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1. Introdução USUCAPIÃO· ALMIR PoRTO DA ROCHA FILHO" 1. Introdução; 2. Conceito; 3. Histórico; 4. A usucapião no Código Civil brasileiro; 5. Prescrição extintiva e aqui sitiva; 6. Prescrição das ações reais; 7. Causas suspen sivas e interruptivas da usucapião; 8. Capacidade para usucapir; 9. Dos efeitos e da renúncia à usucapião; 10. Caracteres da posse ad usucapionem; 11. Coisa hábil; 12. Lapso de tempo; H. Justo título e boa fé; 14. Usu capião de bens móveis; 15 . Usucapião ordinária; 16. Usucapião extraordinária; 17. Usucapião do Estatuto do lndic; 18. Usucapião rústica ou pro labore; 19. Usu capião especial; 20. Ação de usucapião; 21. Jurisprudên cia de nossos tribunais; 22. Jurisprudência do STF. Dentre os diversos temas a serem escolhidos, inclinei-me pelo da usucaplao, principalmente pelo seu amplo aspecto social. Em um país de dimensões conti nentais como o nosso, é importante haver uma justa distribuição de terras, espe cialmente àqueles que nada possuem. Nossa legislação tem feito o possível para que isto ocorrra, sendo o exemplo mais claro a Lei n.O 6.969/81, que trata da usucapião especial, lei esta que possui profundo intuito social, buscando favorecer os trabalhadores da terra, mormente aqueles que não possuem bens imóveis de espécie alguma. Nosso direito contempla cinco formas de usucapião: a extraordinária, a ordi nária, a pro labore do Estatuto da Terra, a inominada do Estatuto do lndio e a especial. Cabe esclarecer que entendo, como a maior parte da doutrina atualmente, que a usucapião rústica ou pro labore não foi revogada pela Lei n.O 6.969/81 (usu capião especial); todavia, saliento que não é objeto pacífico e somente dentro de alguns anos a jurisprudência estará completamente firmada sobre o assunto. 2. Conceito 1! a aquisição do domínio pela posse prolongada, na forma da lei. Clóvis Bevilacqua usa a palavra usocapião em lugar de usucapião, procedente do latim usu + capare, adquirir uso, pela posse. • O presente trabalho, apresentado ao Curso de Direito Imobiliário, promovido pelo Centro de Atividades Didáticas do INDIPO, mereceu nota máxima e está sendo publicado por decisão do Conselho Editorial da Revista de Ciência Política . •• Advogado. R. C. pol., Rio de Janeiro, 28(1):47-88, jan.!abr. 1985 1----------------------------------------------------------------------------------------------------------- Lafayette (1956, p. 169, § 61), vendo na usucapião uma prescrição aquisitiva, incontestavelmente um modo particular de adquirir o domínio, define-a: "Modo de adquirir a propriedade pela posse continuada durante um certo lapso de tempo, com os requisitos estabelecidos na lei." Modestino" definiu-a de modo semelhante: "Aquisição do domínio pela posse prolongada pelo tempo estatuído em lei" ("usucapio est autem dominii adiectio per continuationem possessionis temporis lege definiti"). Em terno desta defini çãe tem girado a maioria das propostas até agera. Deve-se, todavia, acrescentar que o instituto não é apenas um modo de aquisição da propriedade, mas igual mente de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado, assim a enfi teuse, o usufruto, o uso, a habitação e as servidões. Rubens Limongi França (1971, p. 114) assim se expressa: "Usucapião é um modo originário de adquirir a propriedade, fundada principalmente na posse continuada do objeto de acordo com os requisitos previstos na lei." É uma forma de prescrição aquisitiva, que se contrapõe à prescrição reso lutiva, esta referindo·se à perda das ações que correspondem aos direitos. Fala-se também em prescrição positiva, levando à aquisição de direitos, diferente da prescrição negativa ou liberatória, pela qual, por intermédio da perda de ações, se perdem também os correspondentes direitos. Seu objetivo é acabar com a incerteza da propriedade, assim como assegurar a paz social pelo reconhecimento da propriedade com relação àquela pessoa que de longa data é o seu possuidor, nos casos juridicamente possíveis. 3. Histórico A prescrição aquisitiva parece ongmana da Grécia; Platão a menciona em sua república, de onde teria vindo para Roma. Entretanto, o instituto tem raízes mais recuadas, pois que no Livro dos Juízes (cap. 11, verso 26) se encontra que Jefte a alegara em favor dos hebreus contra os amonitas, por haverem aqueles habitado o país de Hesebon e suas cidades, por mais de 200 anos sem qualquer oposição. Entre os romanos, por sua vez, remonta ela a épocas antiqüíssimas. A usucapio, outrora usus auctoritas, era, em linhas gerais, um modo de adquirir pela posse a título de proprietário e de boa fé, prolongada sem interrupção pelo tempo legal, não só a propriedade, mas as servidões, a enfiteuse e a superfície, além de, na época clássica, o direito de hereditariedade e a manus. No sistema das XII Tábuas, datando do ano 300 a.C., como o código de uma civilização não-amadurecida, numa evolução que culminaria com o admirável Corpus Juris Civilis, cumpria-se a usucapião, com justo título e boa fé, em dois anos quanto aos imóveis e em um ano quanto aos móveis e outros direitos. Mas não se aplicava aos fundos provinciais, nem a podiam invocar os estran geiros, visto que não gozavam dos direitos fundamentais no Jus Civile, e a usucapio era um modo civil de adquirir; assim, os romanos conservavam sempre as suas propriedades frente aos peregrinos, podendo reivindicá-las a qualquer tempo, donde o célebre adágio "adversus hostem aeterna autoritas esto". 1 Liv. 5, Pandectarum, frag. 3, D. 41,3. 48 R.C.P. 1/85 Os fundos provincIaIs escapavam à usucapião, posto que proibida a sua aquisição por particulares. Reza a VI Tábua, intitulada Da propriedade e da posse, que possui nove incisos, cabendo salientar: "III. Que a propriedade de solo se adquire pela posse de dois anos; e das outras coisas pela de um ano. IV. Que a usucapião da mulher fique interrompida se ela dormir durante três noites fora do domicílio conjugal." O instituto foi aprimorado sucessivamente pela Lex Atinia, proibindo a usu capião das coisas apropriadas por ladrões e receptadores, assim como pelas Lex Julia e Lex Plautia, que a vedavam a coisas obtidas por atos de violência. Posteriormente, porém, com vista aos peregrinos e aos ditos fundos provinciais, formou-se uma instituição paralela, a prescrição de longo tempo - longi tem poris praescriptio - que em seguida se estendeu aos fundos itálicos e às coisas móveis, e que, como o nome indica, não constituía em sua origem senão uma prescrição extintiva da ação reivindicatória: o possuidor de longo tempo e seus sucessores, universais ou singulares, podiam opô-Ia à reivindicação que contra eles se movesse. Todavia, não adquiriam a propriedade, que continuava em mãos do antigo senhor, razão pela qual, provavelmente, não se lhes exigia nem justo título nem boa fé: bastava que sua posse se tivesse prolongado por 10 ou 20 anos, conforme residisse ou não o dominus na mesma província. Em 528, Justiniano dispôs que aquele que houvesse adquirido a exceção de prescrição da ação contra o proprietário, em àecorrência de uma posse de 30 ou 40 anos (conforme o caso), teria a faculdade de reivindicar a coisa cuja posse viesse a perder posteriormente, mas desde que lhe socorresse a boa fé, com o que, então, se lhe assegurou a aquisição do domínio. Em 531 fundiu a usucapião das XII Tábuas e a prescrição de longo tempo em um só insti tuto: a usucapio, extensiva aos estrangeiros e aos fundos provinciais, e para a qual fixou o prazo de 10 e 20 anos para os imóveis, entre presentes ou ausen tes, e de três anos para os móveis, sempre com justo título e boa fé. Além do que, valendo-se da longissimi temporis praescriptio, criada um século antes por Teodósio lI, configurou uma nova espécie de usucapião, que os modernos cha maram de extraordinária, por oposição à anterior dita ordinária, e pela qual o possuidor sem justo título, mas ainda de boa fé tornava-se proprietário ao cabo de 30 anos deposse continuada; apenas faltando-lhe a boa fé, a longissimi temporis praescriptio funcionava tão-somente como prescrição extintiva da reivin dicação. Por outro lado, para os bens do fisco, os imóveis das igrejas, vilas e estabe lecimentos pios, assim como para as coisas litigiosas, alargou-se para 40 anos o prazo de prescrição extraordinária. A prescrição imemorial, que dispensava não s6 o justo título, mas a boa fé, não foi propriamente uma criação do direito romano, muito embora alguns texto~ a ela expressamente se referissem, como ensina Pugliese (s.d., n. 14 e 363) que ela cobria apenas três situações: as estradas vicinais, o escoamento natural de águas pluviais e a servidão predial de aqueduto. Mais uma presunção de direito legitimamente constituído do que um modo de aquisição admitido subsi diariamente naqueles casos em que circunstâncias particulares tornavam inviável a prescrição aquisitiva, ordinária ou extraordinária, foi assim a praescriptio immemorialis uma lenta elaboração da doutrina e dos costumes posteriores à fonte romana, que a estenderam a um sem-número de regalias, privilégios e isen- Usucapião 49 ções, de natureza tipicamente pessoal; e estava, a bem dizer, ultimada a evolução do instituto, quanto à sua função, requisitos, efeitos e sistema probatório, quando o Código de Napoleão, o primeiro diploma moderno em ordem cronológica, foi também o primeiro a tratar de prescrevê-la, vale dizer, como a aplicação mais importante da prescrição imemorial no campo do direito privado era a relativa às servidões, exatamente a respeito destas regrou o art. 691: "Les servitudes con tinues non apparentes et les servitudes discontinues apparentes ou non appa rentes ne peuvent s'établir que par titres. La possession même immémoriale ne suffit pas pour les établir; sans cependant qu'on puisse attaquer aujourd'hui les servitudes de cette nature déjà acquises par la possession dans les pays, oú elles pouvaient s'acquérir de cette maniere." 4. A usucapião no Código Civil brasileiro o Código Civil de 1916 trata da usucapião em diversos artigos, especial mente nos de n.OS 550 a 553, 618 e 619. Discute-se na doutrina se a usucapião é um modo originário ou derivado de aquisição da propriedade. A opinião mais correta é a de admitir que se trata de um modo originário, visto que a relação jurídica da usucapião consagra um direito novo, sem relacionamento com o primitivo proprietário ou possuidor. A prescrição aquisitiva no caso é declarada por sentença do poder judiciário. Opinião diversa tem Caio Mário da Silva Pereira (1978, p. 110), assim ex pressando-se: "Considera-se originária a aquisição, quando o indivíduo, num dado momento, tomar-se dono de uma coisa que jamais esteve sob o senhorio de outrem. Assim entendendo, não se pode atribuir à usucapião esta qualificação, porque é modalidade aquisitiva que pressupõe a perda do domínio por outrem, em benefício do usucapiente. Levando, pois, em conta a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa que já era proprietária da mesma coisa, e que perde a titularidade da relação jurídica dominial em proveito do adquirente, conclui-se ser ela uma forma de aquisição derivada. Mas não se pode deixar de salientar que lhe falta, sem a menor dúvida, a circunstân cia da transmissão voluntária, ordinariamente presente na aquisição derivada." Com respeito à espécie e extensão da usucapião, há duas classificações bási cas. Conforme a primeira, divide-se em usucapião de móveis, e de imóveis e ser vidões prediais. Bens imóveis são aqueles insuscetíveis de remoção sem que se lhes mude a natureza (Código Civil, art. 43), afora os imóveis para efeitos legais a que se refere o art. 44 do Código Civil. Os bens móveis são os suscetíveis de movimento próprio ou de remoção por força alheia (Código Civil, art. 47). Ainda o art. 941 do Código de Processo Civil fala da servidão predial, ao seu possuidor cabendo também a ação de usucapião. Consoante uma segunda classificação, a usucapião divide-se em extraordinária, ordinária e especial, das quais se falará especificamente no decorrer do trabalho. Para J. M. Othon Sidou,2 "das diversas classificações, constantes ou não das fontes para os modos de adquirir a propriedade no antigo direito, com peque nas variantes sobre o direito moderno, o mais racional é separar os modos de aquisição em originários e derivados. Esta dicotomia não comporta, todavia, as 1 In: Enciclopédia Saraiva de direito. 1981. p. 177. 50 R.C.P. 1/85 aqUlslçoes causa mortis por não serem modo ongmano nem derivado, porém leva proveito sobre os outros esquemas - modos do ius civile e modo do ius gentium, e modos voluntários e necessários - proveito que se traduz, no primeiro, por ultrapassado já no direito pré-justiniano; e no segundo, por des contemplar a occupatio que os antigos romanos erigiram no arquétipo do prin cípio aquisitivo. Com efeito, não. pode haver o exercício primitivo de um direito, e a ocupação o é, nem voluntária nem necessariamente, termos ambos condicio nados ou não ao consentimento de um alienante. Ocupação e alienação são figuras que se repelem." Para Antônio Macedo de Campos (1983, p. 75), existem cinco espécies de usucapião contempladas, em nossa lei: a extraordinária, a ordinária, a pro labore do Estatuto da Terra, a inominada do Estatuto do lndio e a especial. Funda mentalmente não divergem entre si estas cinco formas, exigindo-se sempre, para sua concessão, coisa hábil, posse, lapso de tempo, animus domini e, em alguns casos, capacidade, boa fé, justo título, o trabalho e a morada. Varia a obrigatorie dade da presença de alguns destes requisitos, tais como a flutuação dos prazos, as dimensões da área e o trabalho. Advirta-se, ainda, que capacidade e coisa hábil não estão expressas nas disposições referentes à usucapião. Resultam dos princípios gerais de direito. No direito anterior ao Código, a usucapião dividia-se em: a) imemorial; b) extraordinária, completando-se em 30 ou 40 anos (longissimi temporis praes criptio); c) ordinária, completando-se em três, 10 ou 20 anos (usucapio sui longi tempo ris praescriptio"). Para a prescrição imemorial, fazia-se apenas neces sário provar uma posse de cujo começo não houvesse memória entre os vivos. A posse imemorial fazia presumir, iuris et de jure, a existência de justo título e boa fé; e todas as coisas, ainda as imprescritíveis segundo as regras gerais de direito, mas que não fossem absolutamente inalienáveis, podiam ser assim adqui ridas, salvo, é claro, se a lei estabelecesse exceção expressa. O Código Civil aboliu a prescrição imemorial, passando a reger apenas a extraordinária e a ordinária. Hoje o lapso de tempo para aquisição pela usuca pião também é menor do que naquele momento. 5. Prescrição extintiva e aquisitiva Do fato de haver Justiniano confundido num mesmo título (Livro VII) a matéria das prescrições e da usucapião, antes perfeitamente diferenciadas, surgiu com o tempo a necessidade de adotar-se a distinção introduzida por Bõhmer entre prescrição extintiva ou liberatória e prescrição aquisitiva ou usucapião. Aquela, a perda da ação atribuída a um direito e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não-uso dela durante um determinado espaço de tempo; esta, um modo de adquirir a propriedade e outros direitos reais pela posse acompanhada de certos requisitivos. Não se pode negar, no entanto, que os dois institutos têm pontos de contato em verdade bastante extensos: assim, o lapso de tempo, a inércia do titular do direito e o efeito extintivo, sobre se aplicarem a ambos diversas disposições de lei, como as relativas às causas que suspendem ou interrompem a prescrição. Estas semelhanças levaram certos autores a propugnar pelo conceito unitáno da prescrição e a sugerir-lhe a seguinte definição, adotada pelo Código Civil fran- Usucapião 51 cês, art. 2.219: "un moyen d'acquérir ou de se libérer par un certa in laps detemps, et sous les conditions déterminées par la loi." Mas como ensina Clóvis (1929, § 77), "a diferença essencial entre a prescri ção e a usucapião, que não tinha sido assinada pelos antigos jurisconsultos e foi posta em evidência pela análise dos modernos, está em que a primeira é uma força extintiva da ação e de todos os recursos de defesa, de que o direito se achava originariamente provido, e a segunda é uma força criadora de direitos reais, em particular da propiiedade, que opera transformando a posse em direito". Foi o que estabeleceram, em sua maioria, os civilistas alemães, que passaram a tratar da prescrição propriamente dita na parte geral, e da usucapião na parte relativa ao direito das coisas, orientação esta logo a seguir adotada pelo Código Civil alemão e pelo brasileiro, nos termos, aliás, do Projeto Primitivo. Para Washington de Barros Monteiro (1978, p. 125), duas forças se fazem sentir na pre~crição aquisitiva e na prescrição extintiva: a força geradora e a força extintora. Na prescrição aquisitiva predomina a força que cria, na extintiva a força que extermina; opera aquela criando o direito em favor de um novo titular e, por via oblíqua, extinguindo a ação, que para a defesa do direito tinha o titular antigo; na prescrição extintiva, a força extintora extermina a ação que tem o titular e, por via de conseqüência, elimina o direito pelo desaparecimento da tutela legal; na primeira, nasce o direito e, pelo nascimento dele, fenece a ação; na segunda, fenece a ação e, pelo seu fenecimento, desaparece o direito. Se a força geradora prepondera sobre a força extintora, temos a prescrição aquisitiva. Se a força extintora prepondera sobre a força geradora, temos a prescrição extintiva. Salienta-se a primeira pela sua feição positiva, como modo de adquirir a propriedade pela posse prolongada; caracteriza-se a segunda pela sua feição negativa, pois consiste na perda da ação atribuída a um direito pelo não-uso dele durante certo lapso de tempo. Mas uma e outra têm o mesmo fun damento: o respeito às situações desenvolvidas e consolidadas pelo tempo. Dentre as dessemelhanças dos dois institutos costuma-se apontar, ademais, e posto que sem maior aprofundamento, a de que a prescrição extintiva somente pode revestir a natureza de exceção ou como ação: "usucapio prodest tam ad agendum quam ad excipiendum". Por outro lado, porém, assim como a libera tória, a prescrição extintiva não produz os seus efeitos de pleno direito, impõe-se que seja alegada pela parte a quem aproveita, não podendo, pois, ser suprida de ofício pelo juiz. Como sinalava Bigot-Prémeneu",3 "o só decurso do tempo não realiza a prescrição; carece que com o tempo concorram ou a longa inação do credor ou uma posse tal como a lei a exige; e esta inação ou esta posse são circunstâncias que não podem ser conhecidas e verificadas pelos juízes, senão quando elas são alegadas por quem delas deseja se prevalecer". De resto, o motivo pelo qual não pode o juiz aplicar de ofício a prescrição é que ela envolve um ato de consciência, que a lei quis deixar ao livre-arbítrio de cada um. Tem a sociedade interesse em que ela exista, mas lhe é de todo indiferente que o prescribente a invoque ou deixe de invocar. O fim a que a pres crição se propõe (evitar a incerteza do domínio e preservar a paz da família do perigo das reclamações tardias), a sociedade o consegue, quer o prescribente se aproveite ou não do favor legal. Pedida em tennos, tollitur quaestio, conso lida-se o domínio, ou liberta-se o devedor. Renunciada ainda sem auestão, torna a coisa ou soma devida ao poder do seu dono. • 3 In: Baudry-Lacantinerie. De la prescription. Paris, 1924. n. 11. 52 R.C.P. 1/85 Quanto à possibilidade de invocar-se a prescrição em qualquer instância, cum pre observar que, mesmo no direito francês e naqueles que tratam de ambas as espécies de prescrição sob o mesmo título, não é certo que a regra valha indife rentemente tanto para uma como para outra. Houvesse, porém, alguma dúvida e teríamos que, ao invés, no sistema do nosso diploma, essa possibilidade seria de admitir-se, quando muito, apenas para a prescrição extintiva: primeiro por que a usucapião teve assento em província diversa daquela em que foi con signada a regra do art. 162: "a prescrição pode ser alegada, em qualquer ins tância, pela parte a quem aproveita", e, segundo, porque mandando o art. 553 do Código Civil estender à usucapião as normas sobre as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, silenciou quanto à aplicabilidade da quele dispositivo. Sem falar que, proposta tão-s6 perante a segunda instância, não poderia esta julgar matéria de fato não debatida no juízo inicial, nem lhe seria lícito converter o julgamento em diligência, circunstância que importaria em permitir-se inovação na causa inoportuno tempore. Portanto, como exceção, o momento processual adequado para afirmar-se a prescrição aquisitiva é o da contestação, importando o silêncio do réu em renúncia tácita; pois envolvendo a alegação matéria peremptória, dependente de provas de fato, a que os liti gantes podem contrapor provas e razões relevantes, impossível debatê-las na segunda fase, destinada à execução de trabalhos topográficos e a exame e solu ção de questões dirimíveis à vista de documentos ou por via sumária. 6. Prescrição das ações reais Admite-se, como vem do direito romano, a usucaplao de direitos reais na coisa alheia, como o usufruto, a enfiteuse, a servidão, com exceções quanto a esta no que diz respeito às servidões descontínuas e às não-aparentes. Este pen samento liga-se à doutrina da quasi possessio. Nem todos os bens reais podem, contudo, ser usucapidos, como os bens públicos, exceto o caso da usucapião espe cial e da pro labore. Entende-se também que a usucapião não se aplica a direitos pessoais, visto que a posse é instituto do direito das coisas; é ela que funda menta a usucapião. Diversos códigos tratam da usucapião juntamente com a prescrição, mas o Código Civil brasileiro segue a orientação do BGB, colocando-a no direito das coisas. Limongi França (1964, p. 71-7) relembra que na França a jurisprudência admite a usucapião do nome civil, fundamentando-se na doutrina da propriedade do direito ao nome. Operando a aquisição de certos direitos reais, extingue-se a usucapião, por via oblíqua, a ação os defendia. A só prescrição extintiva seria insuficiente para que esta pudesse elidir-se: não bastam o transcurso do tempo e a inércia do titular, senão que, concomitantemente, os direitos reais por ela tutelados tenham sido adquiridos por outrem mediante posse hábil, ad usuca pionem. Assim, é de observar-se defeituosa a redação do art. 177 do Código Civil, segundo o qual as ações pessoais prescrevem ordinariamente em 20 anos e as ações reais em 10 entre presentes e 15 entre ausentes, contados da data em que poderiam ter sido propostas. Nem todos os direitos reais são suscetíveis de extinguir-se pela simples inércia de seu titular. O usufruto, as servidões, a hipo teca, certo, deixam de existir pela prescrição extintiva. Mas não assim o direito Usucapião S3 de propriedade, com as ações correlatas, entre outras a reivindicatória, a divi sória e a demarcatória. A propriedade, como já se disse, não deixa de subsistir pelo só fato de que o dominus. deixe de praticar na coisa, por um tempo maior ou menor, algum ato de posse; a lei, assegurando ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens (Código Civil, art. 544), confere-lhe, por isso mesmo, o direito de não fruí-Ios sempre que lhe aprouver. De sorte que a este respeito a única pres crição possível é a aquisitiva, isto é, quando aquele que se opõe à ação de reivindicação, de divisão ou demarcação, exiba a evidência, que a propriedade nele se consolidou pela posse prolongada, revestida dos caracteres que confi guram a usucapião. Isto, contudo, nem sempre foi pacífico. Houve quem entendesse, no direito francês, prescrevera ação reivindicatória, muito embora conservasse o autor o seu direito à propriedade, não perdido por usucapião: o direito dominial, nesta hipótese, dizia-se, não permaneceria inútil, podendo, pelo contrário, ser invocado em outra oportunidade, por exemplo, quando o bem passasse às mãos de um terceiro, ou ainda quando o possuidor atual, a quem beneficiaria a prescrição extintiva, cessasse de possuir; e houve também quem sustentasse conduzir a pres crição dessa ação à perda do domínio, mesmo não preenchidos pela parte adversa os requisitos da prescrição aquisitiva, entendimento do qual participa Pontes de Miranda (1977, p. 339), ao dizer: "estava Melo Freire certo em afirmar que, nascendo o direito do usucapiente, se extinguia o do proprietário ( ... ) mas errava em exigir que, extinguindo-se a ação real, ou o próprio direito, tivesse alguém de usucapir". Há de notar-se, portanto, que: - os direitos reais, outros que não o domínio, ou seja, os chamados jura in re aliena, adquiríveis pela usucapião, devem incidir sobre objeto que possa incor porar-se ao patrimônio público ou privado por meio dela. Assim não são usuca píveis, por exemplo, servidões públicas sobre bens de menores ou interditos, uma vez que tais bens se consideram fora do comércio, do mesmo modo que servidões particulares sobre bens públicos. Exceção única à regra, ao que consta, é a da usucapião do domínio útil (foreiro) sobre bens do domínio público; - ao contrário do direito atual, todas as servidões, mesmo as descontínuas e as não-aparentes, podiam anteriormente adquirir-se por usucapião. Vigente, po rém, o Código Civil, as opiniões dividiram-se. Uma primeira corrente, menos numerosa, encarando isoladamente o art. 698, entendia que o novo diploma em nada modificara o direito anterior, permitindo, pois, a usucapião de todas as servidões, fossem elas afirmativas ou negativas, contínuas ou descontínuas, apa rentes ou não. Uma segunda corrente sustentou que as servidões descontínuas e as não-aparentes jamais se poderiam adquirir pela prescrição, de vez que, à norma do art. 509, não gozaram de proteção possessória. Ora, não possuindo direito menos extenso, não poderiam lograr um direito maior, qual o da aqui sição por usucapião. "Qui potest plus, potest minus", e, inversamente, a recusa de um direito pela lei implica, a fortiori, a recusa de outro mais vantajoso. Uma terceira, afinal, e que se tomou dominante, afirmou com sobradas razões que o Código Civil teria excluído da usucapião apenas as servidões não-aparentes, nos termos do art. 697, que dispôs só poderem ser estabelecidas por meio de transcrição, donde, a contrario sensu, a conclusão de que as servidões aparentes, mesmo se descontínuas, poderiam constituir-se pela prescrição. 54 R.C.P. 1/85 7. Causas suspensivas e interruptivas da usucapião o art. 553 do Código Civil refere-se às causas suspensivas e interruptivas da usucapião, nos seguintes termos: "As causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição também se aplicam à usucapião (art. 619, parágrafo único), assim como ao possuidor se estende o disposto quanto ao devedor." O prazo para aquisição pela usucapião, quando suspenso, não corre daí por diante, mas não inutiliza o tempo anterior e já decorrido. Assim, a suspensão desaparecendo, o prazo para completar a usucapião recomeçará a correr, juntando-se a este o prazo decorrido até ser sus penso, isto é, o lapso de tempo anteriormente decorrido. Diferentemente se trata no que concerne às causas que interrompem a usucapião. Ocorrendo a interrup ção, todo o tempo decorrido é inutilizado; torna-se sem efeito para a contagem do lapso necessário à aquisição do domínio pela usucapião, começando a cor rer novo tempo, sem aproveitamento do anterior. As causas que interrompem a prescrição, e por conseqüência também a usucapião, são enumeradas nos arts. 172 a 176 do Código Civil. Não é exato, mesmo com a afirmação de alguns doutrinadores, que a usuca pião corre contra os maiores de 16 e menores de 21 anos; de acordo com o Código Civil, arts. 69 e 386, os bens dos menores, mesmo púberes, foram considerados fora do comércio e, por conseguinte, imprescritíveis. As causas que obstam ou suspendem a usucapião são enumeradas nos arts. 168, 169, 170 e 172 do Código Civil. Conseqüentemente, não se verifica: a) entre cônjuges na constância do matrimônio. Seria realmente inconcebível, pois os bens constituem uma só massa, um só acervo; inadmissível, portanto, que qualquer desses bens possa ser objeto de posse exclusiva a favor de um cônjuge contra o outro. Embora na posse e administração dos bens da mulher, o marido jamais pode usucapi-los, porquanto a ninguém se permite mudar, por exclusiva deliberação, a causa ou título da posse; b) entre ascendentes e descendentes, durante o pátrio-poder; c) entre tutelados e curatelados e seus tutores ou curadores, enquanto existir a ligação; d) em favor do credor pignoratício, do mandatário, e, em geral, das pessoas que lhes são equiparadas, contra o depositante, o devedor, o mandante, as pessoas representadas, os seus herdeiros, quanto ao direito e obrigações relativas aos b~ns confiados à sua guarda. Também não COrre a prescrição, preceitua o art. 169 do Código Civil: a) contra os incapazes de que trata o art. 5.°; b) contra os ausentes do país em serviço público da União, dos estados ou dos municípios; c) contra os que se acharem servindo na armada e no exército nacionais em tempo de guerra. Trata-se de uma aplicação da conhecida regra de Bartolo: "contra non valentem agere non currit praescriptio'f (não corre prescrição contra aquele que não pode agir). Obviamente deve ser a norma aplicada com prudên cia e reserva. Usucapião 55 Ainda, no art. 170, dispõe o Código que não corre a prescriçãc: a) pendendo condição suspensiva; b) não estando vencido o prazo; c) pendendo ação de evicção. Por outro lado, suspenso o curso da usucaplao contra qualquer interessado, visto ocorrer uma das causas apontadas, aproveita o fato a todos os demais. 8. Capacidade para usucapir Com clareza escreveu Pothier (s.d., n.o 18) que, sendo a usucapião a aquisição pela posse prolongada pelo tempo legal, é evidente que só as pessoas capazes de possuir dela se podem socorrer, pouco importando que possuam por si mesmas ou por outros que as representem. E pessoas capazes de possuir são tanto as pessoas físicas como as morais, e entre estas mesmo uma comunidade hereditária ou uma pessoa jurídica de direito público (exceto os estados-membros da União, com respeito ao território das demais unidades da Federação). Mas também o são os incapazes por intermédio de seus represen tantes; basta que estes, realizando a apreensão da coisa, o façam não com intenção de possuí-la para si, mas para aqueles. Aos bens de uso comum, tais como estradas, ruas e praças, legitima-se o povo para a prescrição aquisitiva: "O uso permanente de uma estrada pelo público, sem oposição do proprietário, torna-a pública, não em favor de determinadas pessoas, mas de todos, indistintamente que possam nela transitar."· Quanto aos estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas) e às pessoas jurídicas nacionais equiparadas às pessoas jurídicas estrangeiras, são de ter-se presentes as limitações impostas pelos Decretos-leis n.O$ 494/69, 924/69 e pela Lei n.O 5.709/71. No direito internacional público há muito que se postula a aplicabilidade da prescrição aquisitiva à solução de controvérsias entre os Estados; e pela usuca pião, com efeito, se tem resolvido um sem-número de questões em nosso conti nente, como consignado no julgado do pretório excelso de 24 de dezembro de 1909.5 A questão, no entanto, é muito controvertida. Pela negativa manifesta ram-se entre nós Clóvis Bevilacqua e Gaspar Guimarães, quanto aos estrangeiros, Georges Ripert (1963, p. 569-663). Mas uma coisa é a capacidade para usucapir, outra a legitimidade para invocar a usucapião, que se estende a outras pessoasque não aquelas em cujo favor ocorreu uma posse hábil, ou seja, aos sucessores legítimos ou testamen tários do possuidor, em primeiro lugar, e, em segundo, aos credores e demais interessados; deve entender-se aqueles em cujo benefício constitui o possuidor um direito qualquer que pereceria não se consolidando a propriedade nas mãos deste; por exemplo, o usufrutuário, o usuário, o fideicomissário em relação ao gravado, o enfiteuta frente ao senhorio direto, ou ainda os que têm uma razão meramente negativa, a saber, que exclua a sua propriedade de um ônus já im- 56 STF. 3.6.47. In: RF, 116:20. In: Revista de Direito, 21 :550. R.C.P. 1/85 posto pelo decurso do tempo a outro prédio, mas cujo proprietário não opõe a prescrição ou a ela renuncia, como seria o caso, por exemplo, da determinação do prédio serviente quanto a uma passagem forçada. 9. Dos efeitos e da renúncia à usucapião o primeiro e mais importante dos efeitos da usucapião do direito real sobre o qual incidiu. Reputa-se esse direito adquirido desde que se começou a possuir a coisa sobre que ela incide, desde que cumprido o prazo previsto na lei, ou desde que invocada e reconhecida judicialmente a prescrição aquisitiva? No direito romano, a questão não era pacífica; nem os códigos modernos, ao que parece, preocupam-se em resolvê-la. Contudo, a maioria dos autores inclina-se pelo efeito retroativo da usucapião. Outro efeito é o de que os direitos reais adquiridos pela usucapião passam ao prescribente com todos os seus acessórios e rendimentos. "Com o principal prescrevem os direitos acessórios" (Código Civil, art. 167). Assim, por isso mesmo que se legitimam os frutos perceptos, adquirem-se tanto as servidões de vidas à coisa, como as suas adesões naturais e civis. Inversament\!, porém, não se podem adquirir as coisas acessórias independentemente da principal (Código Civil, art. 59), exceto, é claro, se o direito real a usucapir tão-somente a elas se refira, como é o caso do usufruto e dos demais direitos desmembrados do domínio. Um terceiro efeito advém de que, consolidando a prescrição a causa, ou seja, o título que lhe serviu de fundamento, o prescribente é tido como se fora su cessor de seu autor e fica, pois, responsável para com ele pelas obrigações que nascem do contrato estipulado entre um e outro. Isto, porém, diz apenas res peito à usucapião ordinária, de sorte que, se o adquirente prescreveu a coisa a título de compra, é obrigado a pagar ao vendedor o preço, não o tendo feito anteriormente; se a título de doação, não se pode subtrair ao cumprimento dos ônus e condições porventura impostas pelo doador. Quando o direito é indivisível (como é o caso das servidões, por exemplo, e dentre elas a antiga servidão legal de passagem, hoje arrolada em outro título do Código Civil), a prescrição, adquirida por um co-proprietário ou condômino aproveita fatalmente aos demais. Estabelecida, finalmente, a coisa julgada, relativamente à usucapião, não há possibilidade de vir a reivindicar-se a coisa usucapida: somente por meio de rescisória pode ser atacado, de alguma forma, o que aí decidiu; salvo se o reivin dicante não tiver sido parte na ação declaratória, não tendo sido pessoalmente citado, como prescreve o Código de Processo Civil (art. 942, 11). Nem pode o antigo proprietário, que não se opôs fosse o seu prédio alienado por um non dominus ao que depois o usucapiu, voltar-se contra o alienante para pleitear perdas e danos, pois que o antigo proprietário, tendo deixado de sê-lo, não é mais titular ativo. Por outro lado, do fato de que o prescribente se considera titular do direito prescrito desde o começo da posse hábil derivam-se os seguintes efeitos: a) o possuidor, convertido em proprietário pela usucapião, faz ~eus os frutos percebidos durante o tempo da posse, ainda que de má fé; não fora o efeito re troativo, deveria restituir, se de má fé, os frutos percebidos, os frutos pendentes Usucapião 57 e os que deixou de colher por culpa sua, tal como disposto nos arts. 510, 511 e 513 do Código Civil; b) os direitos reais constituídos pelo usucapiente durante o lapso prescricional se convalidam pela usucapião, como se esta se houvesse consumado já àquele tempo; c) os direitos reais estabelecidos pelo verdadeiro proprietário, contra quem se usucapiu, sobre o imóvel prescrito, só prevalecem se anteriores ao começo da posse ad usucapionem. Quanto à renúncia, pode conceber-se em três situações diversas: ou a pres crição não se completou ainda, e é verdadeiro jus juturum; ou já se completou, mas ainda não foi alegada, e é, então, jus delatum; ou, finalmente, já se consu mou e foi alegada, e constitui, pois, jus quaesitum. No primeiro caso, o direito ainda não está adquirido e razões de ordem pública impedem, como já se reco nhecia no direito anterior e veio a se dispor no direito atual (Código Civil, art. 161), a sua renúncia antecipada. No segundo caso, posto que o prazo da pres crição já decorreu, adquiriu o prescribente o direito de invocá-la, e a renúncia a este direito é perfeitamente lícita. Mas por isso mesmo que a coisa ou o di reito ainda não passou para o domínio do possuidor (porque para tanto faltaria ainda alegar a prescrição), o efeito dessa renúncia é tão-só o de impedir que a aquisição se realize, restaurando-se o direito ameaçado do verdadeiro titular. No terceiro caso, alegada e reconhecida a prescrição aquisitiva, a coisa ou o direito ingressou no patrimônio do prescribente e, destarte, a renúncia deverá considerar-se uma alienação (doação). 10. Caracteres da posse ad usucapionem Para conduzir à usucapião, precisa a posse ser a título de proprietário, con tínua, ininterrupta, pacífica, pública, inequívoca e atual. Em primeiro lugar, a posse animus domini não se confunde com a opinio domini, que é a crença, certa ou errada, de que se é senhor da coisa ou do direito, nem, se resume na simples intenção ou convicção de que se está compor tando como proprietário. Tem a posse animo domini aquele que se comporta, relativamente à coisa ou ao direito a usucapir, como o faria um proprietário diligente, isto é, que retira da coisa ou do direito as utilidades de que são capazes. De um modo geral, erradamente, tem-se dado como justificada a posse, nas ações de usucapião, como o simples fato de haver alguém se intitulado possuidor de um imóvel qualquer, urbano ou rural, e de ter nele praticado atos possessórios esporádicos, mais ou menos continuados, mas sem qualquer significação maior, qual a de evidenciar que se está fazendo proveitosa a coisa imediatamente para o possuidor e mediatamente para o corpo social. Para a propriedade não se perder pelo não-uso, é imprescindível que o possuidor oponha a essa "pre sunção de abandono" uma atividade econômica realmente apreciável, como aliás estava, senão expressa, pelo menos implicitamente, nas origens mesmas do instituto. Afasta-se a mera detenção; pois não se confunde ela com a posse, uma vez que lhe falta a vontade de tê-la. E exclui, igualmente, toda posse que não se faça acompanhar de ter a coisa para si animus rem sibi habendi, como, pOI 58 R.C.P. 1/85 exemplo, a posse direta do locatário, do usufrutuário, do credor pignoratício, que, tendo embora o ius possidendi que os habilita a invocar os interditos para defesa de sua situação de possuidor contra terceiros e até contra o possuidor indireto (proprietário), não tem, nem pode ter, a faculdade de usucapir. E é óbvio, pois aquele que possui com base num título que o obriga a restituir des fruta ce uma situação incompatível com a aquisição da coisa para si mesmo. Completando-Ihe a qualificação é que se impõe o requisito anímico, que reside na intenção do dono: possuir cum animo domini. Em segundo lugar, a posse deve ser contínua; e assim é, em linha de prin cípio, quando os atos possessórios não apresentam omissões ou falhas da parte do possuidor; se este deixa de usar da coisa ou do direito para vir a fazê-loapós um tempo maior ou menor, a posse se qualifica como descontínua. A continui dade consiste na sucessão regular dos atos de posse com intervalos suficiente mente curtos para não constituírem lacunas. E, por isso, não é exato que a posse ad usucapionem pode conservar-se animo solo, isto é, independentemente da prática de atos materiais que a revelem. Em terceiro lugar, cumpre que a posse não tenha sido interrompida. Sobre o conceito de não-interrupção dissentem, porém, as opiniões. Julgam uns que a continuidade e a ininterrupção não se podem considerar coisas distintas, equi valendo-se as expressões. Preferem outros distinguir que a descontinuidade é imputável somente ao possuidor, enquanto a interrupção é sempre obra de ter ceiro, ou, pelo menos, supondo a intervenção de um terceiro; mas, ainda aí, no caso de abandono (derelictio) , afirmam uns que se trata de interrupção, outros que não passa de descontinuidade. E mais, há os que entendem que a interrup ção é unicamente a natural, assim definida no Código Civil francês, art. 2.243: "11 y a interruption naturelle lorsque le possesseur est privé, pendant plus d'un an, de la jouissance de la chose, soit par l'ancien propriétaire, soit par un tiers." Como não falta ainda quem proponha, identificando a descontinuidade e a inter rupção natural, que a interrupção é tão-somente a civil, referida não à posse, mas à prescrição. Este deve ser o entendimento, a não-interrupção, atinente à posse, subsume-se no conceito mais amplo de descontinuidade, nenhuma razão mais séria compelindo diferenciar as duas expressões. Em quarto lugar, requer-se que a posse seja pacífica, isto é, que se tenha estabelecido e se exerça sem violência, pouco importando se física ou moral, e, muito menos, se os atos pelos quais ela se revelou forçaram uma deposição brutal do antigo possuidor ou simplesmente o levaram a abandonar a coisa. Outrora, tanto no direito francês como no nosso, o vício da violência era per pétuo, que era o que se colhia do direito romano; a posse adquirida pela vio lência permanecia sempre viciosa, não dando lugar aos interditos nem à usucapião, a não ser quando o vício se purgava pela volta da coisa às mãos do legítimo possuidor, ou quando o espoliado consentia expressamente na continuação da posse começada pelo esbulho. No direito atual, entretanto, a posse maculada em sua origem pela violência pode fazer-se pacífica e dar lugar às ações possessórias, após um ano, e à usucapião a partir do instante em que cessado o vício (Código Civil, art. 497). Por outro lado, isenta de violência em seu início, ou cujo vício foi extinto pela superveniência da pacificidade, a posse não se dirá viciosa pelo só fato de vir o possuidor a sofrer violências, às quais precisa resistir para se manter. Em quinto lugar, quanto à publicidade, diz-se que falta à posse esse requisito quando o adquirente oculta a sua tomada daqueles de quem teme contestação. Usucapião 59 Melhor dito: para que a posse se considere pública não é mister que ela seja conhecida de todo mundo, que o direito tenha sido exercido "au vu et au su de tous ceux qui l'ont voulu voir". Pode ocorrer que a posse se exiba clandestina para uns e pública para outros. O que interessa, então, é que ela transpareça para aqueles contra os quais se vai invocar a prescrição e bem assim para os que a esta poderão se opor. A clandestinidade é um vício essencialmente relativo que só pode ser alegado por aqueles que têm um legítimo interesse em negar a usucapião. Em sexto lugar, no que respeita à inequivocidade, nem mesmo no direito francês, onde é expresso o requisito, não é ele um elemento distinto. O que ali se quis dizer foi simplesmente que as diversas espécies da posse ad usucapionem devem ressaltar, de maneira clara, dos fatos invocados pelo possuidor. Clássico, na espécie, o exemplo do condômino. Para beneficiar-se da prescrição, quando pretenda haver gozado da coisa ou de direitos indivisíveis, com exclusividade, será preciso que ele, por intermédio de atos exteriores e contraditórios, agressi vos e perseverantes, tenha colocado os demais consócios em mora de acioná-lo; de outra forma ele se reputará representar a comunhão e gozar, em virtude do título, não só para si, mas para a sociedade. Deve-se ainda ressaltar que, em caso de dúvida a respeito de ocorrência de causa interruptiva, presume-se a posse contínua e pacífica. Importante lembrar a questão do acréscimo de tempo pela junção de posses. Diversas regras gerais são específicas à usucapião, encontrando-se nos arts. 552 e 553 do Código Civil. Preceitua aquele: "O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a do seu antecessor (art. 496), contanto que ambas sejam contínuas e pacíficas." Os artigos antecedentes referidos são o 550 e o 551, que determinam o lapso mínimo de tempo para a aquisição do domínio pela usucapião. São, destarte, requisitos para a junção de posses: a) que as duas sejam contínuas, quer dizer, sem interrupção; b) que sejam pacíficas; c) que o título de possuidor decorra da posse que se pretende continuar. Evi dentemente, caso receba a posse de uma pessoa e o título de outra, não cabe a junção. h ainda indispensável, para o fim da usucapião, que a posse do antecessor se tenha exercido com animus domini. Caso tenha tido ele a posse a título precário, como no caso do testamenteiro, da posse familiar, do condômino, ou do adminis trador de bens, faltando-lhe o animus domini, não é cabível a consumação da usucapião. O antecessor, nos termos do entendimento sobre a matéria, não é aqui somente a pessoa a quem o usucapiente suceder por sucessão hereditária. Por conse qüência, se uma pessoa sucede a outra na posse de um imóvel, mesmo sem ne nhuma relação de parentesco com o possuidor antecedente, não ocorrendo inter rupção alguma nesta passagem pode haver junção de posse: elas podem ser somadas para a contagem do tempo da usucapião, caso não tenha havido oposi ção ou contestação de quem quer que seja. 60 R.C.P. 1/85 11. Coisa hábil Quanto à coisa hábil (res habilis), não se podem usucapir as coisas incorpó. reas, as coisas não-individuadas, as coisas acessórias e as coisas fora do comércio. A posse das coisas incorpóreas, ou seja, dos direitos pessoais, de família ou de crédito, não foi acolhida pela quase totalidade das legislações. E mesmo na quelas em que a posse vem definida como a detenção ou fruição de uma coisa ou direito (Códigos Civis francês, art. 2.228; italiano anterior, art. 685; por tuguês, art. 474), os comentadores e a jurisprudência só compreendem a posse de direitos reais, incidentes sobre coisas corpóreas. Não podem também ser objeto de usucapião os imóveis ou móveis que não se encontrem ou não possam ser perfeitamente individuados; e isto pela simples razão de que seria incompreensível uma posse sobre coisa indeterminada, incerta, vaga, desconhecendo-se até onde se estenderam os atos possessórios. Assim, não só para opor a usucapião como meio de defesa, mas para pedir-lhe o reconheci mento judicial, deve o prescribente declarar, de modo preciso, as características e confrontações do imóvel possuído, exigindo, aliás, as nossas leis processuais não apenas a citação dos confrontantes, mas ainda a juntada de planta do imó vel (Código de Processo Civil, art. 942, caput). As coisas acessórias, salvo disposição expressa em contrário, seguem o destino da principal (Código Civil, art. 59) - "Accessorium sequitur principale". A coisa acessória está de tal forma subordinada ao mesmo direito da principal, identificando-se, por assim dizer, com ela, que o proprietário da principal o é também das acessórias, assistindo-lhe o direito de reivindicá-las com aquela; e quem tem a posse daquela tem invariavelmente a destas; donde a conse qüência de que, com respeito às acessórias, não se podem ela usucapir indepen dentemente da principal. Impossível, portanto,usucapir o prédio independente mente do terreno sobre o qual está construído. Quanto às coisas fora do comércio, imprescritíveis por definição, enumera va-as, à semelhança do direito romano, nosso direito anterior: a) as coisas sa gradas, como os templos e as imagens, e as religiosas, como os cemitérios; b) as coisas do domínio público, distintas das do domínio privado do Estado, a saber, os portos, vias navegáveis, ruas, praças e estradas públicas, os pátios e os baldios dos municípios e paróquias e os prédios diretamente empregados pelo Estado em serviços de utilidade geral, como as fortalezas e as praças de guerra. O Código Civil, porém, preferiu defini-las: "São coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis." E não foi feliz ao fazê-lo. Porque, primeiro, verdadeiramente insuscetívPwis de apropriação são unicamente aquelas coisas a cujo respeito ninguém pode-se considerar proprietário, por fugirem ao poder físico do homem: a luz, o ar atmosférico, o mar alto etc.; razão pela qual, aliás, são estranhas à qualificação de fora do comércio. E, segundo, porque a rigor não existem coisas legalmente inalienáveis, não o sendo sequer os bens de uso comum (como ficou patente com o Tratado de Petrópolis, pelo qual o Brasil, em 1903, permutou com a Bolívia vastos territórios que incluíam bens do domínio público daquela categoria). Coube à doutrina e à jurisprudência sinalar compreendidos na expressão "legalmente inalienáveis" o bem de família (Código Civil, art. 72), os imóveis dotais (art. 293 e 298), os bens de menores sob pátrio poder ou tutela (art. 386, c/c com o 453) e os bens públicos, mesmo os patrimoniais. Usucapião 61 12. Lapso de tempo A contagem do tempo para a usucapião é feita integralmente por dias civis, dies civiles, como os romanos denominavam o período de 24 horas, que decorre de meia-noite à meia-noite, ou por dia inteiro, de dia a dia, e não por horas_ Passo a analisar diversas hipóteses quanto ao lapso de tempo para a prescrição aquisitiva. Não há usucapião especial em favor da Fazenda pública; a prescrição qüin qüenal de que esta goza só se aplica às ações pessoais, não às reais. Enquanto não se faz a partilha, os bens do de cujus, sejam eles móveis ou imóveis, reputam-se, para os herdeiros, "direitos à sucessão aberta" e, portanto, imóveis (Código Civil, art. 44, 111). As apólices da dívida pública não são, em nosso direito, equiparadas aos imóveis (mas móveis por natureza), de modo que aquele que as adquirir por justo título e de boa fé, e as possuir mansa e pacificamente por mais de três anos, delas torna-se proprietário por usucapião. Consideram-se imóveis os navios (Código Civil, art. 810, VII), mas o capitão não pode adquirir por título de prescrição a posse da embarcação em que servir, nem de coisa a ela pertencente (Código Comercial, art. 451). O tempo de posse decorrido antes da transcrição do título não se conta, se se trata de prescrição ordinária. Se o prescribente e o proprietário residiram parte do tempo na mesma co marca (ou município) e parte em comarcas diversas, o prazo de prescrição ordi nária será sempre o de 15 anos, valendo, porém, por um ano e meio cada ano de presença. De outra parte, se o proprietário (reivindicante) mora na comarca da situação do imóvel e o réu reside em outra, encontrando-se na posse do imóvel por intermédio de preposto, o prazo prescricional deve ser o de 10 anos, visto que a dilatação do prazo para 15 anos é estabelecida em benefício daquele contra quem corre a prescrição. Quando o imóvel pertence a dois ou mais indivíduos, pro indiviso, dos quais uns são presentes, outros ausentes, tem-se que a usucapião se consuma em 10 anos, respeito às partes indivisas dos primeiros, e em 15 anos quanto às dos se gundos; aqueles não se podem prevalecer da situação especial destes. E a mes ma regra se aplica ao prescribente que possui em comum: o que possui entre presentes adquirirá a parte pro indiviso em 10 anos; o ausente, em 15 anos. A condição, porém, em ambos os casos é que a coisa ou o direito não sejam em si mesmos indivisíveis, pois então os possuidores não poderiam ver cumprida a prescrição senão conjuntamente e contra todos os proprietários ao mesmo tempo. Embora deixando procurador no foro da coisa, considera-se ausente, para os efeitos do art. 551, do Código Civil, o proprietário que não esteja no país. No que se trata de prescrição contra o Estado, este sempre considera-se presente. Pode ocorrer que durante o lapso de tempo necessário à consumação da pres crição, a coisa tenha sido possuída por duas ou mais pessoas sucessivamente. Na generalidade destes casos, permite a lei ao novo possuidor juntar à sua posse a do antecessor para completar o prazo exigido. Esta junção pode apresentar-se ou como successio possessionis, conforme a nova posse tenha sido adquirida a título universal ou a título singular respectivamente. Na sucessio possessionis o herdeiro se reputa continuar a posse do defunto: a posse deste passa àquele por força de lei, ainda que não venha exercer de fato. Segundo o direito romano, porém, impunha-se que o herdeiro viesse a apreender 62 R.C.P. 1/85 a coisa para que se somassem a posse anterior do de cujus e a tomada da posse; e nisto é que se afastou o direito posterior, dispensando a apreensão de fato. Em tema de usucapião, todavia, estamos em que o art. 1.572 do Código Civil não pode ter esse alcance: a propriedade, por um lado, não se perde pelo não use; e isto significa que o titular do domínio não está obrigado a praticar atos possessórios na coisa para mantê-la sob a sua sujeição; e, de outra parte, só há posse ad usucapionem quando ela é, ao lado de outros requisitos, contínua e pública, ou seja, exercida de fato e, por conseguinte, capaz de induzir o pro prietário em mora na defesa de seus direitos. Ora, se assim é, e se os herdeiros do de cujus não a assumem (dentro de um prazo mais ou menos razoável, aten tas as circunstâncias) por si ou seus prepostos, não vemos como se possa qualifi car essa sua posse ficta como pública e contínua, não estando obviamente o proprietário na obrigação de indagar se o falecido deixou ou não sucessores que lhe haveriam de continuar a posse, e muito menos na de imitir-se na coisa para afirmar o seu domínio. Nem é a usucapião, em última análise, um instituto des tinado a punir o proprietário negligente, senão quando outrem, o possuidor no caso, se relacione economicamente com a coisa, tornando-a socialmente útil, o que não ocorre com a posse em tela. Na accessio possessionis, ao contrário, o sucessor a título singular não continua, mas inicia uma posse nova, e o faz com a apreensão da coisa, exigindo-se-Ihe, ademais, um ato transmissivo devidamente formalizado. Ao entrar em vigor o Código Civil, não se pôs em dúvida a obrigatoriedade de seus prazos prescricionais, salvo quanto aos fatos então já consumados, à coisa julgada e aos direitos adquiridos, a cujo respeito a lei não teria efeito re troativo. A lei nova, ainda que seus prazos fossem maiores ou menores que os assinalados anteriormente, colhia todos os casos em curso, não consumados até 31 de dezembro de 1916, mesmo aqueles já afetos ao poder judiciário, desàe que este não houvesse, é claro, proferido sobre eles decisão definitiva. Contudo, e em razão mesmo de doutrina consagrada, ponderava-se que: a) faltando, para ter minar a prescrição em curso, tempo menor do que o estabelecido pela lei nova, a prescrição se concluía sob o império da lei antiga; b) faltando, para terminar o prazo antigo, tempo igualou superior ao assinalado pela lei nova, aplicava-se esta, contando-se da data de sua vigência o novo prazo, segundo uns, ou so mando-se o tempo decorrido anteriormente, conforme propuseram mais acerta damente outros. 13. Justo título e boa fé Justo título, justa causa possessionis, é todo ato formalmente adequado a transferir o domínio ou o direito real de quetrata, mas que deixa de produzir tal efeito em virtude de não ser o transmitente senhor da coisa ou do direito, ou de faltar-lhe o poder de alienar. No direito moderno, arrolam-se como justos títulos: a compra e venda, a doação in solutum, a permuta, a doação, o dote, o legado, a carta de arrematação, a carta de adjudicação, a ocupação de coisa móvel (quando há razões para supor-se que foi abandonada), acrescentando-se, porém, que os atos sujeitos à transcrição (Código Civil, arts. 531 e 532, 11 e 111) só revestem a característica de justos títulos depois de cumprida essa formali dade. E nada impede se inclua na categoria o compromisso de compra e venda devidamente inscrito, desde que obtida a escritura ou a sentença de adjudica- Usucapião 63 ção e levada (aquela ou esta) a registro; pois o que então sucede é que os efeitos da transcrição, por força do art. 5.° do Decreto-lei n.O 58, de 1937, re troagem à data da averbação do compromisso, ou seja, é justo título a promessa de compra e venda irretratável, feita a um non dominus, e desde a data de sua inscrição no Registro Público, sob a condição, porém, de que o promitente com prador venha a obter e registrar a escritura definitiva ou a carta adjudicatória. O justo título precisa ser atributivo, e não simplesmente declarativo do direito; válido, isto é, não eivado de nenhuma nulidade absoluta; não suspenso por ne nhuma condição; certo, ou seja, relativo a coisa determinada; e real ou efetivo, excluindo-se, pois, o justo título putativo. Em matéria de usucapião, boa fé é a crença em que se acha o possuidor de que a coisa possuída lhe pertence. Crença essa, porém, não correspondente à realidade; funda-se em um erro excusável de fato. A boa fé presume-se juris tantum, em decorrência do título. Deve persistir durante o curso da usucapião. Sendo indispensável o justo título na usucapião trienal, para haver boa fé é essen cial que o título revele o contrário, pois, assim, estaria provada a má fé. 14. Usucapião de bens móveis A usucapião de bens móveis é regulada pela nossa legislação, a ela referindo se o nosso Código Civil, bem como outras legislações (Código Civil alemão, art. 937; Código Civil suíço, art. 728). O Código Civil brasileiro tem uma seção própria, com título Da aquisição e perda da propriedade móvel. Preceituam tais artigos: "Art. 618. Adquirirá o domínio da coisa móvel o que a possuir como sua, sem interrupção, nem oposição, durante três anos. Parágrafo único. Não gera usucapião a posse, que se não firme em justo título, bem como a inquinada, original ou superveniente de má fé. Art. 619. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião independentemente de título de boa fé. Parágrafo único. As disposições dos arts. 552 e 553 são aplicáveis ao U5U capião das coisas móveis." a) coisa hábil: é a suscetível de alienação e que possa ser comercializada; b) res mobilis: são todas as coisas que, por efeito de força própria ou não, podem ser transportadas de um lugar para outro, sem prejuízo de sua forma e substância. Mobílias, automóveis, locomotivas, enfim, tudo aquilo que não seja classificado como imóvel. Todos os objetos materiais, que, por sua natureza não se considerem imóveis. São considerados subdivisão dos móveis os semoventes; res semoventes são os que se movem por si mesmos, os animais, desde o micróbio até a baleia. Para efeitos de prescrição aquisitiva estão enquadrados nesta espécie; c) posse: a coisa hábil precisa ser possuída. l! condição essencial, e a posse deve ser pacífica, tranqüila e contínua. Para que ela seja pacífica e tranqüila é mister que não haja oposição, nem contestação. Tanto uma como outra podem partir do legítimo dono ou de outro interessado, apresentada em qualquer tempo, no decurso da posse do usucapiente, ou não, ação que for intentada para aqui sição do domínio. Qualquer oposição ou contestação importa a interrupção da 64 R.C.P. 1/85 prescnçao aquisitiva. O possuidor de coisa móvel pode acrescer à sua posse também a do seu antecessor, mas é necessário que a posse deste bem como do atual sejam mansas, pacíficas, sem interrupção nem oposição. As normas sobre as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição que se aplicam à usucapião imobiliária também se aplicam à mobiliária. Contudo, em se tra tando de usucapião de coisas móveis, a lei não dá importância à presença ou ausência do proprietário da coisa prescribente, ao contrário do que acontece com a usucapião de bens imóveis; d) animus domini: é o desejo que tem o possuidor de ser dono da coisa. O Código fala em possuir como sua a coisa. Não é necessário que o possuidor se julgue proprietário da coisa móvel, bastando que tenha o desejo de que a coisa lhe pertença. Esta manifestação de vontade não é um ato jurídico, mas é sub metida às regras dos atos jurídicos, podendo ser posterior à aquisição da posse; e) justo título: é aquele que é próprio a transferir o domínio e que o trans feriria se emanasse do verdadeiro dono. Deve ser válido, real e certo. Mas pode acontecer que ele esteja eivado de erros. Pode ter sido emanado de outrem que não o verdadeiro dono. Neste caso, para adquirir por usucapião, o possuidor precisa ter a seu favor os demais requisitos exigidos pela lei. Constituem justo título, de acordo com a doutrina mais recente, os julgamentos de adjudicação, a alienação consentida por um indivíduo que não é proprietário, em virtude de cessão viciosa de lesão e dolo, e em geral o título suscetível de ser anulado por erro, dolo ou violência e a alienação anulável apenas; f) lapso de tempo: na usucapião de móveis, quando haja justo título e boa fé, o lapso de tempo é de três anos, uma vez que não haja interrupção. E con dição essencial que esta não ocorra durante todo o prazo estabelecido em lei. Não se deve confundir posse sem interrupção com posse descontínua. A des continuidade é o ato da abstenção do possuidor que é negligente em exercer seu direito, o que faz com que não tenha direito. Enquanto a interrupção não pro vém do possuidor, não sendo um fato seu, ele a sofre. Com a interrupção a posse deixa de existir, por um momento, o que não acontece com a posse des contínua, que sempre subsiste, embora irregularmente exercida. Em face da exigência da posse trienal para a aquisição da propriedade dos bens móveis, não vale a velha regra do direito francês: "en fait des meubles possession vaut titre " , que é a prescrição instantânea. A norma do direito fran cês não tem agasalho no direito nacional. E possível também a usucapião extraordinária de bens móveis, com o decurso de cinco anos, exigindo posse mansa e pacífica, sem interrupção nem oposição, sem necessidade de título e boa fé. 15 . Usucapião ordinária Após ter visto a usucapião em geral, passo a falar sobre cada uma de suas espécies no tocante apenas ao ainda não comentado anteriormente. Nosso di reito anterior conhecia três formas de prescrição aquisitiva: a ordinária, de três anos para os móveis e semoventes, e de 10 ou 20 anos para os imóveis, coeforme residissem ou não na mesma comarca o proprietário e o possuidor; a extraordi nária, que se completava em 30 anos para os móveis e imóveis em geral, ou em Usucapião 65 40 para os bens do domínio do Estado, cidade e vilas, e quanto aos imóveis das igrejas e estabelecimentos pios; e a imemorial, que, ao que se dizia, era antes uma presunção de aquisição legal do que propriamente um modo de adquirir. Para a prescrição ordinária exigia-se o concurso dos seguintes requisitos: a) posse animo domini, contínua, pacífica, pública e não-interrompida; b) lapso de tempo; c) coisa hábil; d) justo título (justa causa possessionis); e) boa fé. A Lei n.O 2.437, de 7 de março de 1955, modificou os prazos dos arts. 550, 551, 619 e 698 do Código Civil, dando-lhes sua atual redação. Afora as modi ficações no lapso de tempo, de que falaremos a seguir, mantiveram-se no Código Civil os demaisrequisitos da posse, da coisa hábil, do justo título e da boa fé para a prescrição ordinária. "Art. 551. Adquire também o domínio do imóvel aquele que, por 10 anos entre presentes, ou 15 entre ausentes, o possuir como seu, contínua e incontes tadamente, com justo título e boa fé. Parágrafo único. Reputam-se presentes os moradores do mesmo município e ausentes os que habitem municípios diversos." Estes são os prazos exigidos pela atual redação de nosso Código Civil, quanto à usucapião ordinária. O usucapiente para invocá-la deve ter título, mais do que isto, título justo, hábil à aquisição do domínio, como uma escritura de compra e venda, um for mal de partilha ou uma carta de arrematação, com aparência de legítimo e vá lido. Ainda que qualquer desses títulos se ressinta de vício ou irregularidade, o decurso do tempo tem a virtude de escoimá-Io de seus defeitos, desde que con corram os demais requisitos da usucapião. Por exemplo, o comprador adquire a non domino determinado imóvel, entra na posse do bem adquirido e não so fre qualquer impugnação em 10 ou 15 anos. O transcurso do tempo expurga o vício originário e o adquirente poderá reclamar o reconhecimento da usucapião. Toma-se claro, todavia, que o vício não deve ser de forma, nem constituir nulidade absoluta. Assim, já se decidiu que justo título não é escritura sem o necessário formalismo, como, por exemplo, a assinatura das partes. A boa fé, a certeza de seu direito, a confiança inabalável no próprio título, sem vacilações, sem possibilidade de temperamento ou de meio-termo. A boa fé ou é integral, ou não existe. Ela há de verificar-se ao ter início a posse do usucapiente e subsistir por todo o tempo dela. Se o mesmo tem ciência do vício que lhe impede a aquisição do domínio, inexiste boa fé, capaz de conduzir à usucapião ordinária, e só pela extraordinária conseguirá ele depurá-la de sua mácula. 16. Usucapião extraordinária "Art. 550. Aquele que por 20 anos, sem interrupção nem oposição, possuir como seu um imóvel adquirir-Ihe-á o domínio, independentemente de título e boa fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o de clare por sentença, a qual lhe servirá de título para transcrição no registro de imóveis." Conforme salienta Carvalho Santos,· "a posse não precisa ser fundada em justo título e boa fé, que se presumem. Trata-se de uma presunção iuris et de • Cddigo Civil interpretado. 6. ed. Rio de Janeiro, 1956. v. 7. p. 426. 66 R.C.P. 1/85 jure, que não admite prova em contrário. Pelo que, basta o adquirente provar que possui o imóvel como seu, isto é, mansa, pacífica e continuamente, para que se presuma, da parte dele, a boa fé, sem ter o justo título, não podendo o proprietário contestar essa presunção." Mesmo que a contestasse, não destruiria o direito da usucapião, pois o legislador firmou com tal presunção que a usuca pião extraordinária independe de justo título e de boa fé. Repousa ela em duas situações bem definidas: a atividade singular do pos suidor e a passividade geral de terceiros, diante daquela atuação individual. Se essas duas atividades perduram contínua e pacificamente por 20 anos ininter ruptos, consuma-se a usucapião. Qualquer oposição subseqüente se mostrará inoperante, porque esbarrará ante o fato consumado. 17. Usucapião do Estatuto do Indio Nas terras habitadas por silvícolas, por força do art. 3.° da Lei n.O 6.969/81, não corre a usucapião. Aliás, a matéria, embora com outras palavras, já consta da Lei n.O 6.001/73, denominada Estatuto do lndio. O art. 18, caput, desse estatuto, preconiza que as terras indígenas não poderão ser objeto de arrenda mento ou de qualquer outro negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas. O art. 33 do referido Estatuto também prevê essa forma simplificada de aqui sição de propriedade para o silvícola, e seu parágrafo único protege-a contra invasão de terceiros. Assim, o índio, integrado ou não, que ocupe como pró prio por 10 anos consecutivos trecho de área inferior a SOha, adquirir-lhe-á a propriedade plena. "O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por tribais, às áreas reservadas de que trata essa lei, nem às terras de propriedade coletiva do grupo triba1." 18. Usucapião rústica ou pro labore Há muitos séculos o instituto da usucapião vem sendo considerado de grande alcance social e jurídico. Mesmo no tempo em que a densidade demográfica era baixíssima, o que havia eram terras e mais terras sem dono e a perder de vista. Hodiemamente, com o vertiginoso aumento da população e, paradoxal mente, a queda da produção per capital impõe-se que se dê ao instituto da usu capião de terras uma especial atenção jurídica e social. As terras apropriadas dos possuidores, com ânimo de dono, chegam a abranger imensas propriedades, com centenas de hectares. Desta forma impôs-se um estudo sócio-jurídico, de conformidade com a dimensão da terra e sua destinação econômica. O Brasil, por ser um país novo e dotado de grande extensão territorial, possui enormes áreas desabitadas e desligadas entre si. E mais do que este aspecto de ordem geográfica, existem outros de caráter econômico, refletindo-se na agricul tura e na pecuária do país: o latifúndio, tão prejudicial como o minifúndio. Muitos proprietários convenceram-se de que, em matéria de terras, só se ganha dinheiro na valorização. E com este conceito derrotista, não plantam, não criam e na maior parte das vezes nem sabem a extensão correta de suas propriedades. Usucapião 67 Para dar estímulo aos que nada possuem, independentemente da nacionalidade ou de serem terras do governo, instituiu-se a usucapião pro labore. O prazo de ocupação é menor e a área limitada por lei. A Lei n.O 601, de 18 de setembro de 1850 é o mais remoto antecedente histó rico da usucapião pro labore no direito brasileiro. A chamada Lei de Terras reconhecia ao posseiro o direito de usucapir terra devoluta por ele ocupada, em posse mansa e pacífica, por cinco anos, antes da medição, ou por 10 anos, se estabelecida após a referida medição. Desde esta época há larga discussão sobre a possibilidade de usucapião de terras públicas. Em 1934 passou a ser matéria constitucional, sendo chamada de pro labore, rústica ou agrária, constitucional ou pro deserto: "Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por 10 anos contínuos, sem oposi ção nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até 10ha, tor nando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua moradia, adquirirá o do mínio do solo, mediante sentença declaratória devidamente transcrita." A regra passou ipsis verbis para a Constituição de 1937 e com algumas modificações (25ha) para a de 1946. Na Emenda Constitucional n.O 10 de 1964 constou, porém, com área de até 100ha, bem como no Estatuto da Terra (Lei n.O 4.504/64, art. 98), que fala em módulo rural. Omissas a seu respeito a Carta de 1967 e a Emenda Constitucional n.O 1 de 1969; daí não poder mais ser chamado de constitucional, vez que desceu da órbita da Carta Magna para a da lei agrária. Atualmente, o que vige entre nós é o art. 98 do Estatuto da Terra: "Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por 10 anos inin terruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, tornando-o pro dutivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, trecho de terra com área ca racterizada como suficiente para, por s~u cultivo direto pelo lavrador e sua famí lia, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões fixadas por esta lei, para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio mediante sentença declaratória devidamente transcrita." O Estatuto da Terra definiu o módulo rural, que representa a área suscetível de usucapião, de acordo com as várias regiões geoeconômicas. Esta espécie de usucapião só pode incidir sobre imóvel rústico, exigindodo usucapiente: a) que não seja proprietário rural nem urbano. Muito justo; o objetivo da norma é não só intensificar a produção agrícola como também proteger a pessoa do lavrador e de sua família. Não tendo ele outra propriedade, nem rústica, nem urbana, terá necessariamente de tratar com carinho a terra de que pretende ser dono, dedicando-se inteiramente a ela, sua futura propriedade. E a lei fa zendo tal exigência faz com que o lavrador estabeleça seu lar, no meio em que trabalha. Tendo ele outra propriedade poderá, por motivos de comodidade, para si próprio ou de sua família, habitar nela, com prejuízo de suas atividades diárias. Além do mais, não seria justo que este favor, concedido por lei aos não-proprietários, servisse aos já proprietários de imóveis, facilitando a especula ção imobiliária; b) que ocupe, por 10 anos ininterruptos, sem oposição, nem reconhecimento de domínio alheio; o prazo de 10 anos tem de ser contínuo e é contado do dia seguinte em que o usucapiente entrou no exercício efetivo das terras. A inter rupção pode ser natural ou civil. E natural quando o possuidor esbulhado deixa 68 R.C.P. 1/8j passar um ano sem exercer ação de esbulho ou quando abdica da posse. l! civil quando o proprietário aciona o possuidor ou quando este reconhece o direito do proprietário. A suspensão da usucapião é regulada pelo art. 553 do Código Civil. Pela suspensão, ao contrário da interrupção, o curso da prescrição cessa somente durante o impedimento, sem inutilizar o tempo anterior. Assim, desa parecendo os impedimentos que deram causa à suspensão, continua o prazo da usucapião, somando-se ao prazo anterior até o dia em que foi suspenso. A posse, durante todo o período de 10 anos, tem de ser tranqüila e pacífica. Se durante este prazo legal aparecerem terceiros com direitos sobre a terra, não poderá o ocupante requerer a usucapião, porquanto houve oposição, deixando de ser a posse mansa e pacífica como exige a lei. Essa espécie de usucapião também exige o animus domini, pois a letra constitucional reza: "sem reconhecimento de domínio alheio." O possuidor que pede licença a terceiros para construir, plantar ou praticar quaisquer outros atos na terra ocupada, ou aquele que pro cura comprar a terra que ocupa, não tem o animus domini, estando, pois, uma destas atitudes interrompendo a prescrição aquisitiva, o que resulta para ele na perda de todo o tempo decorrido; c) que o trecho de terra não seja superior a 100ha. Pela Constituição de 1934 a área máxima para a prescrição aquisitiva era de lOha. A Constituição de 1946 alterou-a para 25ha e a Emenda Constitucional n.O 10 de 1964 aumentou a área para 100ha, o que é suficiente para assegurar ao lavrador e sua família condições de subsistência e progresso econômico. Pelo art. 4.°, 11 e 111, da Lei n.O 4.504/64 (Estatuto da Terra) o tamanho da área ficou dependendo do módulo rural, que subordina-se a tabelas revistas periodicamente pelo Incra, para cada região. Estabelece uma unidade de medidas que exprime a interde pendência entre a dimensão, a situação geográfica dos imóveis rurais e a forma e condições de seu aproveitamento econômico. Outra modificação introduzida pelo Estatuto da Terra foi referente às terras públicas, que, no seu art. 102, pa rece admitir usucapião rústica em terrenos da União. Reza o referido artigo: "os direitos dos legítimos possuidores de terras devolutas federais estão condi cionados ao implemento dos requisitos absolutamente indispensáveis da cultura efetiva e da morada habitual"; d) trabalho produtivo e direto do agricultor. l! a mais importante das exigên cias. Se o espírito da norma foi proteger o lavrador e não o ocioso, não seria compreensível que não fosse exigida tal condição. A finalidade foi premiar o trabalho produtivo do homem do campo, dando-lhe oportunidade de tornar-se proprietário da terra que, durante anos, ele próprio cultivou e amanhou, com sua família ou com seus assalariados, e, por conseguinte, não se poderia entender que fosse concedida a usucapião àquele que, embora ocupando a terra, não de senvolvesse nela atividade produtiva; e) que more efetivamente na área usucapível. A presença do lavrador com sua família na área ocupada é que lhe dá ânimo e facilidade de produzir e cuidar com carinho de sua lavoura. Sua presença de modo algum pode ser dis pensada. Nas outras espécies de usucapião não é exigido que o usucapiente more ou esteja presente na área usucapível, sua posse pode ser comprovada por meio somente da presença de terceiros, seus prepostos, ou até de inquilinos, que lhe paguem os alugueres de modo pacífico. Será exato que vige ainda entre nós esse tipo especial de usucapião? A dúvida funda-se em que foram omissas a seu respeito a Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional n.O 1 Usucapião 69 de 1969; não derivando, por outra parte, a força do art. 98 do Estatuto da Terra e ainda assim apenas para as terras públicas, senão do preceito das Constituições anteriores, em especial da Emenda Constitucional n.O 10 de 1964. Nem dela cogitou, afinal, o·Código de Processo Civil de 1973, que se limitou a regular o procedimento da usucapião de terras particulares. Dúvida maior surgiu com o advento da Lei n.O 6.969/81, que para alguns teria revogado a usucapião rústica do Estatuto da Terra. Entendo que não; ambas podem coexistir, pois são diferentes, e assim já tem entendido grande parte da doutrina e da jurispru dência. 19. Usucapião especial Esta forma de usucapião é regulada pela Lei n.O 6.969/81. Só a pessoa física pode requerê-la; beneficia brasileiro ou estrangeiro, sendo de notar-se que este fica sujeito às restrições que lhe impõe legislação especial, mormente a Lei n.O 5.709/71. Está como condição ao beneficiário que não seja proprietário rural ou urbano. A posse deve ser atual; não é possível que o não-possuidor requeira usucapião de um imóvel porque o possuíra no passado. Há de sê-lo no momento em que ajuíza sua pretensão. A posse é a exteriorização da pro priedade, é poder de fato sobre a coisa, é a posição da pessoa em face da coisa como normalmente se posicionaria o proprietário. O possuidor normalmente sabe que a coisa não é sua. Pode até conhecer-lhe o proprietário, mas age como se não o soubesse, age com animus domini, como se proprietário fosse. Basta que ele não admita que o proprietário teve vantagem física da coisa, nem se atribua a condição de possuidor por mercê do proprietário ou em virtude de uma relação contratual com ele. Assim, não pode usucapir quem tem a coisa como locatário, depositário, comodatário, arrendatário, parceiro, outorgado etc. Posse hábil para gerar a usucapião é a despida de vínculo com o proprietário. A posse não gera usucapião instantaneamente; é preciso que seu exercício dê-se num certo lapso de tempo. O prazo da usucapião especial é o menor prazo para usucapião de imóvel no regime jurídico brasileiro. Precisa ser contínuo e sem oposição; sendo interrompido, perde a continuidade. Este prazo é de cinco anos. Aplicam-se à espécie as regras pertinentes às causas substantivas e suspensi vas do curso do prazo (Código Civil, arts. 168 a 170), bem como às interruptivas (Código Civil, art. 172). Entenda-se que, em caso de suspensão ou interrupção, só são eficazes durante o decurso dos cinco anos. Se a posse data de mais de cinco anos, os motivos novos de suspensão ou interrupção serão irrelevantes, porque a condição tempo já fora integralmente cumprida. Nesta hipótese, o in teressado pode requerer a usucapião. Quanto a esta oposição, é preciso que seja hábil; não basta o proprietário proclamar sua titularidade dominial nem mover ações contra o possuidor, se este for nelas vencedor. :e preciso que, pela oposição, seja arrebatada a posse do pretendente à usucapião de maneira defi nitiva. Simples turbação ou esbulho de posse, repelidos utilmente, seja pelo re curso da legítima defesa (Código Civil, art. 502), seja pela intervenção judicial
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