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BIBLioteCA 
fUNOACAo QETÚL10 VARGAS 
o PODER JUDICIARIO 
1. Introdução 
CANDIDO MOTTA FILHO 
1. Introdução 2. Justiça brasileira 3. A garantia do 
Poder Judiciário 4. A competência do Supremo Tribunal 
Federal 5. A competência dos demais órgãos do Poder 
Judiciário. 
A colocação do Judiciário como um dos podêres do Estado de­
mocrático que tem sido problemática é, no entanto, o menos pro­
blemático dos podêres. A dignidade do Príncipe, nas organizações 
antigas ou nas monarquias por direito divino, provinha de seu 
poder de distribuir Justiça. Mais tarde, com o constitucionalismo 
e a teoria do "Estado de direito", foi visto como um poder legítimo 
e essencial. Em nossos dias, na República Federal Alemã e com 
menor dimensão na República Italiana, chegam a dar, como obser­
va Karl Loewenstein, em sua Teoria da Constituição, "a posição 
dominante de árbitro supremo na dinâmica do processo político". 
O que ficou consagrado na Constituição de Bonn, com o Tribunal 
Constitucional Federal, abrange a ordem política federal, o que 
não conseguiu alcançar a Constituição de Weimar no seu artigo 19. 
A Constituição Italiana de 1948 criou, pelo artigo 134, um Tri­
bunal Constitucional para decidir sôbre a constitucionalidade das 
leis e atos com fôrça de lei, do Estado e das regiões, e para decidir 
os conflitos que surgissem entre um e outro, ou mesmo entre as 
regiões, tendo contudo uma atuação discreta. 
A Constituição Francesa de 1958 criou o Conselho Constitu­
cional, com competência de preexame de um projeto de lei, antes 
de ser promulgado pelo Presidente da República. 
Ainda agora noticia-se a modificação da composição da 
Côrte Constitucional alemã, com o receio de qUfi se implantasse, 
R. Cio po!., Rio de Janeiro, 6(1): 3-16, jan./mar. 1972 
na República dêsse País, uma judiciocracia, invocando-se o con­
flito que houve, nos Estados Unidos, com o Govêrno Roosevelt, 
e o que houve com a Côrte de Apelação da Africa do Sul. 
Entre nós, contudo, apesar de certos momentos difíceis por 
que passou o Supremo Tribunal Federal, nunca houve motivo 
para desânimo. Pelo contrário, a Justiça foi sempre a última es­
perança de nossa organização política. 
Estabelecido o Poder Judiciário, desde a primeira República, 
seguindo a Constituição Argentina e a Constituição Americana, 
êle foi visto, na dogmática da tripartição de podêres, como uma 
expressão da soberania nacional e, depois, como poder da União 
e dos Estados-membros da Federação. 
Se o direito é o pacificador dos antagonismos sociais, ninguém 
mais do que êle, expresso pelo juiz, tem uma função decisiva. 
A Constituição de 24 de janeiro de 1967, com as emendas de 
17 de outubro de 1969, não se desviou da tradição republicana, 
estabelecendo que são Podêres da União, independentes e harmô­
nicos, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 
Assim, todo o arcabouço da organização política do país ba­
seia-se na tripartição de podêres, que expressa em sua diversida­
de a unidade constitucional da ordem democrática. 
2. Justiça brasileira 
Quem acompanha e estuda a história da política brasileira pode 
basear-se na atuação de sua Justiça, mesmo quando ela não se 
inscrevia entre os podêres políticos, como aconteceu no Império 
com a Constituição de 25 de março de 1823. Durante o Império, 
não só as falhas da organização judiciária, mas da própria orga­
nização política, fizeram-se sentir no comportamento de seus juí­
zes, como nos mostra Clóvis Bevilacqua. Mesmo antes, na indi­
gência colonial do século XVIII, ou com as transformações pos­
teriores com a vinda para o Brasil da família imperial, isso ocorria. 
Em 1810, já Hipólito José da Costa escrevia no Correio Brasiliense 
que o aparato político-administrativo, transladado da Metrópole 
para cá, era um arranjo do Almanaque de Lisboa, roteiro da lusa 
administração! Daí as dificuldades da Justiça. 
Na Constituinte de 1823 havia numerosos juízes e magistrados 
de primeira instância, que foram rudemente criticados, embora 
estivessem presentes a ela Silva Lisboa, o Marquês de Olinda, o 
Marquês de Abrantes e o Visconde de São Leopoldo. 
Com a República, a influência do Judiciário tornou-se paten­
te, porque, mais prestigiada, foi mais compreendida em seu signi-
4 R.C.P. 1/72 
ficado social, político e cultural. É que, em tôdas as questões ju­
diciárias nas quais, apenas as partes divergem em busca de seus 
direitos, há sempre uma repercussão do que foi decidido na pro­
cura da visão unitária da Justiça. 
Um filósofo neokantiano, da Escola de Margburgo, concebe 
a jurisprudência como ciência dos problemas. Muito embora não 
possamos vê-Ia como a ciência das soluções, podemos dizer que 
ela é a ciência da coerência jurídica, ou da repercussão jurídica. 
O sentimento de Justiça que, para Goldschmitt, em sua Ciência 
da justiça não é personalista, mas igual para todos, exige um es­
fôrço incomparável por parte do juiz que, muitas vêzes, êle pró­
prio, não avalia. Lembra Benjamin Cardoso, em seu livro A na­
tureza do processo judicial que todos os ingredientes que entram 
na caldeira dos tribunais, todos o fazem em proporções variáveis. 
Nem mesmo o valor "standard", como tipo médio de conduta es­
capa a essa variação! ... 
Acresce a isso que não há vigilância maior do que aquela que 
o homem do povo exerce sôbre seus juízes e tribunais, que vai da 
máxima confiança à máxima desconfiança. No início da República, 
na cidade de Capivari, no interior de São Paulo, o juiz de direito 
enlouqueceu e começou a despachar e decidir na pauta dos dispa­
rates. O então Governador do Estado, Bernardino de Campos 
chamou o chefe político da cidade para ouvir sua opinião sôbre o 
que se dizia. Mas êsse retrucou: "Não acredito que êle esteja lou­
co, 'seu' doutor. Afinal de contas se trata de um juiz de direito!" 
Por outro lado, há uma literatura quase feroz sôbre a institui­
ção da Justiça. O Conde Keisserling que esteve em nosso País, na 
década de 30, dizia, com o pêso de seu sucesso universal: "Acre­
dito na Justiça, salvo a distribuída pelos tribunais!" 
Curiosa é a opinião de :Harold Laski, cujos trabalhos foram 
lidos e relidos no Brasil. Muito embora achasse êle que o juiz não 
passa de um instrumento do Estado, escreveu páginas admiráveis 
sôbre o juiz Hohnes, quando êste completou 89 anos. Hohnes, para 
Laski, confirmou o princípio de que, para ser um grande juiz, é 
preciso ser antes um grande homem. 
Muito embora pense que é demasiado amplo o conceito de 
Laski, porque o bom juiz é aquêle que sabe sê-lo, reconheço que 
êle pode tornar-se mais do que um juiz, um homem de projeção, 
como aconteceu com Hohnes. tle não é apenas um servidor da 
Justiça, mas um orientador do pensamento jurídico ou da políti­
ca jurídica de um povo. 
E isso se verifica principalmente quando a Constituição de 
um país reconhece o Judiciário como "poder, entre os podêres". 
o Poder Judiciário 5 
Quando Marshall advertia com freqüência, que "a Constituição 
não é uma porta senão um caminho", a sua advertência ecoava 
nas decisões de Holmes, como está expressa no caso Lochner v. 
Nova Iorque: - "A emenda 14.0 da Constituição não converte em 
lei a Estática Social de Herbert Spencer". 
Como poder, o Judiciário é uma sistematização orgânica, com 
uma vasta rêde de intercomunicações, êle se torna os pulmões da 
sociedade, respirando dentro da armadura do Estado. 
Que avanço extraordinário e audacioso foi êsse da Consti­
tuição de 1891 transformando, em nome da República Federativa 
e do sistema presidencial, o Judiciário em um dos podêres da so­
berania nacional! 
Rui Barbosa pensava, como pensavam muitos tratadistas nor­
te-americanos, que a presença da Justiça, entre os podêres da 
República, levaria a expulsar do recinto das lutas políticas a bru­
talidade da fera humana. E Rui Barbosa dizia, ao tomar posse no 
cargo de Presidente do Instituto dos Advogados, em 19 de novem­
bro de 1914: "A revolução jurídica, encerrada nessa mudança, era, 
entretanto, difícil de assimilar nosso temperamento aos nossoscostumes". 
E, após dizer que fomos educados no dogma da supremacia 
parlamentar, afirma: - "Substituí-la pelo regime presidencial, 
sem buscar, na criação de uma justiça, como a americana, posta 
de guarda à Constituição contra as usurpações do presidente e as 
invasões das maiorias legislativas, contra a onipotência dos go­
vernos ou congresso, igualmente irresponsáveis, era entregar o 
País ao domínio das facções e dos caudilhos". 
Fixava, a seguir, a atuação singular da política judiciária que, 
embora desarmada, desprovida de fôrça, de capacidade de no­
mear funcionários, é dela que "se temem e tremem os sacerdotes 
da imaculabilidade republicana". 
A Constituição de 24 de janeiro de 1967, nascida num dos mo­
mentos cruciais da vida republicana, deu ao Poder Judiciário, a 
sua continuidade. Mas não ficou aí. Proporcionou ao Supremo Tri­
bunal Federal podêres que antes não tinha, e deu feição nova à 
Justiça federal. 
Manteve as conquistas anteriores, destinadas a garantir os 
direitos fundamentais, isto é, que todos são iguais perante a lei, 
que a lei não prejudica o direito adquirido, o ato jurídico perfeito 
e a coisa julgada, e que a lei não pode excluir da apreciação do 
Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. 
:E:sse compromisso constitucional não deve ficar, como Don 
Quixote, lembrado por Wilhelm Schapp, em sua Nova Ciência do 
6 R.C.P. 1/72 
direito, que constrói uma síntese de valôres, num mundo sem 
valôres. E isso porque o mundo não vive do imaginário. Dando, 
como título de sua obra A misteriosa ciência do direito, Daniel J. 
Boors só se volta para o mundo do real, estudando a atuação de 
Blackstone, para quem a ciência do direito é uma ciência desti­
nada à conservação da vida como convivência. 
E é, realmente, através do Judiciário, que êsse direito se faz 
carne e vive para salvar-nos... Porque, através dela, fica, sem 
dúvida, garantida a supremacia da Constituição. E essa suprema­
cia ficou objetivamente consagrada como ficou consagrada com as 
constituições rígidas e escritas que estabelecem o equilíbrio das 
fôrças políticas, através da distribuição de competências. 
Nos Estados federais surge o problema da dualidade da Jus­
tiça: a Justiça dos Estados-membros e a Justiça federal. Nos Esta­
dos Unidos, na Suíça, no México, na Colômbia, na Venezuela, na 
Argentina há, como no Brasil, a Justiça local e comum e a Justiça 
federal e especial. 
A dupla Justiça tem sofrido rudes ataques, dirigidos mormen­
te contra os países, cujo federalismo, diferente do federalismo ame­
ricano, é mais uma disposição de Estados autônomos do que com­
posição de Estados meio soberanos. Para João Mendes, em seu 
Direito Judiciário, no entanto, não é federal, nem estadual, é emi­
nentemente nacional. 
A teoria adotada pelas Constituições brasileiras, desde a de 
1891, muito embora reconheça a existência de uma Justiça federal 
e outra dos Estados, não deixa de reconhecer que ambas difluem 
da organização nacional, de dispositivos da Constituição Federal, 
que estabeleceu as bases do Poder Judiciário, que tem por missão 
aplicar contenciosamente a lei aos casos particulares. Em conse­
qüência, o art. 112 da Constituição atual diz que o Poder Judiciá­
rio é exercido pelo Supremo Tribunal Federal, pelos Tribunais 
Federais de Recursos e juízes federais, tribunais e juízes militares; 
tribunais e juízes eleitorais, tribunais e juízes do trabalho, tribu­
nais e juízes estaduais. 
Por sua vez, os Estados-membros, conforme o art. 144, orga­
nizaram a sua justiça, dentro de certas regras básicas, inclusive as 
que se referem às garantias fundamentais dos juízes, destinadas a 
resguardar a independência de seus julgamentos, como a da vi­
taliciedade, não podendo o juiz perder o cargo senão por sentença 
judiciária; a inamovibilidade, exceto por motivos de interêsse pú­
blico; a irredutibilidade de vencimentos, sujeitos entretanto aos 
impostos gerais, de renda e extraordinários, inclusive o instituído 
em estado de guerra. 
o Poder Judiciário 7 
3. A garantia do Poder Judiciário 
Essas três garantias valem para todos os juízes incumbidos de de­
clarar o direito, porque é da essência da missão judiciária. 
As garantias não são só essas. Pelo art. 133, § 1.°, a aposenta­
rloria compulsória só se dá aos 70 anos. Entre a velhice provável 
e a possibilidade do espírito jovem, ficou a Constituição com a 
possibilidade da velhice. Nos Estados Unidos a norma, enquanto 
bem-servir aplicou-se à Suprema Côrte. Alguns juízes continua­
ram como presidentes, com mais de 70 anos, como aconteceu com 
Marshall, com Taney, White e Fuller. Mas, o Congresso America­
no proporcionou a aposentadoria voluntária aos que chegassem 
aos 70 anos. 
Charles Hughes, no seu estudo sôbre a Suprema Côrte, refe­
re-se aos 85 anos admiráveis de Holmes e conta como se apresentou 
uma objeção ao critério constitucional. O Juiz Grier, que se mos­
trava, com o avanço da idade, demasiadamente esgotado, foi visi­
tado por uma comissão de juízes para sugerir-lhe deixar a atividade 
judicante, o que se repetiu, mais tarde, com o Juiz Field, quando 
um dos juízes recordou o fato anterior, do qual êle fizera parte e 
sugeriu-lhe retirar-se da atividade. E Field, depois de ouvi-lo pa­
cientemente, disse: "Sim. Foi o trabalho mais sujo de minha vida!" 
A forma brasileira da aposentadoria compulsória pode impe­
dir que grandes juízes continuem servindo à Justiça. Mas, não há 
dúvida que é a melhor, porque a lei não deve nem pode guiar-se 
pela excessão para transformá-la em regra. 
Pelo § 2.° do art. 113, o tribunal competente poderá, porém, 
determinar, por motivo de interêsse público, em escrutínio secreto 
e pelo voto de dois terços de seus juízes efetivos, a remoção e dis­
ponibilidade do juiz de categoria inferior. 
O art. 115, por sua vez, apresenta vedações, que são formas 
também de garantir a independência do juiz: êste, sob pena de 
perda do cargo judiciário, não poderá exercer, ainda que, em dis­
ponibilidade, qualquer outra função pública, salvo um cargo de 
magistério; receber, a qualquer título e, sob qualquer pretexto, 
percentagens nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento, 
e exercer política partidária. 
O artigo 115 conferiu aos tribunais podêres que antes não 
eram previstos e que repercutem no aperfeiçoamento do poder de 
julgar. Assim, os tribunais têm competência para eleger seus pre­
sidentes e demais titulares de sua direção; elaborar o regimento 
interno e organizar os serviços auxiliares, prevendo-lhes os cargos 
na forma da lei; propor ao Poder Legislativo a criação ou a ex-
8 R.C.P. 1/72 
tinção de cargo e a fixação do respectivo vencimento; conceder 
licença e férias, nos têrmos da lei, aos seus membros e aos juizes 
e serventuários que lhes forem imediatamente subordinados. 
O Supremo Tribunal Federal está de posse de competência 
constitucional para manejar, com maior flexibilidade e com maior 
alcance, o processo e julgamento dos feitos de sua competência 
originária ou de recurso. 
O direito regimental passa, como lembra Seabra Fagundes, de 
supletivo da legislação processual, para direito principal e exclu­
sivo. 
Mas, a Constituição não ficou só nesse quadro. Enfrenta, pelo 
artigo 116, o problema essencial da missão constitucional dos tri­
bunais, dispondo que "somente pela maioria pode declarar a in­
constitucionalidade da lei ou ato do poder público". 
A coerência legal, que deve coincidir com a coerência jurídica, 
só pode ser mantida se aos tribunais forem atribuídos os encargos 
de guarda da Constituição e das leis. É nêles que se refletem os 
múltiplos aspectos políticos da experiência jurídica. 
Em princípio todos somos guardas da Constituição e das leis. 
É dever do cidadão respeitá-las, assim como as autoridades e os 
podêres da República. Conseqüentemente, a presunção é a de que 
as leis e os atos do poder público são constitucionais. 
Mas é nos tribunais que reside a vigilância e a segurança da 
constitucionalidade, como se fêz sentir na famosadecisão de 
Marshall, preocupação anterior a 1887 quando se chegou a propor 
um Council of Revision das leis inconstitucionais. 
Porque, como bem observa Carlo Espirito, em seu livro La 
valità delle leggi, no fundo, o que se tem em vista é a legitimidade 
da lei. 
É o que está explícito no artigo 16 da Declaração de direitos 
da França, em 1791: "Toute société dans laquelle la garantie des 
droits n'est pas assurée ni la séparation de pouvoir determineé, 
n'a point de Constitution". 
Assim, para que um tribunal interprete ou cumpra a lei, é 
preciso que, para êle, seja a lei constitucional. "A lei contrária à 
Constituição, o regulamento contrário à lei, o ato administrativo 
contrário a leis e regulamentos, não são válidos. 
Em 1893, quando, entre nós, a República inexperiente deba­
tia-se, em crises sucessivas, Rui Barbosa enfrentou, entre nós, pela 
primeira vez, o tema dos atos inconstitucionais do Congresso e do 
Executivo. 
o Poder Judiciário 9 
Depois de mostrar que a nossa Constituição, isto é, a de 91, 
não só distribuiu competências e limitou podêres, como também 
fêz com que tanto o Legislativo e o Executivo fôssem parte dela. 
E cita Marshall: "Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, 
irreformável pelos meios comuns; ou se nivela com os atos da 
legislação usual e, como êstes, é reformável ao sabor da legisla­
tura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo 
contrário à Constituição não será lei". 
E cita o famoso aresto sôbre o caso Marbury v. Madison, no 
qual Marshall afirma: "Estando a lei em antagonismo com a Cons­
tituição ou de acôrdo com a Constituição, rejeitando a lei, inevi­
tável será escolher dentre os dois preceitos opostos o que domi­
nará o assunto." 
Essa competência para anular as leis constitucionais, é, para 
Bryce,l "antes um dever do que um poder". 
Pensamos contudo que na linguagem constitucional, tendo-se 
em conta essa citação de Bryce, feita no trabalho de Rui. todo po­
der é um dever. 
Rui, a seguir, entra nesse ponto essencial da Constituição de 
91, escrevendo: "Não esqueçamos que a Constituição brasileira 
afirma claramente êsse direito. Mas, quando não o fizesse, êle não 
seria menos inelutável. Nem a Constituição local nem a dos Es­
tados Unidos contêm artigo que prescreva, à autoridade judiciá­
ria, não aplicar as leis inconstitucionais. Nenhum texto explícito 
e formal a investe nessa prorrogativa tão importante; o juiz a 
possui implicitamente como parte integrante de suas atribuições". 
Mas, a Constituição de 67 fixou, entre as competências do 
Supremo, pelo art. 119, I letra n: "processar e julgar originària­
mente a representação do Procurador-Geral da República por in­
constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual". 
O Supremo Tribunal Federal, com essa nova competência, 
aprecia a constitucionalidade, mediante representação do Pro­
curador-Geral da República. Com êsse dever atribuído ao Pro­
curador-Geral, não haverá mais o perigo da anarquia constitucio­
nal prevista por numerosos juristas, tanto mais que o Presidente 
da República e os governadores de Estado-membro não poderão 
de deixar de cumprir a lei sob o fundamento de inconstituciona­
lidade. 
O artigo 117 da Constituição cuida do processamento dos pa­
gamentos devidos pela Fazenda federal e estadual ou municipal e, 
como medida de precaução, contra o descrédito do poder público. 
1 Bryce. American C01nmonwealth, 1: 336. 
10 R.C.P. 1/72 
Estabelece, no § 1.0 da inclusão obrigatória, no orçamento, das en­
tidades de direito público, da verba necessária ao pagamento dos 
seus débitos constantes de precatórias, apresentadas até 1.° de 
julho. E minuciando diz, no § 2.°, que as dotações orçamentárias e 
os créditos abertos serão consignados ao Poder Judiciário, caben­
do ao Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exequenda, 
determinar o pagamento, segundo as possibilidades do depósito e 
autorizar, a requerimento do credor preterido no seu direito de 
precedência, ouvido o chefe do Ministério Público, o seqüestro 
da quantia necessária à satisfação do débito. 
O Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da União 
e jurisdição em todo o território nacional é, conforme o art. 118 e 
seu parágrafo único, composto de 11 ministros, nomeados pelo 
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Se­
nado Federal, dentre os cidadãos maiores de 35 anos, de notável 
saber jurídico e reputação ilibada. 
Convém assinalar que a exigência de notável saber jurídico 
e reputação ilibada: é diversa da fórmula da Constituição de 91, 
que falava, em seu artigo 56, apenas em notável reputação, o que 
deu motivo à nomeação de cidadãos sem nenhuma capacidade ju­
rídica para exercer sua função. 
O saber jurídico e reputação ilibada assinalam, na harmonia 
dos três podêres, uma exigência excepcional. O juiz é um homem 
formado em direito e que possui cultura jurídica. Sua reputação 
deve ser ilibada, o que não é exigido para os outros dois podêres, 
o Legislativo e o Executivo. No entanto, o Senado tem a grave in­
cumbência de julgar, conforme o artigo 42, I, o PRESIDENTE DA 
REPÚBLICA, nos crimes de responsabilidade e os Ministros de 
Estado nos crimes da mesma natureza conexa com êle. 
Pelo artigo 119, julga, originàriamente, o Presidente, o Vice­
Presidente, os Deputados e Senadores, os Ministros de Estado e o 
Procurador-Geral da República. 
A Constituição de 1967 segue, em suas linhas gerais, o roteiro 
anterior: cuidar da competência do Supremo Tribunal Federal e 
colocar limites à sua jurisdição, em razão de pessoa e em razão 
de matéria. E como Tribunal Supremo, a cúpula do Poder Judi­
ciário é destinada a definir a ordem jurídica no equilíbrio nacional 
de todos os podêres. Aproveitou-se de mais de meio século de ex­
periência republicana, mas se apresentou num mundo conturbado 
onde tôdas as velhas definições assumiram um caráter ambíguo, 
em que, sem dúvida, o político e o revolucionário vêm predomi­
nando sôbre o jurídico. 
o Poder Judiciário 11 
4. A competência do Supremo Tribunal Federal 
Cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, orIgmarIa 
e privativamente, os litígios entre os Estados ou organismos inter­
nacionais e a União, os Estados, o Distrito Federal, ou os Territó­
rios; os conflitos de jurisdição entre Tribunais Federais, de cate­
gorias diversas e entre os Tribunais dos Estados e o do Distrito 
Federal; os conflitos entre as autoridades administrativas e judi­
ciárias de um Estado e as de outro, ou do Distrito Federal e dos 
Territórios; ou entre as autoridades dêstes e as da União; a extra­
dição e a homologação das sentenças estrangeiras, o habeas-corpus 
e os mandados de segurança, a declaração de suspensão de direi­
tos, as revisões criminais e as ações recisórias de seus julgados. 
Mas, o que assume nova feição é o julgamento do recurso extraor­
dinário, que é o recurso que, em princípio, se justifica para manter 
a autoridade da Constituição e das leis federais. A semelhança do 
writ of error que os Estados Unidos consagram, o recurso extra­
ordinário tem sido pretexto para transformar o Supremo Tribunal 
Federal em terceira instância. 
A Constituição de agora estabeleceu, em seu artigo 119, lII, 
que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, mediante re­
curso extraordinário, as causas decididas em única e última ins­
tância por outros tribunais, quando a decisão contrariar: a) dis­
positivo da Constituição ou de lei federal; ou b) julgar a validade 
de lei ou ato do Govêrno local contestado em frente à Constituição 
e de lei federal; ou c) quando se der à lei federal interpretação 
divergente daquela dada por outro tribunal ou pelo próprio Su­
premo Tribunal Federal. 
Mantendo os demais casos da Constituição de 1946, a atual 
consagra o recurso constitucional, em certo ponto de maneira ino­
vadora, pois o recurso cabe "da decisão que negar vigência de 
tratado ou lei federal". 
A Constituição de 91 no seu art. 59 referia-se à questionabili­
dade da validade de uma leifederal ou de um tratado da União. 
Já o Decreto n.o 848, de 11 de outubro de 1890, proporcionava o 
recurso extraordinário quando a Justiça local decidia contra a va­
lidade de lei federal ou a sua aplicabilidade. Depois da Constitui­
ção, dispuseram no mesmo sentido a Lei n.o 221, de 29 de novem­
bro de 1894, em seu artigo 59, § 1.0 da Constituição e do artigo 9.0, 
§ 2.° letra c, do citado Decreto n.o 848, na forma estabelecida nos 
artigos 90 e 102 de seu regimento. Por muito tempo a divergência, 
em tôrno da questão federal, é que alimentava o recurso extraor­
dinário. 
12 R.C.P. 1/72 
A lição de Pedro Lessa chega oportuna, diante do que ocorre 
com a Constituição de 67: "Da aproximação dêsses textos legais 
surgiu a seguinte questão, que tem sido vivamente debatida: que 
é que justifica a interposição do recurso extraordinário e o faz 
merecedor de provimento? É a decisão contrária à aplicabilidade 
da lei federal? A que declara inaplicável essa lei? Ou a que não 
se aplica? Qualquer que seja o modo pelo qual se deixe aplicar a 
lei tem cabimento o recurso?" 
Depois de citar a opinião de João Barbalho e analisar gramà­
ticamente o têrmo aplicável, conclui que cabe, conseqüentemente, 
"o recurso extraordinário, quando a Justiça local não aplica a 
uma espécie judicial a lei federal aplicável". 
"Tendo êsse recurso", diz Pedro Lessa, "por função, manter 
a autoridade das leis federais e, entre nós, conseqüentemente, a 
unidade do direito substantivo em todo o território nacional, fôra 
absolutamente incompreensível e intolerável facultá-lo nos casos 
em que a Justiça local declara inaplicável uma lei federal, ou dei­
xar de aplicá-la sem justificar o seu procedimento, e negá-lo nos 
casos em que os Tribunais dos Estados não aplicam a lei federal, 
porque, interpretando-a com evidente paralogismos e sofismas, de 
fato, a nulificam ... " 
Mas a Constituição de 67 fala em "negar vigência" de tratado 
ou lei federal. 
A palavra vigência, que já aparecia ao par da palavra valida­
de na Constituição de 34 e, antes na Constituição de 1926, deu 
também margem a diversas interpretações. Essas se acumularam 
nos tratadistas estrangeiros e nacionais e alcançaram até pensado­
res como Ortega y Gasset, como lembra o jurista José Hierro S. 
Pescados, em seu livro El derecho in Ortega. 
Para Ortega, a palavra vigência procede da terminologia ju­
rídica. "A lei vigente", diz Ortega, "é aquela que, quando o indi­
víduo a necessita, ela se dispara automàticamente como um apa­
rato mecânico do poder". (p. 53). 
O Supremo Tribunal Federal esclareceu êsse significado, nes­
se plano, quando sustentou a equivalência entre negar validade de 
lei ou não aplicá-la ao caso por ela expressamente regulado. A 
vigência, como lembra Ortega, vem, automàticamente, em socorro 
de um dispositivo que não foi aplicado como devia ser. 
O funcionamento do Supremo Tribunal Federal é previsto no 
artigo 120. tsse artigo diz o que o regimento interno deve esta­
belecer, qual a competência de plenário, a composição das turmas, 
o processo e julgamento, a competência de seu Presidente para 
conceder exequatur às cartas rogatórias. 
o Poder Judiciário 13 
5. A competência dos demais órgãos do Poder Judiciário 
Composto de ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da 
República, conforme o art. 121, depois da aprovação da escolha 
pelo Senado, o Tribunal Federal de Recursos compõe-se de oito 
entre magistrados e cinco entre advogados e membros do Ministé­
rio Público. Em seu § 1.° diz que a lei complementar poderá criar 
Tribunais de Recursos. um no Estado de Pernambuco e um no 
de São Paulo. 
Essa promessa constitucional vem encontrando resistência, di­
ante da possibilidade do esvaziamento do Tribunal Federal de Re­
cursos sediado em Brasília. 
Pode ser que, com o desenvolvimento econômico e social do 
País, êsse tresdobramento mostre-se necessário, dada a compe­
tência do Tribunal, privativa quanto ao julgamento de mandado 
de segurança, estendendo-se ao julgamento de revisões criminais 
e ações recisórias de seus julgados; dos juízes federais, do Tra­
balho, do Tribunal de Contas dos Estados e os do Distrito Federal, 
nos crimes comuns e de responsabilidade; dos mandados de se­
gurança contra ato do Ministro de Estado, do Presidente do pró­
prio Tribunal ou de suas Câmaras ou turmas, do responsável pela 
direção-geral da política federal ou de juiz federal; os habeas-cor­
pus, quando a autoridade coatora fôr Ministro de Estado ou o res­
ponsável pela direção-geral da política federal ou juiz federal e os 
conflitos de jurisdição entre juízes federais subordinados ao mesmo 
tribunal ou entre suas Câmaras ou turmas; entre juízes federais 
subordinados a tribunais diferentes; entre juízes de Estados di­
versos; entre juízes de Estados e do Distrito Federal e dos Ter­
ritórios e os de outro; e, em grau de recurso, às causas decididas 
pelos juízes federais, podendo a lei estabelecer competência ori­
ginária do Tribunal de Recursos para a anulação de atos adminis­
trativos de natureza tributária. 
É novidade a inclusão da seção IV, sôbre juízes federais, 
tendo os autores da Constituição levado em conta uma experiência 
que foi proporcionada por longos anos e depois suprimida. 
Conforme o artigo 123, os juízes serão nomeados pelo Presi­
dente da República, dentre os juízes federais substitutos, alter­
nadamente por antiguidade e por escolha, em lista tríplice or­
ganizada pelo Tribunal Federal de Recursos, com jurisdição na 
circunscrição judiciária onde houver ocorrido a vaga. Consagrando 
o provimento do cargo de juiz substituto, mediante concurso de 
provas e de títulos, a Constituição, pelo artigo 24, estabelece em 
cada Estado e no Distrito Federal, uma seção judiciária, que terá 
por sede a respectiva Capital ou conforme fôr estabelecido em lei. 
14 R.C.P. 1172 
A competência dos juízes federais está contida no artigo 125, 
abrangendo desde as causas em que a União, entidade autárquica 
ou emprêsa pública federal forem interessadas nas condições de 
autoras, assistentes ou opoentes; as causas entre Estados estran­
geiros ou organismos internacionais e municípios ou pessoas do­
miciliadas ou residentes no Brasil; as causas fundadas em tratado 
ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo inter­
nacional; os crimes políticos e os praticados em detrimento de 
bens, serviços ou interêsses da União ou de suas entidades autár­
quicas ou emprêsas públicas; os crimes previstos em tratados e 
convenções internacionais e os cometidos a bordo de navios e 
aeronaves; os crimes contra a organização do trabalho ou decor­
rente do direito de greve; os habeas-corpus em matéria criminal 
e os mandados de segurança contra ato de autoridade federal; as 
questões de direito marítimo e de navegação aérea e os crimes de 
ingresso ou permanência irregular do estrangeiro, as cartas roga­
tórias e as causas referentes à nacionalidade e à naturalização. 
A seção V cuida dos tribunais e juízes militares. A Consti­
tuição de 1946, em seu artigo 106, determinava, em seu parágrafo 
único, que a lei disporá sôbre o número e a forma da escolha dos 
juízes militares e togados do Superior Tribunal Militar. A Consti­
tuição de 67 porém fixa, no artigo 128, o número de Ministros, 15 
vitalícios, sendo três entre oficiais-generais da ativa da Marinha, 
quatro entre oficiais-generais da ativa do Exército, três oficiais-ge­
nerais da ativa da Aeronáutica e cinco entre civis. 
A seção VI é voltada para os tribunais e juízes eleitorais, no 
mesmo estilo da Constituição de 46, modificando porém o número 
de juízes, pelo artigo 131; três juízes entre os Ministros do Supremo 
Tribunal Federal, dois entre os membros do Tribunal de Recursos 
da Capital da União e seis advogados de notável saber jurídico e 
idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal. 
Por sua vez, modificou o critério adotado pela Constituição 
de 46, em seu artigo 112, quando à composição dos tribunais re­
gionais. Compostos de três juízes escolhidospelo Tribunal de Jus­
tiça e dois dentre os juízes de direito e dois dentre seis cidadãos 
de notável saber e idoneidade moral, agora os tribunais, pelo art. 
133 da Constituição, são compostos de dois juízes dentre os desem­
bargadores do Tribunal de Justiça, dois entre os juízes de direito, 
de juiz federal e por seis cidadãos de notável saber e idoneidade 
moral. 
A Constituição assegurou, dêsse modo, a supremacia inequívo­
ca do Supremo Tribunal na composição do Tribunal Superior 
Eleitoral e o melhor equilíbrio entre os tribunais regionais. 
o Poder Judiciário 15 
A seção VII cuida dos órgãos da Justiça do Trabalho. A Cons­
tituição anterior estabelecia que o Tribunal do Trabalho tem sede 
na Capital Federal, conforme o § 1.0 do artigo 122, ao passo que a 
Constituição atual não se refere à sede e estabelece, no art. 141, 
§ 1.0, que o Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de 17 
juízes com a denominação de Ministros, 11 togados e vitalícios, 
sete entre magistrados da Justiça do Trabalho; dois entre advoga­
dos de efetivo exercício na profissão e dois membros do Ministério 
Público da Justiça do Trabalho, exigência que não constava na 
Constituição anterior. Exige ainda, nessa composição, seis clas­
sistas em representação paritária dos empregadores e dos traba­
lhadores. 
Quanto à Justiça dos Estados, a atual Constituição estabeleceu 
em seu art. 124, alguns princípios, inovadores, tais como, pelo § 
3.°, a competência privativa do Tribunal de Justiça de processar e 
julgar os membros do Tribunal de Alçada e os juízes de inferior 
instância, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, ressalvada 
a competência da Justiça Federal e a do § 4.° que diz que os venci­
mentos dos juízes vitalícios serão fixados com diferença não exce­
dente a 20% de uma para outra entrância, atribuindo-se aos de 
entrância mais elevada não menos de dois terços dos vencimentos 
dos desembargadores e não podendo nenhum membro da Justiça 
estadual perceber, mensalmente, importância total superior ao li­
mite máximo estabelecido em lei federal. 
Essa medida destinada a estabelecer a unidade de critério sô­
bre vencimentos enfrenta um dos problemas mais delicados da 
magistratura. Se é verdade que, no Estado de São Paulo, a ma­
gistratura tem tido até agora os mais altos vencimentos da Repú­
blica, o que se explica num Estado rico onde existem as seduções 
de outras atividades fartamente remuneradas, constitui um fator 
para fomentar o desinterêsse pelo difícil e ingrato papel de juiz. 
E se o problema toma êsse aspecto num Estado de grandes 
possibilidades econômicas, reveste-se de gravidade maior em Es­
tados onde a independência do juiz fica à mercê de mesquinhos 
vencimentos. 
De qualquer forma, a atual Constituição não recusou refor­
çar o prestígio da Justiça, mantendo, nas diversas áreas, os remé­
dios de direito constitucional destinados a definir o Estado como 
uma organização de podêres em harmonia com a organização das 
liberdades. 
16 R.C.P. 1/72

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