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Em torno da primeira revisão constitucional portuguesa

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EM TORNO DA PRIMEIRA REVISÃO 
CONSTITUCIONAL PORTUGUESA 
RAUL CID LoUREIRO· 
Uma revolução "iluminista" começa a voltar-se para o "re­
alismo objetivo", na busca de instituições sintonizadas com 
a Nação. 
1. Revisão ou nova Carta?; 2. Fim de um órgão espúrio; 
3. Forças Armadas; 4. Tribunal constitucional; 5. En­
sino; 6. Reforma agrária; 7. O planejamento total; 8. 
Imprensa; 9. Equilíbrio ecológico; 10. Informática e 
democracia; 11. Liberdade sindical; 12. Atividade po-
lítico-partidária; 13. Começa o realismo objetivo. 
1. Revisão ou nova Carta? 
A 2 de abril de 1976 a revolução dos cravos vermelhos, vitoriosa em 1974, 
institucionalizava-se numa Constituição promulgada sem caráter rígido. 
Realmente, o art. 286 facultou se procedesse à revisão da Lei Magna, "decor­
ridos cinco anos sobre a data da publicação de qualquer lei de revisão", lei 
que é da exclusiva iniciativa dos deputados à Assembléia da República (Portu­
gal não adotou o sistema bicameral). Essa flexibilidade da Constituição por­
tuguesa avulta ainda no inciso 2 do mesmo artigo, quando enseja tal revisão 
"em qualquer momento (. .. ) por maioria de quatro quintos dos deputados". 
De tal poder revisional - embora a doutrina prefira, por tradição, o verbo 
emendar - decorreu a Lei nÇ 1, de 30 de setembro de 1982, que procedeu 
à "Primeira Revisão Constitucional". 
Estabilidade não é imutabilidade, e na prática constitucional vemos que a 
mais longeva das constituições escritas, a norte-americana, além de ter sofrido 
26 emendas, vem sendo vivificada, em cada geração, pela criadora exegese 
da Suprema Corte. 
No caso português, os legisladores constituintes foram prudentes. Afinal, a 
Lei Maior fora votada em plena efervescência revolucionária e o movimento 
de abril, como toda a febre social, haveria de decantar-se no enfrentamento 
dos problemas da realidade nacional, e internacional, até o ponto de um grande 
reajustamento institucional, como o agora procedido. 
Quanto ao aspecto formal, a "Primeira Revisão" quase nada de novo, nem 
de melhor, apresenta. O texto constitucional continua a abrigar - um pouco 
menos, é verdade - a retórica socialista vazada em proclamações altissonantes, 
enquanto ao mesmo tempo desce a casuísmos e minudências inaceitáveis numa 
Constituição. Assim, continua ela a alongar-se, numa feição excessivamente 
analítica e regulamentar, em 300 artigos, ou seja, apenas 12 a me nós do que 
* Advogado e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 
R. C. po!., Rio de Janeiro, 26(3):53-60, set./dez. 1983 
o texto ongmano. Comparada com as Constituições de outros países, como as 
da Itália (139 artigos), França (89 artigos), México (136 artigos) e Suíça (123 
artigos), a Lei Magna portuguesa é das mais extensas do Ocidente. 
Se lhe vislumbramos uma certa heterogeneidade, ou, melhor dizendo, uma 
certa falta de unidade, há de ser porque ela tenta naturalmente formalizar o 
pacto político de uma sociedade que a revolução de abril encontrou dividida 
por imenso abismo sócio-econômico e cultural que meio século de autoritarismo 
só fez aprofundar. 
O tom discursivo do "Preâmbulo" revela de plano que esse texto se afasta 
muito do aspecto demoliberal das Constituições elaboradas após os movimentos 
revolucionários do século XVIII, pois nele se declara (terá tal força normativa?) 
destinada a "abrir caminho para uma sociedade socialista". 
Costumam alguns constitucionalistas justificar o excesso de normas regula­
mentares ("dilatação do conteúdo") com o crescente aumento das funções esta­
tais que num Estado socialista, ou que se propõe socialista, hão de ser ajnda 
mais ampliadas. Mas não revelará, talvez, essa preocupação de a tudo regu­
lamentar, que o regime estar-se-ia reconhecendo infirmado? Tal pletora de 
artigos não resultaria do caráter improvisadamente transacional que marca 
revoluções instantâneas, irrompidas e vitoriosas num mesmo momento, num 
só ato, sem programas previamente amadurecidos pela discussão e que, na 
primeira hora, visavam apenas soprar forte o bastante para demolir um sistema 
autoritário e carcomido? 
A falha formal mais grave é sem dúvida o casuísmo, sendo evidente que 
inúmeros artigos são irrelevantes para a organização do Estado. 
Mas, antes da vontade dos ideólogos e por sobre a rigidez dos textos, há 
o dinamismo de todo um processo econômico, social e político que há de 
refletir-se cedo ou tarde na própria letra dos mandamentos constitucionais, ou 
sobre a interpretação atualizadora que deles se poderá extrair. No caso por­
tuguês, a "Primeira Revisão" já se impunha, desde que esse processo superara, 
notória e rapidamente, concepções basilares, fundamentais, daquele texto ori­
ginário, sobretudo a partir da afirmação do poder civil. 
2. Fim de um órgão espúrio 
O caso mais patente, e importante, era o da inviabilidade da permanência, 
nos quadros constitucionais, da esdrúxula figura do Conselho da Revolução. 
O art. 113 estatuíra esse Conselho como um dos "órgãos de soberania" da 
Nação Portuguesa, paralelamente ao presidente da República, à Assembléia, ao 
Governo e aos Tribunais. 
Ao Conselho da Revolução, definido no art. 142, competiam funções como 
as de "Conselho do Presidente da República e de garante do regular funcio­
namento das instituições democráticas, de garante da Constituição e da fide­
lidade ao espírito da Revolução Portuguesa de 25 de abril de 1974 e de órgão 
político e legislativo em matéria militar". 
Como se depreende de uma competência tão vaga e lata, de poderes tão 
extensos e vários, o texto originário consagrava uma verdadeira tutela militar 
pt''.'pétua sobre a Nação, e o desvirtuamento de toda a espinha dorsal das Forças 
Armadas, que perdiam, assim, a função tradicional de apartidárias e garanti­
doras das instituições. E verdade que certa feita o Prof. Afonso Arinos chegou 
54 R.C.P. 3/83 
a falar numa espécie de institucionalização do poder militar, sob a justificativa 
de regulamentar para limitar. Mas o ínclito mestre não foi adiante nessa for­
mulação, contida, aliás, em ligeira entrevista ao Jornal do Brasil. 
O Conselho da Revolução tinha até competência para pronunciar-se (art. 
146), inclusive "por iniciativa própria" sobre a constitucionalidade de quais­
quer diplomas legais, podendo mesmo "declarar a inconstitucionalidade com 
força obrigatória geral", e seus decretos-leis possuíam a mesma força ("valor 
idêntico") dos decretos regulamentares do Governo. Uma tal figura tératológica 
havia de ser expelida da vida institucional, trabalho que a atividade partidária 
se encarregou de realizar em pouco tempo. 
Substituiu esse órgão espúrio a nova figura do Conselho de Estado (art. 144), 
não como órgão de soberania, mas simplesmente "de consulta do presidente 
da República". 
3. Forças Armadas 
Em conseqüência da supressão do Conselho da Revolução, o art. 275 do 
novo texto introduziu profundas modificações no papel das Forças Armadas, 
a quem agora "incumbe a defesa militar da República", mas que antes asse­
guravam "o prosseguimento da Revolução de 25 de abril de 1974" e tinham 
ainaa "a missão histórica de garantir as condições" que permitissem a "tran­
sição pacífica e pluralista da sociedade portuguesa para a democracia e o 
socialismo" . 
A nova redação do art. 275 afirma que as Forças Armadas "obedecem aos 
órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei", frisando 
o inciso 4 que elas "estão ao serviço do povo português, são rigorosamente 
apartidárias e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do 
seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política". 
4. Tribunal Constitucional 
A nova Lei Maior portuguesa - chamá-la Revisão, à vista dessas alterações 
estruturais, é pouco - criou (art. 212) um Tribunal Constitucional, que assu­
miu parte das vitais funções antes absurdamente cometidas ao Conselho da 
Revolução, e aquelas deferidas à Comissão Constitucional, órgão também eli­
minado, cuja organização, funcionamento e procedimentoeram regulados pelo 
Conselho da Revolução (!). 
Este Tribunal Constitucional é a maior contribuição da reforma, porque 
especialmente criado para "apreciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade" das 
normas, pode também agir preventivamente, por solicitação do presidente da 
República (art. 278). Se atentarmos para o fato histórico de que nos EU~ a 
Constituição "é o que a Suprema Corte diz que ela é" (ver Corwin) e ainda 
para a atuação do Conselho Constitucional francês, pode-se dvaliar a grande 
importância que revestirá o Tribunal português, caso ele venha a portar-se com 
aquela "audácia interpretativa" com que Leitão de Abreu definiu a ação da­
quela Corte. 
Outra entidade transitória e efêmera, pois que em pouco "definhara", elimi­
nada no novo texto, foi o "Movimento das Forças Armadas", que logo no 
Revisão constitucional portuguesa 55 
art. 39 surgia vagamente como "garante das conquistas democráticas e do 
processo revolucionário", participando "em aliança com o povo, no exercício 
da soberania (. .. )". 
A mudança de tônica da "Primeira Revisão" é flagrante desde o lU1C10, 
vendo-se, ao longo do texto, uma deliberada mitigação da retórica esquerdista 
que antes "empapava" dezenas de artigos, quase lhes retirando - pelo abuso 
de certas fórmulas, chavões e estilo próximos do panfleto - aquela forma 
superior de que se devem revestir os mandamentos constitucionais. 
Assim, em alguns artigos foram eliminadas expressões, aliás repetitivas ant~ 
o propósito socializante externado no "Preâmbulo" e nos dois artigos iniciais. 
como "Na fase de transição para o socialismo ( ... )" ou a "transformação das 
relações de produção e de acumulação capitalista (. .. )". Conceito, entretanto, 
presente a todo o tempo é o de autogestão, categoria organizacional que ulti­
mamente tem sensibilizado os movimentos de esquerda não-comunista, apes<!r 
de inspirada na experiência iugoslava. 
5. Ensino 
No tocante ao ensino - no momento causando grande polêmica na França 
de Mitterrand - é nítida, no texto revisado, uma posição mais conservadora, 
ou menos extremada. Basta ver que o art. 43 explicitou o direito de criação 
de escolas particulares e cooperativas, que o texto originário omitira. 
O ensino particular em Portugal perdeu, agora, a função de "supletivo do 
ensino público", embora tenha a Revisão inovado (art. 77), ao estatuir a 
gestão das escolas por professores e alunos. Uma experiência que escandalizará 
a muitos, mas que talvez vingue em frutos se contribuir para tomar os jovens, 
por tal participação, mais responsáveis na sua atividade estudantil. 
Mandamento exemplar exsurge no art. 78 em que é conferido a todos o di­
reito de promover a defesa do patrimônio cultural. 
6. Reforma Agrária 
No título relativo à Reforma Agrária há significativa modificação, porque 
o novo texto antepôs a "Política Agrícola" à "Reforma Agrária". Em verdade, 
o objetivo maior é o de uma política agrícola, da qual a reforma agrária seja, 
como agora o diz o art. 96 (inciso 2), "um dos instrumentos fundamentais". 
As terríveis lições das reformas agrárias meramente políticas, não reportadas 
ao desenvolvimento agrícola e por isso geradora de grandes fomes (ver URSS 
e China), e possivelmente os resultados desorganizadores de expropriações in­
discriminadas, parece foram aproveitadas pelos legisladores portugueses. Não 
há melhor meio de frustrar qualquer reforma agrária do que pretender executá­
la isoladamente, alienando-a de sua função instrumental, global e superior. de 
alavanca da política agrícola. O que termina sempre por esterilizá-la num 
"distributivismo" de ruinosas conseqüências econômicas e sociais. 
Além de destacar-se uma louvável preocupação conservacionista (art. 96, d), 
nota-se, também, nessa linha mitigadora do autoritarismo, que, no equaciona­
mento do problema dos minifúndios (art. 98), surge significativamente a ex-
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pressão "incentivos", como meio de levar as pequenas unidades de produção 
à desejada integração cooperativa. O pro~lema do minifúndio assume propor­
ções gravíssimas, notadamente no Norte do país, onde compromete qualquer 
esforço de modernização agrícola. 
O art. 87 é permissivo da expropriação de meios de produção "em aban­
dono", e excetua a regra geral indenizatória, determinando que no caso de 
"abandono injustificado a expropriação não confere direito a indenização". 
Por que critério a propriedade, do ponto de vista legal, pode ser considerada 
abandonada? A totalmente inaproveitada para qualquer atividade agrícola, 
pecuária ou industrial? A que for explorada somente em percentual X de 
sua área? E em que condições justificar-se-ia esse abandono? 
O Brasil adotou, no Estatuto da Terra (Lei nQ 4.504/64), o critério da 
classificação das propriedades rurais de acordo com índices, de cálculo, aliás, 
complexo, que permitem, por exemplo, considerá-las latifúndios por dimensão 
ou por exploração. Valeria conhecer a legislação ordinária que regulamentou, 
em Portugal, esse artigo 87. 
De todo o modo houve um revigoramento do direito de propriedade, uma 
vez que o novo texto (art. 82) eliminou o inciso 2, que admitia a expropriação 
sem indenização, que assim rezava: "2. A lei pode determinar que as expro­
priações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou acionistas 
não dêem lugar a qualquer indenização." 
7. O planejamento total 
Quanto ao plano responsável pela organização economlca e social do país, 
as modificações operadas pela "Primeira Revisão" devem ser objeto de especial 
reparo. A nova redação do art. 91 suprimiu como objetivo do plano "a cons­
trução de uma economia socialista", enquanto o art. 92 passou a atribuir-lhe 
"caráter indicativo" para os setores privados, ao passo que o texto revisado 
referia imperativamente "o enquadramento a que hão de submeter-se as em­
pre~as dos outros setores". Destarte, o plano não mais "enquadrará" a inicia­
tiva privada, constituindo suas diretrizes apenas fator indicativo para os empre­
sários particulares. O Estado deixa de ser o exclusivo árbitro da totalidade 
da economia, sendo óbvias as implicações dessa reorientação constitucional 
sobre a natureza e a extensão do socialismo português, agora parece que sob 
a influência de uma linha de moderação, ao estilo do PSOE de Felipe Gonzales. 
8. Imprensa 
O velho sonho de um Estado apartidário reponta no propósito de neutralizar 
absolutamente os órgãos estatais de comunicação social, contido no art. 39. 
Esse objetivo de imparcialidade tem como instrumentos os Conselhos de Reda­
ção (38) a funcionar no âmbito de cada um desses órgãos e, superiormente, um 
Conselho de Comunicação Social (11 membros eleitos pela Assembléia) que 
"tem poderes para assegurar uma reorientação geral que respeite o pluralismo 
ideológico". O art. 38 atribui ainda ao Estado (inciso 6) o dever de "impedir 
a concentração de empresas jornalísticas". 
Revisão constitucional portuguesa 57 
9. Equilíbrio ecol6gico 
A Lei Maior portuguesa é, sem dúvida, uma das pioneiras no que se refere 
à preservação do equilíbrio ecológico, firmando princípios e objetivos explici­
tados no art. 66 ("Ambiente e qualidade de vida"). O texto originário conferia 
exclusivamente "ao cidadão ameaçado ou lesado" o direito de promover, "nos 
termos da lei, a prevenção ou a cessação dos fatores de degradação do am­
biente". O novo texto (inciso 3) confere esse direito a todos, isto é, a qualquer 
cidadão, evidentemente por entender que a preservação ecológica diz respeito 
ao bem comum, é patrimônio cujo resguardo interessa à sobrevivência de toda 
a coletividade. O mesmo artigo consagra, ainda, como incumbente ao Estado. 
a ordenação do espaço territorial "de forma a construir paisagens biologica­
mente equilibradas". 
É a assunção da atividade que o Padre Lebret, como precursor, denominou 
aménagement du territoire, nova modalidade de engenharia social que visa 
reformular o espaço físico em benefício do homem e da própria natureza. 
10. Informática e democraciaMatéria igualmente tratada de modo inédito é a da "Utilização da Informá­
tica", valorizada justifiC-ªdamente por sua conotação íntima, direta, com os 
direitos e garantias individuais. 
Já em plena era da cibernética, o homem corre grande risco de vir a ser 
transformado no "cibernantropus", como têm alertado os grandes humanistas 
deste século, do porte de Mounier, Alceu Amoroso Lima, Maritain e Rogcr 
Ciaraudy. Cabe ao Estado moderno impedir que a tecnologia desumanize o 
homem, e ao invés de servi-lo passe a servir-se dele, subjugando-o. 
O art. 35, que enuncia os princípios disciplinadores da utilização da infor­
mática, começa por declarar que todos os cidadãos "têm o direito de tomar 
conhecimento do que constar de registros informáticos a seu respeito e do fim 
a que se destinam as informações, podendo exigir a retificação dos dados e a 
sua atualização". A vedação do inciso 3 - não poder a informática ser utili­
zada "para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políti­
cas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa ou vida privada" - é comple­
mentada pela proibição de atribuir "um número nacional único aos cidadãos". 
A informática tornou, realmente, viável este processo de total devassamento do 
homem, que geralmente tem início sob o pretexto de cadastrar o corpo de 
contribuintes. 
O universo mágico, antes inimaginável, da informática, tem o condão de 
seduzir, sendo ainda poucas, e isoladas, as vozes que procuram alertar os 
homens para os terríveis perigos que os espreitam por trás desse maravilhoso 
"novo mundo". Ao lado da hecatombe nuclear, a humanidade deve enfrentar 
o perigo de sua submissão aos incríveis mecanismos da informática como ins­
trumento do poder. 
O novo texto constitucional brasileiro, e o país não pode vencer as próximas 
etapas com a atual Constituição, não deve deixar de contemplar esse novo 
direito individual - de proteção ante o "enquadramento" cibernético - ainda 
um pouco negligenciado por nossos juristas. Com raras exceções, os juristas, 
também seduzidos por esse mundo mágico, ainda não se aperceberam dessa 
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invasão tecnológica, acessível apenas a uma elite de "iniciados" - por sua 
complexidade, velocidade e alto custo em países como o nosso - e dos riscos 
que a sua manipulação política representa para a liberdade individual. Sem 
voltar as costas à modernidade, paradoxo dos modernistas assinalado por José 
Guilherme Merquior, é preciso que os homens do direito olhem o reverso da 
medalha (o maravilhoso é sempre irracional), prevenindo os perigos do uso 
da cibernética pelo poder. 
11. Liberdade sindical 
No campo da liberdade sindical, que o Concílio Vaticano 11 e os três últimos 
papas têm enfatizado, a Constituição de Portugal estabeleceu no art. 56, inciso 
3. a liberdade das eleições sindicais, não subordinando o seu reconhecimento 
à homologação ou autorização estatal. 
O art. 54 manteve também inalteradas as Comissões de Trabalhadores para 
a defesa de seus interesses e "intervenção democrática na vida da empresa", 
cujo desempenho vai depender do grau de politização e responsabilidade dos 
trabalhadores. 
12. Atividade político-partidária 
Discutível, quanto à atividade político-partidária, é o art. 46, inciso 4, rela­
tivo à "liberdade de associação", quando declara não serem consentidas asso­
ciações armadas nem de tipo militar, "nem organizações que perfilhem a ideo­
logia fascista". Adiante, o art. 163 (d) comina com a perda do mandato o fato 
da condenação do deputado "por participação em organizações de ideologia 
fascista" . 
A expressão "ideologia fascista", não definida juridicamente, é relativa e 
pode prestar-se a perseguições antidemocráticas. Que idéias ou ideologias po­
derão ser rotuladas de fascistas? Até nas disputas domésticas, no seio dos par­
tidos comunistas e socialistas, é comum facções se atribuírem reciprocamente a 
condição de "fascistas". Não creio que haja existido, desde Lenine, algum líder 
comunista, ou socialista, que não tenha sido acoimado de fascista. 
Por outro lado, é oportuna, sobretudo em Portugal, onde grande parte do 
clero (exceção feita a figuras como Dom Antônio, bispo do Porto) serviu docil­
mente, como "partido" ancilar, ao regime totalitário de Salazar, a proibição 
do art. 51 (inciso 4) de os partidos usarem "denominação que contenha ex­
pressões diretamente relacionadas com quaisquer religiões ou igrejas". O que 
é bom para a Igreja. 
13. Começa o realismo ob;etivo 
A leitura, mesmo perfunctória, da Primeira Revisão, publicada pela Imprensa 
Nacional - Casa da Moeda (Lisboa), empreendida à luz do texto originário, 
revela, acima de tudo, que as lideranças políticas do país começaram a rea­
justar as instituições transplantadas apressada e revolucionariamente em abril 
de 1974. Revela que a realidade nacional está-se impondo por sobre o "i1umi-
Revisão constitucional portuguesa 59 
nismo" de ideais programáticos, cuja inadequação só esta realidade poderia 
decretar. 
A Lei de Revisão é um primeiro reencontro, lúcido e sereno, da Revolução 
de abril com a Nação, nessa democrática busca de instituições para a constru­
ção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno. Essa "decantação" do 
processo revolucionário português é um excelente campo de observação para 
os estudiosos da ciência política, sobretudo para os que não desprezam as 
lições da "práxis". Como parece ser o caso dos homens que dirigem Portugal 
nesse momento delicado de sua milenar história, à frente de uma revolução 
que não quis ser apenas política, mas tambénÍ social. O caminho do "ilumi­
nismo" para o "realismo objetivo" é sempre árduo. 
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