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17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 1/26 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS CAPITULO 1 - ENTRE MITO, MEMÓRIA E CIÊNCIA: ONDE PODEMOS SITUAR A HISTÓRIA? Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva INICIAR Introdução Você consegue, a partir dos conhecimentos que já possui, pensar algumas diferenciações entre mito, memória, ciência e História? Quais seriam as especificidades da História? De um modo geral, podermos dizer que o conhecimento histórico não coincide com nenhuma dessas ideias, mas se relaciona o tempo todo com elas. Será que mito e memória são sempre histórias falsas? Durante muito tempo a História foi bastante ligada à ideia de verdade, portanto, uma necessidade de se escrever o passado com base em fatos comprovados. No entanto, com o passar do tempo, esse modo de entender a História foi dando lugar a novas formas de interpretação. Assim, o imaginário, a memória, as fábulas, os mitos e as religiões, dentre outros, se tornaram tão importantes para o pensamento histórico quanto os fatos verificados em fontes. Então a História deixa de ser ciência? Não necessariamente. Ainda que esse seja um ponto em discussão, uma vez que, alguns 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 2/26 teóricos afirmem que a História é Arte ou uma narrativa literária, os historiadores, de modo geral, produzem conhecimentos pautados em metodologias rigorosas, pesquisas aprofundadas, levantamento de diversas fontes e leitura teórica crítica. Em resumo, tanto o mito, quanto a memória e a ciência são referências para a produção do conhecimento histórico. A partir de agora, poderemos nos aprofundar um pouco mais nessas relações. Acompanhe com atenção e bons estudos! 1.1 Mito e História: aproximações e afastamentos Vimos na Introdução que a História não equivale ao mito, mas tem traços de aproximação e distanciamento com o mesmo. Por isso, a partir de agora, avançaremos um pouco mais na diferenciação entre essas formas de se contar uma história. 1.1.1 O que é mito? Podemos dizer que o mito tem múltiplos sentidos, dependendo da abordagem, da época, da sociedade que o produz, dentre outros fatores. Por isso, a compreensão do conceito requer aprofundamento em algumas questões. O que é um mito? Ele é uma invenção? Como ele se relaciona com a História? Tentaremos, no decorrer desses tópicos, responder essas perguntas. Durante muito tempo, pensou-se que a filosofia teria substituído o mito como forma de explicação do mundo. A chamada passagem do mytho (mito) ao lógos (razão) revela como nosso modo de conhecer e explicar a realidade abandonou as narrativas mitológicas para se ancorar em explicações empíricas e/ou racionais. Essa visão vem sendo bastante questionada por vários autores. Por um lado, é difícil dizer que o pensamento filosófico tenha realmente se separado do mito. Por outro, a própria ideia de mito como algo falso em contraposição à razão verdadeira foi colocada em xeque (SOUZA; ROCHA, 2009). VOCÊ QUER LER? 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 3/26 O livro Deuses Americanos, escrito pelo inglês Neil Gaiman (2016), traz uma discussão interessante sobre mitos. O que acontece com os deuses antigos quando seus adoradores vão viver na América? Essa é a pergunta central para a narrativa. No livro, o ex-presidiário Shadow se vê obrigado a aceitar um emprego, no mínimo, estranho. No decorrer da história, ele percebe-se imerso em uma batalha entre deuses antigos e novos, o que nos possibilita refletir sobre a construção constante de mitos em nossa sociedade. Vale a pena conferir! Uma conceituação de mito bastante utilizada é a do romeno Mircea Eliade, que se deteve nos estudos do sagrado e mitologia durante quase toda a sua vida. De acordo com Eliade, no livro Mito e Realidade (1972, p. 9): O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Um ponto importante dessa definição é a ideia do mito como uma explicação para as origens de um fenômeno ou de uma “realidade”, conforme Eliade (1972). Além disso, ao ler essa citação, você deve ter se questionado sobre a afirmação “o mito fala apenas do que realmente ocorreu”. Para entendê-la, é necessário fazer um esforço de alteridade e se colocar no lugar de alguém que vive a cultura que deu origem à determinado mito. Um exemplo são os mitos cristãos, como a criação do mundo em sete dias ou a morte de Cristo para salvar a humanidade. Eles podem ser questionados por alguém que não segue o cristianismo, mas o cristão vive essa narrativa como algo que realmente ocorreu. Por isso, segundo José Benedito de Almeida Júnior (2014): “Para a sociedade na qual o mito é presente, ele narra o que realmente aconteceu. A questão é que essa realidade transcende o plano histórico ou material, mas nem por isso deixa de ser realidade” (ELIADE, 1972, p. 19). 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 4/26 Com essa perspectiva, que se coloca no lugar de quem produz o mito, podemos enfatizar sua importância para as sociedades, para a cultura e, por conseguinte, para o pensamento histórico. Se quisermos compreender um determinado grupo de pessoas em um período histórico específico, é muito provável que o conhecimento dos seus mitos nos ajude nessa tarefa. 1.1.2 A estrutura do mito e sua relação com a realidade Será que todas as sociedades possuem mitos e mitologias? Vários estudiosos do tema mostram que sim. Não é apenas no Ocidente que os mitos são parte importante da cultura, como vemos, por exemplo, com toda a Mitologia Grega. As sociedades orientais também lidam com narrativas mitológicas muito diversas. O Figura 1 - De acordo com a tradição cristã, Jesus foi morto em sacrifício para salvar a humanidade. Fonte: Renata Sedmakova, Shutterstock, 2018. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 5/26 que se observa, porém, é que muitas dessas narrativas possuem alguns traços em comum. É claro que os mitos são diferentes e acompanham as especificidades de cada sociedade, porém é possível notar que existem permanências. Em outra obra, Mircea Eliade (1992) aprofunda a questão, indicando cinco características gerais dos mitos, de acordo com o modo como eles eram vividos pelas sociedades arcaicas: a) o mito constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais; b) a narrativa do mito é considerada como absolutamente verdadeira e sagrada; c) a terceira característica diz respeito à ideia de criação, ou seja, como o mito sempre narra como alguma coisa veio à existência; d) ao conhecer o mito, ritualmente, é possível conhecer a origem das coisas e, assim dominá-las; e) o mito é vivido, “no sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados” (ELIADE, 1992, p. 19). Assim, um mito pode ser vivido por um grupo e possuir pontos em comum entre povos que jamais se conheceram. Esses elementos semelhantes são chamados pelos especialistas de arquétipos, como é o caso das cosmogonias, que explicam o surgimentodo mundo, ou das antropogonias, que abordam o surgimento dos seres humanos (ALMEIDA JÚNIOR, 2014). Dessa maneira, cada povo terá uma narrativa própria que conta sobre a existência do universo, embora possa haver certas noções que podem ser bastante parecidas em mitos completamente diferentes. Algo importante de destacar, no estudo dos mitos, é a relação direta com os rituais religiosos. Outros tipos de narrativas, como as lendas e os contos de fadas, também podem explicar as origens de algo importante para uma sociedade, porém, eles não servem de base para os ritos (ALMEIDA JÚNIOR, 2014). É possível observar, portanto, a estreita proximidade com a ideia de sagrado, como havíamos visto na definição de Mircea Eliade. Agora que conhecemos um pouco mais sobre as definições e as características dos mitos, podemos pensar sobre a importância dessas narrativas. De início, pode parecer que os mitos são muito antigos e não fazem mais parte da nossa realidade, 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 6/26 porém é importante perceber que a contemporaneidade também lida constantemente com concepções mitológicas da existência, ainda que revistas pela ideia de modernidade. Para compreendermos melhor a ideia do mito na realidade atual, podemos pensar na principal explicação para o surgimento do mundo com o qual lidamos. O big bang explica a origem do universo por meio de uma grande explosão. Em certa medida, podemos pensar que essa explicação não é mitológica, mas sim científica. Todavia, é necessário romper com esse pensamento dicotômico. O big bang é paradigmático em nossa sociedade e dita o modo como nos relacionamos com certos aspectos “incompreensíveis da nossa existência”. Ele também constitui uma explicação cosmogônica acerca da origem do mundo, do mesmo modo como acontece em diversos mitos arcaicos. Isso não significa, porém, que o big bang seja falso, pois, conforme o que já foi estudado até aqui, o mito é sempre verdadeiro na medida em que trata da realidade. Assim, ele seria um bom modelo para pensarmos o lugar que os mitos ainda ocupam em nossas vidas. Essa análise mostra como o mito é relevante para qualquer estudo que tenha como foco as relações humanas, a cultura e, claro, a História. Porém, para a nossa disciplina de Introdução aos Estudos Históricos, existe outra característica do mito Figura 2 - A Teoria do Big Bang é apenas uma das explicações para o surgimento do universo. Fonte: Shutterstock, 2018. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 7/26 que é essencial: o tempo. 1.1.3 O tempo do mito Do mesmo modo como a História, os mitos são bastante ligados à ideia de tempo. Porém, o tempo do mito é um tanto quanto diferente do tempo da História. Nas narrativas mitológicas, o que se vê é uma noção sagrada de tempo. Nesta perspectiva, duas concepções de tempo são fundamentais: o tempo cíclico e o tempo escatológico ou linear (ELIADE, 1992). É importante salientar que nenhum deles corresponde ao tempo histórico, embora haja aproximações com ambos. O conceito de tempo cíclico entende que “o passar do tempo é a recriação do ato original; por isso, os rituais devem reproduzir a própria criação, seja do mundo, do homem ou de alguma instituição social” (ALMEIDA JÚNIOR, 2014, p. 118). Assim, essa concepção de tempo é inspirada por movimentos da lua, do sol, das plantas e dos animais, conforme a observação da natureza. Diversas culturas se orientam pelo tempo cíclico, até mesmo nos dias de hoje. Para elas, a ideia de progresso ou de linearidade temporal não faz muito sentido. Para o budismo, por exemplo, o tempo se repete em ciclos frequentes, sendo possível romper com essa circularidade apenas ao abandonar a condição humana e alcançar o chamado nirvana (ELIADE, 1992). O tempo escatológico, por sua vez, se liga a uma ideia de fim. Esse tempo é linear e está direcionado para um término, como é o caso do apocalipse bíblico. Várias religiões e mitos têm o tempo escatológico como base. De acordo com Le Goff (1990), o tempo escatológico é uma das temporalidades utilizadas pelo cristianismo, por exemplo. Segundo o autor, a religião cristã combina três modalidades de tempo: “o tempo circular da liturgia, ligado às estações e recuperando o calendário pagão; o tempo cronológico linear, homogêneo e neutro, medido pelo relógio, e o tempo linear teleológico, o tempo escatológico” (LE GOFF, 1990, p. 57). VOCÊ SABIA? A expressão “escatologia” tem origem no termo grego éskhatos, que significa algo como “extremo ou último” (ALMEIDA JÚNIOR, 2014). Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, escatologia significa “Teoria acerca das coisas que hão de suceder depois do fim do mundo; teoria sobre o fim do mundo e da humanidade”. Por isso, as religiões e outras doutrinas que tratam do fim dos tempos são chamadas de escatológicas. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 8/26 Como o cristianismo é um dos pilares da cultura ocidental, a ideia de tempo linear é muito mais presente em nossa sociedade, mas o tempo cíclico também aparece em vários aspectos. Por isso, a História trabalha com ambas as noções de tempo, mas não pode se fixar em apenas uma delas. O próximo passo de nossa trajetória é estudar a relação entre memória e História. Depois voltaremos a discutir o mito, com intuito de pensá-lo como uma ferramenta para a produção do conhecimento histórico. 1.2 As fronteiras entre a História e a Memória Agora é hora de refletirmos sobre a memória. Quais são as suas principais características? Por que ela é tão importante? As memórias são enganadoras? Podemos usá-las para a escrita da História? Como você pode notar, as questões acerca da memória são parecidas com as que usamos para pensar o mito. Aliás, as aproximações entre eles não ficarão restritas aos questionamentos. Logo de início, é possível afirmar que todos nós temos memórias: lembranças mais recentes, como o que fizemos na manhã de ontem, e outras antigas, como o cheiro do quarto da bisavó na nossa infância. Existem ainda aquelas memórias que não são apenas individuais: que brasileiro não se lembra, por exemplo, da derrota do Brasil para a Alemanha na copa de 2014? Em termos bem gerais, a discussão sobre memória tem a ver com todas essas formas de lembrar; ela inclui cheiros, sensações, cores, gostos, lembranças coletivas e individuais. O passado é um tempo que foi e não é mais. Sua existência é garantida apenas pelo que lembramos ou registramos. Por isso, a memória é tão importante para o conhecimento histórico. Ao mesmo tempo, não podemos reduzir a história a meras memórias do passado. Fazer essa distinção é um objetivo importante do estudo que faremos a partir de agora. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=Cy… 9/26 1.2.1 O que é memória? Como ponto de partida para a conceituação de memória, podemos recorrer a primeira definição dada por Jacques Le Goff (1990), em seu importante livro História e Memória. Segundo o historiador: “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 423). Todos nós sabemos o que é memória por experiência, não é mesmo? Estamos constantemente nos lembrando e também nos esquecendo de situações que já aconteceram. A definição de Le Goff parte, justamente, do modo como vivenciamos a memória, reforçando que se trata de uma função psíquica humana orientada para a conservação de certasinformações passadas. A casa de pequenos cubinhos (no original, Tsumiki no ie) é um curta-metragem de animação dirigido por Kunio Kato (2008). Um objeto de apego pode ser a fonte para o retorno de uma memória? E, principalmente, o que nós somos além das histórias que temos para lembrar? Partindo dessas questões e usando uma linguagem poética e simples, o filme aborda, de uma maneira delicada, a memória como algo constituinte de nosso ser. Por isso, é um ótimo ponto de partida para a discussão sobre a importância da memória. Quando falamos em memória, geralmente fazemos uma associação com pensamentos sujeitos a falhas ou distorções, pois, por motivos diversos, a lembrança de algo pode ser alterada. Você já deve ter notado por exemplo, que duas pessoas podem se lembrar de um mesmo evento de formas bem diferentes. De acordo com José D’Assunção Barros (2009), uma noção mais vulgar do que é memória, trataria da mesma como “estática e imprecisa, parcial e distorcida, passiva e não-criadora” (BARROS, 2009, p. 39). Essa visão, no entendimento do autor, precisa ser problematizada, pois foi um dos motivos para que a memória coletiva tenha sido ignorada, durante muito tempo, como algo válido para o conhecimento histórico. VOCÊ QUER VER? 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 10/26 Chegando a esse ponto, faz-se necessário distinguir a memória individual da coletiva, destacando que a segunda é a mais relevante para a História. Como o próprio nome indica, a memória individual estaria relacionada com as vivências de cada pessoa, de um ponto de vista mais biológico ou psíquico. Já a memória coletiva englobaria as questões socioculturais ligada ao ato de lembrar. É importante ressaltar, contudo, que essas duas formas de compreender a memória vêm sendo problematizadas em diversas áreas da produção do conhecimento. Assim, nas últimas décadas, a Biologia, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia e a História, dentre outras, passaram a entender a memória como “processo ativo, dinâmico, complexo, interativo” (BARROS, 2009, p. 41). Essas mudanças na compreensão do que é memória romperam, então, com a rígida separação entre memória individual e coletiva. O que se percebe, nos estudos atuais, é que a memória individual também é coletiva, pois sua constituição se dá na relação com outros indivíduos, sendo mediada pela linguagem (BARROS, 2009). Nesse sentido, a História irá se relacionar com a noção de memória de uma forma bem diferente, entendendo que ela: (...) se refere não apenas a esse processo de registro de acontecimentos pela experiência humana, como também à construção de referenciais sobre o passado e sobre o presente de diferentes grupos sociais e sob a perspectiva de diferentes grupos sociais, ancorados nas tradições e intimamente associados a mudanças culturais (BARROS, 2009, p. 41). Portanto, a corrente mais aceita atualmente entende que a memória é fundamental para a escrita da História, posto que a relação com o passado é intermediada pela memória. 1.2.2 Componentes da memória Maurice Halbwachs (1990) é um dos principais defensores da ideia de memória coletiva. Para ele, é a partir das relações, e não necessariamente centrado na individualidade que a memória do indivíduo se constitui. Ela é formada a partir de pontos de referências, estímulos, necessidades e, também, pela vivência em grupos. Assim, para manter-se ou constituir-se, é preciso que a memória esteja vinculada, em alguma medida, com a esfera comum, ou seja, à possibilidade de ser partilhada e de ter alguma significância para o presente daquele grupo. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 11/26 Um bom exemplo para entender essa noção coletiva são as memórias de infância. Talvez você não se lembre do seu aniversário de dois anos, mas os relatos de família, as fotos e outras informações sobre a comemoração fazem com que suas memórias sejam, na verdade, baseadas nas narrativas de outras pessoas. Ainda assim, isso não impede que você realmente se ligue emocionalmente com essas memórias, nem que elas não tenham grande peso em suas experiências de vida. Nessa perspectiva, a memória não é nem meramente individual, nem estacionária. Ela pode ser construída e reconstruída no decorrer da vida. Do ponto de vista histórico, é importante ter em mente que as sociedades também estão em constante transformação. Isso abre espaço para considerar a memória também, não como um princípio de conservação estático do passado, mas um Figura 3 - Muitas das coisas que você se lembra sobre a sua infância devem ter sido contadas pelos seus familiares. Fonte: SergiyN, Shutterstock, 2018. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 12/26 mecanismo que está sempre em reformulação dentro das demandas do presente. Em outras palavras, do mesmo modo como nenhum povo ou sociedade é estático, seus modos de construírem e lidarem com o passado também não o são. Seguindo por este caminho, Michael Pollak (1992), situa a memória numa relação do individual com o coletivo. O autor elenca os principais elementos constitutivos da memória, que podem ser resumidos da seguinte forma: 1) acontecimentos: vividos pessoalmente ou “vividos por tabela”, no caso de eventos dos quais a pessoa não participou, mas que são muito importantes para suas experiências; 2) pessoas e personagens: também podem ser aquelas que você encontrou no decorrer da vida ou personagens frequentados “por tabela” (por intermédio do grupo); 3) lugares: espaços relacionados a memória, que podem ter ligação com lembranças pessoais (casa de praia das férias na infância) ou com aspectos da vida pública (lugares de comemoração ou monumentos). Pollack destaca ainda a relação da memória com o tempo. Uma lembrança pode ou não ser datada, de acordo com o tipo de experiência vivida. Para quem lembra, o momento exato em que aquele lugar foi visitado ou quando um acontecimento se deu pode não ter relevância. Ao mesmo tempo, existem aquelas memórias que são datadas com exatidão, como aniversários, casamentos e nascimento de filhos. Outro ponto muito importante sobre a memória é sua seletividade. Tanto nas experiências individuais quanto nas coletivas, nem tudo fica guardado ou registrado. De fato, a memória é constituída pelo que se lembra e pelo que se esquece. Por último, e talvez o mais importante, a memória é uma construção. Ela se constitui, no indivíduo, tanto numa esfera consciente quanto inconsciente. Dessa forma, a memória realiza um verdadeiro trabalho de organização; ela corta, recorta e secciona a narrativa de sua existência de acordo com as preocupações sociais e políticas do momento. Por tudo isso, Pollack (1992) entende que a memória tem papel crucial na construção das identidades. Toda essa discussão foi crucial para que a História mudasse seu modo de tratar a memória. Na Antiguidade, o historiador era entendido como um guardião da memória e ambos eram vistos como objetivos. Com o passar do tempo, a memória 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 13/26 perdeu seu status de verdade, passando a ser vista como errônea por um História cada vez mais objetiva e científica. Hoje, com todo o processo de crítica da produção histórica, as questões subjetivas ganharam importância. Assim, a memória pode recuperar seu lugar de relevo na escrita da História, servindo não apenas de fonte, mas também de referência metodológica. A partir de agora, tentaremos traçar algumas distinções entre História e memória, ressaltando que elas se complementam e não se opõem. 1.2.3 Relações entrememória e História A questão do tempo é um dos aspectos que distingue História e memória. Enquanto uma memória pode ou não ser datada, como vimos com Pollack, a História tem uma ligação forte com a datação e a ordenação do tempo. Isso não significa que a data exata de um evento seja importante, mas o seu contexto, sua relação com o entorno, sim. A memória, por sua vez, fica restrita a um lugar no passado, não sendo necessário saber quando ela aconteceu ou qual foi o seu contexto. Aliás, o descolamento do tempo é uma das características da memória, que quase sempre aparece fragmentada (SILVA; SILVA, 2010). Outro ponto de distanciamento é o aspecto individual da memória. Por mais que ela seja coletivamente constituída, sua força reside no modo como cada pessoa se relaciona com ela. A História, em contrapartida, tem sempre uma perspectiva social dos eventos. Assim, segundo o verbete “Memória” do Dicionário de Conceitos Históricos: “A memória recupera o que está submerso, seja do indivíduo, seja do grupo, e a História trabalha com o que a sociedade trouxe a público” (SILVA; SILVA, 2010, p. 276). Aqui, podemos notar a complementaridade entre elas, muito mais que uma simples distinção. É possível dizer, assim, que a História organiza as memórias com base em uma visão mais ampla da realidade. Pensando um pouco mais sobre essa relação entre História e memória, vale a pena discutir a afirmação de Peter Burke (2000) acerca dos dois pontos de vista necessários ao historiador. De acordo com o autor, é preciso, em primeiro lugar, analisar a memória enquanto fonte histórica, ou seja, “elaborar uma crítica da confiabilidade da reminiscência no teor da crítica tradicional de documentos históricos” (BURKE, 2000, p. 72). Na prática, isso passou a acontecer na História a partir da década de 1960, com o surgimento da História Oral, que permitiu a flexibilização das fontes viáveis para produção histórica. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 14/26 O segundo ponto de vista, na perspectiva de Peter Burke (2000), diz respeito ao estudo da memória como um fenômeno histórico, entendida por ele como uma “história social do lembrar”. Retomando o argumento da seletividade da memória, Burke ressalta que o historiador precisa identificar quais foram os princípios utilizados para as seleções, observando como elas variam no tempo, no espaço e conforme o grupo. Para Burke: “As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade (BURKE, 2000, p. 73). Com base nesses aspectos, podemos observar o lugar de relevo que a memória ocupa na produção do conhecimento histórico. Por isso, no próximo tópico, desenvolveremos melhor os diferentes modos como historiadores recorrem à memória e ao mito em seus trabalhos. 1.3 Memória e Mito como ferramentas da História A História passou por profunda transformações na segunda metade do século XX. Várias perguntas foram feitas com o objetivo de repensar o modo como o conhecimento histórico vinha sendo produzido: a quem a História serve? Quem são os personagens históricos que têm suas histórias contadas? Quais são as fontes legítimas para a investigação? Partindo desses questionamentos, novas fontes foram adotadas, bem como outras perspectivas de pesquisa. Um dos motivadores para essa mudança foi o surgimento do gravador à fita, em 1948. Com essa novidade, surgiu o Columbia University Research Office, um programa da Universidade de Columbia que buscava gravar entrevistas feitas com personalidades da história americana. A partir da década de 1960, o método de coleta de relatos orais rompe com uma noção de história das elites, tornando-se uma espécie de contra história, voltada para o combate de uma visão positivista do fazer-histórico. Com os relatos orais, os pesquisadores passam a defender a escrita de uma história “dos vencidos”, ou seja, daquelas pessoas que nunca tiveram voz em uma perspectiva que sempre priorizou a história dos heróis, dos grandes homens. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 15/26 Outro debate importante diz respeito à relação entre História e ficção. Segundo Paul Veyne, a História guarda paralelos com a escrita do romance, ainda que haja especificidades na escrita da narrativa histórica (VEYNE, 1983; BENTIVOGLIO; LOPES, 2013). Ao mesmo tempo, talvez as narrativas ficcionais também tenham a possibilidade de tratar de temas relacionados à história. Um livro de ficção pode dizer bastante sobre o tempo em que foi escrito. Além disso, os recursos utilizados na literatura, mesmo que sem o compromisso com a fidelidade histórica, podem nos ajudar a entender melhor as mudanças, a passagem do tempo e até mesmo a noção de verdade. O homem do castelo alto, escrito por Philip K. Dick (2009), é ótimo para pensar a relação entre História e ficção. A narrativa, ambientada na década de 1960 tem como ponto central um evento histórico: a Segunda Guerra Mundial. O autor recorre à estratégia de imaginar o que poderia ter acontecido se a história fosse diferente. No caso, Alemanha e Japão foram os países vencedores do conflito. Assim, o livro nos ajuda a pensar como a história é construída. Figura 4 - O surgimento do gravador, em 1948, possibilitou que gravações de áudio fossem usadas como fonte histórica. Fonte: MIGUEL GARCIA SAAVEDRA, Shutterstock, 2018. VOCÊ QUER LER? 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 16/26 Essas novas reflexões tiveram, como dissemos antes, um impacto direto na importância do mito e da memória na escrita da História. Ambos passaram a ser usados como fonte, permitindo que novos assuntos pudessem ser trabalhados pelos historiadores. Nesta parte do capítulo, falaremos um pouco mais sobre as pesquisas históricas envolvendo memória e mito. Dessa forma, você conseguirá poderá entender, na prática, a discussão teórica que fizemos até aqui. 1.3.1 Os mitos modernos Muitas vezes associamos os mitos à antiguidade, nos esquecendo que toda sociedade compõe suas próprias mitologias. O mito do herói, por exemplo, é visto em diferentes povos. Joseph Campbell (1992), em sua clássica obra O herói de mil faces, publicada pela primeira vez em 1949, observou que o mito do herói possui algumas características recorrentes. Em sua análise, ele define 17 etapas desse mito, que são subdividas em três fases: a partida, que inclui a chamada para uma aventura; a iniciação, com provas e testes que precisam ser vencidos; e o retorno, que possibilita a vivência de novas experiências. Você deve ter reconhecido diferentes histórias que seguem esse modelo descrito por Campbell: desde o Ulisses, da Odisseia, até Luke Skywalker, protagonista da série Star Wars. Esses heróis servem de referência para as sociedades que vivem seus mitos, pois suas aventuras ajudam na realização de desafios do cotidiano. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 17/26 Na perspectiva de Mircea Eliade (1972), a modernidade perdeu, com sua obsessão pela racionalidade, as referências do sagrado. Por isso, o autor afirma que os mitos modernos buscam “tapar esse buraco” existencial com narrativas que ofereçam algum tipo de inserção na realidade mítica. No passado, um homem que precisava se aventurar pelos mares para desbravar terras desconhecidas teria a certeza de seu sucesso, pois os ancestrais míticos também teriam realizado tal façanha. E nós, em quem podemos nos amparar? Os super-heróis das histórias em quadrinhos configuram um ótimo exemplo. Eles são versões modernas dos antigos heróis mitológicos. Em suaanálise do Superman, Eliade afirma que o personagem se tornou popular devido à sua dupla personalidade: ora um jornalista tímido, ora um herói de poderes ilimitados. Para o autor: “o mito do Superman satisfaz as nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se um dia um ‘personagem excepcional’, um "herói" (ELIADE, 1972, p. 130-131). Dessa Figura 5 - O mito do herói é bastante presente em nossa sociedade ainda hoje. Fonte: Blend Images, Shutterstock, 2018. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 18/26 forma, os homens e mulheres na modernidade, na ausência dos ritos e símbolos que antes possibilitavam a inserção em uma história maior, buscam sentido em outras formas de culto e outros modelos de heróis, mas não deixam de se ligar aos mitos. O exemplo prático do herói nos ajuda a compreender o lugar que os mitos ocupam em nossa sociedade. Diante dessa constatação, fica mais fácil pensar o modo como a mitologia deve ser abordada no trabalho do historiador. Não devemos entender o mito como algo separado da realidade social, mas sim como integrante da mesma. Além disso, a mitologia não é “coisa do passado”, como podemos imaginar inicialmente, pois segue presente nas sociedades ocidentais e orientais. 1.3.2 O lugar da memória Para refletirmos sobre a relação entre História e Memória, vale a pena ler sobre um caso inspirado em algo que aconteceu de verdade. CASO A bacia e a História Um grupo de pesquisa estava desenvolvendo um trabalho voltado para a história local de uma comunidade periférica em uma capital do Brasil. Depois de muito debate com os moradores daquela localidade, chegou-se a decisão de construir um Centro de Memória. Os moradores foram convidados a levar objetos que tivessem relação com a história da comunidade. Depois de alguns dias, envergonhada, uma mulher trazia consigo uma bacia, que sua mãe tinha usado para levar água do “asfalto” para o “morro”, ainda na época da construção da “favela”. Ela então perguntou se a bacia poderia ser considerada como um objeto de memória, pois sua mãe nunca havia sido uma personagem importante. Os pesquisadores então explicaram sobre a importância daquela bacia para toda a História do local. Afinal, sem a água carregada no recipiente, talvez não houvesse nem casas, ruas ou sequer pessoas vivendo ali. Assim, a bacia ganhou um lugar de destaque no Centro de Memória daquela comunidade. Esse caso prático nos ajuda a refletir sobre a questão da memória e sua relação com a História. Talvez você nunca tenha visto uma bacia em um museu importante, mas é difícil negar que, no contexto da comunidade acima, esse objeto tinha grande relevância. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 19/26 Muitas vezes as pessoas comuns não se sentem parte da História. No entanto, todos nós contribuímos diariamente para que a realidade mude. Pequenas histórias, decisões simples e mudanças cotidianas podem impactar fortemente um bairro, uma cidade ou um país. Por isso, é sempre válido ressaltar que homens e mulheres, independente da origem, da renda, da raça, da religião ou outras características, todos são agentes da História. A memória tem um papel importante nesta perspectiva. Todos os seres humanos têm memórias e incorporá-las ao conhecimento histórico é uma forma de romper com a chamada “História dos Grandes Homens”. Aquela mulher, que carregava uma bacia na cabeça morro acima teve uma função tão importante para o lugar onde mora que um presidente ou um general. Aliás, não podemos deixar de pontuar que ao contar apenas a história dos grandes homens, a historiografia esqueceu, durante vários séculos, de se perguntar sobre o lugar ocupado pelas mulheres nessas narrativas. Como foi discutido no tópico anterior, a memória nunca é apenas individual; ela se amarra às lembranças de outras pessoas, constituindo sempre uma memória coletiva. Na prática, o historiador precisa observar com atenção a constituição dessas memórias, como elas informam sobre o passado e quais são as possibilidades de análise disponíveis. Em sala de aula, também é fundamental debater o papel da memória, enfatizando a história local e a agência, isto é, a atuação dos alunos na construção da História. Todo o debate acerca do mito e da memória não se opõem à ideia de ciência. Veremos, adiante, os diversos posicionamentos da produção histórica acerca do conhecimento científico. 1.4 História é uma ciência? Significados do termo história e seus campos de reflexão A História enquanto campo de conhecimento é bastante questionada. Por tratar de eventos passados e irrecuperáveis, sua produção é tida como pouco objetiva, passível de erros, ficcional e, portanto, nada científica. Essas acusações não são novas e já foram fortemente debatidas no âmbito da Teoria da História. A partir do século XIX, o conhecimento histórico passou por mudanças significativas, 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 20/26 consolidando-se como uma área do saber relevante. Partindo dessas constatações, nossa missão, neste tópico, é compreender as relações entre História e Ciência, bem como definir alguns significados para o termo História. 1.4.1 A História pode ser objetiva? É importante ressaltar que a busca pela verdade do/no passado é uma constante. Por isso, José d’Assunção Barros (2013) trata da noção de “história mínima”, enfatizando aqueles aspectos que aparecem nas investigações históricas desde a antiguidade. São eles: 1) intenção de verdade; 2) investigação; 3) estudo sobre a realidade humana; 4) exposição em forma de relato; 5) discurso encaminhado pela figura subjetiva, autônoma e idônea do historiador. Alguns desses aspectos vão ter mais destaque em momentos específicos. A busca pela verdade, por exemplo, ganhou maior importância dentro de perspectiva moderna de História, sobretudo com o avanço do paradigma positivista. Quadro 1 - Os principais elementos da identidade mínima da História, desde a antiguidade. Fonte: BARROS, 2013, p. 36. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 21/26 VOCÊ SABIA? O paradigma positivista definiu, e ainda define, o modo como buscamos conhecer a realidade. Quando falamos em paradigma estamos nos referindo a um conjunto de ideias que serve como modelo ou exemplo geral. No caso do paradigma positivista, essas ideias giravam em torno de princípios como: a possibilidade de um conhecimento totalmente objetivo; a busca pela verdade, o rompimento com o mito, a construção de leis gerais, o rigor metodológico e a imparcialidade do sujeito que produz o conhecimento (BARROS, 2013). No século XIX, com a consolidação do positivismo, a História foi transformada em conhecimento científico. Nesse momento, tanto a visão de História quanto a de Ciência eram muito diferentes do modo como conhecemos hoje. Para ser considerado científico, o conhecimento histórico precisava ser objetivo. Por isso, os defensores da corrente positivista insistiam que os fatos falavam por si só, ou seja, que não havia nada de interpretativo no trabalho do historiador. Para os historiadores positivistas, como Buckle, Renan, Taine e Fustel de Coulanges, a questão da objetividade e da verdade seriam imprescindíveis para que a História pudesse produzir um conhecimento realmente científico. Por isso, a história positivista se voltou para as fontes oficiais, principalmente os documentos escritos, muitas vezes relegando ao esquecimento as histórias mais cotidianas, bem como as memórias e os mitos. De acordo com José Carlos Reis (2011), os positivistasacreditavam que “se adotassem uma atitude de distanciamento de seu objeto, sem manter relações de interdependência, obteriam um conhecimento histórico objetivo, um reflexo fiel dos fatos do passado, puro de toda distorção subjetiva” (p. 24). Nesse sentido, o historiador seria aquele que narra os fatos que realmente aconteceram, exatamente do modo como eles se passaram. Somente alguns eventos eram consideramos como narráveis, tais como os políticos, religiosos, diplomáticos e administrativos. Assim, “propunham uma história do passado pelo passado, dos eventos políticos passados, pela curiosidade de saber exata e detalhadamente como se passaram" (REIS, 2011, p. 24). O grande problema dessa concepção de História é bem simples: o passado é inatingível, jamais poderemos viver novamente algo que já aconteceu. Qualquer pessoa já vivenciou esta impossibilidade. Depois de uma excelente viagem de férias, 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 22/26 por exemplo, você pode ver as fotos, anotar as lembranças e até mesmo voltar ao mesmo lugar, mas aquela experiência não poderá ser vivida novamente. Em certa medida, é isso o que acontece com o historiador: temos as fotos, as narrativas de memória e outras pistas de algo que aconteceu, mas não a experiência – e mesmo que tivéssemos vivido aquele momento, recuperá-lo seria impossível. Por isso, a os principais preceitos positivistas dificilmente podem ser aplicados à escrita da História. Com isso, podemos responder à pergunta do título de uma forma não muito direta: a História não é objetiva porque seu objeto de estudo é algo que já não existe mais. Porém, o rigor metodológico, o uso cuidadoso das fontes e a frequente contextualização das informações fazem dela um conhecimento importante. Figura 6 - A ampulheta nos ajuda a perceber a passagem do tempo e a inacessibilidade do passado. Fonte: koosen, Shutterstock, 2018. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 23/26 Estamos aqui fazendo uma defesa da História, mas outro historiador, um medievalista, realizou esta defesa bem antes. No próximo tópico, veremos um pouco mais da apologia do conhecimento histórico feita por Marc Bloch. 1.4.2 Uma apologia da História A crítica ao positivismo não significa, necessariamente, a ruptura com a possibilidade de um conhecimento histórico válido. Mesmo que a História não seja objetiva, isenta de juízos de valor e totalmente racional, ainda assim ela poderá servir aos nossos anseios de conhecer mais sobre a humanidade e também sobre nós mesmos. No século passado, um historiador resolveu responder a uma pergunta ao mesmo tempo simples e complexa: para que serve a história? Seu nome era Marc Bloch e ele contribuiu sobremaneira para toda a discussão em torno do pensamento histórico, de sua época até os dias de hoje. Marc Bloch viveu entre 1886 e 1944 e foi um importante historiador francês do século XX. Ele é um dos responsáveis pela criação da Escola de Annales, que realizou inovações de grande relevância para toda a produção do conhecimento histórico. Sua definição de História como ciência dos homens no tempo é utilizada até hoje como referência. Por integrar a resistência francesa, durante a Segunda Guerra Mundial, Bloch foi torturado e morto pela Gestapo em 1944. O questionamento sobre a serventia da história havia sido feito pelo filho de Marc Bloch. Partindo dela, ele se arriscou a discutir pontos importantes acerca da produção do conhecimento histórico e sobre a própria constituição da cultura ocidental a partir da História. José Carlos Reis (2011) resume bem os quatro principais argumentos de Bloch: 1) a História é a marca principal da civilização ocidental, desde a antiguidade, sendo quase inseparável dos nossos modos de ser, agir e pensar; VOCÊ O CONHECE? 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 24/26 2) ainda que não servisse para nada, a História ainda serviria para o prazer, para a curiosidade e para o entretenimento; 3) do ponto de vista intelectual, o conhecimento histórico serve para que nós, seres humanos, possamos nos conhecer e conhecer aquilo que nos rodeia; 4) por fim, essa forma de conhecimento é útil na medida em que permite o contato entre os humanos do presente com os do passado. Como você pode notar, essa defesa não está embasada na cientificidade do conhecimento histórico, ou seja, a História não precisa ser objetiva e resgatar o passado tal como ele foi para que ela seja importante para homens e mulheres na contemporaneidade. Todavia, esse entendimento um pouco mais amplo que é a História não quer dizer que ela não seja uma ciência. No decorrer do século XX, muito se discutiu sobre a quem serve a História, quais são as suas fontes e se sua produção pode ser enquadrada como científica. Não existe, porém, um consenso com relação a esses problemas. Sendo verdadeira ou não, científica ou não, objetiva ou não, a História se mantém como tema de interesse para a nossa sociedade. Síntese Finalizamos, retomando o que aprendemos até aqui. Entendemos os conceitos de mito, memória, ciência e História, quais suas diferenças e proximidades. E compreendemos o que os estudos históricos podem nos apresentar, por meio de seus principais elementos. Neste capítulo, você teve a oportunidade de: discutir as relações entre História, mito, memória e ciência; possibilitar o reconhecimento do conceito de mito e suas principais características; abordar as aproximações e distanciamentos entre História e memória; tratar das práticas relacionadas aos conceitos e teorias aprendidos anteriormente; mostrar um pouco do debate sobre objetividade, verdade e ciência no conhecimento histórico. 17/04/24, 17:16 Introdução aos Estudos Históricos https://student.ulife.com.br/ContentPlayer/Index?lc=YKt7MxVQCS6gX628JiW%2buw%3d%3d&l=YAy80uO90deUYElgx8APIQ%3d%3d&cd=C… 25/26 Referências bibliográficas ALMEIDA JÚNIOR, J. B. Introdução a Mitologia. São Paulo: Paulus, 2014. BARROS, J. A. História e memória - Uma relação na confluência entre tempo e espaço. Mouseion, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009, p. 35-67. BARROS, J. A. Teoria da história: os primeiros paradigmas: positivismo e historicismo. Vol. 2. Editora Vozes Limitada, 2013. BENTIVOGLIO, J; LOPES, M. A. 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