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FOME, DEMOCRACIA E LIBERDADE ... DJ ACm MENEZES A paz de hoje ainda não é paz. É a dissimulação da Guerra. José Sarney* José Sarney* João Paulo 11 declarou que não há "cultura" sem "liberdade". Então, plu mitivos inocentes e mesmo veteranos credenciados saíram de seus cuidados para festejar a eminentíssima declaração. Também comecei a meditar o tema na intenção de perscrutar-lhe o sentido universal, dada a ressonância que, vinda de lábios tão sugestivos, atuam nos ouvidos contemporâneos ubi et orbi. Sem cultura não há liberdade... Avançando precavidamente, começo por dizer que "cultura" é produto e "liberdade" é condição. Não somente a cultura material como a não-material: representam criações sociais do homem e expri mem as diferentes fases de seu desenvolvimento histórico. O que dificulta a colocação do problema (o seu posicionamento, consoante articula o pernos ticismo vigente) é sua natureza dialética: porque o homem não é um demiurgo produzindo seu universo cultural, pois, à medida que o vai criando sofre-lhe a ação da réplica criativa. Vincula-se, intimamente, ao processo poiético (aus culte-se o étimo de poiésis) -- e, mediante isso, dilata a própria essência humana. Criador e criatura envolvem-se na mesma solidariedade autodinâ mica. É o que Engels, com os olhos em Hegel, mencionava como "causalidade recíproca" (Wechselwitkung). Eis, portanto, a "cultura" como algo indiscernível do processo de "huma nização". Destarte, o pensar, apanágio do humano, não se estrema do agir. O homo sapiens, o homo faber e o homo loquens são aspectos do mes mo homo, ou melhor, dos mesmos homines, na evolução das estruturas biológi cas e sociais que atestam suas transformações. l No enfoque da indagação do problema antropógeno da cultura, a apreensão e formulação do problema da liberdade torna-se difícil. Pelo menos, ao tentar fixá-lo à luz dos dados que oferece a história cultural do homem. Que seria "liberdade" na fase de um pensar ativo, todo ligado às tramas vitais do útil e do nocivo no processo de sobrevivência zoológico? A práxis, em nível infe rior dos comportamentos pré-simbólicos, só poderia gerar o sentimento "liber dade" em termos de movimento, de ação, isto é, de liberdade física, na obscuri dade de intuições afetivas. A representação mental dos "atos" e episódios da vida primitiva, que os etnólogos tentam dilucidar nos dados pictográficos das paredes das cavernas do quartenário superior, não permite formular o problema. Nada diz a res- • O Brasil não aceita a fome nem negocia a liberdade - perante a 40." Assembléia das Nações Unidas, 1985. 1 Menezes, Djacir. O sentido antrop6geno da hist6ria. Rio de Janeiro. Organização Si mões, 1950. R. C. poI., Rio de Janeiro, 29(2):30-32, abr.ljun. 1986 1 I--------------------------------__________________________ ~----- peito do "poder" que resultaria da convlvencia arcaica. A "personalidade" sequer se desprendera da situação placentária (não encontro outra maneira de exprimir a transição da comunidade clânica). Deixemos a interrogação para outros mais argutos. Etimologicamente, ensi nam os léxicos, liber, era, erum (cujas formas arcaicas eram loebesum, loeber tatem, no grego liptõ, desejar) revivem em Cícero. Quid est enim libertas? Potestas vivendi ut vellis. Semanticamente, associa-se ao velho deus itálico Ceres do crescimento, evoca o livrar-se dos vínculos, inspirando o solvere latino - romper as amarras, desvencilhar-se, partir. "Persuadir - escreveu Pontes de Miranda - é arma democrática. Imita a ciência, que tem por fito o valor da verdade por sua própria função persua siva." Então percebemos a interferência da liberdade na democracia - e dis tinguimos o truque fundamental, que é a hipótese do interesse econômico na verdade científica. Tocamos aí a torpeza da enorme falcatrua contemporânea dos regimes políticos. Isso, Pontes não o disse. Mas andou perto, quando afir mou que "um dos ideais democráticos é o de transformar a decisão pela vontade em decisão pela verdade". A sentença tem alcance político admiravel mente subversivo. Os que se levantaram contra a democracia e a liberdade foram movidos pelo instinto, na ignorância dessa distinção. Essa ignorância existe ainda nu trindo recrudescências do pensamento totalitário soterrado nas raízes do siste ma capitalista. Esse obscurantismo consubstancia-se aos mais execráveis interesses de uma beligerância mascarada pela diplomacia de uma paz perigosa para o futuro da humanidade. Para assentar na linha da positividade esta argumentação metodológica, direi que o pensamento político é, na sua essência, a dialética entre direito e força ou entre lei e poder, vulgarmente desvinculados na intuição mecanicista típica do positivismo. Tal concepção exclui o fieri vital do processo. Postulando a cisão entre "forma" e "fundO", como fez Pontes na análise epistêmica da liberdade e da democracia,2 pôde conceituar a primeira como forma e a se gunda como fundo, dando ao problema perspectiva escolástica. Isso, a nOSSG parecer, obscurece-lhe a natureza intrinsecamente dialética. Erro grave; por que escamoteia o valor gnosiológico da "liberdade". Há que partir do centro do debate: a determinação do estilo de ação polí tica na sociedade democrática, a saber, a eleição livre do órgão decisório. A decisoriedade inspirada na verdade, não no interesse. l! na responsabilidade dos representantes, oriundos desse método, que reside o caráter democrático do sistema. Ao mencionar a escolha pressupõe, inelutavelmente, a liberdade, condição implícita da organização do Estado, vencido o sufoco das facções políticas. Todo o esforço consistirá no livre funcionamento das instituições representativas, o nó górdio do problema, que põe em foco a interrogação sobre a legitimidade do poder. O método consensual que é a base da experiência de mocrática não exprime a supressão da força, mas a sua racionalização, isto é, a via que superou, transformando-se na ratio, as formas inferiores da interação humana. Escreveu o autor da epígrafe citada: "A equalização de oportuni dades é o alimento da liberdade social, para que o mercado sirva aos homens em vez de os homens serem servos do mercado." Vejamos a análise: "liberdade 2 Pontes de Miranda. Democracia, liberdade e igualdade: os três caminhos. 1. ed. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1945. Fome, Democracia e Liberdade 31 social" é um pleonasmo da velha metafísica política. Toda conceituação de liberdade do homem implica a convivência, o socius. Segundo, a idéia de mer cado a serviço dos homens implica a alteração de relações sociais que frustra ria o regime capitalista nas suas bases históricas. Sei que essa tese levanta alar mas nos arraiais conservadores mas não posso, logicamente, esquivá-Ia e estou bem velho para torcer o caminho. Diz nosso Presidente, cuja honestidade admiro nos seus pronunciamentos, que "o século que virá será o século da socialização dos alimentos". Mas há, subterraneamente a estas palavras maravilhosas, a realidade de um sorites quase diabólico. E vem a ser: a socialização dos alimentos implica a socialização dos meios de produção dos alimentos; esta, na mudança de relações entre os que comem, que são todos, e os que produzem, que são poucos; os que pro duzem são donos dos meios de produção; ora acontece que ... 1! melhor parar e que não aconteça nada. Por isso é que sendo um professor quase octogenário, com quase meio século de cátedra, não posso convencer-me da eliminação des ses bolsões da fome mediante "uma vontade mundial, de uma decisão sem vetos". Concordo em que "é urgente um plano de paz pela extinção da fome". E aplaudo a serenidade com que o corajoso presidente o proclama. Proclamá-lo num país encabrestado de dívidas já é um arrojo que nos consola. Está no Sermão da Montanha, que continua sendo um documento nimiamente sub versivo. Mas detenho-me prudentemente. Na minha eficiente senilidade, e em nome de minha simpatia, tenho o atrevimentode concluir esta arenga com um gra tuito conselho ao nosso sereno e sincero Presidente: o de não analisar muito os fundamentos dessas reflexões sobre liberdade, democracia e paz porque abre caminhos tempestuosos e mavórticos. 32 R.C.P. 2/86
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