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A ENTIDADE
 
UM CONTO DE TERROR
 
 
 
 
Francisco Scattolin
Créditos
 
Edição Independente, 2020
 
Todos os direitos da obra reservados a Francisco Scattolin Filho
 
 
É madrugada. A corrente de ar frio desce as escadas, úmida
e pútrida. Ela não é natural - nada natural comportaria-se daquela
maneira. Na varanda, ele ouve as ondas rebentando ao longe, as
pedras colossais embaralhadas na praia açoitadas pela maré alta.
Sem sono, bafora o último Marlboro do quarto maço do dia. A névoa
expelida propaga-se alguns poucos metros adiante, disputando
espaço com os cristais de sal dissolvidos no vento úmido. O embate
é desigual. A nebulização da água do mar absorve a fumaça
cancerígena, fagocitando-a como uma força imparável da natureza.
A maresia avança quilômetros vizinhança adentro, corroendo
portões, torneiras, janelas, carros, fios, encanamentos, pinturas de
muros e de paredes - o que estiver no caminho – enquanto as casas
de veraneio oneram em silêncio o inverno dos proprietários na
capital e no interior. Um luxo caro, anacrônico e fora de moda.
A iluminação pública incandescente, fraca e amarelada, não
revela, mas ele sabe uma coisa ou outra a respeito daquelas casas.
Das paredes internas com infiltrações crônicas, dos armários com
sachês de naftalina pendurados em pregos frágeis, dos ninhos de
baratas escondidos embaixo das pias; do mofo aprisionado que
cresce, acumula e destrói, imiscuindo-se por entre as brechas nos
forros, os vãos das portas e as folhas dos armários. Ele sabe dos
soquetes enferrujados queimando as lâmpadas, das contas de
consumo não pagas, dos assaltos de ocasião. Do abandono.
Curvado, veste o capuz e o ajusta firme contra o topo da
cabeça, esticando a cordinha de náilon com as duas mãos. O
agasalho esportivo impermeável e a camiseta surrada de algodão
são finos demais; não combinam com o frio que sobe pelas pernas
descobertas e penetra por baixo da bermuda bege de sarja. Ele não
pode substituí-los agora, vestir algo mais quente e acolhedor. A
bagagem desfeita, guardada com capricho pela esposa no armário,
está no segundo andar do sobrado. Mas lá ele não sobe. 
 
* * *
 
A lembrança da existência do quarto causa-lhe ânsia de
vômito e cólicas de nervosismo. A mera lembrança. Os dedos
magros vasculham o interior do maço em busca de outro cigarro.
Irritado, amassa a embalagem vazia e a atira na rua, mandando à
merda qualquer senso de civilidade. Não, no andar de cima ele não
vai subir, por mais angustiante que seja viver em uma casa pela
metade. Afinal, a alternativa... Bem, a alternativa está fora de
cogitação. Sendo assim, é preciso adaptar-se, o que se mostra
surpreendentemente difícil. É indigno ter de sujeitar-se a tomar
banho de balde uma vez por semana no lavabo do térreo, tremendo
de frio, espremido entre a porta, a pia e a privada enquanto o
pequeno espaço inunda. Ver a água escorrer pelo vão da porta e
alastrar-se pelo piso estufado da sala – e, ao sair, pisar nas poças
com o chinelo encardido, marcando o chão com pegadas em
sentidos aleatórios. 
A periodicidade semanal dos rituais de higiene aplica-se às
roupas do corpo. Apenas quando ela começa a feder (quando deixa
de suportar o odor azedo impregnado na camiseta; a cueca e a
bermuda cheirando a fezes), ele coloca as roupas imundas para
lavar, as quatro peças de uma vez na máquina branca com
manchas marrom-alaranjadas na tampa, nas laterais e nos pezinhos
do suporte. Enrolado na toalha de mesa para suportar o frio, ele
aguarda, nu, a secagem terminar.
A sujeira e o mau cheiro, ele tem certeza, estão longe de ser
o principal incômodo do seu cotidiano solitário. Sempre que sai do
banho, ou quando lava as roupas, é o barulho de água corrente no
andar de cima que lhe causa pânico. Ele ouve o som, encorpado e
amplificado, atravessar o teto úmido com lascas de tinta
penduradas. Escuta a vazão no máximo, o jato mergulhando na
água represada no ralo. Há três semanas, quando desceu às
pressas, abandonou a torneira aberta. Agora pode ouvi-la quando
abre o registro pelo tempo necessário para as tarefas caseiras. O
ruído borbulhante sobrepõe-se ao da televisão ligada na suíte, a
ponto de ser preciso prestar atenção para diferenciá-los (e ele
sempre presta, apoiado contra a parede ao pé da escada, olhando
para cima em estado de alerta).
O confinamento no térreo reflete-se no modo como ele
encara a vida lá fora. Só sai de casa para o estritamente necessário,
o que nas últimas semanas resumiu-se a providenciar comida para
saciar um apetite cada vez mais tímido e desinteressado. A pé,
busca o almoço no restaurante da orla, dia sim, dia não. Pede para
três e entulha as sobras na geladeira amarela que foi da avó. O
trambolho acumula gelo no congelador, o compartimento fica
parecendo um iglu em miniatura.
Nas cada vez mais raras ocasiões em que vai ao
supermercado, é breve. Traz apenas o que consegue carregar nos
braços, apesar do carro estacionado no pátio com o porta-malas
vazio. O sedã alemão novinho comprou zero quilômetro, não faz um
ano. As chaves do veículo, do mesmo modo que a bagagem, a
televisão e a torneira aberta, estão interditadas no quarto proibido,
onde ninguém além dele jamais deverá entrar. 
Ver o carro querido abandonado próximo à entrada da casa,
exposto ao sol e à chuva, o teria incomodado em outras
circunstâncias. O luxuoso veículo vermelho é só o que há de
moderno na propriedade, em absoluto contraste com o conjunto
depressivo de móveis e utensílios que decoram o ambiente: os
sofás de couro rasgados, o micro-ondas analógico, o ventilador de
teto cheirando queimado; as camas com estrados de madeira
partidos e colchões afundados no centro; o relógio azul-marinho
sem pilhas na parede da cozinha. Tudo na casa é segunda mão,
espólio de família, terceiro ou quarto uso. São objetos dispostos
sem unidade ou personalidade; memórias desprovidas de contexto
que compõem uma colagem cansada e melancólica. Em verdade, a
mobília semiaposentada da casa de praia apenas cumpre estágio:
dali para o lixo. É decadente, como a família, o bairro e a cidade.
 
* * *
 
São duas da manhã. Submerso na poltrona da sala, ele fuma
um cigarro após o outro, expelindo fuligem feito uma locomotiva a
vapor. As guimbas transbordam do cinzeiro em formato de concha
do mar e a nicotina impregna o mobiliário - mas ele não se importa.
Rebeca não pode censurá-lo. Sereno, observa através da janela e
da cortina de fumaça a garoa fina salpicando contra a luz amarela
do poste. Há algo de relaxante nas gotas caindo em diagonal contra
o fundo escuro da noite. 
Quando o telefone celular vibra no bolso interno do agasalho,
interrompendo o momento de relaxamento, ele está propenso a
ignorá-lo. As ligações rarearam depois da primeira e da segunda
semana, e ele era agradecido por isso. Talvez houvessem desistido,
afinal. Aceitado que os dois precisavam de um tempo sozinhos, de
espaço para processar a tragédia. A dor, às vezes, precisa ser
solitária.
Desta vez, porém, há algo diferente no ar. Faz um mês, será
a lembrança? Não, não é a lembrança, não é algo. É alguém, só
pode ser alguém. Mas quem? Uma irresistível influência apodera-se
dele, manifestando-se na forma de uma sugestão sedutora e
inconsciente, e faz com que ele apanhe o aparelho contra a
vontade. Ele verifica a tela. O nome e a foto piscando fazem gelar a
espinha. É a última pessoa no mundo de quem ele esperaria
receber uma ligação. 
Tossindo, engasgado com a fumaça, ele atira o aparelho no
sofá como se lhe tivesse mordido. A perna direita treme
descontroladamente. Ele levanta-se com rapidez a despeito de um
breve desequilíbrio e uma tontura quase senil. Apesar da garoa,
apressa-se até a varanda – andando rápido, quase correndo. Sob
os pingos finos, recolhe o gorro na cabeça, a mão dançando
contaminada pela tremedeira na perna. O spray de água fustiga o
seu rosto comprido com barba por fazer e textura de jornal velho de
tanto fumar.
Lá dentro da casa, o maldito aparelho continua tocando. Não
vai parar, nunca. Ele preferiria ouvir a televisão berrando no quarto,
ou mesmoa torneira transbordando litros e mais litros de água antes
de ouvir aquele chamado no celular mais uma vez. A casa, porém,
discorda. Escolhe silenciar, como se aquela fosse exclusivamente a
hora e a vez do telefone tocar.
Ao entrar de volta na sala, o aparelho quica e apita sobre as
almofadas. Quer apanhá-lo e atirá-lo na rua, vê-lo destruído contra
os paralelepípedos, a tela estilhaçada, os alto falantes emitindo um
guincho agudo de morte - mas seria uma péssima ideia. Cedo ou
tarde, ele sabe que vai precisar enfrentá-la. Controle-se, atirador! O
celular queima na mão, o número brilha. Duas opções piscam: verde
e vermelho. Sem convicção, ele desliza o dedo a partir do círculo
verde, da esquerda para a direita. 
“Não foi culpa sua” – escuta a voz dizer, fria e distante, do
outro lado da linha. “Foi um acidente” - ela fala, mas ele sabe que
não é verdade e tenta protestar em resposta. Quer discutir, quer
gritar, mas ela o atropela, fala por cima. Por mais alto que retruque,
por mais agressivo que seja com ela, ela não pode (ou não quer)
escutá-lo. Sente como se a conversa fosse uma via de mão única, e
aquilo o irrita. Transtornado, encara os lances vertiginosos da
escada e nota a planta do pé formigar. Por que ele deseja subir
agora? Confuso, enxerga projetada na parede a luz da suíte
bruxuleando (e às vezes apagando, por alguns instantes). O quarto
pisca como uma árvore de Natal. É como das últimas vezes, quando
viu - e ouviu - o fenômeno a partir da varanda, ou reclinado na
poltrona. A televisão de tubo do quarto comporta-se de modo
errático, simulando uma presença impossível. Os canais passeiam
pelo dial, alternando entre a tela chuviscada e o sinal das emissoras
de canal aberto. O som oscila - às vezes baixinho, quase inaudível,
e o térreo fica pacífico e silencioso como ficara na missa de sétimo
dia. Dá para escutar a brisa chacoalhando as folhas das árvores, os
pássaros batendo as asas, os miados distantes dos gatos de rua e
os motores dos veículos roncando ao longe. Dá quase para pensar
direito. Outras vezes, porém, é ensurdecedor e ele recolhe-se de
volta à varanda para fumar com o fone de ouvido no máximo,
escutando barulhos de chuva no aplicativo do celular enquanto a
perna direita convulsiona feito peixe respirando fora d´água.  Sim, é
como das últimas vezes. Só que mais de perto é diferente. Não, de
novo não. Por favor, não. 
 
Ele decide subir, porque precisa. A respiração encurta, breve
e covarde. Tão logo escala o primeiro degrau, a meros 20
centímetros de altura, os sentidos indicam que está úmido demais.
Puxa o ar pela boca, mas o oxigênio não vem. O ar é denso, como
se o telhado e o forro inexistissem e garoasse dentro da casa. Ele
se pega pensando que uma atmosfera alienígena deve ser desse
jeito. A partir do segundo e do terceiro degraus, a sensação é de
que os pulmões estão embolorando - mas não é hora de desistir.
Não quando ele sabe que a chave do carro está brilhando em cima
da cômoda, basta entrar e pegar. E depois dar o fora dali para
sempre. Por que não?
No hall comum aos quatro dormitórios da casa, o piso está
molhado e escorregadio (será que a pia transbordou?). O quarto do
casal é o único iluminado, contrastando com o breu do restante do
andar. É impossível não enxergar a luz retilínea projetada no chão,
em 45 graus, a partir da porta aberta pela metade. Ir ao encontro
dela, contudo, exige imprudência. Os chinelos deslizam sem
aderência, mas não é isso que o incomoda. A falta de equilíbrio
chega a ser bem-vinda, distrai do medo. Depois de alcançar o
batente, ele apoia-se na guarnição da porta por um instante e espia.
Um filme americano de época está passando na televisão de tubo. É
um faroeste de cowboy em preto-e-branco. O mocinho saca a arma
com destreza, mas o bandido é mais rápido e mortal. Bang! Um tiro.
Único, simples e certeiro. E o duelo termina. O bandido ajoelha-se
ao lado do mocinho agonizando, mas o diálogo dublado é
entrecortado pela recepção fraca com chiados terríveis.
Alargando a abertura da porta apenas o bastante, ele entra,
pé ante pé, os pelos dos braços e das pernas arrepiados. A cada
passo, sente um pulso de eletricidade percorrendo os músculos,
tensionando-os como na propaganda do aparelho de exercícios
abdominais que Rebeca comprou e esqueceu encostado no
armário. A chave, coberta por gotículas de água, cintila sobre o
criado-mudo. É preciso dar a volta na cama para alcançá-la, e ele o
faz sem por um segundo sequer tirar os olhos do volume oculto
debaixo das cobertas. A atração que o corpo exerce é irresistível,
feito um buraco negro que deforma e suga toda a luz ao redor. O
odor pútrido enjoa, mas é tênue, e ele logo se acostuma, como se
fosse tabaco. Espanta-se de como o quarto e a cama estão ainda
mais úmidos do que o resto da casa. Talvez o mofo houvesse
tomado conta também do cadáver debaixo das cobertas e o
estivesse consumindo no lugar das bactérias, dos fungos e dos
organismos saprófitos. Posso vê-la, falta pouco agora.
São três as chaves fixadas no chaveiro metálico da Torre
Eiffel que a esposa comprou na França – do carro, da casa
financiada em um condomínio na capital e da sala comercial que
divide com o cunhado. Elas tilintam em sua mão fria e suada.
Hipnotizado, Roberto observa o volume disforme embalado dos pés
à cabeça sob o cobertor xadrez. Continua afundando o colchão. 
Soluçando seco, com um nó na garganta do tamanho do
maço de Marlboro, ele recua devagar de volta à porta, em marcha-
ré. Não quer perdê-la de vista. Seus olhos arregalados estão
vermelhos; ardem como se os tivesse aberto dentro de uma piscina
de cloro. Escorregando as mãos pela parede rebocada, encontra o
interruptor e leva um choque inesperado ao agarrar-se na fiação
exposta. Grita, de susto, mas não faz mal. Finalmente, a mulher e o
quarto repousam na escuridão e o inferno, agora, talvez acabe. Ele
recolhe a mão esquerda instintivamente e examina os dedos
calejados, a palma sulcada, checando se a descarga provocara
algum dano - como se fosse possível. A pele está seca, chupada,
como a do filho ficava quando era criança. O garoto esquecia da
vida no mar, brincando no rasinho com as bóias infláveis coloridas
nos braços, ignorando os chamados da mãe.
Por entre os dedos, Roberto enxerga o quarto apagado e
estremece. O coração para de bater, as vias aéreas obstruem e o ar
para de vir por completo. Uma figura, em pé no canto do cômodo, o
encara. Apoiada na junção entre as paredes, é branca e difusa
como o mofo nos armários. A sua forma, sem traços discerníveis, é
humana tal qual um desenho infantil. Os braços finos perfilados
junto ao corpo; as pernas compridas e magras tremendo de
antecipação, como se estivessem prestes a pular sobre ele. Não
tem nem olhos, nem boca, nem nariz, mas tem cabeça: um círculo
branco e translúcido equilibrando-se sobre o pescoço retilíneo.
Aquele círculo, imóvel e inexpressivo, de algum modo olha para ele.
A televisão com chuviscos preto-e-branco emudece, mas é como se
desse para continuar ouvindo o chiado; como se os ruídos
partissem, agora, da própria criatura. Talvez fosse ela quem
controlasse a televisão e as luzes – e, talvez, ela também o
estivesse controlando. Enquanto ele a contempla, imagens de
violência, de medo e de prazer lhe vêm à mente, explícitas e
perturbadoras, mas não há repulsa. Há vontade, há fissura – mas
repulsa, não. Ele não pode ceder de novo, precisa resistir.
Aproveitando-se da débil luz branca que emana da criatura,
ele enxerga a cama. Nuances. Da cabeceira de madeira
ornamentada, dos pedaços do colchão revelados por entre os
espaços do lençol repuxado. O corpo continua ali, do jeito que ele
havia deixado: coberto, deitado de lado, insinuado por debaixo do
cobertor com os joelhos sobrepostos e flexionados. A mão direita
descansa sobre a esquerda, em uma postura quase angelical. Se
Rebeca continua ali, é porque a figura em pé é outra coisa. 
Roberto afasta-se, de costas, até escapar do contato visual
com o quarto e a entidade. Patina sobre o chão liso e depois salta
os degraus escada abaixo,de três em três. Após descer as
escadas, sem perder tempo, deixa a sala para trás e escancara a
porta principal. Sente um bafo frio enregelar a nuca, mas - só pode
ser - imaginação. Como você é impressionável, amor!
 
* * *
 
Lívido, sentado no banco do motorista, Roberto gira a chave
no contato com toda a força, até entortar. O carro é valente; tosse,
engasga, mas não dá partida. A bateria arriou, faz semanas que não
liga. Trancado no interior quente e seco do veículo, acende um
cigarro. Está seguro ali dentro? Não faz diferença, precisa fumar.
Tragando a fumaça com força da boca para o pulmão, sente um
barato adolescente. É bom estar ocupado com algo, especialmente
um cigarro. Suas mãos param de tremer, ele tenta dar a partida
novamente com a chave empenada, mas desta vez o veículo está
morto. Preciso ir embora daqui. 
Através do para-brisas, Roberto contempla a casa
devassada. Consegue enxergar o chão imundo, a bagunça no sofá
e a mesa de jantar com pratos sujos empilhados. Como tê-los de
volta? Ao terminar o cigarro, amassando-o contra a logomarca no
centro do volante, ele desce do carro alemão. Uma corrente de ar
frio sopra de dentro da residência, assobiando, e ele sabe que ela é
sobrenatural. Dá para enxergar a entidade sob o batente da porta de
entrada; magra, quase opaca, exibindo novos traços em sua
constituição, mais encorpados e elaborados. Ele sente o jato de
urina atravessar a cueca e encharcar a bermuda. A porção do
líquido não absorvida pelos tecidos escorre pela perna, um fio
quente e amarelo.  Ele pode jurar que ela esboça um sorriso - uma
linha curva e fina, suspensa em seu rosto circular. Ele pode ouvi-la;
uma gargalhada infantil, inocente, que ressoa de dentro da casa.
Roberto abre o portão, ofegante, e corre desajeitado pela rua
de paralelepípedos na direção da praia. A neblina pesada paira no
nível dos postes de energia, densa e faminta. Os vizinhos mais
próximos estão fora da cidade, o bairro está semideserto. Os
poucos moradores nativos dormem, não podem socorrê-lo. Duas
quadras extensas o separam da faixa de areia branca mal iluminada
pelos holofotes da prefeitura; ele as percorre em disparada, sem
olhar para trás, o coração galopando como se tomasse impulso para
saltar através do peito. Quando alcança a praia, Roberto desaba,
exausto, sugando o ar pela boca. Está em péssima forma física
devido ao sedentarismo e ao cigarro. Inala com dor - agulhas
perfurando a traqueia, afundando cada vez mais. Os pulmões
enchem pela metade e esvaziam por inteiro.
 
* * *
 Ajoelhado, sujo de areia, ele começa a lembrar do filho
chegando escondido da balada, sem avisar. De como ele próprio
estava alucinado na sala de estar depois de brigar com Rebeca. Do
copo de whisky metade vazio no descansa-copos redondo de
cortiça; da pistola Taurus dançando de uma mão para a outra na
madrugada silenciosa. Aquilo o acalmava. Lembra do garoto, o filho-
da-puta do garoto, eu te amo meu filho, forçando a janela da
cozinha para entrar em casa; por que não me contou?
Três tiros, foram. Estava escuro, mal dava para enxergar a
bancada da cozinha. O primeiro estilhaçou a janela. O segundo
perfurou o peito e alojou na cavidade torácica. O coração bombeava
sangue no piso gelado quando ele atirou de novo, no rosto, para
garantir. Foi como ele ensinava aos amigos. Se o ladrão entra na
tua casa, primeiro atira, depois pergunta. Vagabundo não pede
licença para entrar, ou pede?
A bermuda com manchas de urina está granulada de areia; o
agasalho e a camiseta por baixo, idem. Pela primeira vez, ele chora,
estirado ao lado de resquícios de um castelo que a maré derrubou.
Ele fita o mar, o horizonte longínquo, azul-negro. A vista alcança um
ponto de luz esvaindo - um barco pesqueiro, ou um petroleiro. 
Ele fita o mar de novo, a figura emerge naquele negrume,
teletransportada do quarto úmido direto para o oceano. Não tem
gênero, não tem face, e ele pensa que ela morou o tempo todo no
sobrado da casa de veraneio. A figura aproxima-se em meio às
ondas que chegam na praia. A cabeça, o tórax, os braços
alongados, os membros desajeitados não param de vir à tona,
devagar, saboreando. 
Ele pensa na esposa, nela em prantos. Rebeca nunca se
calava. Eu te disse, Roberto, eu avisei! A depressão inundava a
pobre um dia depois do outro, constante feito nascente de rio. O
corpo dela definhou, não queria sair do quarto para nada, muito
menos para comer. A culpa é sua, Roberto! Acontece que ela não
calava, apontava no seu rosto os dedos finos com o esmalte
descascando, agredindo-o. Socos, tapas, gritos, palavras. Ele a
odiava, e justamente porque ela tinha razão. A culpa era dele. Ela
silenciou com o travesseiro mofado mergulhado no rosto. Durou
pouco, dois minutos, se tanto. O suor dele gotejou na fronha
manchada do jogo de cama descartado pelo tio. 
Imóvel, a figura aparece completa no raso da praia. Desta
vez, com um horrendo esboço de rosto jovem e desfigurado; a boca
semiaberta, os olhos vermelhos vidrados, brilhantes. Roberto sente-
se anestesiado. Ele estende a mão, em súplica. Balbucia palavras,
grunhidos inaudíveis. Ela teria dado meia volta, mas a sua
constituição não permitia. A figura simplesmente volta, como veio;
plana, feito um desenho de criança. Vem brincar papai!, ela chama,
mas aquilo, talvez ele não saiba, não é o seu filho. Ele a segue mar
adentro, aliviado, submergindo nas águas do atlântico sul.
 
O AUTOR
Francisco Scattolin, 38, é natural de Sorocaba. A Entidade é o seu
segundo conto lançado na Amazon. Escreveu os romances
Armadilha do Tempo (2016) e De Volta à Cidade do Vampiro (2013),
e atualmente divide as obras literárias com o trabalho de auditor
público. Tenista frustrado, é corinthiano e escreve à base de café de
máquina.
 
CONTATOS
Obrigado por ter concluído a leitura deste conto. Se possível, gaste
um tempinho para avaliá-lo no site da Amazon. As avaliações
ajudam a aumentar a visibilidade das obras, além de contribuírem
para que as próximas histórias sejam sempre melhores. Sem contar
o principal: a opinião sincera dos leitores é uma alegria imensa para
qualquer escritor. : )
E, ah, caso você também seja um(a) escritor(a), pode me mandar
uma mensagem para conhecer o serviço de leitura crítica de
originais. Será um prazer ajudá-lo(a) em suas obras.
 
Instagram: @fscattolinf
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OUTRAS OBRAS DO AUTOR
 
Armadilha do Tempo
 
Ao mudar-se para a unidade 91 do Cosmopolitan, o protagonista é
envolvido em uma fantástica e improvável viagem no tempo: quando
sai à rua, ele volta duas décadas no passado. O apartamento,
porém, continua no presente, plenamente funcional. O processo
parece condenado a repetir-se indefinidamente. O que você faria
caso tivesse acesso aos segredos do passado? Se um evento
extraordinário lhe concedesse a oportunidade de vivê-lo
novamente? Caso fosse obrigado a alternar entre passado e
presente? São dessa natureza os questionamentos do protagonista
enquanto tenta escapar da armadilha do tempo. Libertar-se irá
demandar investigações, trabalho conjunto, sorte e paixão. Nem
todos estarão dispostos a ajudá-lo. Há, no passado, alguém à
espreita. À espera da sua chegada.
 
Armadilha do Tempo liderou os rankings de venda na Amazon nas
categorias “Mistério e Suspense” e “Viagem no Tempo”, chegando a
ocupar a 31ª colocação geral na loja Kindle.
Foi, também, sucesso de crítica nos canais dos youtubers Tatiana
Feltrin, Victor Almeida e Isabella Lubrano.
 
Compre aqui: Armadilha do Tempo na Amazon
 
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O Stalker e a Patricinha
Desde antes da epidemia, o desempregado Augusto passava os
dias obcecado por Luanna, a jovem vizinha do prédio ao lado que
mora com os pais. Confinados, a relação platônica vem à tona
quando ela o surpreende tossindo na janela durante a madrugada e
os dois conversam pela primeira vez. Ela não sabe que ele aespiona. Ela quer salvá-lo. Entre o pânico da doença e o terror da
invasão de privacidade, qual dos dois estará realmente a salvo?
Compre aqui: O Stalker e a Patricinha
 
 
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