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o VOTO DO ANALFABETO NO BRASIL* JosÉ CARLOS B. ALEIXO* * 1. Introdução; 2. Retrospecto histórico; 3. Resumo dos principais argumentos a favor do voto dos analfabetos; 4. Conclusão. 1. Introdução Em um estudo mais amplo de eleições no Brasil, sejam elas as de 15 de no vembro de 1982 ou outras, deve-se reservar um capítulo para as pessoas excluí das das urnas, independentemente de suas vontades e, quanto se sabe, contra riamente a elas. Pelo número e pela gravidade da matéria ocupam lugar de des taque as pessoas analfabetas. Conforme dados do IX Recenseamento Geral de 1980,1 em um total de 102.421.730 habitantes com cinco ou mais anos de idade, as pessoas analfabetas somavam 31.600.668, divididas entre 16.285.170 mulheres e 15.315.498 homens. O número de pessoas analfabetas com 20 ou mais anos totalizava 17.301.979 repartidas entre 8.562.007 mulheres e 7 . 779 . 868 homens. Se acrescentarmos a faixa etária de 18 e 19 anos podemos estimar em bem mais de 18 milhões a soma de pessoas analfabetas no Brasil com idade suficiente para requerer o título de eleitor. Segundo informações re centes o eleitorado feminino é de 24.600 mil e o masculino é de 29.400 mil perfazendo ambos 54 milhões.2 As mulheres constituem pois uma parcela con sideravelmente menor do eleitorado, sendo a maior percentagem de analfabetismo grande embora não a única causa dessa diferença. 2. Retrospecto histórico Através dos tempos considerações relacionadas com propriedade, residência, renda, mendicidade, etnia, religião, sexo, insanidade mental e deficiências físicas, ideologias, profissão, conhecimento da língua nacional, dependência hierárquica, cidadania, sentenças condenatórias, instrução, etc., limitaram o acesso ao sufrágio. No entanto durante os séculos XIX e XX muitas destas restrições vêm sendo eli minadas de tal forma que a idéia do sufrágio universal passou a figurar na * Trabalho apresentado à reunião do Grupo de Trabalho Mulher e política, Friburgo, 20 a 22 de outubro de 1982. H Da Universidade de Brasília. 1 Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IX Recenseamento Geral do Brasil - 1980. Tabulações avançadas do censo demográfico. Resultados preliminares. Rio de Janeiro, IBGE, 1981. p. 16. v. 1, t. 2. 1 54 milhões votam em novembro. Correio Braziliense, Brasília, 7 out. 1982. p. 6. R. Cio pol., Rio de Janeiro, 26(1):11-21, jan./abr. 1983 constituição de muitos países, inclusive na do Brasil (art. 148), assim como em documentos internacionais. Segundo Marcel Prelot coube a Mallet du Pan (1749-1800) o emprego pela primeira vez, da expressão "sufrágio universal".3 A França o adotou em 1848 elevando os eleitores masculinos de menos de 300 mil para 9 milhões. Interessa-nos aqui apresentar breve retrospecto da legislação eleitoral no Brasil. Durante a Colônia e o Império o analfabeto como tal não estava impedido de votar. A revolução do Porto de 1820 tornou necessária a eleição de cidadãos em Portugal, no Brasil e nas colônias, para compor as cortes gerais e extraordiná rias. Inspirado na Constituição espanhola, o decreto fixou a população, e não a instrução, como base eleitoral: buscava-se um deputado para cada 30 mil pes soas livres, estas sendo a base da representação. Levando em conta também a população escrava, as Instruções de 19 de ju lho de 1822, de José Bonifácio, ampliaram a representação. Conforme o § 59, do capítulo 11 "os que não souberem escrever ( ... ) dirão ao secretário os no mes daqueles em que votam; este formará a lista competente que, depois de lida, será assinada pelo votante com uma cruz, declarando o secretário ser aque le o sinal que usa tal indivíduo". A 26 de março de ! 824 expediram-se instru ções para eleições de deputados e senadores e de membros dos conselhos gerais das províncias . .:Elas não excluíam os analfabetos do sufrágio nas assembléias provinciais. Não havia contudo obrigatoriedade de voto:\ Semelhantemente a re solução imperial de 28 de novembro de 1848, de aCõrdo com o parecer da Seção de Justiça do Conselho de Estado, estabeleceu que poderiam ser "votan tes" e "eleitores" os que não soubessem ler e escrever, visto não estarem ex cluídos pela Constituição (arts. 91 e 92) e a lei eleitoral de 1846 (arts. 17, 18 e 53). O projeto Sinimbu de reforma eleitoral propunha, entre outras matérias, a exclusão dos analfabetos do sufrágio. Nesta oportunidade o liberal Joaquim Na buco fixou sua posição doutrinária. Em eloqüente discurso de 29 de abril de 1879 afirmou que, se o tema chegasse a uma Constituinte "votaria contra a con dição de saber ler e escrever". A exclusão dos analfabetos das urnas fez-se, já proclamada a República, atra vés do Decreto n9 6, de 19 de novembro de 1890, que especificava: "Conside ram-se eleitores, para as câmaras gerais, províncias e municípios, todos os cida dãos brasileiros, no gozo de seus direitos civis e políticos que souberem ler e escrever". As constituições brasileiras da fase republicana têm sido constantes em ex cluir o analfabeto do elenco dos que podem alistar-se eleitores. Assim estabelece o § 19 do art. 70 da Carta Magna de 24 de fevereiro de 1891: "Art. 70. Serão eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1 Q Não podem alistar-se eleitores para eleições federais ou para as dos es tados: , Prelot, MareeI. Institutions politiques et droit constitutionnel, Paris, Dalloz, 1969. p. 56. 12 R.C. P. 1/83 I. Os mendigos; 11. Os analfabetos; ------------------------------------~~ IH. As praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino su perior; IV. Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comuni dades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade individual. § 2<? São inelegíveis os cidadãos não-alistáveis." A Constituição de 16 de julho de 1934 diminuiu a lista dos cidadãos excluí dos das urnas: "Art. 108. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei. Parágrafo único. Não se podem alistar eleitores: a) os que não saibam ler e escrever; b) as praças de pré, salvo os sargentos, do Exército e da Armada e das forças auxiliares do Exército, bem como os alunos das escolas militares de ensino su perior e os aspirantes a oficial; c) os mendigos; d) os que estiverem, temporária ou definitivamente, privados dos direitos po líticos. " A Constituição outorgada com o Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, assim determinou: "Art. 117. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de I 8 anos, que se alistarem na forma da lei. Parágrafo único. Não podem alistar-se eleitores: a) os analfabetos. b) os militares em serviço ativo; c) os mendigos; d) os que estiverem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos po líticos. " A Lei Constitucional n<? 9, de 28 de fevereiro de 1945, ainda sob o mesmo governo de Getúlio Vargas, deu a seguinte redação ao art. 117: "Art. 117. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei e estiverem no gozo dos direitos políticos. Os militares em serviço ativo, salvo os oficiais, não podem ser eleitores." O analfabeto deixou de ser objeto especial de determinação constitucional, embora continuasse impedido de votar em razão das leis em vigor. O texto da Constituição de 18 de setembro de 1946 fixa: "Art. 131. São eleitores os brasileiros maiores de 18 anos que se alistarem na forma da lei. Art. 132. Não podem alistar-se eleitores: I -- os analfabetos; H -- os que não saibam exprimir-se na língua nacional; IH -- os que estejam privados, temporária ou definitivamente, dos direitos po líticos. Parágrafo único. Também não podem alistar-se eleitores, as praças de pré, salvo os aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de ensino superior."Finalmente, a Constituição em vigor, promulgada em 1967 e emendada em outubro de 1969, assim reza: ,O ato do analfabeto "Art. 147. ( ... ) § 39. não poderão alistar-se eleitores: a) os analfabetos; b) os que não saibam exprimir-se na língua nacional; c) os que estiverem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos po líticos." Neste ano de 1982 o Congresso restabeleceu a maioria qualificada de dois terços como exigência para modificações nos artigos da Magna Carta. Isto di ficulta ainda mais a extensão ao analfabeto do direito ao voto. Na vigência das Constituições de 1946 e 1967 numerosos congressistas apre sentaram projetos de emenda constitucional em favor do sufrágio do analfabeto. São exemplos, na Câmara, os de Armando Falcão (15/57), Rui Ramos (02/59), Fernando Ferrari (27/61). Magalhães Melo (10/63), Ruy Barcelar (15/77), Joel Ribeiro (73/80) e José Costa (91/80). O Senador Orestes Quércia tam bém introduziu proposta no mesmo sentido. Estes projetos, com exceção do de Rui Ramos rejeitado em 9-6-1965,4 malograram por decurso de prazo e arqui vamento. Transcrevem-se a seguir algumas das propostas mencionadas. Projeto de Emenda Constitucional n9 15, de 1957. (Do Sr. Armando Falcão.) Substitui o atual art. 132 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil. O Congresso Nacional aprova a seguinte emenda à Constituição: Artigo único. Fica substituído o atual art. 132 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil pelo seguinte: Art. 132. não podem alistar-se eleitores: I - os que não saibam exprimir-se na língua nacional; II - os que estejam privados, temporária ou definitivamente dos direitos po líticos. § 19. Também não podem alistar-se eleitores as praças de pré, salvo os aspirantes a oficial, os suboficiais ou subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de ensino superior. § 29. A lei disporá sobre a forma pela qual possam os analfabetos alistar-se e exercer o direito ao voto. Na justificativa do projeto do Deputado Armando Falcão se lê: "O analfabeto é um cidadão brasileiro para todos os efeitos. Paga impostos, é convocado para o serviço militar, é chefe de família, pertence a partidos po líticos, integra associações de classe, participa de campanhas eleitorais, é pro prietário, é comerciante, é agricultor, é industrial. Mas há uma discriminação in justa: não pode ser eleitor. Se o filho alfabetizado for candidato, o pai analfa beto está proibido de ajudá-lo a vencer. O analfabeto tem os ônus da cidadania. Não pode ter, todavia, uma das suas prerrogativas ou faculdades essenciais, o que, mais do que injusto, é iníquo e odioso." O projeto contou com 106 assinaturas. Projeto de Emenda Constitucional n9 2, de 1959. (Do Sr. Ruy Ramos.) Altera os arts. 132 e 138 da Constituição federal (alistamento eleitoral). 4 Diário do Congresso Nacional, 10 jun. 1965. p. 4.217. 14 R.C.P. 1/8l Art. 19. Os arts. 132 e 138 da Constituição federal passarão a ter a seguinte redação: Art. 132. Não podem alistar-se eleitores: I - Os que não saibam exprimir-se na língua nacional; 11 - Os que estejam privados temporária ou definitivamente dos direitos po líticos. § 19. A lei eleitoral estabelecerá a forma pela qual os analfabetos possam alistar-se eleitores e exercer o direito do voto. § 29. Fica também assegurado o direito do voto às praças de pré. Art. 138. São inelegíveis os inalistáveis e os mencionados no § 1<;> do art. 132."5 O Projeto de Emenda Constitucional n9 27 de novembro de 1961, de autoria do Deputado Fernando Ferrari, postula a extensão do sufrágio ao analfabeto. Para ele a "verdade eleitoral" será uma miragem apenas, se o legislador não li berar os iletrados brasileiros das peias que os amarram distantes das umas. "Nunca, entretanto, é demais repetir-se que vivemos sob uma democracia no minal, pois a maior parte da nação, não-alfabetizada, perdida nos campos e nas cidades, não participa das grandes decisões brasileiras. ( ... ) não se defende o regime nem se aperfeiçoa a ordem democrática ani quilando os direitos políticos de milhões de brasileiros, que trabalham honesta mente, criam filhos, pagam impostos e sonham com uma Pátria nova, com mais luz e mais pão para todos." Em fevereiro de 1978 o Deputado baiano Ruy Bacelar preparou proposta de emenda constitucional em benefício do voto do analfabeto. Na justificativa sa lientou "que ser analfabeto não significa ser incapaz, ser ignorante, mesmo por que, no estágio em que nos encontramos os meios de comunicação como o rá dio, a televisão e o cinema dão acesso à informação e à opinião, até mesmo nos mais longínquos rincões do nosso país. Portanto, a letra fria do analfabeto hoje não é mais a única fonte do saber. A revolução do transistor alterou o equacionamento do problema".6 A emenda foi aprovada pela comissão mista que a examinou. A 4 de agosto de 1978 o Senador Orestes Quércia formalizou perante a mesa do Senado proposta de emenda constitucional que permite o voto do analfabeto. Na justificação escreveu: "De acordo com o código fundamental, o analfabeto não é cidadão e não tem direitos políticos. f: um estrangeiro dentro do seu pró prio país ( ... ) Sem embargo, disso, embora lhe recuse os direitos políticos, dele exige o cumprimento dos deveres impostos a todos os cidadãos: o analfa beto paga impostos, tem de prestar serviço militar, etc. ( ... ) Sem embargo de o percentual ter decrescido na década de 1960, em números absolutos, os analfabetos aumentaram, eis que eles passaram de 15,8 milhões em 1960, para 16,9 milhões, em 1970"( ... )1 Também o Poder Executivo no Brasil se interessou pelo problema aqui es tudado. Os Presidentes João Goulart e CastelIo Branco, embora ideologicamente muito distantes, pronunciaram-se a favor do voto do analfabeto. Naturalmente Diário do Congresso Nacional, Seção I, 7 maio 1959. p. 1.003, 1. e 2. vaI. Ruy confirma projeto para analfabeto votar. Correio Braziliense, Brasília. 13 fev. 1978. p. 3. Quércia pede extensão do voto ao analfabeto. O Estado de São Paulo, 5 ago. 1978. p. 4. Voto do an((lfabeto 15 estes pOSICIOnamentos ocasionaram vivos debates dentro e fora do Congresso. No período de 1962 a 1964 inclusive, tiveram lugar discursos e artigos nume rosos favoráveis ou contrários à ampliação do sufrágio. Em sua última Mensagem ao Congresso Nacional de 15 de março de 1964, escreveu o Presidente Goulart: "O amadurecimento da democracia brasileira está a eXIgir que as nossas insti tuições políticas se fundem na maioria do povo e que o colégio eleitoral, raiz da legitimidade de todos os mandatos, seja a própria Nação. A Constituição de 1946, entre outros privilégios, consagrou, no campo elei toral, normas discriminatórias que já não podem ser mantidas, em razão da justa revolta que provocam e da limitação numérica dos quadros eleitorais, que \'em estimulando as atividades de órgão de corrupção, os quais, por força do poderio econômico, procuram degradar a mais nobre das instituições democrá ticas, a representação popular. ( ... ) Outra discriminação inaceitável atinge milhões de cidadãos que, embora in vestidos de todas as responsabilidades civis, obrigados, portanto, a conhecer e a cumprir a lei e integrados na força de trabalho com seu contingente mais nume roso, são impedidos de votar, por serem analfabetos. Considerando-se que mais da metade da população brasileira é constituída de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça, que leva à conclusão irrecusáyel de que o atual quadro de eleitores já não representa a Nação, urgindo sua ampliação para salvaguarda da democracia brasileira. Acresce, ainda, a vizinhança cultural entre o analfabeto e o simples alfabe tizado, nesta era em que a divulgação radiofônica estendeu a área de infor mações."8 Na vigência do ato institucional o Sr. presidente da República enviou ao Con gresso o Projeto de Emenda à Constituição n9 3 de 1964 que entre outras ma térias propunha nova redação ao art.132. "Art. 59. Substitua-se o art. 132 da Constituição pelo seguinte: Art. 132. Não podem alistar-se eleitores os que estejam privados temporária ou definitivamente, dos direitos políticos. § 19. É facultado o alistamento ao analfabeto, limitado, porém, o exercício do voto, também sem caráter obrigatório, às eleições municipais, mediante pro cesso idôneo determinado em lei. § 29. São alistáveis os militares, desde que sejam oficiais, guardas-marinhas, subtenentes ou suboficiais, sargentos e os alunos das escolas militares de ensino 5uperior para formação de oficiais. Art. 69. Será o seguinte o art. 138 da Constituição: Art. 138. São inelegíveis os inalistáveis e os mencionados no § 19 do art. 132."9 Na sua Mensagem CN - 5, de 1964, publicada no DCN, 25.6.64 diz o Pre sidente Castello Branco: "O analfabeto que permanece nesse estágio, em virtude das omissões e deficiên cias da ação estatal, precisa ser integrado na comunhão nacional pelo reconhe cimento de sua condição humana. Eis aí sem dúvida, um problema de educação ~ Goulart. João. Mensagem ao Congresso Nacional. Brasília. Departamento de Tmprensa Nacional. 1964. p. 54-5. 9 Diário do Congresso Nacional, 25 jun. 1964. p. 244. 16 R.C. P. 1/83 que se resolverá ao longo de um programa a ser cumprido com tenacidade. ~ada, porém, impede que, desde já, se reconheça que a coerência com o princípio da universidade do sufrágio nos deve levar a alargar o mais possível o exercício desse direito. Ninguém contesta que, em nossos dias, pelas novas técnicas de comuni cação e da convivência o analfabeto já se informa, já tem consciência de colabo rar na existência coletiva, pelo seu trabalho, e já pode participar da vida cívica. Apenas se lhe permite a participação facultativa e limitada ao âmbito do seu convívio mais próximo, porque se presume que lhe faltam elementos para o juízo cívico em dimensões mais amplas. Mas assim por essa participação discreta se promove a sua integração no exercício da cidadania, atendendo-se aos conse lhos da prudência, enquanto não se elimina a inferioridade de sua condição. Trata-se como se vê dos termos da emenda de experiência caudalosa que cor responde a anseio antigo, vindo de muitos setores da opinião nacional; mas ainda assim a tentativa se faz sem maiores riscos pela limitação ao mínimo das condi ções em que o direito de sufrágio no caso se vai exercer. Acresce considerar que a concessão feita tende a restringir-se cada vez mais, pelo progresso que hão de ter os programas de educação elementar, destinados a eliminar ou reduzir o analfabetismo. " No Congresso foram apresentadas muitas emendas ao projeto referente ao voto do analfabeto a ele enviado pelo Presidente Castello Branco. Para evitar maiores delongas na apreciação da matéria o líder do governo Pedro Aleixo, falando por uma questão de ordem, sugeriu que mesmo os congressistas contrários ao voto do analfabeto votassem em primeiro turno a favor da Emenda n9 22 e votassem contra no segundo turno. Isto dispensaria o Parlamento de votar as numerosas emendas, muitas delas, diferentes entre si, meramente no estilo e na redação e não no conteúdo. A Emenda n9 22 de autoria dos senhores congressistas Martins Ro drigues, Ranieri Mazzilli e outros assim rezava: "É facultado o alistamento ao analfabeto, limitado, porém, o exercício do voto sem caráter obrigatório às elei ções municipais, mediante processo regulado em lei". Esta Emenda n9 22 foi aprovada, na primeira deliberação, por 251 contra 109 votos. Em segundo turno, na sessão de 22 de julho de 1964 o resultado das votações foi o seguinte: no Senado 37 votos a favor e 14 contra; na Câmara 201 a favor e 127 contra. Sem o necessário quorum de dois terços na Câmara não foi aprovada a emenda. 3. Resumo dos principais argumentos a favor do voto dos analfabetos Resumem-se a seguir algumas das principais ponderações apresentadas a favor do voto do analfabeto. 1. A extensão do voto ao analfabeto é medida muito consentânea com o pri meiro artigo da Constituição brasileira segundo o qual "todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido". O analfabeto é povo. Foi excluído do eleitorado sem seu prévio consentimento. Tem o direito de participar na escolha de seus governantes e representantes. 2. A igualdade de todos perante a lei é dificilmente compatível com a proibição de alistamento eleitoral imposta ao analfabeto. Segundo o art. 176 da Consti tuição, "a educação é um direito de todos e um dever do Estado ( ... ) O ensino Falo do analfabeto 17 primário é obrigatório para todos dos sete aos 14 anos". Geralmente o analfabeto é tal sem culpa própria. Encontra-se já em situação de desigualdade perante os demais e com menos recursos para defender seus ideais e interesse. Privá-lo do sufrágio é multiplicar desigualdades e debilitar a democracia. 3. O analfabeto não é um incapaz no Código Civil. Terminada a menoridade está apto "para todos os atos da vida civil". Pode comprar ou alienar bens, pagar impostos, prestar serviço militar e combater em guerra, constituir família, etc. Por que não poderá escolher seus governantes? 4. A informação é importante para bem votar. Mas hoje a palavra escrita perdeu grande parte de sua importância relativa como veículo de análise. Os meios de comunicação audiovisuais, tais como o cinema, rádio e televisão, proporcionam \aliosos subsídios para o conhecimento da realidade nacional. 5. A instrução escolar em todos os níveis é muito importante, mas dificilmente se demonstrará correlação necessária entre mais leitura e melhor comportamento cívico. O suborno, a fraude e a corrupção são compatíveis com altos títulos uni versitários. O procedimento dos cidadãos é influenciado por inúmeras variáveis individuais, familiares e sociais. A vida pode ser em si mesma uma grande escola. Há inúmeros exemplos de analfabetos com grande discernimento. ó. Há diferenças importantes entre opinar sobre temas científicos e sobre temas eleitorais. Os sábios podem facilmente concordar entre si sobre teoremas, expe riências de laboratório, etc. Não há propriamente matemática fascista, liberal, democrata-cristã ou marxista. Mas entre os estudiosos de ciências políticas há fascistas liberais, democratas-cristãos, marxistas. Por mais profundas que sejam as convicções pessoais, dificilmente haverá entre eles consenso e unanimidade sobre critérios para julgar os melhores programas e menos ainda os melhores candidatos. Por isto o voto deve ser direito de todos. O sufrágio universal é critério prático de convivência pacífica. Ele não se destina necessariamente a "provar" uma verdade ou identificar qual o melhor candidato. O sufrágio univer sal, incluído nele o analfabeto, manifesta a preferência do eleitorado. A vontade da maioria prevalece. Mas na democracia as eleições serão verdadeiramente livres e periódicas. .. :-•. ~ 7. Há inúmeros estímulos para a freqüência às escolas e não há necessidade de condicionar o voto à prévia alfabetização. O analfabeto é o primeiro interessado em mais escola para si e seus filhos. O direito ao voto dar-lhe-á um instrumento a mais de reivindicação. 8. Atualmente a legislação eleitoral da maioria dos países reconhece ao analfa beto o direito de voto. São exemplos: Alemanha, Argentina, Equador, índia, Itália, Nigéria, Portugal, Venezuela. O índice de analfabetismo nestes países varia de mínimo a muito alto. 9. Segundo a experiência de outros países, pode-se conciliar o sigilo e o voto do analfabeto. Há sistemas de cores e de símbolos. 10. A inclusão dos analfabetos no corpo eleitoral está de acordo com o espírito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da ONU e, em parti cular, com seu art. 21. A X Conferência Internacional Americana de 1954, em Caracas, tributou homenagem aos países que incluíram na sua legislação o direito de sufrágio a favor da parte analfabeta da população. 18 R.C.P. 1/83 4. Conclusão Há grande diversidade de ideologiasentre os numerosos fatores do voto do analfabeto. Neste sentido pronunciaram-se positivistas em 1891 10 e comunistas em 1946. Entre os autores de emendas constitucionais a favor do voto do iletrado encontram-se nomes como os de Armando Falcão, do conservador Partido Social Democrático Republicano, etc., incluem hoje em seus programas o sufrágio dos Ferrari do Movimento Trabalhista Renovador em 1961; Ruy Bacelar da Aliança Nacional Renovadora em 1977; de José Costa do Movimento Democrático Bra sileiro em 1980, etc. Agremiações como o Partido dos Trabalhadores, o Partido Democrático Republicano, etc., incluem hoje em seus programas o sufrágio dos analfabetos. O presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro reite radas vezes se tem pronunciado no mesmo sentido." O fundador do Integralismo e líder do Partido de Representação Popular, Plínio Salgado embora contrário ao sufrágio do iletrado nos âmbitos estaduais e nacionais, o admitia nas eleições municipais.12 Já se viu que os Presidentes João Goulart e Castello Branco quise ram o voto do analfabeto. Na tese intitulada Reforma político-partidária e elei toral, apresentada em janeiro de 1963 no Congresso Brasileiro para definição das reformas de base, em São Paulo, o Dr. Caio Prado Júnior defendeu contunden temente o voto do analfabeto.13 Se tantas e tão diversas são as vozes em favor dos analfabetos, por que conti nuam eles excluídos das urnas no Brasil? A brevidade do tempo e espaço não permitem uma resposta mais ampla. Cabem contudo algumas breves considerações a respeito. Na história da humanidade, muitas vezes, só após décadas ou até séculos de reflexão as sociedades adotam leis mais consentâneas com os direitos humanos e os ideais democráticos. Particularmente elucidativo em matéria de direito elei toral é o caso do sufrágio feminino. Na segunda metade do século XIX e na primeira deste houve enormes esforços e campanhas em muitos países no sentido de incluir as mulheres no corpo eleitoral. Na Inglaterra sufragettes valeram-se até de greve de fome em favor de sua causa.14 No Brasil só em 1932 reconheceu se o sufrágio feminino. Mas neste caso as próprias mulheres, muitas delas espo sas e parentes dos governantes, foram protagonistas de suas causas. Tinham acesso aos detentores do poder de decisão. Sendo, freqüentemente, muito instruídas, fize ram conhecidos seus pontos de vista em livros e periódicos. Não é muito fácil que os analfabetos como tais se organizem e reivindiquem o reconhecimento de um direito humano que lhes assiste. Contudo é provável que 10 Disse o constituinte Lauro Sodré: "Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem na obra do progresso da Nação, como aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome, curto estalão, por onde a lei quer aferir a capacidade moral do cidadão brasileiro. Acredito que esta disposição inquina o projeto aos olhos dos verdadeiros democratas ... " Anais do Congresso Constituinte da República. 2. ed. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1926. v. 2, p. 456. 11 Diário do Congresso Nacional, 17 ago. 1964. p. 306. 12 Diário do Congresso Nacional, 29 fev. 1964. p. 9. 13 Voto do analfabeto já existiu e data desde o Brasil Império. Correio da Manhã, 19 julho 1964. p. 11. 14 Raeburn, Antonia. The Militant suflragettes. London. Michel Joseph, 1973. p. 79. Voto do analfabeto 19 movimentos como os eclesiais de base despertem a consciência de seus direitos e facilite meios para obtê-los. Com freqüência muitos se deixam influenciar, por considerações imediatas quando se contempla uma emenda constitucional.; Reacionários e conservadores temeram que com o voto do analfabeto o Presidente Goulart mobilizaria o campo para exigir reforma agrária, etc. Socialistas mostram-se às vezes reservados quan do governos mais conservadores propõem o voto do analfabeto, receosos de que ele possa ser canalizado, sobretudo no interior, a favor de candidatos situa cionistas. O cientista político deve estudar as conseqüências prováveis da ampliação do Colégio Eleitoral. Mas quando se trata, como é o caso em pauta, de um direito humano e de uma exigência básica dos postulados democráticos, o politicólogo não pode omitir-se. Falta ainda maior conscientização e mobilização de forças a favor do voto do analfabeto. Urge trabalhar a fim de que, em futuro próximo, não se pergunte mais por que votam os analfabetos, mas sim por que foram privados, durante tanto tempo, do sufrágio. iJibliografia :'deixo. José Carlos B. O voto do analfabeto. São Paulo, Edições Loyola. 1982. :\lcncastro, Luiz Felipe de. Com anos de escuridão. Jornal do Brasi!. 2:; 3g0. 1981. ~lmeida, Rômulo. O voto do analfabeto. Folha de São Paulo. 20 dez. 1978. p. "). \lvcs. Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta dt! mulher pelo 1'OtO no Brasil. Petró· polis. Vozes. 1980. ·\raúio. Luís Ivani de Amorim. A democracia e o voto do analfabeto. Rel'Ísta Bancária fJrasiieira. 31(366):31-2. 30 jun. 1963. Assis Brasil. J. F. Democracia representatil'a. Do volo e do modo de 1·otCir. Rio de I <1neiro. 1931. garbosa Lima Sobrinho. Alexandre. Casuísmo e voto facultativo. JonUiI do Brasil. 28 jun. 1981. nr}ce. James. ,\lodem democracies, London, Macmillan, 1921. v. 1, capo 8, Democr<1cy anel ~Jucation. p. 79-89. Carneiro. Lc"i. 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