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O Racismo Invisível: uma introdução à discriminação por preconceito implícito1 MARMELSTEIN, George. O Racismo Invisível: uma introdução à discriminação por preconceito implícito. In: MATIAS, João Luís Nogueira (org.). Direitos Fundamentais na Contemporaneidade: entre as esferas públicas e privadas.1 ed.Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2017, p. 119-132 Por George Marmelstein Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará Professor de Direito na UNI7 - Centro Universitário 7 de Setembro Juiz Federal no Ceará RESUMO: Muitas ações humanas são influenciadas por fatores que estão fora do radar da consciência, inclusive por preconceitos inconscientes e involuntários. A cor da pele, o gênero, as características étnicas e orientação sexual podem funcionar, em determinadas circunstâncias, como “etiquetas”, afetando nossos julgamentos, independentemente de nossas crenças e valores. Este fenômeno tem sido designado de preconceito implícito, fenômeno que constitui o objeto principal do presente estudo. Serão analisadas algumas noções introdutórias sobre os efeitos jurídicos da discriminação por preconceito implícito, apresentando as principais pesquisas desenvolvidas em torno desse tema. PALAVRAS-CHAVE: Direito da Antidiscriminação; Igualdade; Preconceito Implícito; Discriminação 1 Introdução Há cerca de um ano, descobri que tenho tendências racistas. Para usar uma expressão mais precisa, tenho uma leve preferência automática por pessoas brancas. Sendo ainda mais específico, meu cérebro associa com mais facilidade expressões positivas – como paz, felicidade ou amor – com rostos de pessoas brancas do que com rostos de pessoas negras. Em contrapartida, associo mais rapidamente palavras negativas – como 1 Texto-base de palestra proferida durante a V Jornada Luso-Brasileira de Direito, proferida em outubro de 2016, em Lisboa-Portugal. violência, guerra ou medo – com rostos de pessoas negras. Essa descoberta ocorreu depois que fiz o Teste de Associação Implícita (em inglês: IAT - Implicit Association Test), desenvolvido por pesquisadores de Harvard, que serve para medir o nível de preconceito implícito das pessoas em relação a determinados grupos estigmatizados, como negros, mulheres, homossexuais, estrangeiros etc. (sobre o teste: GREENWALD, NOSEK & BANAJI, 2003). Tão logo recebi o resultado, fiquei em choque e decepcionado comigo mesmo. Afinal, eu não quero ser racista. Eu abomino o racismo. Não suporto pessoas racistas. Acredito firme e sinceramente que todos merecem ser tratados com igual respeito e consideração, e empenho minha vida no magistério e na magistratura para defender esse ideal. O problema é que a minha vontade consciente nem sempre está no controle da situação. As ações e decisões humanas são influenciadas por fatores que estão fora do radar da consciência. Por conta disso, a minha crença na igualdade de todos os seres humanos talvez não seja suficiente para me impedir de agir, inconscientemente, de forma discriminatória. Hoje, tenho consciência da existência do preconceito implícito e espero tentar convencê-lo de que, infelizmente, o problema não é só meu. É bastante provável que você também tenha preferências raciais em favor dos brancos, ainda que não tenha consciência disso. A título de curiosidade, esse tipo de preconceito está presente em cerca de 80% de pessoas brancas e até mesmo em cerca de 50% de pessoas negras (ARONSON & OUTROS, 2015; MYERS, 2014). Sim: na nossa sociedade, o preconceito implícito é a regra e atinge até mesmo as vítimas do preconceito. Pretendo, ao longo desta apresentação, explicar o que é o preconceito implícito, tentando demonstrar que ele está em praticamente todas as nossas decisões, e como isso pode gerar comportamentos discriminatórios. Tenciono também ensaiar algumas ideias sobre como o direito pode ser mobilizado para combater a discriminação por preconceito implícito, indicando algumas fontes de pesquisa que podem ser úteis à compreensão do problema. A ideia é tentar desenvolver um sistema de responsabilidade civil capaz de abarcar a discriminação por preconceito implícito. Esse tema é interessante, pois exige repensar o papel da consciência e da intenção do agente na caracterização do ato ilícito, o que implica trazer para o direito diversas contribuições das ciências cognitivas e comportamentais. 2 Associações Implícitas como Fonte do Preconceito O ponto de partida para compreender o fenômeno do preconceito implícito é verificar como nosso cérebro processa informações de forma inconsciente. Para isso, vale analisar uma experiência meio inusitada, que analisada o funcionamento cerebral durante uma degustação de vinhos (PLASSMAN e OUTROS, 2007). Em um ambiente cientificamente controlado, algumas pessoas foram convidadas para degustar e avaliar dois novos vinhos que seriam lançados no mercado. Seria uma degustação às cegas, ou seja, todas as informações relevantes foram ocultadas: o produtor, a região, a safra, o tipo de uva etc. A única informação que foi propositalmente indicada foi o preço de venda. Na primeira garrafa, foi colocada uma etiqueta informando que o vinho custaria 45 dólares. Na segunda garrafa, a etiqueta indicava que o vinho custaria 5 dólares. Não houve qualquer surpresa quanto ao resultado da avaliação. Como esperado, o vinho mais caro recebeu uma nota média de 3,4, numa escala de 1 a 5, e o vinho mais barato foi avaliado em 2,3. Ocorre que o conteúdo das duas garrafas era absolutamente idêntico, ou seja, o vinho era o mesmo em ambas as garrafas. A única diferença era a etiqueta. O resultado demonstra que os degustadores foram sugestionados pelo preço, algo relativamente previsível, já que quem vive em um mundo capitalista sabe que as pessoas são influenciáveis e que o preço dos produtos exerce um enorme poder sobre nossas preferências de consumo. Mas a grande surpresa dessa experiência ocorreu quando se verificou, a partir da leitura do mapeamento cerebral das pessoas que participaram da degustação, que, de fato, as percepções sentidas pelos degustadores variaram conforme a garrafa, apesar de o líquido ser exatamente o mesmo. Por incrível que pareça, foram duas experiências distintas, e o resultado da avaliação, em favor do vinho supostamente mais caro, traduziu as atividades sensoriais sentidas. Ao analisar o funcionamento do cérebro antes, durante e depois degustação, verificou-se que as conexões cerebrais relacionadas ao prazer foram mais intensas quando se degustou o vinho de 45 dólares. Por outro lado, quando se degustou o vinho de 5 dólares, eram as áreas do cérebro relacionados à aversão que estavam em atividade. A principal lição que pode ser extraída dessa experiência é esta: os julgamentos que realizamos se baseiam, muitas vezes, em associações implícitas que existem em nossas mentes e são automaticamente acionadas mesmo que não tenhamos consciência disso. Associamos o preço do vinho à sua qualidade. Por isso, uma mera etiqueta indicando o preço pode colocar nosso cérebro em estado de alerta, para criar expectativas positivas ou negativas, conforme o caso. Identificaremos com mais facilidade as qualidades positivas de um vinho de 200 reais e deixaremos de perceber alguns defeitos que não são esperados em um vinho tão caro. Por outro lado, se o vinho custar 20 reais, serão os defeitos que se destacarão e eventuais qualidades não serão percebidas. Nosso cérebro preencherá as lacunas informativas com os esquemas mentais embutidos em nossas mentes, tendendo a confirmar as expectativas previamente criadas. A mesma lógica se aplica à formação dos estereótipos. A cor da pele, ou o gênero, ou características étnicas ou orientação sexual, funcionamcomo essas etiquetas ou esquemas mentais automáticos e são capazes de afetar nossos julgamentos, mesmo que não tenhamos consciência disso. As categorizações e os estigmas de grupo, socialmente construídos ao longo de séculos de dominação branca, heterossexual e masculina, fazem parte dos esquemas mentais de grande parte da população mundial, mesmo que, no nível da consciência, muitos abominem o preconceito. 3 Efeitos Discriminatórios do Preconceito Implícito Um dos métodos mais conhecidos para demonstrar a ocorrência do preconceito implícito é o chamado Teste de Associação Implícita, que é uma forma rudimentar de medir algumas preferências implícitas. O teste funciona como um jogo, em que temos que associar, no menor espaço de tempo, algumas palavras com determinadas categorias de pessoas. Ao final, é possível ter uma noção do nosso nível de preferências implícitas a depender da facilidade ou velocidade com que associamos os pares de palavras. Mas há outros testes menos abstratos, como por exemplo um que foi desenvolvido para medir o preconceito implícito de policiais, conhecido como Police Office Dilemma (CORREL & OUTROS, 2002). Neste teste, os policiais devem participar de um jogo virtual em que algumas situações dramáticas são simuladas e, em um curto espaço de tempo, devem decidir se atiram ou não em alguns suspeitos que ameaçam a sua vida ou a de outras pessoas. As situações são bem semelhantes entre si, mas, em algumas cenas, o suspeito é branco e, em outras, é negro. O jogo mede o tempo de reação do jogador para verificar sua capacidade de distinguir situações em que deve atirar ou não. Sem surpresa, o jogo demonstra que as pessoas têm mais facilidade de atirar quando o suspeito é negro, inclusive ao ponto de cometer erros de avaliação, como atirar em uma pessoa negra que está segurando um celular e não uma arma, por exemplo. No mesmo cenário, quando o suspeito é branco, poucas pessoas cometem o mesmo erro. Mas até aqui ainda estamos caminhando por terrenos meio abstratos, de simulações e jogos virtuais e de computadores, apesar de serem situações de vida ou morte que muito provavelmente podem ter correspondência com o mundo real. Obviamente, o preconceito implícito é sentido na pele por muitas pessoas no dia a dia, seja em situações mais banais, por meio de microexpressões faciais ou palavras de desprezo ditas involuntariamente, seja em situações mais sérias, como em uma abordagem policial, uma entrevista de emprego ou em um processo judicial (SUE & OUTROS, 2007). Já há um amplo conjunto de estudos realizados para comprovar a ocorrência da discriminação por preconceito implícito em muitas áreas da vida (STAATS & OUTROS, 2015). Dentre as várias pesquisas que poderiam ser mobilizadas para ilustrar a ocorrência real do preconceito implícito, há uma que é impressionante por vários motivos. Primeiro, porque se trata da saúde humana e a medicina, um campo em que, em princípio, a cor da pele não deveria influenciar o tratamento. Segundo, porque envolve crianças, um grupo vulnerável que ninguém gostaria conscientemente de discriminar. Terceiro, porque envolve situações de dor, ocasião em que a empatia humana deveria funcionar para acionar os mais básicos instintos de cuidado. Eis a pesquisa (GOYAL e OUTROS, 2015): foram analisados todos os atendimentos realizados com crianças que foram diagnosticadas com apendicite entre os anos de 2003 a 2010 em um hospital pediátrico nos Estados Unidos. Os pesquisadores descobriram que, quando uma criança negra chegava ao hospital se queixando de dor moderada, poucas recebiam analgésicos não-opióides, que são mais baratos, e menos ainda recebiam analgésicos opióides, que são mais caros. Ou seja, a maioria das crianças negras não recebia qualquer tipo de remédio para abrandar a sua dor. Curiosamente, se a criança fosse branca, havia mais possibilidade de receber analgésico não-opióide ou então de receber analgésico opióide, embora a queixa fosse a mesma, ou seja, uma dor moderada. Por sua vez, quando se tratava de criança negra se queixando de dor intensa, a maioria recebia analgésico não-opióide e poucas recebiam analgésico opióide. As crianças brancas que se queixavam de dor intensa, por outro lado, recebiam, em sua maioria, analgésico opióide, que é o tratamento mais eficiente, embora mais caro. Há, pelo menos, duas explicações possíveis para esse fenômeno: primeiro, pode haver uma menor empatia entre os médicos e as crianças negras, algo que foi demonstrado inclusive por meio de exames de mapeamento cerebral feito em alguns médicos. A outra explicação decorre de uma associação implícita que costuma existir entre a cor da pele e a capacidade de sentir dor. Talvez pelo histórico de violência e de imagens de negros “levando chicotadas e porradas” as pessoas criem uma percepção de que as pessoas negras são mais capazes de suportar a dor do que os brancos, e isso pode levar a uma diferença de tratamento para dor, em função do que está sendo chamado de superhumanização dos negros. É como se estes fossem portadores de algum poder especial que os torna imune à dor. Seja como for, o quadro é assustador, pois gera um tratamento desigual e injusto que afeta o ser humano em um aspecto crucial da humanidade, que é a capacidade de sentir dor. 4 Tipos de Preconceito Implícito Além da superhumanização das pessoas negras, já foram catalogados vários tipo de preconceito implícito. Tem-se, por exemplo, a ameaça de estereótipo, que é um fenômeno que ocorre em função da pressão que determinados grupos estigmatizados sentem quando são comparados, em testes ou competições com outras pessoas, o que pode levar a uma piora no desempenho, derivada da ansiedade, que confirma a expectativa de inferioridade (STEELE & ARONSON, 1995). Vários estudos demonstram que o resultado de testes de inteligência ou de conhecimento pode variar conforme a ameaça de estereótipo é ou não ativada. Por exemplo, quando negros ou mulheres fazem testes e são informados de que o objetivo do teste é fazer uma comparação de inteligência com homens brancos, o desempenho geralmente é pior do que quando tal fato não é informado. Em situações assim, ocorre aquilo que os psicólogos sociais denominam de profecias autorrealizadoras: "as pessoas têm uma expectativa de como outra pessoa é, o que influencia como agem em relação a ela, fazendo com que ela se comporte de acordo com a expectativa original das pessoas, tornando as expectativas realidade" (ARONSON & OUTROS, p. 284). Outro exemplo de preconceito implícito deriva do chamado racismo aversivo, que surge a partir do desconforto mental, ainda que involuntário, que algumas pessoas sentem quando estão na presença de membros de grupos estigmatizados. Isso pode levar, por exemplo, um professor a prejudicar involuntariamente um aluno pelo fato de ele ser membro de uma minoria, tratando-o com mais severidade, desmotivando- o ou ignorando os seus méritos, o que pode prejudicá-lo pelo resto da vida. Ou pode levar uma pessoa negra a ser preterida em uma entrevista de emprego em razão do racismo aversivo do entrevistador, que torna o ambiente mais hostil e tenso, com pouca troca de palavras, distanciamento e encerramento prematuro, prejudicando o desempenho do entrevistado. Ou então pode levar um juiz a diminuir a credibilidade do depoimento de uma testemunha ou até mesmo a ser mais rigoroso ao julgar um réu, influenciado inconscientemente por preconceitos implícitos. Existem muitos estudos que comprovam a existência do racismo aversivo em diversas áreas da vida (DOVIDIO & GAERTNER, 2000; ARONSON & OUTROS, p. 284). Em todos esses casos, verifica-se a ocorrência daquilo que se pode chamar de injustiça epistêmica e hermenêutica, que pode ser conceituada como um tratamento injusto na avaliação de comportamentos e conhecimentosproduzidos por determinadas pessoas (FRICKER, 2007)2. Por conta disso, haverá uma facilidade de percepção e memorização de erros praticados por grupos estigmatizados, ou então uma dificuldade de percepção e memorização dos seus acertos, de modo a confirmar os esquemas mentais implícitos. Vale citar outra pesquisa, realizada no ambiente da academia jurídica, que ilustra bem esse fenômeno (REEVES, 2014). Foi distribuído para oitocentos alunos de uma faculdade de direito norte-americana um determinado artigo científico, que deveria ser 2 Outra manifestação de injustiça epistêmica pode ocorrer em função do racismo cultural, em que as realizações de outros grupos são avaliadas com base em critérios estabelecidos de acordo com os valores do grupo dominante, como se estes fossem culturalmente superiores. Além de dificultar a manifestação de diferenças culturais e empobrecer a pluralidade epistemológica, essa modalidade de racismo pode levar a uma desvalorização das realizações de um grupo estigmatizado e ao isolamento daqueles que não ajustam seus comportamentos em conformidade com as expectativas do grupo dominante (sobre isso: JONES, 1973, pp. 5/6). avaliado com base em critérios objetivos previamente estabelecidos. Os alunos deveriam identificar eventuais erros gramaticais, erros técnicos e factuais e a partir daí atribuir uma nota ao texto. Para metade dos alunos, foi indicado que o autor do texto era um advogado negro. Para a outra metade, foi dito que o autor seria um advogado branco. O resultado foi o seguinte: o texto escrito pelo advogado branco recebeu uma nota de 4,1 (de um total de 5) e o do advogado negro 3,2. Além disso, os alunos identificaram muito mais erros gramaticais, técnicos e factuais no texto escrito pelo advogado negro, apesar de ser exatamente idêntico ao texto escrito pelo advogado branco. É tentador comparar essa pesquisa com a experiência do vinho, pois há uma clara semelhança entre ambos os fenômenos. A única diferença é que a etiqueta “de qualidade” não é o preço e sim a cor da pele. O cérebro humano se prepara para enxergar as qualidades do texto escrito por um advogado branco, e os defeitos de um texto escrito por um advogado negro. Isso demonstra que critérios objetivos de avaliação nem sempre são tão objetivos assim, pois a lente do avaliador pode estar contaminada com preconceito implícitos. 5 Considerações finais: o papel do direito Seria possível continuar com vários exemplos e pesquisas semelhantes, mas, para finalizar, é suficiente apenas levantar algumas possibilidades de investigação jurídica desse fenômeno. Em primeiro lugar, é possível estudar os impactos do preconceito implícito na própria atividade do jurista. Existem estudos muito interessantes sobre como os policiais, delegados, promotores, advogados, juízes, jurados, testemunhas podem ser afetados por preconceitos implícitos e como isso pode gerar discriminação contra determinados grupos estigmatizados praticada pelo próprio sistema de administração de justiça (KANG & OUTROS, 2012). Além disso, é tentador pensar em incorporar o conceito de preconceito implícito no direito da antidiscriminação. É instigante tentar desenvolver um sistema de responsabilidade civil decorrente da discriminação por preconceito implícito. Esse tema é complexo, pois exige repensar o papel da consciência e da intenção do agente na caracterização do ato ilícito. De um modo geral, os autores que têm escrito sobre o tema têm defendido um modelo de responsabilização próximo à ideia de negligência para alcançar também a discriminação por preconceito implícito. Assim, quando o agente não adota determinadas cautelas para evitar a influência do preconceito implícito, seria possível presumir que os motivos de um tratamento discriminatório não justificado sejam baseados em preconceitos implícitos, a depender das circunstância do ato (KRIEGER & FISKE, 2006; FAIGMAN & OUTROS, 2008; MCGINLEY, 2000). Há ainda um debate sobre a prova do preconceito implícito. Afinal, estamos lidando com um tipo de influência que não é tão visível, já que se manifesta fora do radar da consciência. O uso de ferramentas científicas para detectar e caracterizar o preconceito implícito também pode ser um campo muito promissor nesse debate, embora seja necessário reconhecer as suas falhas e limites, o que exige um olhar crítico sobre a força probatória (para fins judiciais) desse método. Os autores que já se dedicaram ao tema são muitos céticos quanto ao uso judicial de testes de associação implícita ou mapeamento cerebral como prova do preconceito implícito, por razões que não vem aqui mencionar (JOLLS, 2007; KANG E OUTROS, 2012; CERULLO, 2013). Finalmente, é preciso desenvolver deveres de cuidado e de prevenção que poderiam derivar da obrigação de combater o preconceito implícito. Há vários esforços que estão sendo realizados nesse sentido, que, sem dúvida, é um dos pontos centrais da discussão. Há um certo consenso de que é possível minimizar a influência do preconceito implícito por meio de algumas medidas simples de cautela. Um exemplo interessante ocorreu nos anos 70/80, quando houve uma imensa reviravolta no processo de seleção de músicos para as orquestras sinfônicas. Em uma determinada seleção de músicos para uma importante orquestra sinfônica europeia, uma candidata foi desclassificada e alegou que foi preterida por ser mulher. Na sua ótica, ela seria mais qualificada do que outros músicos homens que teriam sido escolhidos na prova prática, que consistia em uma apresentação presencial para um grupo de jurados. Por força de uma ordem judicial, foi determinado que a seleção fosse repetida, mas dessa vez a audição fosse às cegas, ou seja, os avaliadores não poderiam ver se o músico era homem ou mulher. Nesse novo cenário, a candidata venceu os demais músicos homens, e, a partir daí, a audição às cegas passou a ser a regra nos processos de seleção de músicos nas principais orquestras. Essa simples mudança no arranjo decisório acarretou um aumento de 30% da participação de mulheres nas orquestras sinfônicas em várias partes do mundo (GOULDIN & ROUSE, 2000). Atualmente, várias grandes empresas, como a Google ou a Microsoft, possuem programas de treinamento de seus funcionários, inclusive disponibilizados gratuitamente na internet, tratando especificamente do combate ao preconceito implícito. Também já existem, nos Estados Unidos, cursos montados para juízes, policiais e outros servidores públicos, visando minimizar os efeitos desse fenômeno nos atos decisórios oficiais. Para concluir, é preciso reconhecer que o primeiro passo para combater o preconceito implícito é ter consciência da sua existência. Seria muito interessante que todos fizessem o Teste de Associação Implícita, a fim de verificar a presença ou não de preferências implícitas e automáticas. Referido teste é gratuito, simples, rápido e está disponível em várias línguas, até mesmo em português. Talvez o resultado não seja muito agradável para o ego. Mas tenho certeza de que será uma experiência que mudará para sempre a sua forma de ver o mundo e interagir com outras pessoas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARONSON, Elliot, WILSON, Timothy & AKERT, Robin. Psicologia Social. 8a ed. São Paulo: Grupo Gen, 2015 CERULLO, Christopher. Everyone’s a Little Bit Racist? Reconciling Implicit Bias and Title VII. In: Fordham Law Revew 127, 2013 CORREL, Joshua & OUTROS. The Police Officer’s Dilemma: Using Ethnicity to Disambiguate Potentially Threatening Individuals. In: Journal of Personality and Social Psychology vol. 83, n. 6, 2002, pp. 1314–1329 DOVIDIO, John F. & GAERTNER, Samuel. Aversive Racism and Selection Decisions: 1989 and 1999. In: Psychological Science, julho, 2000, pp. 315-319 FAIGMAN, David& Outros. A Matter of Fit: The Law of Discrimination and the Science of Implicit Bias. In: Hastings Law Journal. 59, 1389, 2008 FORD, Richard Thompson. 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