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MITO, MEMÓRIA E CIÊNCIA

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17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos
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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS
HISTÓRICOS
CAPITULO 1 - ENTRE MITO, MEMÓRIA E
CIÊNCIA: ONDE PODEMOS SITUAR A
HISTÓRIA?
Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva
INICIAR
Introdução
Você consegue, a partir dos conhecimentos que já possui, pensar algumas
diferenciações entre mito, memória, ciência e História? Quais seriam as
especificidades da História? De um modo geral, podermos dizer que o conhecimento
histórico não coincide com nenhuma dessas ideias, mas se relaciona o tempo todo
com elas. Será que mito e memória são sempre histórias falsas? Durante muito
tempo a História foi bastante ligada à ideia de verdade, portanto, uma necessidade
de se escrever o passado com base em fatos comprovados. No entanto, com o passar
do tempo, esse modo de entender a História foi dando lugar a novas formas de
interpretação. Assim, o imaginário, a memória, as fábulas, os mitos e as religiões,
dentre outros, se tornaram tão importantes para o pensamento histórico quanto os
fatos verificados em fontes. Então a História deixa de ser ciência? Não
necessariamente. Ainda que esse seja um ponto em discussão, uma vez que, alguns
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teóricos afirmem que a História é Arte ou uma narrativa literária, os historiadores, de
modo geral, produzem conhecimentos pautados em metodologias rigorosas,
pesquisas aprofundadas, levantamento de diversas fontes e leitura teórica crítica.
Em resumo, tanto o mito, quanto a memória e a ciência são referências para a
produção do conhecimento histórico. A partir de agora, poderemos nos aprofundar
um pouco mais nessas relações. Acompanhe com atenção e bons estudos!
1.1 Mito e História: aproximações e
afastamentos
Vimos na Introdução que a História não equivale ao mito, mas tem traços de
aproximação e distanciamento com o mesmo. Por isso, a partir de agora,
avançaremos um pouco mais na diferenciação entre essas formas de se contar uma
história.
1.1.1 O que é mito?
Podemos dizer que o mito tem múltiplos sentidos, dependendo da abordagem, da
época, da sociedade que o produz, dentre outros fatores. Por isso, a compreensão
do conceito requer aprofundamento em algumas questões. O que é um mito? Ele é
uma invenção? Como ele se relaciona com a História? Tentaremos, no decorrer
desses tópicos, responder essas perguntas. 
Durante muito tempo, pensou-se que a filosofia teria substituído o mito como forma
de explicação do mundo. A chamada passagem do mytho (mito) ao lógos (razão)
revela como nosso modo de conhecer e explicar a realidade abandonou as
narrativas mitológicas para se ancorar em explicações empíricas e/ou racionais. Essa
visão vem sendo bastante questionada por vários autores. Por um lado, é difícil dizer
que o pensamento filosófico tenha realmente se separado do mito. Por outro, a
própria ideia de mito como algo falso em contraposição à razão verdadeira foi
colocada em xeque (SOUZA; ROCHA, 2009).
VOCÊ QUER LER?
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O livro Deuses Americanos, escrito pelo inglês Neil Gaiman (2016), traz uma discussão interessante sobre
mitos. O que acontece com os deuses antigos quando seus adoradores vão viver na América? Essa é a
pergunta central para a narrativa. No livro, o ex-presidiário Shadow se vê obrigado a aceitar um emprego,
no mínimo, estranho. No decorrer da história, ele percebe-se imerso em uma batalha entre deuses
antigos e novos, o que nos possibilita refletir sobre a construção constante de mitos em nossa sociedade.
Vale a pena conferir!
Uma conceituação de mito bastante utilizada é a do romeno Mircea Eliade, que se
deteve nos estudos do sagrado e mitologia durante quase toda a sua vida. De acordo
com Eliade, no livro Mito e Realidade (1972, p. 9):
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento no tempo
primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra
como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a
existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha,
uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre,
portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi
produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do
que se manifestou plenamente. 
Um ponto importante dessa definição é a ideia do mito como uma explicação para
as origens de um fenômeno ou de uma “realidade”, conforme Eliade (1972). Além
disso, ao ler essa citação, você deve ter se questionado sobre a afirmação “o mito
fala apenas do que realmente ocorreu”. Para entendê-la, é necessário fazer um
esforço de alteridade e se colocar no lugar de alguém que vive a cultura que deu
origem à determinado mito. Um exemplo são os mitos cristãos, como a criação do
mundo em sete dias ou a morte de Cristo para salvar a humanidade. Eles podem ser
questionados por alguém que não segue o cristianismo, mas o cristão vive essa
narrativa como algo que realmente ocorreu. Por isso, segundo José Benedito de
Almeida Júnior (2014): “Para a sociedade na qual o mito é presente, ele narra o que
realmente aconteceu. A questão é que essa realidade transcende o plano histórico
ou material, mas nem por isso deixa de ser realidade” (ELIADE, 1972, p. 19).
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Com essa perspectiva, que se coloca no lugar de quem produz o mito, podemos
enfatizar sua importância para as sociedades, para a cultura e, por conseguinte, para
o pensamento histórico. Se quisermos compreender um determinado grupo de
pessoas em um período histórico específico, é muito provável que o conhecimento
dos seus mitos nos ajude nessa tarefa.
1.1.2 A estrutura do mito e sua relação com a realidade
Será que todas as sociedades possuem mitos e mitologias? Vários estudiosos do
tema mostram que sim. Não é apenas no Ocidente que os mitos são parte
importante da cultura, como vemos, por exemplo, com toda a Mitologia Grega. As
sociedades orientais também lidam com narrativas mitológicas muito diversas. O
 Figura 1 - De acordo com a
tradição cristã, Jesus foi morto em sacrifício para salvar a humanidade. Fonte: Renata Sedmakova,
Shutterstock, 2018.
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que se observa, porém, é que muitas dessas narrativas possuem alguns traços em
comum. É claro que os mitos são diferentes e acompanham as especificidades de
cada sociedade, porém é possível notar que existem permanências. 
Em outra obra, Mircea Eliade (1992) aprofunda a questão, indicando cinco
características gerais dos mitos, de acordo com o modo como eles eram vividos
pelas sociedades arcaicas:
a) o mito constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais; 
b) a narrativa do mito é considerada como absolutamente verdadeira e sagrada;
c) a terceira característica diz respeito à ideia de criação, ou seja, como o mito
sempre narra como alguma coisa veio à existência; 
d) ao conhecer o mito, ritualmente, é possível conhecer a origem das coisas e, assim
dominá-las; 
e) o mito é vivido, “no sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e
exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados” (ELIADE, 1992, p. 19). 
Assim, um mito pode ser vivido por um grupo e possuir pontos em comum entre
povos que jamais se conheceram. Esses elementos semelhantes são chamados
pelos especialistas de arquétipos, como é o caso das cosmogonias, que explicam o
surgimentodo mundo, ou das antropogonias, que abordam o surgimento dos seres
humanos (ALMEIDA JÚNIOR, 2014). Dessa maneira, cada povo terá uma narrativa
própria que conta sobre a existência do universo, embora possa haver certas noções
que podem ser bastante parecidas em mitos completamente diferentes. 
Algo importante de destacar, no estudo dos mitos, é a relação direta com os rituais
religiosos. Outros tipos de narrativas, como as lendas e os contos de fadas, também
podem explicar as origens de algo importante para uma sociedade, porém, eles não
servem de base para os ritos (ALMEIDA JÚNIOR, 2014). É possível observar, portanto,
a estreita proximidade com a ideia de sagrado, como havíamos visto na definição de
Mircea Eliade. 
Agora que conhecemos um pouco mais sobre as definições e as características dos
mitos, podemos pensar sobre a importância dessas narrativas. De início, pode
parecer que os mitos são muito antigos e não fazem mais parte da nossa realidade,
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porém é importante perceber que a contemporaneidade também lida
constantemente com concepções mitológicas da existência, ainda que revistas pela
ideia de modernidade. 
Para compreendermos melhor a ideia do mito na realidade atual, podemos pensar
na principal explicação para o surgimento do mundo com o qual lidamos. O big bang
explica a origem do universo por meio de uma grande explosão. Em certa medida,
podemos pensar que essa explicação não é mitológica, mas sim científica. Todavia, é
necessário romper com esse pensamento dicotômico. O big bang é paradigmático
em nossa sociedade e dita o modo como nos relacionamos com certos aspectos
“incompreensíveis da nossa existência”. Ele também constitui uma explicação
cosmogônica acerca da origem do mundo, do mesmo modo como acontece em
diversos mitos arcaicos. Isso não significa, porém, que o big bang seja falso, pois,
conforme o que já foi estudado até aqui, o mito é sempre verdadeiro na medida em
que trata da realidade. Assim, ele seria um bom modelo para pensarmos o lugar que
os mitos ainda ocupam em nossas vidas.
Essa análise mostra como o mito é relevante para qualquer estudo que tenha como
foco as relações humanas, a cultura e, claro, a História. Porém, para a nossa
disciplina de Introdução aos Estudos Históricos, existe outra característica do mito
 Figura 2 - A
Teoria do Big Bang é apenas uma das explicações para o surgimento do universo. Fonte: Shutterstock,
2018.
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que é essencial: o tempo.
1.1.3 O tempo do mito 
Do mesmo modo como a História, os mitos são bastante ligados à ideia de tempo.
Porém, o tempo do mito é um tanto quanto diferente do tempo da História. Nas
narrativas mitológicas, o que se vê é uma noção sagrada de tempo. Nesta
perspectiva, duas concepções de tempo são fundamentais: o tempo cíclico e o
tempo escatológico ou linear (ELIADE, 1992). É importante salientar que nenhum
deles corresponde ao tempo histórico, embora haja aproximações com ambos. 
O conceito de tempo cíclico entende que “o passar do tempo é a recriação do ato
original; por isso, os rituais devem reproduzir a própria criação, seja do mundo, do
homem ou de alguma instituição social” (ALMEIDA JÚNIOR, 2014, p. 118). Assim,
essa concepção de tempo é inspirada por movimentos da lua, do sol, das plantas e
dos animais, conforme a observação da natureza. Diversas culturas se orientam pelo
tempo cíclico, até mesmo nos dias de hoje. Para elas, a ideia de progresso ou de
linearidade temporal não faz muito sentido. Para o budismo, por exemplo, o tempo
se repete em ciclos frequentes, sendo possível romper com essa circularidade
apenas ao abandonar a condição humana e alcançar o chamado nirvana (ELIADE,
1992). 
O tempo escatológico, por sua vez, se liga a uma ideia de fim. Esse tempo é linear e
está direcionado para um término, como é o caso do apocalipse bíblico. Várias
religiões e mitos têm o tempo escatológico como base. De acordo com Le Goff
(1990), o tempo escatológico é uma das temporalidades utilizadas pelo cristianismo,
por exemplo. Segundo o autor, a religião cristã combina três modalidades de tempo:
“o tempo circular da liturgia, ligado às estações e recuperando o calendário pagão; o
tempo cronológico linear, homogêneo e neutro, medido pelo relógio, e o tempo
linear teleológico, o tempo escatológico” (LE GOFF, 1990, p. 57).
VOCÊ SABIA?
A expressão “escatologia” tem origem no termo grego éskhatos, que significa algo como “extremo ou
último” (ALMEIDA JÚNIOR, 2014). Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, escatologia
significa “Teoria acerca das coisas que hão de suceder depois do fim do mundo; teoria sobre o fim do
mundo e da humanidade”. Por isso, as religiões e outras doutrinas que tratam do fim dos tempos são
chamadas de escatológicas. 
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Como o cristianismo é um dos pilares da cultura ocidental, a ideia de tempo linear é
muito mais presente em nossa sociedade, mas o tempo cíclico também aparece em
vários aspectos. Por isso, a História trabalha com ambas as noções de tempo, mas
não pode se fixar em apenas uma delas. 
O próximo passo de nossa trajetória é estudar a relação entre memória e História.
Depois voltaremos a discutir o mito, com intuito de pensá-lo como uma ferramenta
para a produção do conhecimento histórico.
1.2 As fronteiras entre a História e a
Memória
Agora é hora de refletirmos sobre a memória. Quais são as suas principais
características? Por que ela é tão importante? As memórias são enganadoras?
Podemos usá-las para a escrita da História? Como você pode notar, as questões
acerca da memória são parecidas com as que usamos para pensar o mito. Aliás, as
aproximações entre eles não ficarão restritas aos questionamentos. 
Logo de início, é possível afirmar que todos nós temos memórias: lembranças mais
recentes, como o que fizemos na manhã de ontem, e outras antigas, como o cheiro
do quarto da bisavó na nossa infância. Existem ainda aquelas memórias que não são
apenas individuais: que brasileiro não se lembra, por exemplo, da derrota do Brasil
para a Alemanha na copa de 2014? Em termos bem gerais, a discussão sobre
memória tem a ver com todas essas formas de lembrar; ela inclui cheiros, sensações,
cores, gostos, lembranças coletivas e individuais. 
O passado é um tempo que foi e não é mais. Sua existência é garantida apenas pelo
que lembramos ou registramos. Por isso, a memória é tão importante para o
conhecimento histórico. Ao mesmo tempo, não podemos reduzir a história a meras
memórias do passado. Fazer essa distinção é um objetivo importante do estudo que
faremos a partir de agora.
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1.2.1 O que é memória?
Como ponto de partida para a conceituação de memória, podemos recorrer a
primeira definição dada por Jacques Le Goff (1990), em seu importante livro História
e Memória. Segundo o historiador: “A memória, como propriedade de conservar
certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 423). 
Todos nós sabemos o que é memória por experiência, não é mesmo? Estamos
constantemente nos lembrando e também nos esquecendo de situações que já
aconteceram. A definição de Le Goff parte, justamente, do modo como vivenciamos
a memória, reforçando que se trata de uma função psíquica humana orientada para
a conservação de certasinformações passadas.
A casa de pequenos cubinhos (no original, Tsumiki no ie) é um curta-metragem de animação dirigido por
Kunio Kato (2008). Um objeto de apego pode ser a fonte para o retorno de uma memória? E,
principalmente, o que nós somos além das histórias que temos para lembrar? Partindo dessas questões e
usando uma linguagem poética e simples, o filme aborda, de uma maneira delicada, a memória como
algo constituinte de nosso ser. Por isso, é um ótimo ponto de partida para a discussão sobre a
importância da memória.
Quando falamos em memória, geralmente fazemos uma associação com
pensamentos sujeitos a falhas ou distorções, pois, por motivos diversos, a
lembrança de algo pode ser alterada. Você já deve ter notado por exemplo, que duas
pessoas podem se lembrar de um mesmo evento de formas bem diferentes. De
acordo com José D’Assunção Barros (2009), uma noção mais vulgar do que é
memória, trataria da mesma como “estática e imprecisa, parcial e distorcida, passiva
e não-criadora” (BARROS, 2009, p. 39). Essa visão, no entendimento do autor, precisa
ser problematizada, pois foi um dos motivos para que a memória coletiva tenha sido
ignorada, durante muito tempo, como algo válido para o conhecimento histórico.
VOCÊ QUER VER?
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Chegando a esse ponto, faz-se necessário distinguir a memória individual da
coletiva, destacando que a segunda é a mais relevante para a História. Como o
próprio nome indica, a memória individual estaria relacionada com as vivências de
cada pessoa, de um ponto de vista mais biológico ou psíquico. Já a memória coletiva
englobaria as questões socioculturais ligada ao ato de lembrar. É importante
ressaltar, contudo, que essas duas formas de compreender a memória vêm sendo
problematizadas em diversas áreas da produção do conhecimento. Assim, nas
últimas décadas, a Biologia, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia e a História,
dentre outras, passaram a entender a memória como “processo ativo, dinâmico,
complexo, interativo” (BARROS, 2009, p. 41).
Essas mudanças na compreensão do que é memória romperam, então, com a rígida
separação entre memória individual e coletiva. O que se percebe, nos estudos
atuais, é que a memória individual também é coletiva, pois sua constituição se dá na
relação com outros indivíduos, sendo mediada pela linguagem (BARROS, 2009).
Nesse sentido, a História irá se relacionar com a noção de memória de uma forma
bem diferente, entendendo que ela:
(...) se refere não apenas a esse processo de registro de acontecimentos pela
experiência humana, como também à construção de referenciais sobre o
passado e sobre o presente de diferentes grupos sociais e sob a perspectiva
de diferentes grupos sociais, ancorados nas tradições e intimamente
associados a mudanças culturais (BARROS, 2009, p. 41).
Portanto, a corrente mais aceita atualmente entende que a memória é fundamental
para a escrita da História, posto que a relação com o passado é intermediada pela
memória.
1.2.2 Componentes da memória
Maurice Halbwachs (1990) é um dos principais defensores da ideia de memória
coletiva. Para ele, é a partir das relações, e não necessariamente centrado na
individualidade que a memória do indivíduo se constitui. Ela é formada a partir de
pontos de referências, estímulos, necessidades e, também, pela vivência em grupos.
Assim, para manter-se ou constituir-se, é preciso que a memória esteja vinculada,
em alguma medida, com a esfera comum, ou seja, à possibilidade de ser partilhada e
de ter alguma significância para o presente daquele grupo. 
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Um bom exemplo para entender essa noção coletiva são as memórias de infância.
Talvez você não se lembre do seu aniversário de dois anos, mas os relatos de família,
as fotos e outras informações sobre a comemoração fazem com que suas memórias
sejam, na verdade, baseadas nas narrativas de outras pessoas. Ainda assim, isso não
impede que você realmente se ligue emocionalmente com essas memórias, nem
que elas não tenham grande peso em suas experiências de vida. Nessa perspectiva,
a memória não é nem meramente individual, nem estacionária. Ela pode ser
construída e reconstruída no decorrer da vida.
Do ponto de vista histórico, é importante ter em mente que as sociedades também
estão em constante transformação. Isso abre espaço para considerar a memória
também, não como um princípio de conservação estático do passado, mas um
 Figura 3 - Muitas das coisas que
você se lembra sobre a sua infância devem ter sido contadas pelos seus familiares. Fonte: SergiyN,
Shutterstock, 2018.
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mecanismo que está sempre em reformulação dentro das demandas do presente.
Em outras palavras, do mesmo modo como nenhum povo ou sociedade é estático,
seus modos de construírem e lidarem com o passado também não o são. 
Seguindo por este caminho, Michael Pollak (1992), situa a memória numa relação do
individual com o coletivo. O autor elenca os principais elementos constitutivos da
memória, que podem ser resumidos da seguinte forma:
1) acontecimentos: vividos pessoalmente ou “vividos por tabela”, no caso de
eventos dos quais a pessoa não participou, mas que são muito importantes para
suas experiências;
2) pessoas e personagens: também podem ser aquelas que você encontrou no
decorrer da vida ou personagens frequentados “por tabela” (por intermédio do
grupo);
3) lugares: espaços relacionados a memória, que podem ter ligação com
lembranças pessoais (casa de praia das férias na infância) ou com aspectos da vida
pública (lugares de comemoração ou monumentos). 
Pollack destaca ainda a relação da memória com o tempo. Uma lembrança pode ou
não ser datada, de acordo com o tipo de experiência vivida. Para quem lembra, o
momento exato em que aquele lugar foi visitado ou quando um acontecimento se
deu pode não ter relevância. Ao mesmo tempo, existem aquelas memórias que são
datadas com exatidão, como aniversários, casamentos e nascimento de filhos. 
Outro ponto muito importante sobre a memória é sua seletividade. Tanto nas
experiências individuais quanto nas coletivas, nem tudo fica guardado ou registrado.
De fato, a memória é constituída pelo que se lembra e pelo que se esquece.  Por
último, e talvez o mais importante, a memória é uma construção. Ela se constitui, no
indivíduo, tanto numa esfera consciente quanto inconsciente. Dessa forma, a
memória realiza um verdadeiro trabalho de organização; ela corta, recorta e
secciona a narrativa de sua existência de acordo com as preocupações sociais e
políticas do momento. Por tudo isso, Pollack (1992) entende que a memória tem
papel crucial na construção das identidades. 
Toda essa discussão foi crucial para que a História mudasse seu modo de tratar a
memória. Na Antiguidade, o historiador era entendido como um guardião da
memória e ambos eram vistos como objetivos. Com o passar do tempo, a memória
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perdeu seu status de verdade, passando a ser vista como errônea por um História
cada vez mais objetiva e científica. Hoje, com todo o processo de crítica da produção
histórica, as questões subjetivas ganharam importância. Assim, a memória pode
recuperar seu lugar de relevo na escrita da História, servindo não apenas de fonte,
mas também de referência metodológica. 
A partir de agora, tentaremos traçar algumas distinções entre História e memória,
ressaltando que elas se complementam e não se opõem.
1.2.3 Relações entrememória e História
A questão do tempo é um dos aspectos que distingue História e memória. Enquanto
uma memória pode ou não ser datada, como vimos com Pollack, a História tem uma
ligação forte com a datação e a ordenação do tempo. Isso não significa que a data
exata de um evento seja importante, mas o seu contexto, sua relação com o entorno,
sim. A memória, por sua vez, fica restrita a um lugar no passado, não sendo
necessário saber quando ela aconteceu ou qual foi o seu contexto. Aliás, o
descolamento do tempo é uma das características da memória, que quase sempre
aparece fragmentada (SILVA; SILVA, 2010). 
Outro ponto de distanciamento é o aspecto individual da memória. Por mais que ela
seja coletivamente constituída, sua força reside no modo como cada pessoa se
relaciona com ela. A História, em contrapartida, tem sempre uma perspectiva social
dos eventos. Assim, segundo o verbete “Memória” do Dicionário de Conceitos
Históricos: “A memória recupera o que está submerso, seja do indivíduo, seja do
grupo, e a História trabalha com o que a sociedade trouxe a público” (SILVA; SILVA,
2010, p. 276). Aqui, podemos notar a complementaridade entre elas, muito mais que
uma simples distinção. É possível dizer, assim, que a História organiza as memórias
com base em uma visão mais ampla da realidade. 
Pensando um pouco mais sobre essa relação entre História e memória, vale a pena
discutir a afirmação de Peter Burke (2000) acerca dos dois pontos de vista
necessários ao historiador. De acordo com o autor, é preciso, em primeiro lugar,
analisar a memória enquanto fonte histórica, ou seja, “elaborar uma crítica da
confiabilidade da reminiscência no teor da crítica tradicional de documentos
históricos” (BURKE, 2000, p. 72). Na prática, isso passou a acontecer na História a
partir da década de 1960, com o surgimento da História Oral, que permitiu a
flexibilização das fontes viáveis para produção histórica. 
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O segundo ponto de vista, na perspectiva de Peter Burke (2000), diz respeito ao
estudo da memória como um fenômeno histórico, entendida por ele como uma
“história social do lembrar”. Retomando o argumento da seletividade da memória,
Burke ressalta que o historiador precisa identificar quais foram os princípios
utilizados para as seleções, observando como elas variam no tempo, no espaço e
conforme o grupo. Para Burke: “As memórias são maleáveis, e é necessário
compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa
maleabilidade (BURKE, 2000, p. 73).
Com base nesses aspectos, podemos observar o lugar de relevo que a memória
ocupa na produção do conhecimento histórico. Por isso, no próximo tópico,
desenvolveremos melhor os diferentes modos como historiadores recorrem à
memória e ao mito em seus trabalhos.
1.3 Memória e Mito como ferramentas
da História
A História passou por profunda transformações na segunda metade do século XX.
Várias perguntas foram feitas com o objetivo de repensar o modo como o
conhecimento histórico vinha sendo produzido: a quem a História serve? Quem são
os personagens históricos que têm suas histórias contadas? Quais são as fontes
legítimas para a investigação?
Partindo desses questionamentos, novas fontes foram adotadas, bem como outras
perspectivas de pesquisa. Um dos motivadores para essa mudança foi o surgimento
do gravador à fita, em 1948. Com essa novidade, surgiu o Columbia University
Research Office, um programa da Universidade de Columbia que buscava gravar
entrevistas feitas com personalidades da história americana. A partir da década de
1960, o método de coleta de relatos orais rompe com uma noção de história das
elites, tornando-se uma espécie de contra história, voltada para o combate de uma
visão positivista do fazer-histórico. Com os relatos orais, os pesquisadores passam a
defender a escrita de uma história “dos vencidos”, ou seja, daquelas pessoas que
nunca tiveram voz em uma perspectiva que sempre priorizou a história dos heróis,
dos grandes homens.
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Outro debate importante diz respeito à relação entre História e ficção. Segundo Paul
Veyne, a História guarda paralelos com a escrita do romance, ainda que haja
especificidades na escrita da narrativa histórica (VEYNE, 1983; BENTIVOGLIO; LOPES,
2013). Ao mesmo tempo, talvez as narrativas ficcionais também tenham a
possibilidade de tratar de temas relacionados à história. Um livro de ficção pode
dizer bastante sobre o tempo em que foi escrito. Além disso, os recursos utilizados
na literatura, mesmo que sem o compromisso com a fidelidade histórica, podem nos
ajudar a entender melhor as mudanças, a passagem do tempo e até mesmo a noção
de verdade.
O homem do castelo alto, escrito por Philip K. Dick (2009), é ótimo para pensar a relação entre História e
ficção. A narrativa, ambientada na década de 1960 tem como ponto central um evento histórico: a
Segunda Guerra Mundial. O autor recorre à estratégia de imaginar o que poderia ter acontecido se a
história fosse diferente. No caso, Alemanha e Japão foram os países vencedores do conflito. Assim, o livro
nos ajuda a pensar como a história é construída.
 Figura 4 - O
surgimento do gravador, em 1948, possibilitou que gravações de áudio fossem usadas como fonte
histórica. Fonte: MIGUEL GARCIA SAAVEDRA, Shutterstock, 2018.
VOCÊ QUER LER?
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Essas novas reflexões tiveram, como dissemos antes, um impacto direto na
importância do mito e da memória na escrita da História. Ambos passaram a ser
usados como fonte, permitindo que novos assuntos pudessem ser trabalhados pelos
historiadores. Nesta parte do capítulo, falaremos um pouco mais sobre as pesquisas
históricas envolvendo memória e mito. Dessa forma, você conseguirá poderá
entender, na prática, a discussão teórica que fizemos até aqui.
1.3.1 Os mitos modernos
Muitas vezes associamos os mitos à antiguidade, nos esquecendo que toda
sociedade compõe suas próprias mitologias. O mito do herói, por exemplo, é visto
em diferentes povos. Joseph Campbell (1992), em sua clássica obra O herói de mil
faces, publicada pela primeira vez em 1949, observou que o mito do herói possui
algumas características recorrentes. Em sua análise, ele define 17 etapas desse mito,
que são subdividas em três fases: a partida, que inclui a chamada para uma
aventura; a iniciação, com provas e testes que precisam ser vencidos; e o retorno,
que possibilita a vivência de novas experiências. Você deve ter reconhecido
diferentes histórias que seguem esse modelo descrito por Campbell: desde o Ulisses,
da Odisseia, até Luke Skywalker, protagonista da série Star Wars. Esses heróis servem
de referência para as sociedades que vivem seus mitos, pois suas aventuras ajudam
na realização de desafios do cotidiano.
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Na perspectiva de Mircea Eliade (1972), a modernidade perdeu, com sua obsessão
pela racionalidade, as referências do sagrado. Por isso, o autor afirma que os mitos
modernos buscam “tapar esse buraco” existencial com narrativas que ofereçam
algum tipo de inserção na realidade mítica. No passado, um homem que precisava
se aventurar pelos mares para desbravar terras desconhecidas teria a certeza de seu
sucesso, pois os ancestrais míticos também teriam realizado tal façanha. E nós, em
quem podemos nos amparar? Os super-heróis das histórias em quadrinhos
configuram um ótimo exemplo. Eles são versões modernas dos antigos heróis
mitológicos. Em suaanálise do Superman, Eliade afirma que o personagem se
tornou popular devido à sua dupla personalidade: ora um jornalista tímido, ora um
herói de poderes ilimitados. Para o autor: “o mito do Superman satisfaz as nostalgias
secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se
um dia um ‘personagem excepcional’, um "herói" (ELIADE, 1972, p. 130-131). Dessa
 Figura 5 - O mito do herói é bastante
presente em nossa sociedade ainda hoje. Fonte: Blend Images, Shutterstock, 2018.
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forma, os homens e mulheres na modernidade, na ausência dos ritos e símbolos que
antes possibilitavam a inserção em uma história maior, buscam sentido em outras
formas de culto e outros modelos de heróis, mas não deixam de se ligar aos mitos.
O exemplo prático do herói nos ajuda a compreender o lugar que os mitos ocupam
em nossa sociedade. Diante dessa constatação, fica mais fácil pensar o modo como
a mitologia deve ser abordada no trabalho do historiador. Não devemos entender o
mito como algo separado da realidade social, mas sim como integrante da mesma.
Além disso, a mitologia não é “coisa do passado”, como podemos imaginar
inicialmente, pois segue presente nas sociedades ocidentais e orientais.
1.3.2 O lugar da memória
Para refletirmos sobre a relação entre História e Memória, vale a pena ler sobre um
caso inspirado em algo que aconteceu de verdade.
CASO
A bacia e a História
Um grupo de pesquisa estava desenvolvendo um trabalho voltado para a história local de uma
comunidade periférica em uma capital do Brasil. Depois de muito debate com os moradores daquela
localidade, chegou-se a decisão de construir um Centro de Memória. Os moradores foram
convidados a levar objetos que tivessem relação com a história da comunidade. Depois de alguns
dias, envergonhada, uma mulher trazia consigo uma bacia, que sua mãe tinha usado para levar água
do “asfalto” para o “morro”, ainda na época da construção da “favela”. Ela então perguntou se a bacia
poderia ser considerada como um objeto de memória, pois sua mãe nunca havia sido uma
personagem importante. Os pesquisadores então explicaram sobre a importância daquela bacia
para toda a História do local. Afinal, sem a água carregada no recipiente, talvez não houvesse nem
casas, ruas ou sequer pessoas vivendo ali. Assim, a bacia ganhou um lugar de destaque no Centro de
Memória daquela comunidade.
Esse caso prático nos ajuda a refletir sobre a questão da memória e sua relação com
a História. Talvez você nunca tenha visto uma bacia em um museu importante, mas é
difícil negar que, no contexto da comunidade acima, esse objeto tinha grande
relevância. 
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Muitas vezes as pessoas comuns não se sentem parte da História. No entanto, todos
nós contribuímos diariamente para que a realidade mude. Pequenas histórias,
decisões simples e mudanças cotidianas podem impactar fortemente um bairro,
uma cidade ou um país. Por isso, é sempre válido ressaltar que homens e mulheres,
independente da origem, da renda, da raça, da religião ou outras características,
todos são agentes da História. 
A memória tem um papel importante nesta perspectiva. Todos os seres humanos
têm memórias e incorporá-las ao conhecimento histórico é uma forma de romper
com a chamada “História dos Grandes Homens”. Aquela mulher, que carregava uma
bacia na cabeça morro acima teve uma função tão importante para o lugar onde
mora que um presidente ou um general. Aliás, não podemos deixar de pontuar que
ao contar apenas a história dos grandes homens, a historiografia esqueceu, durante
vários séculos, de se perguntar sobre o lugar ocupado pelas mulheres nessas
narrativas. 
Como foi discutido no tópico anterior, a memória nunca é apenas individual; ela se
amarra às lembranças de outras pessoas, constituindo sempre uma memória
coletiva. Na prática, o historiador precisa observar com atenção a constituição
dessas memórias, como elas informam sobre o passado e quais são as
possibilidades de análise disponíveis. Em sala de aula, também é fundamental
debater o papel da memória, enfatizando a história local e a agência, isto é, a
atuação dos alunos na construção da História. 
Todo o debate acerca do mito e da memória não se opõem à ideia de ciência.
Veremos, adiante, os diversos posicionamentos da produção histórica acerca do
conhecimento científico.
1.4 História é uma ciência? Significados
do termo história e seus campos de
reflexão
A História enquanto campo de conhecimento é bastante questionada. Por tratar de
eventos passados e irrecuperáveis, sua produção é tida como pouco objetiva,
passível de erros, ficcional e, portanto, nada científica. Essas acusações não são
novas e já foram fortemente debatidas no âmbito da Teoria da História. A partir do
século XIX, o conhecimento histórico passou por mudanças significativas,
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consolidando-se como uma área do saber relevante. Partindo dessas constatações,
nossa missão, neste tópico, é compreender as relações entre História e Ciência, bem
como definir alguns significados para o termo História. 
1.4.1 A História pode ser objetiva?
É importante ressaltar que a busca pela verdade do/no passado é uma constante.
Por isso, José d’Assunção Barros (2013) trata da noção de “história mínima”,
enfatizando aqueles aspectos que aparecem nas investigações históricas desde a
antiguidade. São eles:
1) intenção de verdade; 
2) investigação; 
3) estudo sobre a realidade humana; 
4) exposição em forma de relato; 
5) discurso encaminhado pela figura subjetiva, autônoma e idônea do historiador.
Alguns desses aspectos vão ter mais destaque em momentos específicos. A busca
pela verdade, por exemplo, ganhou maior importância dentro de perspectiva
moderna de História, sobretudo com o avanço do paradigma positivista.
 Quadro 1 - Os principais
elementos da identidade mínima da História, desde a antiguidade. Fonte: BARROS, 2013, p. 36.
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VOCÊ SABIA?
O paradigma positivista definiu, e ainda define, o modo como buscamos conhecer a realidade.
Quando falamos em paradigma estamos nos referindo a um conjunto de ideias que serve como
modelo ou exemplo geral. No caso do paradigma positivista, essas ideias giravam em torno de
princípios como: a possibilidade de um conhecimento totalmente objetivo; a busca pela verdade, o
rompimento com o mito, a construção de leis gerais, o rigor metodológico e a imparcialidade do
sujeito que produz o conhecimento (BARROS, 2013).
No século XIX, com a consolidação do positivismo, a História foi transformada em
conhecimento científico. Nesse momento, tanto a visão de História quanto a de
Ciência eram muito diferentes do modo como conhecemos hoje. Para ser
considerado científico, o conhecimento histórico precisava ser objetivo. Por isso, os
defensores da corrente positivista insistiam que os fatos falavam por si só, ou seja,
que não havia nada de interpretativo no trabalho do historiador. 
Para os historiadores positivistas, como Buckle, Renan, Taine e Fustel de Coulanges,
a questão da objetividade e da verdade seriam imprescindíveis para que a História
pudesse produzir um conhecimento realmente científico. Por isso, a história
positivista se voltou para as fontes oficiais, principalmente os documentos escritos,
muitas vezes relegando ao esquecimento as histórias mais cotidianas, bem como as
memórias e os mitos. 
De acordo com José Carlos Reis (2011), os positivistasacreditavam que “se
adotassem uma atitude de distanciamento de seu objeto, sem manter relações de
interdependência, obteriam um conhecimento histórico objetivo, um reflexo fiel dos
fatos do passado, puro de toda distorção subjetiva” (p. 24). Nesse sentido, o
historiador seria aquele que narra os fatos que realmente aconteceram, exatamente
do modo como eles se passaram. Somente alguns eventos eram consideramos como
narráveis, tais como os políticos, religiosos, diplomáticos e administrativos. Assim,
“propunham uma história do passado pelo passado, dos eventos políticos passados,
pela curiosidade de saber exata e detalhadamente como se passaram" (REIS, 2011,
p. 24).
O grande problema dessa concepção de História é bem simples: o passado é
inatingível, jamais poderemos viver novamente algo que já aconteceu. Qualquer
pessoa já vivenciou esta impossibilidade. Depois de uma excelente viagem de férias,
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por exemplo, você pode ver as fotos, anotar as lembranças e até mesmo voltar ao
mesmo lugar, mas aquela experiência não poderá ser vivida novamente. Em certa
medida, é isso o que acontece com o historiador: temos as fotos, as narrativas de
memória e outras pistas de algo que aconteceu, mas não a experiência – e mesmo
que tivéssemos vivido aquele momento, recuperá-lo seria impossível. Por isso, a os
principais preceitos positivistas dificilmente podem ser aplicados à escrita da
História.
Com isso, podemos responder à pergunta do título de uma forma não muito direta:
a História não é objetiva porque seu objeto de estudo é algo que já não existe mais.
Porém, o rigor metodológico, o uso cuidadoso das fontes e a frequente
contextualização das informações fazem dela um conhecimento importante.
 Figura 6 - A ampulheta nos ajuda a
perceber a passagem do tempo e a inacessibilidade do passado. Fonte: koosen, Shutterstock, 2018.
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Estamos aqui fazendo uma defesa da História, mas outro historiador, um
medievalista, realizou esta defesa bem antes. No próximo tópico, veremos um pouco
mais da apologia do conhecimento histórico feita por Marc Bloch.
1.4.2 Uma apologia da História
A crítica ao positivismo não significa, necessariamente, a ruptura com a
possibilidade de um conhecimento histórico válido. Mesmo que a História não seja
objetiva, isenta de juízos de valor e totalmente racional, ainda assim ela poderá
servir aos nossos anseios de conhecer mais sobre a humanidade e também sobre
nós mesmos. 
No século passado, um historiador resolveu responder a uma pergunta ao mesmo
tempo simples e complexa: para que serve a história? Seu nome era Marc Bloch e ele
contribuiu sobremaneira para toda a discussão em torno do pensamento histórico,
de sua época até os dias de hoje.
Marc Bloch viveu entre 1886 e 1944 e foi um importante historiador francês do século XX. Ele é um dos
responsáveis pela criação da Escola de Annales, que realizou inovações de grande relevância para toda a
produção do conhecimento histórico. Sua definição de História como ciência dos homens no tempo é
utilizada até hoje como referência. Por integrar a resistência francesa, durante a Segunda Guerra Mundial,
Bloch foi torturado e morto pela Gestapo em 1944.
O questionamento sobre a serventia da história havia sido feito pelo filho de Marc
Bloch. Partindo dela, ele se arriscou a discutir pontos importantes acerca da
produção do conhecimento histórico e sobre a própria constituição da cultura
ocidental a partir da História. José Carlos Reis (2011) resume bem os quatro
principais argumentos de Bloch:
1) a História é a marca principal da civilização ocidental, desde a antiguidade, sendo
quase inseparável dos nossos modos de ser, agir e pensar;
VOCÊ O CONHECE?
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2) ainda que não servisse para nada, a História ainda serviria para o prazer, para a
curiosidade e para o entretenimento; 
3) do ponto de vista intelectual, o conhecimento histórico serve para que nós, seres
humanos, possamos nos conhecer e conhecer aquilo que nos rodeia; 
4) por fim, essa forma de conhecimento é útil na medida em que permite o contato
entre os humanos do presente com os do passado.
Como você pode notar, essa defesa não está embasada na cientificidade do
conhecimento histórico, ou seja, a História não precisa ser objetiva e resgatar o
passado tal como ele foi para que ela seja importante para homens e mulheres na
contemporaneidade. Todavia, esse entendimento um pouco mais amplo que é a
História não quer dizer que ela não seja uma ciência. 
No decorrer do século XX, muito se discutiu sobre a quem serve a História, quais são
as suas fontes e se sua produção pode ser enquadrada como científica. Não existe,
porém, um consenso com relação a esses problemas. Sendo verdadeira ou não,
científica ou não, objetiva ou não, a História se mantém como tema de interesse
para a nossa sociedade.
Síntese
Finalizamos, retomando o que aprendemos até aqui. Entendemos os conceitos de
mito, memória, ciência e História, quais suas diferenças e proximidades. E
compreendemos o que os estudos históricos podem nos apresentar, por meio de
seus principais elementos.
Neste capítulo, você teve a oportunidade de:
discutir as relações entre História, mito, memória e ciência;
possibilitar o reconhecimento do conceito de mito e suas principais
características;
abordar as aproximações e distanciamentos entre História e memória;
tratar das práticas relacionadas aos conceitos e teorias aprendidos
anteriormente;
mostrar um pouco do debate sobre objetividade, verdade e ciência no
conhecimento histórico.
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