar pessoas, para formar
consciência.
Para Azoilda Trindade (2000), a cultura tem um papel fundamental no processo de
aprendizagem, uma vez que ela nutre todo processo educacional, na missão de formar o
indivíduo crítico e conhecedor de sua origem cultural. Por isso, é tão necessário discutir
as culturas diversas na sala de aula e compreender a importância do currículo.
Embora a escola seja um palco privilegiado dessa multiculturalidade, o que se percebe é
que ela ainda não encontrou a fórmula ideal de usufruir desse privilégio, em virtude do
eurocentrismo que ainda se faz presente nas propostas e práticas curriculares. Ela
encontra dificuldades em fazer interagir suas práticas educativas mais comuns com a
diversidade cultural que caracteriza os alunos e a sociedade.
SOCIEDADE
Na perspectiva multicultural crítica, propõe-se um currículo mais relacionado com o
universo cultural nacional ou com essa multiculturalidade vivenciada pelos educandos. O
multiculturalismo entraria, assim, na escola, por meio da inclusão da diversidade cultural
e social, como propõem as leis 10.639/2003 e 11.645/2007, dedicadas a exigir que
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constem nos currículos escolares o ensino da história das contribuições das culturas
africanas, afrodescendentes e indígenas na formação do Brasil.
Antes de entrarem em vigor as leis que tornam obrigatório o ensino de história e cultura
africanas, afro-brasileira e indígenas, Vera Candau (2000, p. 2) já afirmava que "hoje se faz
cada vez mais urgente a incorporação da dimensão cultural na prática pedagógica". Ela
defende uma abordagem pedagógica pautada numa perspectiva de educação
multicultural, com a inclusão dessa discussão no currículo escolar e, por certo, nos
projetos da escola.
Quando se fala em trazer o multiculturalismo para o currículo, trata-se de uma proposta
audaciosa, que vai além de trazer o tema para a sala de aula: em poucas palavras, é
trazer para dentro da sala de aula os próprios atores, é a inclusão de todos nos
processos de escolarização, procurando atender aos interesses e necessidades de
todos, independentemente de etnias, deficiências ou diferenças.
ESCOLA
“[...] um currículo multicultural coloca aos professores o desafio de encontrar estratégias
e recursos didáticos para que os conteúdos advindos de variadas culturas sejam
utilizados como veículo para: introduzir ou exemplificar conceitos relativos a uma ou
outra disciplina; ajudar os alunos a compreender e investigar como os referenciais
teóricos de sua disciplina implicam na construção de determinados conhecimentos;
facilitar o aproveitamento dos alunos pertencentes a diferentes grupos sociais; estimular
a autoestima de grupos sociais minoritários ou excluídos; educar para o respeito ao
plural, ao diferente, para o exercício da democracia, enfatizando ações e discursos que
problematizem e enfraqueçam manifestações racistas, discriminatórias, opressoras e
autoritárias, existentes em nossa nossas práticas sociais cotidianas” (CANDAU, 2000, p.
39).
Trata-se, portanto, de trazer oficialmente para os bancos das escolas os grupos
minoritários, que já estão lá, mas geralmente excluídos e marginalizados. Essa proposta
de um novo modelo de escola, que busque atender à diversidade cultural brasileira em
sua completude, levaria a uma quebra de paradigma, fazendo a escola deixar de lado sua
proposta homogeneizante e se estruturar de modo mais compatível e respeitoso com a
pluralidade cultural do país. Vejamos, então, o que poderia ser proposto nesse sentido.
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A ESCOLA PÚBLICA MULTICULTURAL,
PLURAL E DEMOCRÁTICA
A proposta de um modelo não europeu de escola — o nosso atual é herdado da França
republicana dos fins do século XIX — não é simples de formular e menos ainda de
colocar em prática. O modelo social em que vivemos é, até então, compatível com essa
escola, cientificista, europeia e branca.
Para a transformação, é preciso fazer com que a escola exerça uma função equalizadora,
mais do que reprodutora. Trata-se, portanto, de buscar democratizar as relações entre as
culturas nas propostas de currículo escolar, pluralizar conhecimentos e suas origens,
trazer para a oficialidade das propostas as diferentes culturas constituidoras do país e
demonstrar o quanto interagiram na formação daquilo que somos hoje.
Nesse sentido, seria necessário ampliar os currículos, de modo a abranger as
especificidades dos grupos minoritários, ao mesmo tempo em que as colocamos em
diálogo com as culturas ditas majoritárias. Dessa forma, a instituição escola deixaria de
contemplar somente a história e a cultura dos europeus, dominantes, “vencedores”, para
reconhecer a igualdade de direitos e de cidadania, realmente, a toda a população.
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Pensando nas práticas pedagógicas interculturais a serem construídas, uma mudança
radical ótica se faz necessária. De acordo com Emília Ferreiro:
GRUPOS MINORITÁRIOS
“A escola pública, gratuita obrigatória do século XX é herdeira da do século anterior,
carregada de missões históricas de grande importância: criar um único povo, uma única
nação, anulando as diferenças entre os cidadãos, considerados como iguais diante da
Lei. A tendência principal foi equiparar igualdade à homogeneidade. Se os cidadãos eram
iguais diante da Lei, a escola deveria contribuir para gerar e cidadãos homogeneizando
as crianças, independentemente de suas diferentes origens. Encarregada de
homogeneizar, de igualar, essa escola mal podia apreciar as diferenças” (FERREIRO
apud LERNER, 2007, p. 7).
É INDISPENSÁVEL INSTRUMENTALIZAR
DIDATICAMENTE A ESCOLA PARA TRABALHAR COM
A DIVERSIDADE. NEM A DIVERSIDADE NEGADA, NEM
A DIVERSIDADE ISOLADA, NEM A DIVERSIDADE
SIMPLESMENTE TOLERADA. TAMBÉM NÃO SE
TRATA DA UNIVERSIDADE ASSUMIDA COMO UM
MAL NECESSÁRIO OU CELEBRADA COM UM BEM
EM SIMESMO, SEM ASSUMIR SEU PRÓPRIO
DRAMATISMO. TRANSFORMAR A DIVERSIDADE
CONHECIDA E RECONHECIDA EM UMA VANTAGEM
PEDAGÓGICA: E ISSO ME PARECE SER O GRANDE
DESAFIO DO FUTURO. .
(FERREIRO apud LERNER, 2007, p. 7)
Essa mudança de paradigma nas propostas curriculares exigiria mudanças globais nos
âmbitos espacial e organizacional da escola, e isso exige tempo e trabalho. É um
processo construído pouco a pouco e feito de avanços e retrocessos, que vai colocar em
jogo novas exigências e possibilidades às práticas cotidianas nas escolas, pois a cultura
única, anteriormente soberana, seria confrontada com outras tantas, gerando, portanto,
diálogos e conflitos no interior das escolas e mesmo dos currículos.
Para Vera Candau, o movimento multiculturalista teve grande força na história dos
Estados Unidos da América, quando nos anos de 1960 presenciaram muitas
manifestações em prol da igualdade nos negros. Talvez os Estados Unidos tenham sido
mesmo o protótipo ideal para o fortalecimento do multiculturalismo, considerando a
diversidade e o Estado democrático de direito ali fundamentando. E, nesse sentido, não é
só o movimento negro que importa. A democracia americana, espelho maior da
democracia capitalista burguesa, não tem sentido sem a busca da igualdade de direitos
entre homens e mulheres (igualdade de gênero), entre raças, entre populações locais e
migrantes etc.
São essas exigências que se colocam àqueles que pensam e buscam defender uma
escola democrática e plural, esse é o grande desafio. Somente quando formos capazes
de não reduzir a igualdade à padronização, nem a diferença um problema a resolver, será
possível mobilizar um processo de construção de práticas pedagógicas interculturais. É
necessário outro olhar: reconhecer a dignidade de todos os atores presentes nos
processos educativos e conceber a diferença como riqueza e "vantagem pedagógica".
Sem essa mudança de perspectiva, não poderemos caminhar.
O que é preciso trabalhar supõe, ao mesmo tempo, desconstruir a padronização baseada
na superioridade imaginada de uma cultura e lutar contra todas as formas de
desigualdade e discriminação presentes na sociedade, ao mesmo tempo em que se
reconhecem as diferenças e o direito a elas, conforme ensina Santos (2002, p. 316):
“temos o direito a ser iguais quando a diferença discrimina e a ser diferentes quando a
igualdade descaracteriza”.
Vamos pensar exemplos de forma prática? Rodrigo Rainha é entrevistado para falar de
alguns momentos chaves para o crescimento do multiculturalismo.
VEM QUE TE EXPLICO
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 3
CULTURA POPULAR VERSUS CULTURA
ERUDITA
E A CONSTITUIÇÃO DO CURRÍCULO
 Identificar o papel da cultura
na constituição do currículo
VOCÊ TEM CULTURA?
O antropólogo Roberto da Matta, importante estudioso das relações culturais brasileiras;
em 1981, já levantava o debate sobre a ideia de se ter ou não se ter cultura, interrogando
a concepção de cultura subjacente a essa ideia. Ele narra:
OUTRO DIA OUVI UMA PESSOA DIZER QUE ‘MARIA
NÃO TINHA CULTURA’, ERA ‘IGNORANTE DOS FATOS
BÁSICOS DA POLÍTICA, ECONOMIA E LITERATURA’.
INTERESSANTE QUE ESSA PROPOSIÇÃO PODE SER
OUVIDA EM VÁRIOS SEGMENTOS DA SOCIEDADE.
POR OUTRO LADO, QUANDO VISITAMOS UMA
EXPOSIÇÃO DE ARTESANATO POPULAR, PODEMOS
OUVIR A EXPRESSÃO, QUE ALI ESTÁ A
REPRESENTAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA, COMO
O QUE SE SEGUE NO TEXTO DE DA MATTA, QUE
APONTA, EM SEGUIDA, O INTERESSE DE SEUS
ALUNOS SOBRE ‘A CULTURA DOS ÍNDIOS APINAYÉ,
DE GOIÁS’ EM AULA. ELE REFLETE SOBRE ESSES
DOIS USOS: ‘(...) DECIDI QUE ESSA SERIA A MELHOR
FORMA DE DISCUTIR A IDEIA OU O CONCEITO DE
CULTURA TAL COMO NÓS, ESTUDANTES DA
SOCIEDADE A CONCEBEMOS. OU, MELHOR AINDA,
APRESENTAR ALGUMAS NOÇÕES SOBRE A
CULTURA E O QUE ELA QUER DIZER, NÃO COMO
UMA SIMPLES PALAVRA, MAS COMO UMA
CATEGORIA INTELECTUAL, UM CONCEITO QUE
PODE NOS AJUDAR A COMPREENDER MELHOR O
QUE ACONTECE NO MUNDO À NOSSA VOLTA’.
(MATTA, 1981, p. 1)
Vejamos agora os comentários dos professores Rodrigo Rainha e Antônio Giacomo
sobre as concepções mais recorrentes de cultura e sua vinculação com a formação dos
currículos.
O que observamos na maior parte dos currículos escolares é a prevalência da primeira
visão, segundo a qual a cultura é sinônimo de sofisticação, de sabedoria, de educação
no sentido restrito do termo. Ou seja, quando falamos que “Fulano não tem cultura”, ou
quando afirmamos que “aquele artista é culto”, estamos nos referindo a certo estado
educacional dessas pessoas, querendo indicar com isso sua capacidade de
compreender ou organizar certos dados e situações. Trata-se de uma compreensão de
cultura como sofisticação, sabedoria.
O principal problema dessa compreensão é a associação à ideia de evolução cultural da
barbárie à civilização. Vejam essas duas representações de arte:
Civilização: sempre representada como limpa, equilibrada, com ícones europeus.
Barbárie: mesmo em uma obra clássica europeia, fica revelada a perda da humanidade e
do senso de ser sociável.
Sociedades consideradas atrasadas, grupos sociais e pessoas tidas como ignorantes e
mesmo incapazes por estarem “abaixo” do necessário para aprender e se “elevar”
culturalmente completam esse cenário, que se baseia no eurocentrismo e na noção de
erudição como qualidade cultural, em oposição ao popular, favorecendo ainda essa ideia
de centralidade do conhecimento europeizado.
Vamos novamente exemplificar com arte: veja e diga qual das duas você tende a
reconhecer como “culturalmente superior”.
FISHING, JEAN-MICHEL BASQUIAT, 1981.
RETRATO COM UM COLAR, MOISE KISLING, 1938.
Você pode pensar ainda qual das duas em uma exposição te traria maior estranhamento.
Saiba que o primeiro é um dos artistas mais reconhecidos do neoexpressionismo.
Por isso é tão importante buscar sair dessa percepção para promover uma educação
mais democrática e menos discriminatória, conforme visto no módulo anterior. Você
precisa parar e pensar por que é mais “natural” ver a jovem loira em uma obra de arte do
que a menina negra, mesmo vivendo no país com o maior número de negros fora da
África.
 Retrato de uma menina, Irma Stern, 1939.
Para isso, é importante centrar a atenção sobre a segunda concepção que considera a
cultura como “a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa”.
Roberto da Matta reconhece ainda, em seu texto, o caráter parcial de toda cultura. Ele se
insurge contra a tendência recorrente classificarmos hierarquicamente diferentes
culturas ao invés de percebermos que, em suas parcialidades, se complementam na
formação da totalidade que é o mundo multicultural no qual vivemos. O autor chama
atenção, ainda, para o fato de que as regras de cada cultura formam tão somente um
cenário básico no qual os sujeitos sociais se movem com certa liberdade na vida
cotidiana.
Um caminho para a compreensão dessas diferenças de sentido está na compreensão da
evolução dos significados do termo, que nos permite, também, compreender por que,
apesar dos cientistas sociais privilegiarem o segundo sentido, permanece na nossa
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sociedade a insistência no uso do primeiro, inclusive nas propostas curriculares e nas
práticas educativas. Marilena Chauí (2006) esclarece os muitos usos atuais do termo
cultura a partir da origem do termo.
RECONHECE
“Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código
através do qual as pessoas de dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o
mundo e a si mesmas. (...). Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe
simplesmente. É algo que está fora e dentro de cada um de nós (...). Quer dizer, as regras
que formam a cultura (ou a cultura como regra) é algo que permite relacionar indivíduos
entre si e o próprio grupo com o ambiente onde vivem” (MATTA, 1981, p. 2).
Quando você quer fazer mal, promover dor, é comum usar o termo: judiar — vem da
naturalização de maltratar um judeu.
Quando você quer falar que uma pessoa tem interesse sexual em pessoasdo mesmo
sexo usa: homossexualismo — vem do tempo em que questões de sexualidade eram
tratadas como uma doença, por isso o sufixo.
Quando uma pessoa trabalha em sua residência fazendo funções de limpeza e
arrumação, é chamada de doméstica — vem do termo domesticar, como ter um animal
que agora não mais o ataca e você pode conviver dentro de casa.
Quando você quer falar que alguém está falando mal de você, afirma que está o
denegrindo — vem de tornar-se negro, quer dizer, perdendo o status social histórico e
sendo tratado como é tratado um negro.
O mesmo acontece com a questão da cultura. Marilena Chauí também explica que, a partir
do século XVIII, a cultura ganha um novo sentido. Passa a significar “os resultados
daquela formação ou educação dos seres humanos, de seu trabalho e de sua
sociabilidade, resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições” (CHAUÍ, 2006,
p. 106). A partir daí, o termo assume outro significado, o de vita civile, sinônimo de
civilização, “como expressão dos costumes e das instituições enquanto efeitos da
formação e da educação dos indivíduos do trabalho e da sociabilidade” (CHAUÍ, 2006, p.
106).
 ATENÇÃO
Desse modo, cultura passa a ser entendida como civilização e significa, então, o
aprimoramento e o aperfeiçoamento da humanidade. Entendida como histórica, essa
perspectiva introduz a ideia de progresso no uso do termo. E, nesse sentido, faz-se a
“distinção entre cultos (os senhores) e incultos (escravos, servos e homens livres
pobres) e a distinção entre os povos se fazia pela designação do outro como bárbaro”
(CHAUÍ, 2006, p. 106). Essa abertura para o estabelecimento de graus e estágios de
civilização para classificar as culturas em atrasadas e avançadas exerceu grande
influência sobre as compreensões de mundo da época e exerce até hoje.
A distinção entre culturas, fruto do cientificismo do século XIX, em primitivas e modernas,
se impõe como compreensão hegemônica e separa, pelo nível de erudição, diferentes
povos e sujeitos sociais. Cabe ressaltar o modo como, no Brasil, essa concepção se
instala nas compreensões de mundo e nas relações entre a cultura de origem europeia —
erudita — e os demais povos formadores do país — negros e indígenas. Os
comportamentos europeus eram vistos como normais, já as práticas dos demais grupos,
como marcas de seu atraso. Esse ainda é um pensamento presente no nosso modelo de
escola e, infelizmente, ainda é base de muitos comportamentos docentes e discentes. É
uma forma de negligenciar, o que esclarece Roberto da Matta, ao afirmar que por
compartilharem dos códigos de base de cada cultura que:
UM CONJUNTO DE INDIVÍDUOS, COM INTERESSES E
CAPACIDADES DISTINTAS E ATÉ MESMO OPOSTAS,
TRANSFORMAM-SE NUM GRUPO E PODEM VIVER
JUNTOS SENTINDO-SE PARTE DE UMA MESMA
TOTALIDADE. PODEM, ASSIM, DESENVOLVER
RELAÇÕES ENTRE SI PORQUE A CULTURA LHES
FORNECEU NORMAS QUE DIZEM RESPEITO AOS
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MODOS, MAIS (OU MENOS) APROPRIADOS DE
COMPORTAMENTO DIANTE DE CERTAS SITUAÇÕES.
(MATTA, 1981, p. 2)
CIENTIFICISMO DO SÉCULO XIX
Ciência que adota a percepção de raças humanas e seus estágios diferenciados em
civilizados, bárbaros e selvagens.
O que existe, portanto, são formas culturais ou subculturas de uma sociedade que
caracterizam diferentes grupos sociais e que precisam ser compreendidas como
equivalentes, embora diferentes em seus modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre
o mundo. Infelizmente, a hierarquização entre culturas, que define a cultura europeia
como “erudita” e, logo, superior, ainda possibilita a crença e a difusão de que essa é a
única forma válida, porque superior e mais “moderna”, mais desenvolvida que as demais.
É preciso outro modo de perceber e enfrentar as diferenças culturais, acompanhado de
outra visão dessa relação entre o erudito e o “popular”, e mesmo entre diferentes
manifestações dessas culturas.
Ainda vivemos sob a hierarquia entre diferentes manifestações culturais, sejam elas no
campo das artes — literatura, teatro, ópera, cinema, artes plásticas e música, que com
frequência é percebida como erudita ou popular —, ou no campo dos eventos culturais e
religiosos — festivais, carnaval, eventos religiosos como procissões e outras
manifestações, como as esportivas.
OS EMBATES CULTURAIS, OS CURRÍCULOS
E AS PRÁTICAS ESCOLARES
Em texto publicado ainda nos anos 1990, o estudioso de Currículo Ivor Goodson traz
uma importante reflexão sobre como, historicamente, o ensino de diferentes disciplinas
escolares e a abordagem que deveriam adotar em diferentes contextos se constituíram.
Sobre o ensino de Música, a abordagem evolutiva e classificatória fica evidente em
Brocklehurst, conforme podemos ver:
O OBJETIVO PRIMEIRO DA EDUCAÇÃO MUSICAL É
FAZER GOSTAR DA BOA MÚSICA E COMPREENDÊ-
LA. É CERTAMENTE TAREFA DOS PROFESSORES
ESFORÇAR-SE AO MÁXIMO PARA PREVENIR OS
JOVENS DE SE TORNAREM PRESAS FÁCEIS DOS
FORNECEDORES DE MÚSICA POPULAR
COMERCIALIZADA.
(BROCKLEHURST apud GOODSON, 1995, p. 111)
Não é preciso procurar muito para encontrar a frequente atitude incentivada nas escolas
brasileiras de rejeição a manifestações musicais como o funk e o rap, consideradas
impróprias para o ambiente escolar. Trata-se, aqui, de assumir não só o que vale e o que
não vale, mas de encontrar o porquê.
Podemos entender que é uma forma de silenciar culturas consideradas inferiores, muitas
vezes apenas pelas suas origens distantes da suposta erudição de determinados
gêneros musicais. Recorremos de novo a Goodson (1995, p. 110), quando ele interroga:
“Que tipo de educação de massa está sendo visado quando o que é popular é, não
somente ignorado, mas positivamente desvalorizado?”.
Um acontecimento do século XIX na Inglaterra, apresentado na sequência, evidencia não
só o preconceito e a discriminação, como a motivação deles: manter a hegemonia entre
as diferentes classes sociais e as culturas que professam. No caso brasileiro, entre as
culturas europeias e negras/indígenas.
O fato é que não há nada de óbvio ou natural nas escolhas curriculares, frequentemente
habitadas por esse tipo de preconceito que permite a reprodução do ideário da
superioridade da cultura erudita europeia sobre as demais culturas, função subliminar da
escola moderna.
Para encerrar nosso módulo com um resumo dessas reflexões e a importância delas para
pensar as relações entre currículo e cultura, podemos sintetizar o que diz o autor ao final
do capítulo: na perspectiva da oposição/complementaridade entre cultura erudita e
cultura popular, temos a afirmação de que “o currículo escrito é um exemplo perfeito
sobre invenção da tradição” (GOODSON, 1995, p. 113). Assim, é possível compreender o
fato de termos nossa atenção voltada a determinados temas e preocupações como uma
ideologia.
Preocupações como a noção de “ensino eficaz (isto é, avaliação de professores ou
‘professores incompetentes’) e ‘aprendizado efetivo’, ou seja, ‘melhores escolas’”,
tornam-se diferenciais de sucesso decisivos em cada escola e para cada aluno,
individualizando e descaracterizando os aspectos sociais envolvidos nesses
“sucessos”. Com isso, a reflexão em torno dos aspectos comuns de sucesso e fracasso,
que permitiria acessar a construção social do currículo, é negligenciada. Esconde-se que
esses critérios e lógicas foram objeto de luta anterior e nos levam a crer que
“determinada versão de escola deveria ser considerada boa” (GOODSON, 1995, p. 113).
 ATENÇÃO
Aqui a questão da multiculturalidade do currículo se mostra particularmente importante
como antídoto à legitimação acrítica dos currículos eurocêntricos com os quais
trabalhamos e como possibilidade de diálogo entre a chamada cultura erudita e a popular
na formulação de possibilidades curriculares mais inclusivas e democráticas.
Jurjo Torres Santomé (2011, p. 155) aponta, nesse sentido, a necessidade de
considerarmos a importância da escolarização na formação “de cidadãos (ãs) ativos (as)
e críticos (as), membros solidários e democráticosde uma sociedade solidária e
democrática”. Para tal, o autor formula uma ideia do que seria um “projeto curricular
emancipador” que “deve necessariamente propor certas metas educativas e aqueles
blocos de conteúdos culturais que melhor contribuam para a socialização crítica dos
indivíduos” (SANTOMÉ, 2011, p. 156).
A noção de conteúdos culturais, definidos como relativos “ao conhecimento, destrezas e
habilidades que as pessoas usam para construir e interpretar a vida social”, criados e
aprendidos nos seus meios culturais específicos, que não se restringem ao modelo
eurocêntrico. Essa proposta pretende, portanto, superar a predominância de conteúdos
escolares baseados apenas nas culturas hegemônicas e incluir conteúdos advindos das
culturas tradicionalmente negadas nos currículos, de modo a viabilizar a reflexão crítica
sobre a sociedade.
Sem esquecer que a maioria dos docentes da atualidade não se sente capaz e não é
autorizada a formular currículos com conteúdos culturais, o autor chama atenção para
um importante aspecto:
(...) A ARRASADORA PRESENÇA DAS CULTURAS
QUE PODEMOS CHAMAR HOJE DE HEGEMÔNICAS.
AS CULTURAS OU VOZES DOS GRUPOS SOCIAIS
MINORITÁRIOS E/OU MARGINALIZADOS QUE NÃO
DISPÕEM DE ESTRUTURAS IMPORTANTES DE
PODER COSTUMAM SER SILENCIADAS, QUANDO
NÃO ESTEREOTIPADAS E DEFORMADAS, PARA
ANULAR SUAS POSSIBLIDADES DE REAÇÃO.
(SANTOMÉ, 2011, p. 157)
Santomé ainda aponta, não por acaso, culturas consideradas populares ou sem valor,
como as culturas locais, as culturas infantis e juvenis, as culturas das etnias sem poder, o
mundo feminino e as homossexualidades, os pobres e as classes trabalhadoras, o
mundo rural, as pessoas com deficiência e as vozes do terceiro mundo. São essas
culturas que precisam — numa perspectiva intercultural de educação — adentrar os
currículos, rompendo a dicotomia entre erudito popular, viabilizando a recuperação, pela
educação obrigatória, de “uma de suas razões de ser: a de ser um espaço onde as novas
gerações se capacitem para adquirir e analisar criticamente o legado cultural da
sociedade” (SANTOMÉ, 2011, p. 171).
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 4
CURRÍCULO E A CULTURA NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
 Identificar os impactos das dinâmicas sociais
contemporâneas no campo do Currículo
CURRÍCULO E TECNOLOGIA
Antes de começarmos a leitura, vamos ouvir o que os professores Rodrigo Rainha e
Antônio Giacomo têm a nos dizer.
Com o advento da internet e, posteriormente, com a popularização da informatização de
conteúdos e a automática introdução de conteúdos digitais, novas linguagens e formas
de comunicação surgem a cada instante, trazendo, com elas, novas possibilidades no
campo das práticas educativas e dos currículos. Essas “novas formas” surgem de modo
muito rápido e, simultaneamente, são substituídas ou complementadas por outras ainda
mais novas na mesma velocidade, sendo ultrapassadas por novas tecnologias em
permanente mutação. Há casos em que, enquanto ainda tentamos definir o nome da
tecnologia, ela já está superada por outra mais recente.
Nos anos de 1990, tivemos, por exemplo, a educação via internet pela Plataforma Web
2.0. Essa plataforma introduziu novas possibilidades de relacionamento entre diferentes
formas de ensino e aprendizagem por meio do uso de recursos tecnológicos recém
desenvolvidos pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) no
campo educacional. Essa época e os recursos e métodos proporcionados pela
Educação Web 2.0 parecem longínquos, já se foram há muito. Ficou somente o conceito,
que evoluiu para a noção de educação on-line, híbrida, mediada, entre outras noções.
Atualmente, mesmo no chamado ensino presencial, as redes sociais, a internet e os
recursos nelas e por elas disponibilizados seguem presentes na educação.
Com o advento e o desenrolar da pandemia advinda da covid-19, novas formas de uso da
tecnologia em sala de aula vêm ocorrendo. O que se percebe, cada vez mais nitidamente,
é que o uso das novas tecnologias na Educação veio para ficar. Assim, as propostas e
práticas curriculares precisam se adaptar aos novos tempos, como já ocorreu no
passado.
Sim, as novas tecnologias digitais são consequência de um processo de
desenvolvimento tecnológico das sociedades humanas que não começou com a
informática. O domínio do fogo nos primórdios da humanidade, os primeiros utensílios e
armas, a descoberta da pólvora, entre outras marcas transformadoras das práticas
sociais sempre ocorreram. Do ponto de vista mais estrito da cultura e da escolarização, a
própria invenção do papel, da imprensa e mesmo o advento dos cadernos escolares
foram cruciais para a transformação dos registros de conhecimentos, para a sua
transmissão e, portanto, para as práticas educativas.
Essas transformações, comuns ao longo da história, não param de ser criadas. O que há
de diferente no momento é a velocidade com que novas formas de comunicação surgem,
exigindo também uma maior atenção e celeridade na incorporação das novidades. Ao
mesmo tempo, é necessário certo cuidado com o “inovacionismo” nas práticas
educativas, já que o ritmo dos processos educativos não é o mesmo da evolução
tecnológica. O equilíbrio entre inovação e preservação é fundamental para que as
propostas não se percam dos sujeitos concretos que as utilizarão nos cotidianos,
incluindo os alunos, que nem sempre têm à disposição as inovações mais recentes.
A pandemia deixa evidente que a escola já não pode abdicar do trabalho na e com a
internet, com os dispositivos móveis e as redes de colaboração, instrumentos e espaços
de produção e circulação de conhecimentos, de pesquisa, de interatividade e de
socialização dentro e fora do ambiente escolar.
No caso específico dos processos educativos, nos quais a interação social é tão
relevante, escolas e universidades se desdobraram — e seguem se desdobrando — para
viabilizar a sociabilização, mesmo com os alunos ausentes fisicamente da escola. Isso só
é possível por meio das redes sociais e de reuniões por videoconferências em tempo
real, ou com o uso de aplicativos diversos que facilitaram o processo comunicativo,
dialógico e (in)formacional. Pode-se, portanto, afirmar que essas novas tecnologias vêm
criando possibilidades de experiência social diferentes e inovadoras em diferentes
esferas da sociedade, provocando mudanças de paradigma nos modos como nos
relacionamos com base nas tecnologias digitais.

Diante de tantas mudanças, além da proliferação de equipamentos, aplicativos e formas
de acesso à internet, as linguagens também estão se modificando. Anglicismos novos,
palavras e termos surgem, em busca de dar conta dessas “novidades”, e alguns deles já
são considerados incontornáveis. Deletar, linkar, downloadar são palavras de uso
corrente. Símbolos como hashtag (#), arroba (@) e outros habitam a vida cotidiana da
maior parte da população. Quanto aos termos, as noções de letramento digital,
alfabetização digital, bem como a preocupação com a inclusão digital, necessária à
democracia digital, são hoje inevitáveis nas reflexões sobre a inclusão educacional e o
efetivo exercício do direito à educação.
Não por acaso, após os resultados de pesquisas envolvendo os processos de
escolarização no primeiro ano da pandemia (2020), que evidenciaram muitos problemas
de ordem política e social, foi promulgada a Lei 14.172, de 10 de junho de 2021. Essa lei
garante que estudantes e professores das redes públicas do país deverão ter acesso à
internet. Para tal, o governo federal deverá destinar R$ 3,5 bilhões aos estados e
municípios para garantir a conectividade de banda larga nas escolas até 2024. Ainda que
se saiba que essa urgência advém da pandemia, é impossível negar que se trata de uma
preparação para um futuro em que as redes sociais e as possibilidades da internet
estarão plenamente incorporadas aos processos ensino-aprendizagem nas escolas.
Daí a importância particular da noção de “democracia digital”, termo que está se
incorporando à realidadedo século XXI. Wilson Gomes nos apresenta uma definição
desse termo:
[...] QUALQUER FORMA DE EMPREGO DE
DISPOSITIVOS (COMPUTADORES, CELULARES,
SMARTPHONES, PALMTOPS, IPADS...), APLICATIVOS
(PROGRAMAS) E FERRAMENTAS (FÓRUNS, SITES,
REDES SOCIAIS, MÍDIAS SOCIAIS...) DE
TECNOLOGIAS DIGITAIS DE COMUNICAÇÃO PARA
SUPLEMENTAR, REFORÇAR OU CORRIGIR
ASPECTOS DAS PRÁTICAS POLÍTICAS E SOCIAIS DO
ESTADO E DOS CIDADÃOS EM BENEFÍCIO DO TEOR
DEMOCRÁTICO DA COMUNIDADE POLÍTICA.
(GOMES, 2011, p. 27-28)
 RESUMINDO
Falar de democracia digital é falar da dinâmica democrática do século XXI, com
repercussões diversas na sociedade, relacionadas também às questões de percursos
educacionais, sociais, econômicos e ambientais. Não se trata apenas de acesso à
internet, mas da imersão constante em um ambiente comunicativo mediado por novas
tecnologias que envolvem os sujeitos nos cotidianos e, por isso, necessariamente no
espaço escolar.
OS CURRÍCULOS ESCOLARES E AS NOVAS
TECNOLOGIAS: O QUE É UM
WEBCURRÍCULO?
Há algum tempo, a educação já vem se percebendo dentro de um complexo de redes,
envolvendo tanto as tradições como as inovações, as possibilidades e as dificuldades.
As culturas digitais integram e reforçam crescentemente essa ideia; são uma grande rede
de ligação, disseminação e interação entre todas as formas de cultura, que devem ser
compartilhadas e modificadas nesse novo espaço, ou melhor, nesse novo ciberespaço.
Com suas redes sociais digitais, esse ciberespaço potencializa o surgimento de novas
linguagens de comunicação e de informação que, ao transcenderem os espaços-tempos
escolares, os modificam. As novas “tecnologias digitais” geram, portanto, novos
cenários e modos para interagir e comunicar nas comunidades virtuais que adentram
também o espaço escolar, trazendo inovações pedagógicas e mudanças. A virtualidade
dos meios tecnológicos digitais propicia novas formas de estar, pensar, agir, interagir,
criar, conectar, recriar-se no mundo (ALVES; MOREIRA, 2017), além de transformar a
capacidade de comunicação dos usuários.
A escola é um importante instrumento dentro da sociedade e não pode ficar de fora das
transformações e interações que ocorrem nas redes educativas do/no cotidiano dos
sujeitos-alunos, que cada vez mais fazem parte do ciberespaço. Essa agilidade da
comunicação, própria do contexto contemporâneo das juventudes e de suas relações
com o meio ambiente e/ou com as tecnologias digitais, precisa ser considerada dentro
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das salas de aula de forma colaborativa, criativa e inventiva. As trocas em rede,
potencializadas pelos usos dos dispositivos móveis, indicam um processo formativo de
troca de saberes que, por si só, modifica os processos ensino-aprendizagem nas
escolas.
MUDANÇAS
Segundo Alves e Moreira (2017, p. 7), “É por meio da cultura contemporânea, como rede
educativa, atrelada ao currículo da escola, que as redes sociais permitem uma maior
ampliação em termos de territorialidade, visto que permitem possibilidades outras de que
os jovens possam participar de forma ampla da cibercultura, envolvendo também o
ambiente escolar”.
O que se pode afirmar com a noção de webcurrículo é que este pretende disponibilizar
algo que tenha real sentido para os alunos, a fim de incentivá-los a pensar, a criar, a
transgredir a mesmice. Dessa forma, permite-lhes alcançar voos mais altos criando novas
possibilidades de uso da imaginação.
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WEBCURRÍCULO
“Webcurrículo, que é o currículo que se desenvolve por meio das tecnologias digitais de
informação e comunicação, especialmente mediado pela internet. Uma forma de trabalhá-
lo é informatizar o ensino ao colocar o material didático na rede. Mas o webcurrículo vai
além disso: ele implica a incorporação das principais características desse meio digital
no desenvolvimento do currículo. Isto é, implica apropriar-se dessas tecnologias em prol
da interação, do trabalho colaborativo e do protagonismo entre todas as pessoas para o
desenvolvimento do currículo. É uma integração entre o que está no documento
prescrito e previsto com uma intencionalidade de propiciar o aprendizado de
conhecimentos científicos com base naquilo que o estudante já traz de sua experiência.
O webcurrículo está a favor do projeto pedagógico. Não se trata mais do uso eventual da
tecnologia, mas de uma forma integrada com as atividades em sala de aula” (ALMEIDA,
2014, p. 26).
O potencial dessa proposta é, principalmente, o de oferecer aos alunos a oportunidade
de olhar para si mesmos e para mundo de forma diversa e mais rica, sem descartar a
aprendizagem de novos conceitos, procedimentos e atitudes, como também o
desenvolvimento de competências e habilidades que favoreçam a construção do
conhecimento.
A tecnologia proporcionará mais visibilidade, auxiliará no processo de construção e
representação do conhecimento, potencializará a busca das informações e a
comunicação entre aqueles para os quais a distância espacial seria um entrave à
linguagem produzida pela interação entre imagens, movimentos e sons, que atrai os
jovens muito mais do que a linearidade do texto de um livro. Ou seja, o webcurrículo tem
como objetivo trazer para dentro da sala de aula a tecnologia e a linguagem tecnológica
do dia a dia, elementos inerentes à nova cultura digital conhecida como cibercultura.
Nesse sentido, o desafio atual é levar a escola a estar permanentemente interligada com
o seu entorno e inscrita na rede mundial de computadores e com as interações que ela
viabiliza. A escola não pode mais estar alicerçada apenas na linguagem e na cultura
escritas. Esse modelo de escola, herdado do século XIX, está agonizando, pois não
atende mais aos desejos e às necessidades daqueles que a frequentam e nela devem
aprender.
AS ESCOLAS, A CIBERCULTURA E OS
MULTILETRAMENTOS
Dentro desse contexto, o planejamento educacional, os projetos políticos pedagógicos e
as propostas curriculares precisam também se flexibilizar para receber as novas
tecnologias, incorporando a necessidade de democratização do acesso à internet, e,
sobretudo, aos conhecimentos indispensáveis para o uso cada vez mais otimizado
daquilo que as tecnologias oferecem. Integrar aos processos educativos as tecnologias
digitais, vistas com desconfiança até pouco tempo atrás, é um grande desafio para as
propostas e práticas pedagógicas.
É evidente que a integração das tecnologias digitais nos currículos, oficializando sua
presença nas escolas, não é um processo simples, demanda tempo, formação, interesse
dos gestores das políticas educacionais e das escolas, de professores e demais agentes
pedagógicos. O processo de integrá-las aos currículos de forma inovadora, crítica e
contextualizada com a realidade local, buscando possibilitar a potencialidade de educar
cidadãos críticos e capazes de atuar socialmente de modo ativo e permanente, exige e
exigirá, além de compromisso político e educativo, trabalho cotidiano, diálogos e
agilidade. Se consideramos que essa concepção defendida já é parte de uma proposta
curricular, percebemos a importância de se compreender, do ponto de vista das
mudanças curriculares, a questão das tecnologias digitais e sua presença nas escolas.
O que chama mais a atenção, nesse momento, é a velocidade das transformações para
as quais os currículos precisam dar respostas, uma vez que, como já visto, as
tecnologias sempre interferiram nos cotidianos e nos processos educativos. É preciso,
portanto, buscar e pensar propostas pedagógicas que considerem cenários específicos
em cada realidade escolar e que sejam suficientemente abertas e interdisciplinares para
dialogar com o ritmo acelerado das mudanças e inovações tecnológicas. Na educação
básica, é indispensável que promovam o estímulo nos alunos, deixando as aulas mais
motivadoras e interessantes, sobretudo para aqueles do Ensino Fundamental II e do
Ensino Médio, que vivem as culturas juvenis.
 ATENÇÃO
É importante lembrar que todos são nativos digitais e vivenciamas tecnologias em
outros campos da vida social. Levá-los a estabelecer relações mais diretas entre esses
usos cotidianos e os conteúdos curriculares vistos nas escolas pode potencializar sua
formação na perspectiva da cidadania ativa, da inclusão digital, da ludicidade e do
envolvimento com os conteúdos.
A cibercultura pode ser definida, nesse cenário, como uma forma natural de cultura
surgida junto com o desenvolvimento das tecnologias digitais e que vem, a todo instante,
ganhando espaço frente à sociedade moderna. Além do ciberespaço, há os novos
dispositivos tecnológicos que permeiam o cotidiano, cada qual apresentando suas
potencialidades, limitações, contextos e dimensões. Tais dispositivos podem ser
aproveitados com mais critério, rigor e leveza nos processos educacionais,
proporcionando interação e colaboração entre alunos e docentes.
Para Pierre Lévy (1994), cibercultura é um conceito que trata da reunião de relações
sociais, das produções artísticas, intelectuais e éticas dos seres humanos. Trata-se de
um conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), práticas, atitudes, modos de
pensamento e valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do
ciberespaço. Além disso, a cibercultura se articula por meio de redes interconectadas de
computadores, ou seja, no ciberespaço. Assim, cibercultura aborda a relação entre
sistemas: tecnologia, informação, sociedade e seus valores.
Em resumo, entende-se a cibercultura como o modelo sociocultural que surgiu na
analogia entre as sociedades, como a cultura e as novas tecnologias, por meio da
convergência entre telecomunicações e informática. Seria, então, a expressão de uma
nova cultura, de uma forma de sociabilidade na cultura contemporânea, mediada pelas
ferramentas disponibilizadas pela tecnologia, que não se configura como causa única
dessa expressão cultural, fato que reforça a necessidade de se pensar um currículo que
esteja em consonância com a cibercultura.
Considerando, ao mesmo tempo, a emergência da cibercultura como elemento da vida
social que necessariamente se faz presente nas escolas e as exigências e possibilidades
que as propostas curriculares podem assumir, como é o caso do webcurrículo ou outras,
torna-se especialmente relevante a incorporação aos currículos da linguagem digital, de
modo a promover o que Magda Soares (2004) e outros autores chamam de
multiletramento.
De acordo com a autora, o termo letramento é empregado para “nomear práticas sociais
de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever
resultantes da aprendizagem do sistema de escrita” (SOARES, 2004, p. 8), ou seja, do
processo de alfabetização em si.
No entanto, os processos de letramento e alfabetização se complementam e, apesar
dessa interdependência, é importante ressaltar que não é necessário alguém ser
alfabetizado para participar de uma sociedade letrada. Um indivíduo pode não ter
domínio do código, mas pode utilizá-lo ao se envolver em eventos sociais de leitura e
escrita, como ouvir a leitura de um jornal, pegar um ônibus, conferir um troco etc. Assim,
deve-se pensar o termo multiletramento a partir de práticas que explorem atividades
diversificadas no ambiente social e, principalmente, no escolar, considerando a
multiculturalidade presente nesses contextos.
Dessa noção inicial deriva a compreensão de multiletramento, incluindo a linguagem
digital. Embora a noção não seja nova, os estudos envolvendo letramentos e
multiletramentos vêm ganhando relevância especial no contexto das múltiplas
plataformas e linguagens midiáticas, sobretudo desde o início da pandemia da covid-19,
em 2020. No entanto, antes mesmo do vírus, um evento da área ocorrido em 2018,
chamado Letramentos & Multiletramentos, trazia sérias reflexões sobre o letramento
digital, reforçando a importância dos estudos recentes no campo, que “encaram a leitura
e a escrita como práticas discursivas inseparáveis dos contextos sociais diversos em
que se desenvolvem, além de valorizarem usos e práticas de linguagem do cotidiano,
tradicionalmente pouco valorizados pelas instituições educacionais” (LETRAMENTOS...,
2018, não paginado).
Vamos falar um pouco mais sobre o multiletramento!
VERIFICANDO O APRENDIZADO
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nem padronização, nem desigualdade. É isso que podemos depreender do estudo das
relações entre cultura e currículo, pois se percebe a riqueza de possibilidades de
trabalho com as diferentes culturas por meio do diálogo entre elas no campo do
Currículo. O reconhecimento das diferenças culturais e da necessária e inevitável relação
entre elas nos cotidianos sociais é o que permite refletir sobre o possível papel da
educação na construção da igualdade e da justiça sociais, necessárias a toda sociedade
democrática.
Nesse sentido, este estudo apresentou alguns modos de compreensão dessa
complementariedade não hierárquica entre as culturas e os problemas que o
monoculturalismo pode trazer aos currículos, às aprendizagens escolares e à
democracia. É importante que as práticas educativas partam desse reconhecimento das
diversidades presentes nas escolas e nas salas de aula, o que exige romper com os
processos de homogeneização, que inviabilizam e ocultam as diferenças, reforçando o
caráter monocultural das culturas escolares.
As diferenças entre uma cultura e outra não nos permitem dizer que essa ou aquela é pior
ou melhor, pois não existe melhor ou pior no que se refere à questão cultural, conforme
visto a partir dos textos de Chauí, Laraia e Da Matta. É no diálogo e nos embates e
debates entre culturas que todos e todas amadurecem e se formam.
O mais importante na perspectiva intercultural crítica é estimular o diálogo entre saberes
nos processos ensino-aprendizagem desenvolvidos nas salas de aula, uma vez que o
conhecimento não é privilégio de determinado grupo de pessoas. Ele tem sua história e
geografia. (...) Cabe reconhecer que os caminhos da emancipação são diversos e que
uma sociedade democrática não pode prescindir dessa ecologia cognitiva, e
conhecendo a diversidade de sujeitos e de lugares e formas de produção de
conhecimento (STRECK, 2012, p. 21).
O multiculturalismo visa resistir à homogeneidade cultural, principalmente quando essa
homogeneidade é considerada única e legítima, submetendo outras culturas a
particularismos e dependência. Por isso, quando estudamos as relações entre as
culturas e os currículos, precisamos encarar a realidade multicultural do país e respeitar
essa pluralidade para que haja justiça nas propostas e práticas curriculares e na
promoção das aprendizagens, que são direitos de todos.
PODCAST
Ouça agora uma síntese dos pontos mais importantes abordados.
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M. E. B. de. Integração currículo e tecnologias: concepção e possibilidades de
criação de webcurrículo. In: ALMEIDA, M. E. B. de; ALVES, R. M.; LEMOS, S. D. V. (orgs.).
Webcurrículo: aprendizagem, pesquisa e conhecimento com o uso de tecnologias
digitais. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014, p. 22-40.
ALVES, L.; MOREIRA, J. A. (orgs.). Tecnologias & aprendizagens: delineando novos
espaços de interação. Salvador: EDUFBA, 2017.
BRASIL. Lei n. 14.172, de 10 de junho de 2021. Dispõe sobre a garantia de acesso à
internet, com fins educacionais, a alunos e a professores da educação básica pública.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 108, 11 jun. 2021. Seção 1, p. 1.
CANDAU, V. M. F. Educação multicultural: tendências e propostas. In: CANDAU, V. M. F. 
(org.). Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis: Vozes, 2000.
CANDAU, V. M. F. Sociedade, cotidiano escolar e cultura(s): uma aproximação. Educação
& Sociedade, Campinas, v. 23, n. 79, p. 125-161, 2002a.
CANDAU, V. M. F. (org.). Multiculturalismo e educação: sociedade, educação e cultura(s).
Rio de Janeiro: DP&A, 2002b.
CHAUÍ, M. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006.

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