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A ENTIDADE UM CONTO DE TERROR Francisco Scattolin Créditos Edição Independente, 2020 Todos os direitos da obra reservados a Francisco Scattolin Filho É madrugada. A corrente de ar frio desce as escadas, úmida e pútrida. Ela não é natural - nada natural comportaria-se daquela maneira. Na varanda, ele ouve as ondas rebentando ao longe, as pedras colossais embaralhadas na praia açoitadas pela maré alta. Sem sono, bafora o último Marlboro do quarto maço do dia. A névoa expelida propaga-se alguns poucos metros adiante, disputando espaço com os cristais de sal dissolvidos no vento úmido. O embate é desigual. A nebulização da água do mar absorve a fumaça cancerígena, fagocitando-a como uma força imparável da natureza. A maresia avança quilômetros vizinhança adentro, corroendo portões, torneiras, janelas, carros, fios, encanamentos, pinturas de muros e de paredes - o que estiver no caminho – enquanto as casas de veraneio oneram em silêncio o inverno dos proprietários na capital e no interior. Um luxo caro, anacrônico e fora de moda. A iluminação pública incandescente, fraca e amarelada, não revela, mas ele sabe uma coisa ou outra a respeito daquelas casas. Das paredes internas com infiltrações crônicas, dos armários com sachês de naftalina pendurados em pregos frágeis, dos ninhos de baratas escondidos embaixo das pias; do mofo aprisionado que cresce, acumula e destrói, imiscuindo-se por entre as brechas nos forros, os vãos das portas e as folhas dos armários. Ele sabe dos soquetes enferrujados queimando as lâmpadas, das contas de consumo não pagas, dos assaltos de ocasião. Do abandono. Curvado, veste o capuz e o ajusta firme contra o topo da cabeça, esticando a cordinha de náilon com as duas mãos. O agasalho esportivo impermeável e a camiseta surrada de algodão são finos demais; não combinam com o frio que sobe pelas pernas descobertas e penetra por baixo da bermuda bege de sarja. Ele não pode substituí-los agora, vestir algo mais quente e acolhedor. A bagagem desfeita, guardada com capricho pela esposa no armário, está no segundo andar do sobrado. Mas lá ele não sobe. * * * A lembrança da existência do quarto causa-lhe ânsia de vômito e cólicas de nervosismo. A mera lembrança. Os dedos magros vasculham o interior do maço em busca de outro cigarro. Irritado, amassa a embalagem vazia e a atira na rua, mandando à merda qualquer senso de civilidade. Não, no andar de cima ele não vai subir, por mais angustiante que seja viver em uma casa pela metade. Afinal, a alternativa... Bem, a alternativa está fora de cogitação. Sendo assim, é preciso adaptar-se, o que se mostra surpreendentemente difícil. É indigno ter de sujeitar-se a tomar banho de balde uma vez por semana no lavabo do térreo, tremendo de frio, espremido entre a porta, a pia e a privada enquanto o pequeno espaço inunda. Ver a água escorrer pelo vão da porta e alastrar-se pelo piso estufado da sala – e, ao sair, pisar nas poças com o chinelo encardido, marcando o chão com pegadas em sentidos aleatórios. A periodicidade semanal dos rituais de higiene aplica-se às roupas do corpo. Apenas quando ela começa a feder (quando deixa de suportar o odor azedo impregnado na camiseta; a cueca e a bermuda cheirando a fezes), ele coloca as roupas imundas para lavar, as quatro peças de uma vez na máquina branca com manchas marrom-alaranjadas na tampa, nas laterais e nos pezinhos do suporte. Enrolado na toalha de mesa para suportar o frio, ele aguarda, nu, a secagem terminar. A sujeira e o mau cheiro, ele tem certeza, estão longe de ser o principal incômodo do seu cotidiano solitário. Sempre que sai do banho, ou quando lava as roupas, é o barulho de água corrente no andar de cima que lhe causa pânico. Ele ouve o som, encorpado e amplificado, atravessar o teto úmido com lascas de tinta penduradas. Escuta a vazão no máximo, o jato mergulhando na água represada no ralo. Há três semanas, quando desceu às pressas, abandonou a torneira aberta. Agora pode ouvi-la quando abre o registro pelo tempo necessário para as tarefas caseiras. O ruído borbulhante sobrepõe-se ao da televisão ligada na suíte, a ponto de ser preciso prestar atenção para diferenciá-los (e ele sempre presta, apoiado contra a parede ao pé da escada, olhando para cima em estado de alerta). O confinamento no térreo reflete-se no modo como ele encara a vida lá fora. Só sai de casa para o estritamente necessário, o que nas últimas semanas resumiu-se a providenciar comida para saciar um apetite cada vez mais tímido e desinteressado. A pé, busca o almoço no restaurante da orla, dia sim, dia não. Pede para três e entulha as sobras na geladeira amarela que foi da avó. O trambolho acumula gelo no congelador, o compartimento fica parecendo um iglu em miniatura. Nas cada vez mais raras ocasiões em que vai ao supermercado, é breve. Traz apenas o que consegue carregar nos braços, apesar do carro estacionado no pátio com o porta-malas vazio. O sedã alemão novinho comprou zero quilômetro, não faz um ano. As chaves do veículo, do mesmo modo que a bagagem, a televisão e a torneira aberta, estão interditadas no quarto proibido, onde ninguém além dele jamais deverá entrar. Ver o carro querido abandonado próximo à entrada da casa, exposto ao sol e à chuva, o teria incomodado em outras circunstâncias. O luxuoso veículo vermelho é só o que há de moderno na propriedade, em absoluto contraste com o conjunto depressivo de móveis e utensílios que decoram o ambiente: os sofás de couro rasgados, o micro-ondas analógico, o ventilador de teto cheirando queimado; as camas com estrados de madeira partidos e colchões afundados no centro; o relógio azul-marinho sem pilhas na parede da cozinha. Tudo na casa é segunda mão, espólio de família, terceiro ou quarto uso. São objetos dispostos sem unidade ou personalidade; memórias desprovidas de contexto que compõem uma colagem cansada e melancólica. Em verdade, a mobília semiaposentada da casa de praia apenas cumpre estágio: dali para o lixo. É decadente, como a família, o bairro e a cidade. * * * São duas da manhã. Submerso na poltrona da sala, ele fuma um cigarro após o outro, expelindo fuligem feito uma locomotiva a vapor. As guimbas transbordam do cinzeiro em formato de concha do mar e a nicotina impregna o mobiliário - mas ele não se importa. Rebeca não pode censurá-lo. Sereno, observa através da janela e da cortina de fumaça a garoa fina salpicando contra a luz amarela do poste. Há algo de relaxante nas gotas caindo em diagonal contra o fundo escuro da noite. Quando o telefone celular vibra no bolso interno do agasalho, interrompendo o momento de relaxamento, ele está propenso a ignorá-lo. As ligações rarearam depois da primeira e da segunda semana, e ele era agradecido por isso. Talvez houvessem desistido, afinal. Aceitado que os dois precisavam de um tempo sozinhos, de espaço para processar a tragédia. A dor, às vezes, precisa ser solitária. Desta vez, porém, há algo diferente no ar. Faz um mês, será a lembrança? Não, não é a lembrança, não é algo. É alguém, só pode ser alguém. Mas quem? Uma irresistível influência apodera-se dele, manifestando-se na forma de uma sugestão sedutora e inconsciente, e faz com que ele apanhe o aparelho contra a vontade. Ele verifica a tela. O nome e a foto piscando fazem gelar a espinha. É a última pessoa no mundo de quem ele esperaria receber uma ligação. Tossindo, engasgado com a fumaça, ele atira o aparelho no sofá como se lhe tivesse mordido. A perna direita treme descontroladamente. Ele levanta-se com rapidez a despeito de um breve desequilíbrio e uma tontura quase senil. Apesar da garoa, apressa-se até a varanda – andando rápido, quase correndo. Sob os pingos finos, recolhe o gorro na cabeça, a mão dançando contaminada pela tremedeira na perna. O spray de água fustiga o seu rosto comprido com barba por fazer e textura de jornal velho de tanto fumar. Lá dentro da casa, o maldito aparelho continua tocando. Não vai parar, nunca. Ele preferiria ouvir a televisão berrando no quarto, ou mesmoa torneira transbordando litros e mais litros de água antes de ouvir aquele chamado no celular mais uma vez. A casa, porém, discorda. Escolhe silenciar, como se aquela fosse exclusivamente a hora e a vez do telefone tocar. Ao entrar de volta na sala, o aparelho quica e apita sobre as almofadas. Quer apanhá-lo e atirá-lo na rua, vê-lo destruído contra os paralelepípedos, a tela estilhaçada, os alto falantes emitindo um guincho agudo de morte - mas seria uma péssima ideia. Cedo ou tarde, ele sabe que vai precisar enfrentá-la. Controle-se, atirador! O celular queima na mão, o número brilha. Duas opções piscam: verde e vermelho. Sem convicção, ele desliza o dedo a partir do círculo verde, da esquerda para a direita. “Não foi culpa sua” – escuta a voz dizer, fria e distante, do outro lado da linha. “Foi um acidente” - ela fala, mas ele sabe que não é verdade e tenta protestar em resposta. Quer discutir, quer gritar, mas ela o atropela, fala por cima. Por mais alto que retruque, por mais agressivo que seja com ela, ela não pode (ou não quer) escutá-lo. Sente como se a conversa fosse uma via de mão única, e aquilo o irrita. Transtornado, encara os lances vertiginosos da escada e nota a planta do pé formigar. Por que ele deseja subir agora? Confuso, enxerga projetada na parede a luz da suíte bruxuleando (e às vezes apagando, por alguns instantes). O quarto pisca como uma árvore de Natal. É como das últimas vezes, quando viu - e ouviu - o fenômeno a partir da varanda, ou reclinado na poltrona. A televisão de tubo do quarto comporta-se de modo errático, simulando uma presença impossível. Os canais passeiam pelo dial, alternando entre a tela chuviscada e o sinal das emissoras de canal aberto. O som oscila - às vezes baixinho, quase inaudível, e o térreo fica pacífico e silencioso como ficara na missa de sétimo dia. Dá para escutar a brisa chacoalhando as folhas das árvores, os pássaros batendo as asas, os miados distantes dos gatos de rua e os motores dos veículos roncando ao longe. Dá quase para pensar direito. Outras vezes, porém, é ensurdecedor e ele recolhe-se de volta à varanda para fumar com o fone de ouvido no máximo, escutando barulhos de chuva no aplicativo do celular enquanto a perna direita convulsiona feito peixe respirando fora d´água. Sim, é como das últimas vezes. Só que mais de perto é diferente. Não, de novo não. Por favor, não. Ele decide subir, porque precisa. A respiração encurta, breve e covarde. Tão logo escala o primeiro degrau, a meros 20 centímetros de altura, os sentidos indicam que está úmido demais. Puxa o ar pela boca, mas o oxigênio não vem. O ar é denso, como se o telhado e o forro inexistissem e garoasse dentro da casa. Ele se pega pensando que uma atmosfera alienígena deve ser desse jeito. A partir do segundo e do terceiro degraus, a sensação é de que os pulmões estão embolorando - mas não é hora de desistir. Não quando ele sabe que a chave do carro está brilhando em cima da cômoda, basta entrar e pegar. E depois dar o fora dali para sempre. Por que não? No hall comum aos quatro dormitórios da casa, o piso está molhado e escorregadio (será que a pia transbordou?). O quarto do casal é o único iluminado, contrastando com o breu do restante do andar. É impossível não enxergar a luz retilínea projetada no chão, em 45 graus, a partir da porta aberta pela metade. Ir ao encontro dela, contudo, exige imprudência. Os chinelos deslizam sem aderência, mas não é isso que o incomoda. A falta de equilíbrio chega a ser bem-vinda, distrai do medo. Depois de alcançar o batente, ele apoia-se na guarnição da porta por um instante e espia. Um filme americano de época está passando na televisão de tubo. É um faroeste de cowboy em preto-e-branco. O mocinho saca a arma com destreza, mas o bandido é mais rápido e mortal. Bang! Um tiro. Único, simples e certeiro. E o duelo termina. O bandido ajoelha-se ao lado do mocinho agonizando, mas o diálogo dublado é entrecortado pela recepção fraca com chiados terríveis. Alargando a abertura da porta apenas o bastante, ele entra, pé ante pé, os pelos dos braços e das pernas arrepiados. A cada passo, sente um pulso de eletricidade percorrendo os músculos, tensionando-os como na propaganda do aparelho de exercícios abdominais que Rebeca comprou e esqueceu encostado no armário. A chave, coberta por gotículas de água, cintila sobre o criado-mudo. É preciso dar a volta na cama para alcançá-la, e ele o faz sem por um segundo sequer tirar os olhos do volume oculto debaixo das cobertas. A atração que o corpo exerce é irresistível, feito um buraco negro que deforma e suga toda a luz ao redor. O odor pútrido enjoa, mas é tênue, e ele logo se acostuma, como se fosse tabaco. Espanta-se de como o quarto e a cama estão ainda mais úmidos do que o resto da casa. Talvez o mofo houvesse tomado conta também do cadáver debaixo das cobertas e o estivesse consumindo no lugar das bactérias, dos fungos e dos organismos saprófitos. Posso vê-la, falta pouco agora. São três as chaves fixadas no chaveiro metálico da Torre Eiffel que a esposa comprou na França – do carro, da casa financiada em um condomínio na capital e da sala comercial que divide com o cunhado. Elas tilintam em sua mão fria e suada. Hipnotizado, Roberto observa o volume disforme embalado dos pés à cabeça sob o cobertor xadrez. Continua afundando o colchão. Soluçando seco, com um nó na garganta do tamanho do maço de Marlboro, ele recua devagar de volta à porta, em marcha- ré. Não quer perdê-la de vista. Seus olhos arregalados estão vermelhos; ardem como se os tivesse aberto dentro de uma piscina de cloro. Escorregando as mãos pela parede rebocada, encontra o interruptor e leva um choque inesperado ao agarrar-se na fiação exposta. Grita, de susto, mas não faz mal. Finalmente, a mulher e o quarto repousam na escuridão e o inferno, agora, talvez acabe. Ele recolhe a mão esquerda instintivamente e examina os dedos calejados, a palma sulcada, checando se a descarga provocara algum dano - como se fosse possível. A pele está seca, chupada, como a do filho ficava quando era criança. O garoto esquecia da vida no mar, brincando no rasinho com as bóias infláveis coloridas nos braços, ignorando os chamados da mãe. Por entre os dedos, Roberto enxerga o quarto apagado e estremece. O coração para de bater, as vias aéreas obstruem e o ar para de vir por completo. Uma figura, em pé no canto do cômodo, o encara. Apoiada na junção entre as paredes, é branca e difusa como o mofo nos armários. A sua forma, sem traços discerníveis, é humana tal qual um desenho infantil. Os braços finos perfilados junto ao corpo; as pernas compridas e magras tremendo de antecipação, como se estivessem prestes a pular sobre ele. Não tem nem olhos, nem boca, nem nariz, mas tem cabeça: um círculo branco e translúcido equilibrando-se sobre o pescoço retilíneo. Aquele círculo, imóvel e inexpressivo, de algum modo olha para ele. A televisão com chuviscos preto-e-branco emudece, mas é como se desse para continuar ouvindo o chiado; como se os ruídos partissem, agora, da própria criatura. Talvez fosse ela quem controlasse a televisão e as luzes – e, talvez, ela também o estivesse controlando. Enquanto ele a contempla, imagens de violência, de medo e de prazer lhe vêm à mente, explícitas e perturbadoras, mas não há repulsa. Há vontade, há fissura – mas repulsa, não. Ele não pode ceder de novo, precisa resistir. Aproveitando-se da débil luz branca que emana da criatura, ele enxerga a cama. Nuances. Da cabeceira de madeira ornamentada, dos pedaços do colchão revelados por entre os espaços do lençol repuxado. O corpo continua ali, do jeito que ele havia deixado: coberto, deitado de lado, insinuado por debaixo do cobertor com os joelhos sobrepostos e flexionados. A mão direita descansa sobre a esquerda, em uma postura quase angelical. Se Rebeca continua ali, é porque a figura em pé é outra coisa. Roberto afasta-se, de costas, até escapar do contato visual com o quarto e a entidade. Patina sobre o chão liso e depois salta os degraus escada abaixo,de três em três. Após descer as escadas, sem perder tempo, deixa a sala para trás e escancara a porta principal. Sente um bafo frio enregelar a nuca, mas - só pode ser - imaginação. Como você é impressionável, amor! * * * Lívido, sentado no banco do motorista, Roberto gira a chave no contato com toda a força, até entortar. O carro é valente; tosse, engasga, mas não dá partida. A bateria arriou, faz semanas que não liga. Trancado no interior quente e seco do veículo, acende um cigarro. Está seguro ali dentro? Não faz diferença, precisa fumar. Tragando a fumaça com força da boca para o pulmão, sente um barato adolescente. É bom estar ocupado com algo, especialmente um cigarro. Suas mãos param de tremer, ele tenta dar a partida novamente com a chave empenada, mas desta vez o veículo está morto. Preciso ir embora daqui. Através do para-brisas, Roberto contempla a casa devassada. Consegue enxergar o chão imundo, a bagunça no sofá e a mesa de jantar com pratos sujos empilhados. Como tê-los de volta? Ao terminar o cigarro, amassando-o contra a logomarca no centro do volante, ele desce do carro alemão. Uma corrente de ar frio sopra de dentro da residência, assobiando, e ele sabe que ela é sobrenatural. Dá para enxergar a entidade sob o batente da porta de entrada; magra, quase opaca, exibindo novos traços em sua constituição, mais encorpados e elaborados. Ele sente o jato de urina atravessar a cueca e encharcar a bermuda. A porção do líquido não absorvida pelos tecidos escorre pela perna, um fio quente e amarelo. Ele pode jurar que ela esboça um sorriso - uma linha curva e fina, suspensa em seu rosto circular. Ele pode ouvi-la; uma gargalhada infantil, inocente, que ressoa de dentro da casa. Roberto abre o portão, ofegante, e corre desajeitado pela rua de paralelepípedos na direção da praia. A neblina pesada paira no nível dos postes de energia, densa e faminta. Os vizinhos mais próximos estão fora da cidade, o bairro está semideserto. Os poucos moradores nativos dormem, não podem socorrê-lo. Duas quadras extensas o separam da faixa de areia branca mal iluminada pelos holofotes da prefeitura; ele as percorre em disparada, sem olhar para trás, o coração galopando como se tomasse impulso para saltar através do peito. Quando alcança a praia, Roberto desaba, exausto, sugando o ar pela boca. Está em péssima forma física devido ao sedentarismo e ao cigarro. Inala com dor - agulhas perfurando a traqueia, afundando cada vez mais. Os pulmões enchem pela metade e esvaziam por inteiro. * * * Ajoelhado, sujo de areia, ele começa a lembrar do filho chegando escondido da balada, sem avisar. De como ele próprio estava alucinado na sala de estar depois de brigar com Rebeca. Do copo de whisky metade vazio no descansa-copos redondo de cortiça; da pistola Taurus dançando de uma mão para a outra na madrugada silenciosa. Aquilo o acalmava. Lembra do garoto, o filho- da-puta do garoto, eu te amo meu filho, forçando a janela da cozinha para entrar em casa; por que não me contou? Três tiros, foram. Estava escuro, mal dava para enxergar a bancada da cozinha. O primeiro estilhaçou a janela. O segundo perfurou o peito e alojou na cavidade torácica. O coração bombeava sangue no piso gelado quando ele atirou de novo, no rosto, para garantir. Foi como ele ensinava aos amigos. Se o ladrão entra na tua casa, primeiro atira, depois pergunta. Vagabundo não pede licença para entrar, ou pede? A bermuda com manchas de urina está granulada de areia; o agasalho e a camiseta por baixo, idem. Pela primeira vez, ele chora, estirado ao lado de resquícios de um castelo que a maré derrubou. Ele fita o mar, o horizonte longínquo, azul-negro. A vista alcança um ponto de luz esvaindo - um barco pesqueiro, ou um petroleiro. Ele fita o mar de novo, a figura emerge naquele negrume, teletransportada do quarto úmido direto para o oceano. Não tem gênero, não tem face, e ele pensa que ela morou o tempo todo no sobrado da casa de veraneio. A figura aproxima-se em meio às ondas que chegam na praia. A cabeça, o tórax, os braços alongados, os membros desajeitados não param de vir à tona, devagar, saboreando. Ele pensa na esposa, nela em prantos. Rebeca nunca se calava. Eu te disse, Roberto, eu avisei! A depressão inundava a pobre um dia depois do outro, constante feito nascente de rio. O corpo dela definhou, não queria sair do quarto para nada, muito menos para comer. A culpa é sua, Roberto! Acontece que ela não calava, apontava no seu rosto os dedos finos com o esmalte descascando, agredindo-o. Socos, tapas, gritos, palavras. Ele a odiava, e justamente porque ela tinha razão. A culpa era dele. Ela silenciou com o travesseiro mofado mergulhado no rosto. Durou pouco, dois minutos, se tanto. O suor dele gotejou na fronha manchada do jogo de cama descartado pelo tio. Imóvel, a figura aparece completa no raso da praia. Desta vez, com um horrendo esboço de rosto jovem e desfigurado; a boca semiaberta, os olhos vermelhos vidrados, brilhantes. Roberto sente- se anestesiado. Ele estende a mão, em súplica. Balbucia palavras, grunhidos inaudíveis. Ela teria dado meia volta, mas a sua constituição não permitia. A figura simplesmente volta, como veio; plana, feito um desenho de criança. Vem brincar papai!, ela chama, mas aquilo, talvez ele não saiba, não é o seu filho. Ele a segue mar adentro, aliviado, submergindo nas águas do atlântico sul. O AUTOR Francisco Scattolin, 38, é natural de Sorocaba. A Entidade é o seu segundo conto lançado na Amazon. Escreveu os romances Armadilha do Tempo (2016) e De Volta à Cidade do Vampiro (2013), e atualmente divide as obras literárias com o trabalho de auditor público. Tenista frustrado, é corinthiano e escreve à base de café de máquina. CONTATOS Obrigado por ter concluído a leitura deste conto. Se possível, gaste um tempinho para avaliá-lo no site da Amazon. As avaliações ajudam a aumentar a visibilidade das obras, além de contribuírem para que as próximas histórias sejam sempre melhores. Sem contar o principal: a opinião sincera dos leitores é uma alegria imensa para qualquer escritor. : ) E, ah, caso você também seja um(a) escritor(a), pode me mandar uma mensagem para conhecer o serviço de leitura crítica de originais. Será um prazer ajudá-lo(a) em suas obras. Instagram: @fscattolinf Email: fscattolin@gmail.com OUTRAS OBRAS DO AUTOR Armadilha do Tempo Ao mudar-se para a unidade 91 do Cosmopolitan, o protagonista é envolvido em uma fantástica e improvável viagem no tempo: quando sai à rua, ele volta duas décadas no passado. O apartamento, porém, continua no presente, plenamente funcional. O processo parece condenado a repetir-se indefinidamente. O que você faria caso tivesse acesso aos segredos do passado? Se um evento extraordinário lhe concedesse a oportunidade de vivê-lo novamente? Caso fosse obrigado a alternar entre passado e presente? São dessa natureza os questionamentos do protagonista enquanto tenta escapar da armadilha do tempo. Libertar-se irá demandar investigações, trabalho conjunto, sorte e paixão. Nem todos estarão dispostos a ajudá-lo. Há, no passado, alguém à espreita. À espera da sua chegada. Armadilha do Tempo liderou os rankings de venda na Amazon nas categorias “Mistério e Suspense” e “Viagem no Tempo”, chegando a ocupar a 31ª colocação geral na loja Kindle. Foi, também, sucesso de crítica nos canais dos youtubers Tatiana Feltrin, Victor Almeida e Isabella Lubrano. Compre aqui: Armadilha do Tempo na Amazon https://www.amazon.com.br/Armadilha-do-Tempo-Francisco-Scattolin-ebook/dp/B01N1LWWY5/ref=sr_1_1?dchild=1&qid=1594070941&refinements=p_27%3AFrancisco+Scattolin&s=digital-text&sr=1-1&text=Francisco+Scattolin O Stalker e a Patricinha Desde antes da epidemia, o desempregado Augusto passava os dias obcecado por Luanna, a jovem vizinha do prédio ao lado que mora com os pais. Confinados, a relação platônica vem à tona quando ela o surpreende tossindo na janela durante a madrugada e os dois conversam pela primeira vez. Ela não sabe que ele aespiona. Ela quer salvá-lo. Entre o pânico da doença e o terror da invasão de privacidade, qual dos dois estará realmente a salvo? 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